30 de outubro de 2015

Método no marxismo ecológico

A ciência e a luta pela mudança

Hannah Holleman


October 2015 (Volume 67, Number 5)

No pouco tempo disponível para mim nesta conversa, é impossível ir muito longe numa discussão sobre o estado do marxismo ecológico, como eu o entendo (1). No entanto, tenciono discutir brevemente uma característica importante do programa de análise e prática marxista ecológica, de que me considero uma participante. Especificamente, discutirei os compromissos metodológicos responsáveis por grande parte da força e do discernimento do marxismo ecológico, associado com aquilo que John Bellamy Foster chamou de "terceiro estádio da pesquisa ecossocialista... em que o objetivo é empregar as fundações ecológicas do pensamento marxista clássico para confrontar o capitalismo atual e a crise ecológica planetária que ele tem engendrado -juntamente com as formas dominantes da ideologia que bloqueiam o desenvolvimento de uma verdadeira alternativa” (2). Isto, creio eu, vai interessar aos estudiosos e ativistas que trabalham em direção a uma compreensão mais profunda do mundo, com o objetivo final de transformá-lo, e deverá interessar todos aqueles envolvidos em debates sobre teoria e práxis marxistas.

O marxismo ecológico: três estágios

Desde que o pensamento ecossocialista surgiu como uma tradição distinta de investigação, na década de 1980, podemos identificar três estádios do seu desenvolvimento (3). Com isto não pretendemos impor uma periodização linear em que todo o trabalho ecossocialista perfeitamente se encaixe, queremos antes representar particulares deslocações de enfoque dentro do pensamento ecossocialista ao longo das últimas décadas. O primeiro estádio desenvolveu-se na década de 1980 e início dos anos 1990, sob a hegemonia da teoria verde, durante um período de crise no marxismo na sequência da queda das sociedades do tipo soviético. Embora fazendo contribuições significativas para a análise ecossocialista, os pensadores do primeiro estádio ecossocialista muitas vezes assumiram que a obra de Marx não tinha qualquer base de compreensão ecológica, acreditando que as suas convicções eram prometeicas e produtivistas - anti-ecológicas em suma. Como resultado destas assunções, "a abordagem geral adoptada foi a de enxertar idéias marxistas sobre a teoria verde já existente - ou, em alguns casos, enxertar teoria verde sobre o marxismo" (4).

As análises do segundo estádio ecossocialista, pelo contrário, procuraram recuperar as "raízes radicais da própria teoria marxista, de forma a construir sobre as suas próprias fundações materialistas e naturalistas". Estudos como o livro de Paul Burkett Marx and Nature refutaram "tais pontos de vista da primeira fase ecossocialista, por meio de uma reconstrução e reafirmação da própria perspectiva crítico-ecológica de Marx". Este trabalho, e o de outros, incluindo Foster, "representou o surgimento de uma segunda fase de análise ecossocialista que procurou regressar a Marx e revelar a sua concepção materialista da natureza como um complemento essencial à sua concepção materialista da história". O principal projeto do segundo estádio do pensamento ecossocialista "foi transcender o ecossocialismo da primeira fase, bem como as limitações da teoria verde, com a sua tonalidade demasiado simplista, idealista e moralista, como um primeiro passo no desenvolvimento de um marxismo ecológico mais aprofundado" (5).

Hoje em dia, a importância da crítica ecológica e social de Marx é bem reconhecida entre os estudiosos e dentro do próprio movimento. E a análise marxista continua a desenvolver-se de tal forma que surgiu "um terceiro estádio da investigação ecossocialista", crescendo organicamente a partir do segundo e sobrepondo-se a ele. Uma das mais importantes características deste terceiro estádio do marxismo ecológico é que, ao "voltar à crítica materialista radical de Marx", as recuperadas perspetivas metodológicas dialéticas de Marx suportaram trabalhos que foram capazes de penetrar muito mais profundamente no coração da crise ecológica e social do período atual do que o pensamento verde tradicional (6). É uma metodologia enraizada em uma concepção materialista da história natural e social, focada em especificar os processos dinâmicos de transformação social e ecológica e as suas consequências, à medida que elas se desenvolvem historicamente. Além disso, está empenhada em compreender os meios e os obstáculos para a superação da ordem social desumana e anti-ecológica existente.

O revigoramento do marxismo ecológico deve muito à consideração séria e ao aproveitamento da abordagem metodológica de Marx, na qual, como disse Paul Sweezy, encontramos muitos dos seus "mais originais e significativos contributos" (7). Apoiar-se na fecundidade do método de Marx permitiu ao marxismo ecológico contemporâneo integrar um vastíssimo e variado acervo de conhecimentos históricos e científicos. Ele é assim capaz de lidar sistematicamente com uma ampla gama de preocupações, desempenhando um papel de liderança na ligação entre as ciências sociais e naturais, e proporcionando análises eco-sociais seminais de algumas questões críticas, emergentes ou persistentes. Eu gostaria de compartilhar convosco alguns desenvolvimentos recentes em um dos programas de pesquisa do marxismo ecológico. Mas o meu objetivo mais importante, nesta palestra, é descrever as principais características da metodologia que estão na base do poder e discernimento do seu trabalho.

Tão central é a abordagem metodológica de Marx ao desenvolvimento dos seus vastos conhecimentos, que Lukács escreveu, em História e Consciência de Classe, que, com respeito ao marxismo, "a ortodoxia se refere exclusivamente ao método" (8). No que se vai seguir irei descrever aspectos centrais da metodologia marxista que foram carreados em apoio e frutificaram na pesquisa ecossocialista de terceiro estádio. Estas características principais são: (1) Um compromisso com o materialismo; (2) A preocupação com o uso apropriado da abstração; (3) Uma abordagem dialética; (4) Concentração na especificidade histórica; e (5) Compromisso político (com a mudança sócio-ecológica).

Aspectos importantes da abordagem metodológica de Marx no marxismo ecológico de hoje
Compromisso com o materialismo

A força do marxismo ecológico, tal como é praticado hoje entre os estudiosos associados ao terceiro estádio da investigação ecossocialista, é que ele toma como objetivo a "confrontação da realidade com a razão", como meio com o qual se devem "tirar as conclusões necessárias para uma ação consciente destinada a trazer mudanças desejáveis". Esta confrontação, como afirmaram Paul Sweezy e Paul Baran, “envolverá, inevitavelmente, comparações do que existe com o que seria razoável” (9).

Para Marx, o que era razoável, não decorria de princípios ou termos éticos abstratos, mas de um entendimento das metas apropriadas do socialismo, com base numa investigação concreta e profunda sobre as relações sociais existentes e as barreiras reais por estas apresentadas ao desenvolvimento de uma sociedade "em que o livre desenvolvimento de cada um seja a condição para o livre desenvolvimento de todos" e onde "os produtores livremente associados [possam]... 'governar o metabolismo humano com a natureza de uma forma racional’" (10).

A "confrontação da realidade" de Marx, a sua investigação sobre "o que é", baseava-se, filosófica e metodologicamente, numa concepção materialista da história social e natural. Isto tornou possível a sua crítica poderosa das relações sociais capitalistas e dos inerentes antagonismos de classes, que resultam em uma "ruptura irreparável no processo interdependente do metabolismo social" como "prescrito pelas leis naturais da própria vida" (11). E também viabilizou o seu reconhecimento de que a transcendência dos antagonismos de classes é necessária, mas não suficiente, para o desenvolvimento humano ecologicamente sustentável. A superação de uma organização social ecológica e socialmente destrutiva exige "a integração explícita de preocupações ecológicas e outras comunais no próprio processo revolucionário anticapitalista" (12).

Porque a sua metodologia estava enraizada em uma concepção materialista da história, Marx não tomava nada como garantido, antes procurava o desenvolvimento histórico, consequências e interrelações dos mais variados aspectos do todo do desenvolvimento evolucionário, social e biológico. Em resultado desta abordagem metodológica, o engajamento de Marx com as ciências naturais e sociais permitiu que a sua crítica das relações de classe do capital se desenvolvesse como uma crítica ecológica, enquanto se estendia a um leque muito alargado de outras preocupações, incluindo a natureza opressiva das relações familiares e de gênero na sociedade burguesa, a estrutura do poder político e do Estado, específicos desenvolvimentos tecnológicos e legais, juntamente com muitas outras coisas. A luta contra a exploração e a opressão da classe trabalhadora, na concepção de Marx e Engels, incluía a luta contra a opressão das mulheres, contra a agressão imperialista e a exploração colonial, contra a destruição da natureza, tudo isto resultados de um conjunto particular de desenvolvimentos históricos que deve ser transcendido.

