1 de janeiro de 2025

Teses preliminares sobre o conceito de ecocivilização

Nesta palestra dada na Universidade de Pequim em outubro de 2024, John Bellamy Foster compartilha dez teses descrevendo tanto as raízes quanto as manifestações contemporâneas da ideia de civilização ecológica. Relacionando as origens do conceito nos escritos de Marx e Engels à sua expressão hoje na sociedade chinesa, Foster revela a natureza inerentemente socialista da ecocivilização e a necessidade de uma revolução ecológica mundial para mudar em direção ao desenvolvimento humano sustentável.

John Bellamy Foster


Volume 76, Issue 08 (January 2025)

No século XIX, durante a Revolução Industrial na Inglaterra, a cidade de Newcastle era o centro da indústria carvoeira. A expressão “levar carvão para Newcastle” surgiu, então, para indicar a inutilidade de se levar alguma coisa para um lugar onde essa coisa já existe em abundância. Para um pensador ocidental, falar sobre civilização ecológica (ou ecocivilização) a uma audiência na China é como levar carvão para Newcastle, uma vez que é precisamente na China que esse conceito está mais altamente desenvolvido.

Ainda assim, defenderei que a noção de “ecocivilização” está intrinsecamente relacionada ao marxismo. Portanto, essa apresentação estará direcionada ao exame do conceito de ecocivilização a partir de uma perspectiva marxista ecológica mais abrangente. A este respeito, tenho dez teses preliminares sobre a ecocivilização.

(1) O conceito de civilização ecológica tem origens marxistas e é inerentemente socialista. A primeira vez que este conceito apareceu como uma visão sistemática foi no final da década de 1970 e nos anos 1980, na União Soviética, inspirado pelas considerações do pensamento ecológico de Karl Marx e imediatamente adotado pelos pensadores chineses. Até hoje o conceito não tem praticamente qualquer presença no Ocidente, uma vez que está radicalmente separado da noção de civilização capitalista, assim como das visões eurocêntricas da modernidade.[1]

(2) A perspectiva filosófica fundamental da ecocivilização tem raízes profundas nas primeiras noções civilizacionais da modernidade, ou da relação ativa do ser humano com o mundo orgânico-material, como descrito pelos pensadores marxistas Joseph Needham e Samir Amin em suas críticas ao eurocentrismo. Esta perspectiva filosófica orgânico-materialista emergiu no período conhecido como Era Axial, particularmente na civilização helênica e no período dos Estados Combatentes na China, entre os séculos V e III a.C. O próprio Karl Marx abraçou uma visão orgânico-materialista desde cedo, desenvolvendo uma noção de seres humanos como seres automediadores da natureza — uma noção que rompia com o mecanicismo ocidental e com as concepções eurocêntricas da modernidade, influenciada por seu encontro com a filosofia materialista epicurista.[2] No entanto, grande parte desta visão ficou submersa no marxismo posterior, e foi completamente extinta na tradição filosófica marxista ocidental. Na China, a continuidade da civilização a partir do taoísmo (que tem paralelos com o epicurismo), do confucionismo e do neoconfucionismo, significou a perpetuação dessas visões orgânico-materialistas iniciais, tornando a China mais receptiva à ecologia e às perspectivas ecológicas de Marx em particular.

(3) Embora tenha raízes filosóficas antigas, a civilização ecológica, enquanto perspectiva histórica transformadora, é um produto da sociedade pós-revolucionária e do desenvolvimento do socialismo. Ela reflete a noção de seres humanos como seres automediadores da natureza, que é parte integrante da visão completa de Karl Marx sobre o desenvolvimento humano sustentável, incorporada em sua teoria da ruptura metabólica. Esta abordagem rejeita qualquer noção de que a ecocivilização seja um produto direto do pré-modernismo ou do pós-modernismo, ou que possa ser explicada, como alguns teóricos da ecologia chineses propuseram, pelo encadeamento das civilizações tradicional, agrícola, industrial e ecológica.[4]

(4) O conceito de civilização ecológica socialista na China foi o que mais completamente incorporou essas ideias. A civilização ecológica socialista deve ser considerada um desenvolvimento dentro do socialismo. É importante enfatizar que não pode existir qualquer conceito de “civilização ecológica capitalista”, uma vez que o capitalismo é inerentemente alheio e destrutivo em relação à natureza/ecologia. Assim, falar de civilização ecológica socialista é simplesmente falar de socialismo completo, como realização plena do desenvolvimento humano sustentável, que incorpora tanto a igualdade substantiva quanto a sustentabilidade ecológica; significa a reconciliação da humanidade com a natureza.