Uso adequado da abstração

Uma segunda característica essencial do método de Marx é o uso crítico da abstração. No prefácio de ‘O Capital’, Marx escreveu, "na análise das formas econômicas, nem microscópios nem reagentes químicos são úteis. O poder de abstração deve substituir ambos” (13). A sua opinião não era que não precisamos de microscópios, mas sim que precisamos de escolher as ferramentas apropriadas da ciência para o problema em estudo. A abstração na investigação científica permite-nos "colocar em relevo o essencial e tornar possível a sua análise" (14). Escolhas sobre as nossas abstrações têm a ver com o problema que estamos a investigar e o que determinamos serem os seus elementos essenciais. Determinar o que é essencial, no entanto, não é uma tarefa simples. Nós colocamos hipóteses provisórias sobre quais são os aspectos essenciais de um qualquer problema e constantemente as confrontamos com "os dados da experiência" ou a investigação continuada sobre a "realidade do desenvolvimento histórico" (15).

Para Marx, a determinação do que era essencial levou-o a estudos aprofundados de história natural e social, que ele descreve em vários lugares, inclusive no Prefácio à ‘Contribuição à Crítica da Economia Política’. Com base em seus estudos intensivos, afirmou, por exemplo, que a relação capitalista – uma relação de classes antagônica – era o “omnipotente domínio econômico da sociedade burguesa", que condicionava as relações entre as pessoas e entre a sociedade humana e a terra (16). Este relacionamento de classe foi o centro da sua investigação e a abstração foi empregue para o isolar, “para reduzi-lo à sua forma mais pura, para que pudesse ser submetido à análise mais cuidadosa, livre de todos as perturbações não relacionadas" (17).

Para diferentes problemas, nós aplicamos a ferramenta da abstracção de modos diferentes. "Um investigador pode abstrair de uma diferença que um outro está a tentar explicar, mas cada um deles pode estar justificado do ponto de vista do problema que está estudando" (18). O uso de diferentes níveis de abstração, de baixa a alta, também reflete a finalidade da investigação. Factores intermédios podem ser removidos de um nível de análise, para clarificar uma relação particular, sendo reintroduzidos num outro nível, dependendo do objeto de estudo. "O propósito legítimo da abstração em ciências sociais", é claro, "nunca é fugir do mundo real objetivo, mas antes isolar alguns aspectos do mundo real para lhes dedicar uma investigação intensiva" (19).

Juntamente com as nossas preocupações científicas, as nossas abstrações também refletem os nossos preconceitos e os nossos compromissos políticos. Como escreveram os cientistas marxistas Richard Lewontin e Richard Levins: "Muito abstração é evasiva do que mais importa, escolhida por razões de segurança e comodidade". Eles dão como exemplo a economia neoclássica, que postula o "indivíduo a fazer escolhas em mercados a-históricos”. Embora isto, dizem eles, conduza a "teoremas elegantes sobre escolha racional", esconde "a exploração, o monopólio, o conflito de classes, e a evolução do capitalismo". Eles também citam o aviso do Bertolt Brecht de que "nós vivemos em uma época terrível, em que falar sobre árvores é uma espécie de silêncio sobre a injustiça". Hoje, é claro, as árvores e a natureza em geral, "figuram proeminentemente no estudo da justiça". Mas nem sempre, e a ligação é geralmente insuficientemente feita. Esta questão é importante, especialmente como uma crítica às perspetivas ambientais dissociadas da análise social crítica. Esta desligação no pensamento de fenómenos essenciais que estão ligados na realidade, tem como consequência falsificar a compreensão das raízes sociais específicas das crises ecológicas em todas as sociedades, bem como do tipo de mudança que é necessário para as resolver (20).

O objetivo para os marxistas ecológicos, hoje em dia, é utilizar uma metodologia marxista para operar sobre o "vasto corpo de conhecimento histórico e científico", no seu atual estádio de desenvolvimento, e empurrar esse conhecimento para a frente sob "as condições da práxis social contemporânea" (21). O uso crítico da abstração é fundamental para esse processo.

Uma abordagem dialética

Ao determinar os aspectos essenciais de um problema, assim clarificando a matéria em questão, uma análise dialética permite-nos trilhar "um caminho cauteloso entre a Cila do reducionismo e a Caríbdis do holismo". Richard York e Philip Mancus escreveram "assim como o reducionismo falha por causa do foco exclusivo em algumas partes, o holismo sem dialética falha por causa da sua incapacidade para reconhecer divisões, tensões e contradições internas, e por causa da sua tendência ao funcionalismo" (22).

Existem algumas tendências no pensamento verde para voltar a uma concepção de "unidade", sugerindo que devido à interligação existente estre os fenómenos, "eles são todos ‘Um’, um importante elemento de sensibilidade mística que assevera a nossa ‘Unidade’ com o universo". Mas, como escrevem Lewontin e Levins, "é claro que podemos separar construções intelectuais... Temos que o fazer, a fim de reconhecê-las e investigá-las. Mas isso não é suficiente. Depois de as separar temos que as voltar a unir, mostrar a sua interpenetração, a sua determinação mútua, a sua evolução entrelaçada, e no entanto também a sua distinção. Elas não são ‘Um’". Eles advertem contra a "unilateralidade no holismo que enfatiza a conexão do mundo mas ignora a autonomia relativa das suas partes” (23).

Este é um ponto especialmente importante para os marxistas ecológicos, interessados que estamos em descobrir a causalidade, a fim de melhor dirigir os nossos esforços de mudança social. Não há rigor analítico no tratamento do "todo" sem reconhecer que, como York e Mancus escrevem, enquanto "o social está enraizado e emerge do biológico, tem por sua vez eficácia causal sobre esse mesmo biológico". Em resultado disso, para aqueles envolvidos em esforços de mudança social, é fundamental estudar a dinâmica "dialética interação entre natureza e cultura" (24). E, a um outro nível de abstração, é importante dissecar a "cultura" e o "social", para compreender as relações envolvidas na exploração da natureza e das pessoas por classes específicas, por exemplo. Depois disso, poderemos estar interessados numa maior especificação das dinâmicas de gênero, étnicas e raciais das relações de classe, no mundo de hoje, e na forma como estas moldam a dialética natureza/cultura.

Caráter histórico do pensamento de Marx

A abordagem dialética e materialista de Marx, como Lukács disse, é "em sua natureza mais íntima, histórica" (25). Para Marx, "a realidade social não é tanto um determinado conjunto de relações, e menos ainda um conglomerado de coisas. É antes o processo de mudança inerente a um determinado conjunto de relacionamentos. Por outras palavras, a realidade social é o processo histórico, um processo que, em princípio, não conhece finalidades e não tem locais de paragem” (26). A natureza tensa do caráter histórico do pensamento de Marx é o reconhecimento da possibilidade e atualidade da mudança. Mas a direção da mudança não é determinada mecanicamente. Os seres humanos atuam, mas a luta da mudança, como Marx escreveu, parte do facto de que "não fazemos a história como nos apraz, mas sob circunstâncias diretamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (27).

A única realidade universal, trans-histórica, da condição humana, para Marx, é que somos, individual e coletivamente, a soma total da nossa história social e natural, e que o desenvolvimento conjunto destas condições molda o modo como vivemos, a nossa forma de pensar, e que possibilidades existem para a mudança. Pelo lado biológico, escreve ele, a única inevitabilidade é que "o homem vive da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo, e ele deve manter um diálogo contínuo com ela se não quiser morrer" (28). Este diálogo é o processo de trabalho, que é, “antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, com as suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre si mesmo e a natureza" (29). Através deste processo os seres humanos transformam a natureza e são, por sua vez, transformados. No seu conjunto, isto representa "a condição universal para a interação metabólica [Stoffwechsel] entre homem e natureza, as persistentes condições impostas pela natureza para a existência humana" (30).

O caráter histórico do pensamento de Marx, o reconhecimento de que "a sociedade tanto está mudando como, dentro de certos limites, pode ser mudada", leva a uma abordagem crítica "a cada forma de sociedade" (31). Leva também a uma abordagem crítica de todos os fenômenos sob investigação e representa um desafio para conceituações a-históricas das condições existentes. Para os marxistas ecológicos, categorias estáticas e essencializadas na sociedade burguesa dominante - tais como o binário "homem" e "mulher" - são entendidas como o produto de particulares desenvolvimentos históricos, em vez de terem uma realidade eterna, inerente à existência humana. Compreender o mundo através de uma tal lente histórica torna possível aquilo que Marx chama de "crítica implacável de tudo o que existe, implacável tanto no sentido de não ter medo dos resultados a que chega, como no sentido de tão pouco ter medo de conflito com os poderes instalados" (32).

Ligando Ética e Análise Social Crítica no compromisso político para a mudança

Uma característica definitiva da metodologia de Marx, que unifica as abordagens de muitos marxistas ecológicos do terceiro estádio, é o compromisso de encarnar a tese XI, ou manter sempre em mente o objetivo de, não apenas interpretar o mundo, mas mudá-lo. Isso significa que o nosso trabalho, incluindo o nosso desenvolvimento teórico, deve ligar filosofia, ética e análise social crítica. Em Biology Under the Influence, Lewontin e Levins escreveram que "qualquer teoria da sociedade tem de se submetem ao teste: O que é que ela faz às crianças?" (33). Isso foi no contexto de um debate de metodologia, mais especificamente, "Estratégias para a Abstracção" - o título do capítulo em que aparece este tópico.

Levantar a questão das implicações para as crianças do nosso trabalho no desenvolvimento de teoria social ilustra a impossibilidade de separar as questões da realidade das questões de ética. A impossibilidade surge porque "as teorias apoiam práticas que servem alguns e causam danos a outros". Embora "os filósofos façam grandes contorções para separar as questões da realidade das questões de ética, o processo histórico unifica-as.... Os eticistas podem debater, [por exemplo], durante o jantar, as razões racionais para alimentar os famintos, mas para as pessoas mergulhadas na pobreza os alimentos não são um problema filosófico" (34).

Para os marxistas ecológicos, "mesmo a mais comprometida investigação de ética não pode substituir uma crítica radical da política, na sua frustrante e alienante realidade contemporânea" (35). "Para Marx", como Cornel West escreveu, "uma exposição teórica adequada de conceitos éticos, por exemplo, do ‘justo’ ou ‘direito’, deve compreendê-los como tentativas convencionais humanas para regular práticas sociais de acordo com os requisitos de um sistema específico de produção” (36). No final, sugere István Mészáros, a medida do sucesso da nossa ética, na prática, "só pode ser" a sua "capacidade de manter constantemente a consciência e de reanimar um criticismo prático em direção ao alvo real de uma transformação socialista: ir para além do capital, em todas as suas formas possíveis e realmente existentes, através da redefinição e rearticulação praticamente viável do processo de trabalho” (37).

O método de Marx e o pensamento ecossocialista de terceiro estágio

O compromisso com uma concepção materialista da história natural e social, atenção a usos críticos apropriados da abstração, bem como o emprego de análise dialética e de uma abordagem histórica, levaram a análises pioneiras no marxismo ecológico. Estas análises são capazes, ao mesmo tempo, de lidar com grandes extensões de história humana, fazer incidir uma nova luz sobre o problemas concretos emergentes, e contribuir para os debates que moldam movimentos pela mudança hoje. Eles transcendem as divisões entre as ciências naturais e sociais e entre o erudito, o praticista e o ativista.

Um importante exemplo recente desse tipo de trabalho é The Tragedy of the Commodity: Oceans, Fisheries, and Aquaculture (2015) de Stefano B. Longo, Rebecca Clausen e Brett Clark (38). Este estudo ilustra a relação entre o conjunto do desenvolvimento capitalista e as profundas alterações na ecologia dos oceanos, aquicultura e pescas, geradas pela busca incessante da acumulação. Providencia igualmente uma crítica sistemática das prevalecentes abordagens mercantis para lidar com as crises ecológicas, bem como da associada escola de pensamento da "tragédia dos comuns". Termina com um importante capítulo sobre "curar as fendas" - leitura urgente para todos os envolvidos com a crise planetária dos oceanos e na construção de uma alternativa a esta ordem social ecológica e socialmente destrutiva.

Outras áreas em que o método aqui descrito é aplicado pelos marxistas ecológicos incluem, de forma meramente exemplificativa: a fertilidade do solo, fertilizantes, agricultura, gestão florestal, o metabolismo do carbono e do nitrogênio, alterações climáticas, feminismo e ecologia, currais e matadouros, justiça ambiental, troca desigual, o imperialismo ecológico, saúde pública, economia ecológica, o desenvolvimento urbano e rural, e muito mais.

Para um compêndio de exemplos de alguns dos grandes trabalhos feitos por marxistas ecológicas, consulte a bibliografia sobre ruptura metabólica, publicada em linha pela Monthly Review. É um maravilhoso recurso tanto para acadêmicos como para ativistas (39). A seção "Meio ambiente e ciência" do catálogo em linha da Haymarket Books também adiciona contribuições significativas nesta area (40).

Conclusão: A importância do método na luta por uma civilização ecológica

Dado que o objetivo desta conferência é considerar a contribuição de variantes do marxismo para o projeto de construção de uma civilização ecológica, vou acabar discutindo porque o método de Marx é tão importante nessa tarefa. Como todos sabemos, os slogans ideológicos ou as declarações de princípios e objetivos políticos, podem diferir muito do seu conteúdo substantivo e prático. Marx e Engels empregaram o seu método crítico para chamar à pedra não apenas a burguesia, mas também socialistas, comunistas, anarquistas e outros que lutam por alternativas, através da uma análise crítica dos seus objetivos políticos e estratégias. Eles reconheceram contradições entre compromissos ideológicos declarados e a prática, sublinhando as contradições inevitáveis em que incorrem programas que não tenham em devida conta as condições materiais existentes ou que resultariam em novas formas de opressão, e assim por diante.

Todos nós envolvidos na luta por um mundo novo precisamos de uma metodologia para - e um compromisso com - uma análise social crítica, através da qual estejamos constantemente a avaliar a direção a que estamos rumando, como é que isso se conforma com os nossos objetivos, e se os nossos objectivos deverão mudar. Para Marx e Engels, e para os marxistas ecológicos de hoje, a luta só tem sentido se, em seu conteúdo social e ecológico, (1) promover uma substantiva igualdade material e política, ou, em outras palavras, visar a auto-capacitação dos produtores associados; (2) implicar o fim da opressão e da exploração em todas as suas formas; e (3) tiver o objetivo final da realização de uma sociedade em que "o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos", e em que o metabolismo social conetando os seres humanos com "o metabolismo universal da natureza" seja governado de uma forma racional (41). Quer descrevamos esta luta como direcionada à civilização ecológica, ou a uma outra coisa qualquer, a análise social e investigação críticas permitem-nos avaliar e superar os obstáculos ao movimento nessa direção.

Em contraste com a teoria verde ou ecologismo (que tende a ser idealista e ético na sua orientação, ou mesmo puramente romântico) e a teoria da modernização ecológica (que tende a defender o status quo como um todo), o método de Marx proporciona a função crítica de análise social exigida pelos movimentos por mudança social efetiva. Ele leva-nos para além das aparências das realidades sociais, até à sua essência, que Marx acreditava ser a razão - e só ser possível por meio - da investigação científica.

A questão, por fim, não é que nós sigamos Marx porque ele é Marx, mas porque as inovações metodológicas que começaram com Marx permanecem uma poderosa ajuda em nossos esforços de mudança social. Precisamos da capacidade de conhecer, tão bem quanto possível, "o que é", e de comparar a realidade atual "com o que seria razoável", a fim de "tirar as conclusões necessárias para ações conscientes projetadas para trazer mudanças desejáveis" (42). Em última análise, é apenas no contexto das nossas lutas concretas por mudança, que qualquer abordagem filosófica ou científica, especialmente se ela é marxista, se torna significativa e cheia de vida.

Muito obrigada.

Notas:

(1) Os termos marxismo ecológico e ecossocialismo são usados aqui em referência a determinados projectos intelectuais e terminologia de movimento. Enquanto que este uso era apropriado para o contexto em que a palestra foi ministrada, a crítica ecológica e o imperativo para a mudança já estão explícitos na obra de Marx e em muitas tradições socialistas. Portanto, eu me considero uma socialista, e não uma ecossocialista. O trabalho aqui descrito é na verdade simplesmente marxista, na abordagem.

(2) John Bellamy Foster, Prefácio a Paul Burkett, Marx and Nature: A red and green perspective (Chicago: Haymarket Press, 2014; originalmente 1999), p. XII.

(3) Foster, Prefácio, Marx and Nature.

(4) Ibid, p. VIII.

(5) Ibid, p. IX.

(6) Ibid, pp. XII-XIII.

(7) Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development (New York: Monthly Review Press, 1977; originalmente 1942), p. 11.

(8) Georg Lukács, History and Class Consciousness (Cambridge, MA: MIT Press, 1971; originalmente 1968), p. 1.

(9) Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1966), p. 134.

(10) Karl Marx e Friedrich Engels, The Communist Manifesto (Chicago: Haymarket Press, 2005; originalmente 1848), p. 71; Karl Marx, Capital, vol. 3 (New York: Penguin Books, 1991; originalmente 1863-1865), p. 959.

(11) Marx, Capital, vol. 3, p. 949.