(5) A civilização ecológica aponta para aquilo que os marxistas chineses apresentaram como a necessidade de “modernização da existência harmoniosa entre a humanidade e a natureza”. Essa ideia é sustentada pelos princípios básicos do socialismo. Portanto, é antitética à chamada modernização ecológica, entendida como uma filosofia mecanicista e como um projeto puramente tecnocrático no Ocidente.[5] Ao mesmo tempo, ela adota algumas das mesmas tecnologias necessárias à transformação ecológica, porém utilizadas em conformidade com os princípios socialistas, exigindo relações sociais diferentes. O que é crucial aqui é a concepção fundamentalmente diferente de modernização no marxismo chinês e no pensamento ecológico.[6]

(6) O conceito de “comunidade de vida”, desenvolvido pela teoria ecológica socialista na China, é essencial para definir a civilização ecológica. Ele possui três dimensões: (a) uma comunidade de vida com os ecossistemas; (b) “a comunidade de vida da humanidade e da natureza”; e (c) uma síntese dialética, constituindo a “comunidade de toda a vida na terra” e um “futuro compartilhado”.[7] Como escreveu o grande conservacionista estadunidense do início do século XX, Aldo Leopold, “Abusamos da terra porque a consideramos uma mercadoria que nos pertence. Quando vemos a terra como uma comunidade à qual pertencemos, podemos usá-la com amor e respeito”. Aldo Leopold propôs uma ética da terra que ampliava “os limites da comunidade (...) a fim de incluir solos, águas, plantas, animais ou, coletivamente, a terra”.[8] Karl Marx argumentou que ninguém é dono da terra; nem mesmo todos os países e todas as pessoas do planeta podem sê-lo. São apenas “seus possuidores, seus beneficiários, e têm de legá-la em melhor estado às gerações seguintes, como boni patres familias [bons chefes de família]”.[9]

(7) A noção de sustentabilidade ecológica inserida no conceito de comunidade da vida é exemplificada no “Pensamento de Xi Jinping sobre a Civilização Ecológica”. Xi Jinping declarou que, se tivermos de escolher entre “montanhas de ouro” e “montanhas de verde”, é preciso escolher as montanhas de verde, reconhecendo que “as águas límpidas e as montanhas verdejantes são ativos inestimáveis”. Adotando uma abordagem materialista marxista da ecologia, Xi Jinping argumentou que a ecologia é “a forma mais inclusiva de bem-estar público”. Fazendo eco a Friedrich Engels sobre a “vingança” da natureza, Xi Jinping afirmou que “qualquer dano infligido por nós à natureza acabará voltando para nos assombrar”. Além disso, ele insiste que a questão da natureza vai além da mera sustentabilidade material, abrangendo mesmo a estética, como em seu conceito de “Bela China”.[10] Dessa forma, a noção de civilização ecológica como comunidade de vida é expandida, adquirindo um significado social mais amplo para o trabalhador coletivo por meio da renovação da linha de massa.

(8) Marx argumentou que o roubo da natureza pelo capitalismo, resultando na ruptura metabólica, implica o enfraquecimento da eterna base natural ou ecológica da civilização. Isso significa que a relação metabólica precisa ser restaurada, o que só é possível sob o socialismo.[11] Com o mundo sendo engolido por uma crise ecológica planetária, tal restauração é a primeira das prioridades (desconsiderando a ameaça nuclear) a determinar o futuro da humanidade. Nos países ricos, caracterizados pela sobrecarga ambiental,[ii] isso levanta a questão do decrescimento. No entanto, para a humanidade como um todo, levanta-se a questão do desenvolvimento humano sustentável e, em última análise, da civilização ecológica sob o socialismo completo.

(9) O conceito de decrescimento estava ausente no socialismo do século XIX, muito embora Marx já tivesse uma visão de desenvolvimento humano sustentável. O decrescimento, enquanto processo de desacumulação, adquire todo o seu significado a partir de uma perspectiva marxista do sistema irracional do capitalismo monopolista/imperialista e de suas crises de superacumulação. Dessa forma, qualquer movimento decisivo em direção à ecologia nos países capitalistas centrais do sistema mundial exige um afastamento das estruturas do capitalismo monopolista/imperialista.[12] Os países capitalistas dominantes, que também são os países monopolistas-capitalistas e imperialistas centrais, caracterizam-se ecologicamente pela sobrecarga ambiental, com pegadas ecológicas que ultrapassam – em alguns casos, três ou quatro vezes mais – aquilo que a Terra poderia suportar, caso fossem generalizadas para a humanidade como um todo. Essas enormes pegadas ecológicas são um reflexo do imperialismo econômico e ecológico. Portanto, do ponto de vista da humanidade global, estas nações devem reduzir, drástica e desproporcionalmente, o seu consumo de energia per capita, assim como a utilização de recursos e as emissões de carbono, juntamente com a sua expropriação líquida de riquezas do restante do mundo. Uma vez que o capitalismo monopolista promove um imenso desperdício econômico como meio de acumulação/financeirização, gerando pobreza artificial, e exibe níveis astronômicos de desigualdade, em que um punhado de indivíduos possuem mais riqueza do que metade da população, uma estratégia planejada de decrescimento é consistente com uma drástica melhoria das condições econômicas e sociais para a maioria da classe trabalhadora.[13]