(12) Burkett, Marx and Nature, p. XXVI.

(13) Karl Marx, Capital, Volume I (New York: Penguin, 1990; originalmente 1867), p. 90.

(14) Sweezy, The Theory of Capitalist Development, p. 12.

(15) Ibid, pp. 12-15.

(16) Karl Marx, Grundrisse (London: Penguin, 1973; originalmente 1857-1858), p. 107; Sweezy, The Theory of Capitalist Development, p. 16.

(17) Sweezy, The Theory of Capitalist Development, pp. 16-17.

(18) Ibid, p. 12.

(19) Ibid, p. 18.

(20) Richard Lewontin e Richard Levins, Biology Under the Influence (New York: Monthly Review Press, 2007), pp. 151-152.

(21) John Bellamy Foster, Prefácio, Marx and Nature, p. XI.

(22) Richard York e Philip Mancus, “Critical Human Ecology: Historical Materialism and Natural Laws”, Sociological Theory, N.º 27 (2009), p. 134.

(23) Lewontin e Levins, Biology Under the Influence, p. 106.

(24) York e Mancus, “Critical Human Ecology", pp. 134-135.

(25) Lukács citado em Sweezy, The Theory of Capitalist Development, pp. 20-21.

(26) Sweezy, The Theory of Capitalist Development, pp. 20-21.

(27) Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte (New York: International Publishers, 1994; originalmente, 1852), p. 15.

(28) Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1974).

(29) Karl Marx, Capital, vol. 1 (New York: Penguin Books, 1990; originalmente 1867), p. 283.

(30) Ibid., p. 290.

(31) Sweezy, The Theory of Capitalist Development, p. 21.

(32) Karl Marx, "Letter to Arnold Ruge” (1843).

(33) Lewontin e Levins, Biology Under the Influence, p. 165.

(34) Ibid.

(35) István Mészáros, Beyond Capital (New York: Monthly Review Press, 2010; originalmente 1995), p. 410.

(36) Cornel West, The Ethical Dimensions of Marxist Thought (New York: Monthly Review Press, 1991), p. 99. Ver também John Bellamy Foster, “Introduction to a Symposium on The Ethical Dimensions of Marxist Thought”, Monthly Review, vol. 45, n.º 2 (1993), p. 8.

(37) Mészáros, Beyond Capital, p. 410.

(38) Stefano B. Longo, Rebecca Clausen e Brett Clark, The Tragedy of the Commodity: Oceans, Fisheries, and Aquaculture (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2015).

(39) Ver Ryan Wishart, R. Jamil Jonna e Jordan Besek, "The Metabolic Rift: A Selected Bibliography", 16 de maio de 2016.

(40) Haymarket Books, “Environment & Science".

(41) Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, Vol. 30 (New York: International Publishers, 1975), pp. 54-66.

(42) Baran e Sweezy, Monopoly Capital, p. 134.

24 de outubro de 2015

O teórico que permaneceu através do tempo

Quando o grande pensador radical Sheldon Wolin morreu esta semana, ele deixou para trás uma abordagem singular à teoria política.

Corey Robin

Jacobin

Fred R. Conrad/The New York Times

Sheldon Wolin, o teórico político, morreu.

Nos últimos cinco anos, vimos a saída de toda uma geração de acadêmicos: David Montgomery, Carl Schorske, Peter Gay e Marshall Berman. Esta foi a geração que me ensinou, às vezes literalmente.

Mas a morte de Wolin me atinge com mais força. Fiz dois cursos com ele na graduação: Teoria Política Moderna (de Maquiavel a Smith) e Pensamento Político Radical (de Paine a Foucault). O primeiro no meu primeiro ano, o segundo no meu segundo ano. Eu teria feito mais, mas Wolin se aposentou no ano seguinte. Esses cursos me deixaram no caminho. Eu nunca teria me tornado um teórico político se não fossem por eles.

Haverá muitos textos e apreciações nos próximos dias e meses. Wolin ensinou gerações de estudantes, muitos dos quais são agora referência na área, e seus alunos agora ensinam outros alunos. Na City University de Nova York, estamos sempre nadando em seus mares: Robyn Marasco, da Hunter College, era aluna de Wendy Brown, que estudava com Wolin. John Wallach, também em Hunter, e Uday Mehta, no Centro de Pós-Graduação, eram ambos estudantes de Wolin. Provavelmente, não há demonstração mais poderosa da visão de teoria política de Wolin como tradição de continuidade e inovação, como uma transmissão ao longo do tempo, do que estes estudantes de estudantes de estudantes.

Embora muitos desses textos e apreciações se concentrem, e com razão, no lado político de Wolin - como mentor e participante e comentarista dos movimentos estudantis da década de 1960, particularmente em Berkeley; como líder do movimento de desinvestimento em Princeton nos anos 70 e 80; como pesquisador público crítico do liberalismo tecnocrático, do conservadorismo de mercado e do imperialismo norte-americano, nas páginas da New York Review of Books e em sua maravilhoso e curto jornal democracy; como um teórico da democracia radical ou "fugitiva" - quero focalizar aqui a maneira como ele fez a teoria política. Menos a substância (embora eu chegue a isso no final) do que o estilo.

A primeira coisa a notar sobre a abordagem de Wolin é como ela era literária. É difícil ver isso em alguns de seus textos, mas estava em exibição em suas palestras. Não sei se Wolin estava totalmente treinado em New Criticism - parece que me lembro dele citando a Crítica Prática de I. A. Richards em algum lugar - mas ele a leu como uma New Critic. O parágrafo ou página de abertura de cada texto era o local de uma exploração e explicação ampliadas, como se a chave para todo o Segundo Discurso fosse encontrada naquela imagem impressionante da estátua de Glauco, que Rousseau menciona no início.

Chekhov has a line somewhere about how if you put a gun on the wall in the first act, you damn well better make sure it goes off in the second. Wolin paid attention to those guns, especially when they didn’t go off. He was endlessly curious about a theorist’s metaphors, asides, slips, and allusions, and mined them to great effect. Long before we were reading de Man and Derrida, he was reading like them. But without all the fuss. He just did it.

Um momento eu me lembro em particular. Em sua palestra sobre O Príncipe, Wolin parou e ficou com a carta dedicatória a Lorenzo de 'Medici, que precede o texto. Estes dois parágrafos em particular:

I hope it will not be thought presumptuous for someone of humble and lowly status to dare to discuss the behavior of rulers and to make recommendations regarding policy. Just as those who paint landscapes set up their easels down in the valley in order to portray the nature of the mountains and the peaks, and climb up into the mountains in order to draw the valleys, similarly in order to properly understand the behavior of the lower classes one needs to be a ruler, and in order to properly understand the behavior of rulers one needs to be a member of the lower classes. 
I therefore beg your Magnificence to accept this little gift in the spirit in which it is sent. ... And if your Magnificence, high up at the summit as you are, should occasionally glance down into these deep valleys, you will see I have to put up with the unrelenting malevolence of undeserved ill fortune.

A maioria dos leitores, se prestar atenção, focaliza a última sentença, onde Maquiavel pousa, tornando a passagem pouco mais do que um caso extenso de súplica especial: expulso do poder (Maquiavel fora conselheiro da república Florentina) após os Médici chegarem ao poder em 1512, preso e torturado e, em seguida, exilado em sua propriedade rural, Maquiavel não queria nada além de ser útil para os homens que o arruinaram.

Wolin leu as coisas de forma diferente. Primeiro, ele notou a sutil ironia em Lorenzo e os governantes em geral: em pé no cume, eles só podiam ver um lado da arte do governo. Para compreender verdadeiramente a arte de governar, no entanto, era preciso vê-la de ambas as perspectivas: a do governante e a dos governados. E quem poderia ver as duas perspectivas? O teórico, como o artista paisagista que pintou do ponto de vista do vale e dos picos.

Aparentemente um pedido humilde de um humilde servo, a carta dedicatória é de fato uma elevação descarada do escritor de cartas, o teórico, sobre o governante, o príncipe. Ao atentar para a metáfora, Wolin encontrou uma declaração mais profunda sobre a relação entre o teórico político e o ator político.

Mas então Wolin recuou ainda mais, pedindo que pensássemos nessa noção de perspectiva embutida na metáfora de Maquiavel. A maioria dos teóricos nos pede para considerar o mundo político sub specie aeternitatis. Para ver corretamente as coisas como elas são, elas ascendem ou vão para a vista do lugar nenhum. Platão deixa a caverna, Rousseau (um exemplo imperfeito aqui, eu sei) está trancado do lado de fora dos portões de Genebra, Rawls se remove para a posição original, para um lugar onde não há posições.

Maquiavel, disse Wolin, toma um rumo diferente: a arte política é ver as coisas de múltiplas posições e lugares, para adotar a vantagem de uma, depois a outra, para ver (e desenhar) o todo como um composto de perspectivas. O perspectivismo é a palavra chique para isso, e geralmente é atribuída a Nietzsche (que, talvez não coincidentemente, em seus cadernos descreveu o ensinamento de Maquiavel como "perfeição na política"). Mas Wolin identificou-o com Maquiavel - e, como resultado, surgiu, aliás, uma leitura muito mais interessante da incomensurabilidade das visões em Maquiavel do que a que encontramos no famoso ensaio de Isaiah Berlin sobre Maquiavel.

Eu me lembro de Wolin fazendo algo parecido quando lemos A riqueza das nações. Ele perguntou o que significava para um texto político ser aberto com homens fazendo alfinetes em uma fábrica, o que significa fazer deles as principais figuras de um drama político. Ele até poderia compará-lo com a abertura de O Príncipe, pedindo-nos para nos concentrarmos mais nos personagens literários do que nos autores ou em um texto contra o outro. Não consigo lembrar que conclusões ele tirou dessa pergunta, mas foi um tipo de leitura que eu não estava acostumado. E que muitos teóricos e filósofos, focados como estão na lógica formal e nas proposições de um argumento, realmente não o fazem.

A segunda coisa a notar sobre Wolin como leitor é seu historicismo. O historicismo de hoje, pelo menos na teoria política, é identificado principalmente com Quentin Skinner e seu método contextualista. Os teóricos políticos, dizem, não estão em um diálogo através das eras. Eles são, ao contrário, atores políticos locais e situados, engajados em uma série de movimentos e contra-movimentos que são estruturados pelas regras do jogo que eles estão jogando. Esse jogo é o discurso político do dia. Seus atores são os polêmicos e panfletistas menores e maiores de um argumento.

Para entender o que Maquiavel, Hobbes ou Locke estão fazendo quando eles escrevem um texto, você precisa ler as centenas, se não milhares, de interlocutores locais aos quais ele está respondendo. Segundo as alegações de muitos leitores, o Segundo Tratado não é uma resposta a Hobbes, que estava morto quando Locke começou a escrevê-lo. A teoria política, como a própria política, é uma empresa situada. Para entendê-la historicamente, temos que desagregá-la em uma série de empresas locais, muitas vezes desconectadas. Isso é o que significa recuperar o passado do passado.

(Though Skinner in his more recent work has suggested that Hobbes may be directly responding to Machiavelli. That very notion — that a theorist could be reaching across a century, not to mention a continent, in writing a text — is a great no-no among Skinner’s followers, which is why some of them seem so scandalized by it, as I discovered at a seminar last year. Hell hath no fury like an acolyte scorned.)

Wolin foi tocado por um impulso histórico semelhante ao de Skinner. Ele também procurou recuperar as linguagens discretas do passado, a localização da teoria e da ação. Mas o historicismo de Wolin era diferente. Sem recorrer a esses milhares de interlocutores, ele conseguiu criar um sentido muito mais radical e estimulante do passado do que a maioria dos contextualistas (deve-se dizer que o próprio Skinner consegue fazer isso com grande desenvoltura), em parte porque ele permanece fiel a uma noção de movimento ao longo do tempo, de um diálogo através dos tempos.

Há tantos exemplos dessa sensibilidade em ação em Política e Visão, o maior livro de Wolin, mas um em especial se destaca para mim. Ele vem no início, no terceiro capítulo, onde ele está discutindo o movimento da teoria política da Grécia antiga para a Roma antiga.

Agora, você é convidado para um quadro historicista. Wolin foi importante para a especificidade da localização da teoria no tempo e no espaço. Que efeito teve essa teoria política no contexto da polis,
a cidade-estado; move-se para um império que irradia de Roma; reside (e vive uma vida secreta) por centenas de anos na Igreja Católica; e de repente revive na forma do estado-nação moderno? A cada passo, Wolin estava atento a como a localização no tempo e no espaço altera o vocabulário, as questões, as categorias de investigação teórica.

Wolin abre sua discussão sobre a mudança da cidade-estado grega para o império romano com uma citação de Tácito, onde Tibério contrasta a austera virtude dos primeiros dias de Roma com a decadência do império e atribui a mudança ao fato de que originalmente “éramos todos membros de uma cidade. Nem mesmo depois tivemos as mesmas tentações, enquanto nosso domínio estava confinado à Itália”.

Para Wolin, a passagem é cheia de insinuação: a suspeita de que nossa compreensão da política está inescapavelmente ligada à experiência da antiga cidade-estado, com sua “intimidade cívica” e “intensidade nervosa” e “urgência irresistível”, tal que qualquer alteração dessa “dimensão espacial” torna-se um sinal de diluição e perda política.

The essential questions raised by these political thinkers were: how far could the boundaries of political space be extended, how much dilution by numbers could the notion of citizen-participant withstand, how minor need be the “public” aspect of decisions before the political association ceased to be political?

Deixando de lado o que pode ser visto como uma afirmação normativa implícita subjacente a essas questões - essa implacável compreensão local e imediatista do "político" atormentaria durante anos o trabalho de Wolin sobre a democracia radical, embora eu não ache que precisamos aceitar esse entendimento para ver o poder do historicismo em jogo aqui - o que ele estava apontando era quão significativo era o efeito de ser confrontado, fisicamente, concretamente, por um território tão vasto quanto aquele que era contido por Roma, e tentar conduzir a política nesse novo terreno.

Para Wolin, a vastidão do imperium ajudou a dar sentido aos códices ampliados e elaborados de lei, administração e jurisprudência que entraram no cânon teórico com Roma, mas ainda mais interessante, a recém-descoberta atenção aos símbolos e personae.

In large entities like ... the Roman Empire, the methods of generating loyalties and a sense of personal identification were necessarily different from those associated with the Greek idea of citizenship. Where loyalty had earlier come from a sense of common involvement, it was now to be centered in a common reverence for power personified. The person of the ruler served as the terminus of loyalties, the common center linking the scattered parts of the empire. This was accomplished by transforming monarchy into a cult of and surrounding it with an elaborate system of signs, symbols, and worship. These developments suggest an existing need to bring authority and subject closer by suffusing the relationship with a religious warmth. In this connection, the use of symbolism was particularly important, because it showed how valuable symbols can be in bridging vast distances. They serve to evoke the presence of authority despite the physical reality being far removed. ... 
... The “visual politics” of an earlier age, when men could see and feel the forms of public action and make meaningful comparisons with their own experience, was giving way to “abstract politics,” politics from a distance. ...

Essa mudança do visualmente imediato para o distante e o abstrato - pode-se ver na afirmação de Maquiavel de que, na política, ninguém sabe quem você é, mas como você aparece; na noção de Hobbes do Leviatã - seria um tema recorrente na análise de Wolin, até mesmo um lamento.

(As Bonnie Honig pointed out to me in an email, Wolin was the master of the in-between: he was at his best when he understood how political beings are located in these in-between modes. He was especially attuned to this in-between-ness when the in-between was temporal. When it became spatial, he tended to be more of a catastrophist, seeing the move from one space to another, or one mode of space to another, as absolute, the portent or picture of a complete loss.)

Mas se pudermos sair da lamentação, podemos ver nele uma lembrança impressionante da localização e da especificidade histórica da teoria. Não nos argumentos polêmicos formais dos romanos ou dos gregos (embora também haja muito disso em Wolin). Mas nesses idiomas mais profundos e gramáticas não ditas, nos quase despercebidos históricos de espaço e tempo (sua discussão do efeito de introduzir a categoria de uma vida após a morte, do tempo eterno, no pensamento cristão é igualmente ressonante), nas armas que não disparam no segundo ato.

E, novamente, a única razão pela qual Wolin pode percebê-los é que ele está disposto a fazer o que os contextualistas dizem que você não pode fazer: alcançar através do tempo, forçar pensadores que nunca se conheceram (talvez nunca tenham ouvido falar um do outro) em uma conversa. . É assim que podemos chegar à especificidade de sua linguagem, através da comparação e do confronto. É assim que podemos entender as rupturas da experiência histórica. Com exceção de Nietzsche e Hegel, talvez Lukács (essas passagens sobre o efeito do modo de guerra em mudança no The Historical Novel são incríveis), não consigo pensar em um único teórico que entendeu isso, que fez isso tão bem.

A última coisa a notar sobre a abordagem de Wolin é como ele estava interessado em tradução. Não a tradução do francês para o alemão ou do grego antigo para o inglês, mas a tradução de um idioma da política para outro. Embora Wolin esteja frequentemente e justamente associado à alegação de que perdemos a linguagem da política - mais uma vez, ao estilo de um lamento -, o que sempre foi mais interessante sobre sua abordagem foi o quanto ele estava sintonizado com as formas em que um vocabulário político ou idioma é traduzido em uma nova configuração.