(10) Em todos os países do mundo, a crise ecológica planetária demanda uma revolução ecológica envolvendo tanto as forças produtivas quanto as relações sociais. Para todos os casos, isto implica o desenvolvimento do proletariado ambiental em confronto com o capitalismo monopolista generalizado e o imperialismo. Na China, e em alguns outros países pós-revolucionários, isto pode ser alcançado através de uma linha de massas ecorrevolucionária e da construção de uma sociedade sustentável, enraizada nas estruturas comunitárias e coletivas já existentes. Para a maior parte dos países do Sul Global, o desenvolvimento humano sustentável exige uma desvinculação do sistema imperial de valores e a ação revolucionária de um proletariado ambiental orientada à sobrevivência humana e à criação planejada de uma sociedade de desenvolvimento humano sustentável. No próprio Norte Global, a revolução ecológica exige a destruição do imperialismo e a reintegração de toda a humanidade sobre uma base igualitária, em um processo de solidariedade mundial. As pegadas ecológicas precisam ser niveladas globalmente. Não há como o trabalho ser ecológico nos países ricos quando as bases da existência ecológica nos países pobres (e no planeta como um todo) são arruinadas.

Notas

[1] Veja esse debate em John Bellamy Foster, The Dialectics of Ecology (New York: Monthly Review Press, 2023), p. 161–66.

[2] Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1974), p. 356; István Mészáros, Marx’s Theory of Alienation (London: Merlin Press, 1975), p. 162–65; John Bellamy Foster, Breaking the Bonds of Fate: Epicurus and Marx (New York: Monthly Review Press, forthcoming, 2025).

[3] Joseph Needham, Within the Four Seas: The Dialogue of East and West (Toronto: University of Toronto Press, 1969), p. 27, 66–68, 93–97, 212; Samir Amin, Eurocentrism (New York: Monthly Review Press, 2009), p. 13, 22, 108–11, 212–13; Foster, The Dialectics of Ecology, p. 171–74.

[4] Veja Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China: From Marxist Ecology to Socialist Eco-Civilization Theory,” Monthly Review 76, no. 5 (Outubro de 2024): p. 32–46; Zhihe Wang, Huili He, e Meijun Fan, “The Ecological Civilization Debate in China: The Role of Ecological Marxism and Constructive Postmodernism—Beyond the Predicament of Legislation”, Monthly Review 66, no. 6 (Novembro de 2014): p. 37–59.

[5] Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, p. 41–42; John Bellamy Foster, Brett Clark, e Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010), p. 41–43, 253–58.

[6] Chen Xueming, The Ecological Crisis and the Logic of Capital (Boston: Brill, 2017), p. 467–72, 566–70.

[7] Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, p. 41–43; Foster, The Dialectics of Ecology, p. 13.

[8] Aldo Leopold, The Sand County Almanac (New York: Oxford University Press, 1949), viii; John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2002), p. 86–87.

[9] Karl Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), p. 911.

[10] Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China” p. 42–43; Xi Jinping, The Governance of China (Beijing: Foreign Languages Press, 2020), p. 3, 6, 20, 25, 54, 417–24.

[11] Karl Marx, Capital, vol. 1 (London: Penguin, 1976), p. 637–78; John Bellamy Foster e Brett Clark, The Robbery of Nature (New York: Monthly Review Press, 2000), p. 12–13.

[12] Paul Burkett, “Marx’s Vision of Sustainable Human Development”, Monthly Review 57, no. 5 (Outubro de 2005): p. 34–62; Brian M. Napoletano, “Was Karl Marx a Degrowth Communist?”, Monthly Review 76, no. 2 (Junho de 2024): p. 9–36.

[13] John Bellamy Foster, “Planned Degrowth: Ecosocialism and Sustainable Human Development”, Monthly Review 75, no. 3 (Julho–Agosto de 2023): p. 1–29.

Esta é uma palestra proferida (via web) no Simpósio Internacional sobre “Progresso Ecocivilizacional da China em um Mundo em Mudança”, Universidade de Pequim, 20 de outubro de 2024.

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