Já vimos um pouco disso em seu relato sobre a transposição de conceitos políticos da cidade-estado da Grécia para o império de Roma, mas o momento mais emocionante, para mim, ocorre quando Wolin se volta para o surgimento do cristianismo e seu impacto no pensamento político. Onde a maioria dos comentaristas, diz Wolin, trata as dimensões políticas e os elementos do cristianismo apenas naqueles momentos em que a religião é forçada a confrontar a política, Wolin toma um rumo diferente:

The significance of Christian thought for the Western political tradition lies not so much in what it had to say about the political order, but primarily in what it had to say about the religious order. The attempt of Christians to understand their own group life provided a new and sorely needed source of ideas for Western political thought.

O que se segue é uma tentativa de reconstruir a politicidade das idéias dos primeiros e dos últimos cristãos cristãos sobre o pertencimento à Igreja, de cisma e heresia, do sacerdócio e do papado, e assim por diante. É como se a totalidade do antigo cânone político tivesse sido sublimada em um idioma e contexto religioso; a tarefa de ler era recuperar os modos dessa sublimação e ver o que restava dos antigos e o que estava perdido.

Não consigo expressar o quanto essas noções de transposição e sublimação foram generativas para mim. No meu primeiro livro, sobre o medo, observei como, mais tarde, abordagens mais psicológicas do medo eram sublimações de entendimentos mais antigos e mais políticos do medo. Mais recentemente, tenho ficado fascinado com a ideia de que a economia é uma sublimação de um vocabulário político anterior de ação, glória e grandeza, como até mesmo alguém tão matematicamente inclinado quanto Ricardo pode, em sua ideia de margem, estar transpondo e transformando as idéias de Maquiavel sobre a fundação e o tempo.

Onde a maioria dos teóricos identifica os momentos políticos desses escritos nas passagens em que um economista considera o estado, tomo minhas sugestões de Wolin e procuro-as naqueles momentos em que um economista lida com questões de troca, risco, interesse, lucro e assim adiante.

A sublimação é também a palavra que Wolin usa quando chega ao século XIX e olha para o surgimento da organização como o elemento central da vida política contemporânea. No último capítulo do livro (na primeira edição), Wolin nos leva de Saint-Simon a Lênin, a Elton Mayo e Peter Drucker, e vê em cada um desses escritores e momentos de teorização uma tentativa de escapar da política.

Novamente em um modo declensionista, Wolin coloca seus sites na ascendência dos modos de pensamento economicistas. Seu alvo claro é a corporação moderna e o discurso gerencialista das relações humanas. Estas são linguagens políticas, práticas e instituições; eles são o resultado de séculos de deslocamento da Grécia antiga para o estado-nação moderno. No entanto, elas evitam sua politicidade ou não conseguem entendê-la.

O que é interessante para mim sobre este último capítulo é o quanto ele pode ter perdido em sua conflação do econômico com a organização e a corporação. Claro, faz sentido que sim. Wolin escreveu Politics and Vision em 1960, na esteira de uma década que viu a publicação de títulos como The Hidden Persuaders, The Organization Man, White Collar e similares. Era a era da corporação e da gerência intermediária; naturalmente, esse foi o ponto final de Wolin, que não deve diminuir de forma alguma quão surpreendente e inovador foi para ele escrever uma história do cânone político ocidental que termina com Peter Drucker!

Mas o que faltou, eu acho, foi o próprio insight que impulsionou seus capítulos anteriores sobre os cristãos: não que o vocabulário político estivesse perdido ou eclipsado, mas sim que foi transposto para uma nova chave. Por isso, na minha opinião, é como deveríamos estar lendo pensadores como Schumpeter, Hayek, Coase, Mises, Friedman, até mesmo Jevons e Ricardo. Pouco no modo como Wolin lidava com modos de pensar economicistas poderia nos preparar para a ferocidade do ataque político que a economia estava prestes a nos visitar. Mas esse mal-estar foi absorvido pelo lamento pela linguagem perdida da política.

A política, até mesmo a große Politik da imaginação de Nietzsche - que se esconde, numa veia mais quieta e mais discreta, no fundo da escrita de Wolin - nunca desaparece. Apenas assume, como Wolin foi o primeiro a nos ensinar, uma nova chave. Sempre  intermediária.

Sobre o autor

Corey Robin é autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Sarah Palin e um editor colaborador de Jacobin.

20 de outubro de 2015

O fim da era Abbas

The end of the Abbas Era

Nathan Thrall



Os esfaqueamentos, tiroteios, protestos e confrontos que agora se espalham por Jerusalém, Cisjordânia, Gaza e Israel apresentam um dos maiores desafios já colocados ao presidente palestino, Mahmoud Abbas, e sua estratégia de negociações bilaterais, diplomacia e cooperação de segurança com Israel. A agitação — sua causa próxima foi o aumento das restrições ao acesso palestino à Mesquita de Al-Aqsa — reflete um sentimento entre os palestinos de que sua liderança falhou, que os direitos nacionais devem ser defendidos em desafio a seus líderes, se necessário, e que a era Abbas está chegando ao fim.

Abbas chegou ao poder com uma janela limitada para alcançar resultados políticos. Mais um funcionário monótono do que um líder revolucionário carismático como Yasser Arafat, ele era visto como uma ponte para a recuperação dos anos ruinosos da Segunda Intifada. Na época de sua eleição, em janeiro de 2005, os palestinos estavam espancados, exaustos e precisando de uma figura internacionalmente aceita e que abominasse a violência, que pudesse garantir o apoio político e financeiro necessário para reconstruir uma sociedade destruída. O movimento Fatah estava dividido e desacreditado pelo fracasso de Oslo, escândalos de corrupção e o abandono de sua estratégia de libertação antes que a independência fosse alcançada. Abbas, que liderou o alcance aos israelenses desde a década de 1970, parecia uma figura de transição suficientemente inofensiva. Ele tinha poucos desafiantes sérios: o Hamas se absteve da eleição presidencial; os líderes fundadores do Fatah foram assassinados muitos anos antes; Marwan Barghouti, na prisão israelense desde 2002, retirou-se da corrida. E o governo Bush, recentemente reeleito, favoreceu Abbas.

Ninguém esperava que essas condições durassem. A fadiga palestina de lutar contra Israel passaria. A Cisjordânia e Gaza seriam reconstruídas. O Hamas não ficaria fora da política para sempre. A ocupação contínua fomentaria a resistência. Os líderes que reprimissem essa resistência seriam desacreditados. E uma nova geração de palestinos cresceria sem nenhuma lembrança dos custos da intifada e sem nenhuma compreensão do porquê seus pais concordaram não apenas em se abster de lutar contra o exército israelense, mas em cooperar com ele, sob acordos que Abbas havia negociado.

Para Abbas, a sobrevivência política dependia de ganhos significativos antes que qualquer coisa disso ocorresse. Sua estratégia envolvia várias apostas. Primeiro, que fornecer segurança a Israel, informar sobre outros palestinos e suprimir a oposição à ocupação convenceria o governo de Israel de que os palestinos poderiam ser confiáveis ​​com independência. Segundo, que depois que os palestinos atendessem às demandas dos EUA para abandonar a violência, construir instituições e realizar eleições democráticas, os EUA pressionariam Israel a fazer as concessões necessárias para estabelecer um estado palestino. Terceiro, que depois de ser convidado a participar de eleições legislativas, o Hamas ganharia assentos suficientes para ser cooptado, mas muito poucos para assumir. Quarto, que ao melhorar a economia da Autoridade Palestina e reconstruir suas instituições, Abbas ganharia tempo suficiente para alcançar o estado palestino.

Em todos os quatro aspectos, ele ficou aquém. Israel tomou sua cooperação de segurança como garantida e o público israelense não exigiu que seu governo recompensasse Abbas por sua estratégia pacífica. Os EUA não aplicaram a pressão necessária para extrair concessões significativas de Israel. O Hamas venceu as eleições legislativas, assumiu Gaza e se recusou a adotar o programa político de Abbas (embora a vitória do Hamas também tenha fortalecido o apoio internacional a Abbas, à medida que a comunidade internacional mudou da promoção da democracia para a prevenção da democracia). E os moradores da Cisjordânia, embora dependentes dos empregos e da infraestrutura econômica fornecidos pela AP, também se ressentem disso e perderam qualquer fé que antes tinham de que a estratégia de Abbas poderia ter sucesso. De acordo com uma pesquisa de opinião realizada no mês passado, dois terços dos moradores da Cisjordânia e de Gaza querem que ele renuncie.

À medida que os fracassos de Abbas aumentavam, os palestinos tomaram as coisas em suas próprias mãos. Eles fizeram isso gradualmente no início, em áreas fora do controle da AP: Jerusalém, Gaza, prisões israelenses e vilas e campos de refugiados não sob jurisdição da AP. O processo se acelerou, com violência e protestos proliferando em Israel, Gaza, Jerusalém e até mesmo partes do território controlado pela AP na Cisjordânia.

Para Abbas, isso representa uma ameaça substancial. Uma verdadeira revolta poderia tornar a cooperação de segurança com o ocupante insustentável, deixando Abbas com meios limitados para suprimir, marginalizar e aprisionar seu único desafiante político significativo – o Hamas – enquanto abria a porta para novos concorrentes. Por definição, a violência representaria um enfraquecimento da mão de Abbas, já que seu principal trunfo sempre foi sua respeitabilidade internacional. Se a violência se intensificar, ele pode ser condenado internacionalmente por não fazer o suficiente para impedi-la e desacreditado internamente por fazer demais. Se a segurança falhar, Israel o achará cada vez mais irrelevante e pode começar a empoderar aqueles que acredita serem capazes de reprimir a agitação.

Por enquanto, as probabilidades ainda estão esmagadoramente contra aqueles que buscam transformar os confrontos e a violência em uma revolta sustentada. Os ataques e protestos até agora foram dispersos, desorganizados e descoordenados, sem uma estratégia ou objetivos claros. Muitos palestinos acreditam que enormes sacrifícios podem alcançar resultados — o apoio israelense a concessões territoriais aos palestinos foi mais forte no auge da Segunda Intifada, em março de 2002 — mas poucos desejam pagar esse preço novamente. Os manifestantes ainda não estão se manifestando em números que se aproximem dos da Primeira ou Segunda Intifada, e eles não se voltaram contra a AP, que junto com Israel é o maior obstáculo para derrubar o status quo. Os palestinos não têm dúvidas de que a estratégia cooperativa de Abbas não terá sucesso, mas têm pouca fé de que as alternativas seriam melhores.

Até agora, as forças de segurança da AP evitaram principalmente o constrangimento de reprimir violentamente os protestos contra Israel e mantiveram sua colaboração com ela longe dos olhos do público. A IDF parece ter aprendido lições de duas intifadas e está se esforçando para não exacerbar as tensões impondo fechamentos ou cancelando autorizações para deixar o território palestino ou trabalhar em Israel. Um grande número de palestinos continua a depender de uma AP cuja existência seria ameaçada por uma nova revolta.

À medida que a ocupação israelense da Cisjordânia e Jerusalém Oriental se aproxima de seu 49º ano, é difícil defender a noção de que ela é insustentável. Mas sustentável não é o mesmo que sem custos.

A violência das últimas três semanas é um ressurgimento dos custos da ocupação, que, embora desagradáveis ​​para Israel, até agora permaneceram como o preço suportável de manter Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. Para os palestinos, a violência e os protestos são um anúncio de que, embora seu movimento nacional esmagado e dividido possa não ser forte o suficiente para atingir seus objetivos, seus constituintes não são tão fracos a ponto de não persegui-los mais.

14 de outubro de 2015

Como o feminismo tornou-se servo do capitalismo - e como recuperá-lo

Um movimento que começou como uma crítica da exploração capitalista terminou contribuindo para ideias-chave de sua mais recente fase neoliberal

Nancy Fraser


Foto: Robert Convery/Alamy.

Tradução / Como feminista, sempre entendi que ao lutar para emancipar as mulheres eu estava construindo um mundo melhor — mais igualitário, justo e livre. Mas ultimamente comecei a desconfiar que os ideais desbravados pelas feministas têm servido para fins bem diferentes. Eu me preocupo, especificamente, que a nossa crítica ao sexismo esteja agora servindo de justificativa para novas formas de desigualdade e exploração.

Numa virada cruel do destino, temo que o movimento pela libertação feminina tenha se enredado perigosamente com os esforços neoliberais de construir uma sociedade de livre mercado. Isto explicaria como pode ser que as ideias feministas, antes parte de uma visão radical de mundo, cada vez mais têm sido expressas em termos individualistas. Se antes feministas criticavam uma sociedade pró-carreirismo, agora aconselham as mulheres a se envolver mais nas carreiras. Um movimento que antes priorizava a solidariedade social e agora celebra empreendedores femininos. Uma perspectiva que antes valorizava o “cuidado” e a interdependência e agora encoraja o crescimento individual e a meritocracia.

Atrás do deslocamento, reside uma mudança profunda da natureza do capitalismo. O capitalismo administrado pelo estado do período pós-guerra cedeu o lugar a uma nova forma: capitalismo “desorganizado”, globalizado, neoliberal. A segunda onda do feminismo que emergira como crítica do primeiro se tornou a serva do segundo.

Olhando bem de perto o que aconteceu, podemos agora perceber que o movimento pela libertação das mulheres apontava simultaneamente para dois futuros possíveis. No primeiro cenário, a prefiguração de um mundo em que a emancipação de gênero caminhava lado a lado com a democracia participativa e a solidariedade social; no segundo, a promessa de nova forma de liberalismo, capaz de conceder às mulheres, assim como aos homens, as benesses da autonomia individual, maior capacidade de escolha e crescimento meritocrático. O feminismo de segunda geração foi, nesse sentido, ambivalente. Compatível com ambas as visões de sociedade, ele acabou suscetível a duas elaborações históricas distintas.

Como eu vejo, a ambivalência do feminismo foi resolvida nos anos recentes em favor do segundo cenário, o liberal-individualista — mas não porque éramos vítimas passivas das seduções neoliberais. Pelo contrário, nós mesmas contribuímos com três ideias importantes para que isso acontecesse.

Uma contribuição foi a nossa crítica do “salário familiar”: o ideal de um homem provedor da mulher, tão central no capitalismo organizado pelo estado. A crítica feminista desse ideal agora serve para legitimar o “capitalismo flexível”. Afinal, essa forma de capitalismo depende muito do trabalho assalariado da mulher, especialmente dos trabalhos mal remunerados nos setores dos serviços ou manufatureiros, realizados não somente por mulheres solteiras jovens, mas também por mulheres casadas e com filhos; não somente por mulheres racializadas, como também por mulheres virtualmente de todas as nacionalidades e etnias. Na medida em que as mulheres se espalharam pelos mercados de trabalho do mundo, o ideal do “salário familiar” vem sendo substituído por uma norma mais nova e moderna — aparentemente abençoada pelo feminismo — da família com dois assalariados.

Pouco importa que a realidade debaixo do novo ideal sejam níveis depressivos de salário, baixa segurança no emprego, declinante qualidade de vida, um aumento drástico do número de horas trabalhadas por família, a exacerbação da dupla-jornada — hoje geralmente tripla ou quádrupla — e um aumento na pobreza, cada vez mais concentrada nos lares encabeçados por mulheres. O neoliberalismo doura a pílula ao elaborar a narrativa do empoderamento feminino. Invocando a crítica feminista contra o “salário família” para justificar a exploração, o neoliberalismo amarra o sonho da emancipação das mulheres na correia do motor da acumulação de capital.

O feminismo também deu uma segunda contribuição ao ethos neoliberal. Na era do capitalismo organizado pelo estado, nós corretamente criticamos uma visão política estreita, que era tão intencionalmente focada na desigualdade de classe que não podia ver tais injustiças “não-econômicas”, tais como a violência doméstica, o abuso/assédio sexual e a opressão reprodutiva. Rejeitando o “economismo” e politizando o “pessoal”, as feministas alargaram a agenda política, a fim de desafiar as hierarquias sociais embutidas nas construções culturais de gênero. O resultado deveria ter sido expandir a luta por justiça, para englobar tanto a cultura quanto a economia. Mas o resultado real foi um foco unilateral na “identidade de gênero”, às custas das lutas do pão e manteiga. Pior ainda, a virada feminista à política da identidade se encaixou à perfeição num neoliberalismo ascendente, que queria nada mais nada menos do que reprimir toda memória de desigualdade social. De fato, nós absolutizamos a crítica do sexismo cultural precisamente na hora em que as circunstâncias requeriam uma atenção redobrada na crítica da economia política.

Finalmente, o feminismo contribuiu com uma terceira ideia ao neoliberalismo: a crítica do paternalismo do estado de bem estar social. Inegavelmente progressista, durante o período do capitalismo organizado pelo estado, aquela crítica desde então vem convergindo com a guerra do neoliberalismo contra o “estado babá” e seu mais recente abraço cínico das ONG. Um exemplo que diz muito consiste no “microcrédito”: o programa de pequenos empréstimos bancários às mulheres no sul global. Considerado como uma alternativa a partir de baixo e empoderadora, em relação a programas estatais a partir de cima e excruciantemente burocráticos, o microcrédito é incensado como antídoto feminista para a pobreza e sujeição das mulheres. Esquece-se, contudo, da perturbadora coincidência: o microcrédito floresceu rapidamente assim que os estados abandonaram esforços macro-estruturais para lutar contra a pobreza, esforços que empréstimos de pequena escala não tem como substituir. Nesse caso, igualmente, a ideia feminista foi incorporada pelo neoliberalismo. Uma perspectiva voltada originalmente para democratizar o poder do estado, de maneira a empoderar os cidadãos, é agora usada para legitimar a mercantilização e a amputação do estado.

Em todos esses casos, a ambivalência do feminismo tem sido resolvida em favor do individualismo (neo)liberal. Mas o outro cenário, da solidariedade, pode estar ainda vivo. A crise presente abre a chance de retomar o fio mais uma vez, religando o sonho de libertação das mulheres com a visão de uma sociedade solidária. Para isso, as feministas precisam romper a ligação perigosa com o neoliberalismo e reconquistar as nossas três “contribuições” para os nossos próprios objetivos.

Primeiro, precisamos romper a ligação espúria entre a nossa crítica do salário familiar e o capitalismo flexível, militando por uma forma de vida descentrada do trabalho assalariado e que valorize atividades não-salariais, incluindo, mas não apenas, o cuidado. Segundo, nós poderíamos desviar a passagem de nossa crítica ao economismo à política da identidade: integrando a luta pela transformação de uma ordem hierárquica, embutida nos valores culturais machistas, com a luta por justiça econômica. Finalmente, poderíamos dissolver o cimento falso entre nossa crítica à burocracia e o fundamentalismo do mercado livre, reivindicando o manto da democracia participativa como um meio de fortalecimento dos poderes públicos necessários para, em prol da justiça, conter o capital.

12 de outubro de 2015

O verdadeiro Cristóvão Colombo

Não houve aventura heroica apenas carnificina. O Dia de Colombo não deve ser uma celebração.

Howard Zinn




Tradução / Homens e mulheres aruaques, desnudos. leonados e cheios de curiosidade, emergiram das suas vilas em direcção às praias e nadaram para observar melhor o grande e estranho barco. Quando Colombo e seus marinheiros alcançaram a costa, com as suas espadas, os aruaques correram para os saudar, trouxeram-lhes comida, água, e regalos. Mais tarde registou no seu diário:

Trouxeram-nos papagaios e bolas de algodão e lanças e muitas outras coisas, que trocaram por esferas de vidro e cascavéis. Com boa vontade trocavam tudo o que tinham... Não usam armas e não as conhecem, pois mostrei-lhes uma espada e empunharam-na pela lâmina e por ignorância cortaram-se. Seriam bons servos... com cinquenta homens poderíamos subjugá-los a todos e fazer com eles o que quer que queiramos.

Estes aruaques das ilhas Bahamas eram muito parecidos com os índios do continente, que eram distinguidos (diriam observadores europeus vezes sem conta) pela sua hospitalidade e a sua crença na partilha. Estes tratos não estavam em grande conta na Europa da Renascença, dominada como estava pela religião dos papas, dos governos dos reis, o frenesim por dinheiro que marcava a civilização Ocidental e o seu primeiro mensageiro nas Americas, Cristóvão Colombo.

A informação que Colombo mais queria era: Onde está o ouro? Tinha persuadido o rei e rainha de Espanha a financiar uma expedição para as terras e riqueza, que esperava que estivessem no outro lado do Atlântico — as Índias e Ásia, ouro e especiarias. Pois, tal como outras pessoas informadas do seu tempo, sabia que o mundo era redondo e que podia navegar em direcção a Ocidente de maneira a alcançar o Extremo Oriente.

Espanha tinha sido há pouco tempo unificada, um dos estados-nação modernos, como França, Inglaterra e Portugal. A sua população, a maioria campesinos pobres, trabalhava para a nobreza, que eram 2 por cento da população e eram donos de 95% da terra. Como outros estados do mundo moderno, Espanha buscava ouro, que se estava a tornar a nova marca de riqueza, mais prático que a terra porque podia comprar qualquer coisa.

Havia ouro na Ásia, pensava-se, e certamente sedas e especiarias, pois Marco Polo e outros haviam trazido coisas maravilhosas das suas expedições por terra séculos antes. Agora que os turcos haviam conquistado Constantinopla, o Mediterrâneo oriental e controlavam as rotas terrestres para a Ásia, uma rota marítima era necessária. Os marinheiros portugueses estavam a trabalhar no seu caminho à volta da ponta sul de África e Espanha decidiu apostar numa longa viagem através de um mar desconhecido.

Como recompensa por trazer de volta ouro e especiarias, prometeram a Colombo 10 porcento dos lucros, governação sobre as novas terras descobertas e a fama que adviria do seu novo título: Almirante de la Mar Océana. Era empregado de um comerciante da cidade italiana de Génova. Tecelão em “part-time” (filho de um tecelão habilidoso) e um marinheiro excelente. Iniciou a expedição com três navios, o maior era o Santa Maria, talvez com 100 pés de comprimento e trinta e nove tripulantes.

Colombo nunca chegaria à Ásia, que estava a milhares de milhas para lá do que ele tinha calculado, imaginando um mundo mais pequeno. Ele estaria condenado por aquela imensidão de mar. Mas teve sorte. A apenas um quarto do caminho percorrido deparou-se com terras desconhecidas e inexploradas que surgem entre a Europa e a Ásia — As Américas. Era o princípio de Outubro de 1492, e trinta e três dias desde que ele e a sua tripulação tinha zarpado das Canárias, na costa atlântica africana. Agora viam ramos e paus a flutuar na água. Viam bandos de pássaros.

Estes eram sinais de terra. Depois, no dia 12 de Outubro, um marinheiro chamado Rodrigo viu a lua das primeiras horas da manhã brilhar nas areias brancas e gritou. Era uma ilha das Bahamas no Mar das Caraíbas. O primeiro homem a avistar terra teria uma pensão anual de 10,000 maravedis para toda a vida, mas Rodrigo nunca a teve. Colombo alegou que tinha visto uma luz na noite anterior. Ficou com a recompensa.

Então, aproximando-se da terra, foram recebidos por índios aruaques, que nadavam para os saudar. Os Aruaques viviam em aldeias comunitárias, tinha desenvolvido a agricultura do milho, inhame e mandioca. Sabiam fiar e dominavam a arte da tecelagem, mas não tinham cavalos ou animais de carga. Não tinham ferro mas usavam pequeno ornamentos de ouro nas suas orelhas.

Isto veio a ter enormes consequências: levou Colombo a trazer a bordo prisioneiros porque insistia que o guiassem à fonte do ouro. Depois navegou em direcção ao que hoje é Cuba e depois à Hispaniola (a ilha que hoje consiste em Haiti e República Dominicana). Aí, pedacitos de ouro visíveis nos rios, e uma máscara de ouro apresentada a Colombo por um chefe índio local, levou a visões de minas de ouro. O relato para a Corte em Madrid de Colombo foi extravagante. Insistia que tinha chegado à Ásia (era Cuba) e a uma ilha da costa de China (Hispaniola). As suas descrições eram parte factos, parte ficção.

A Hispaniola é um milagre. Montanhas e montes, planícies e prados, são ambos férteis e lindos... há imensas especiarias e grandes minas de ouro e outros metais...

Os Índios, reportava Colombo, “são tão inocentes e tão livres das suas possessões que ninguém, que não tivesse testemunhado, acreditaria. Quando lhes pedes algo que eles tenham, nunca dizem não. Pelo contrário, oferecem-se para compartir com qualquer um...” Concluía o seu relato pedindo uma pequena ajuda de suas Majestades, e em compensação traria de sua próxima viagem “tanto ouro quanto precisassem... e tantos escravos quantos pedissem.”

Por causa do relato exagerado e das promessas de Colombo, foi dada à sua segunda expedição dezassete navios e mais de duzentos homens. O objectivo era claro: escravos e ouro. Da sua base em Haiti, Colombo enviou expedição após expedição para o interior. Não encontraram minas de ouro, mas tinha que encher os navios de regresso a Espanha com algum tipo de dividendo.

No ano de 1495, fizeram uma incursão por escravos, reuniram uns 1500 homens, mulheres e crianças aruaques, juntando-os em currais guardados por espanhóis e cães e depois escolheram os melhores espécimes para carregar os navios. De esses 500, 200 morreram na travessia. Muitos dos escravos morreram em cativeiro. Então Colombo, desesperado por pagar de volta os dividendos àqueles que investiram teve que tornar válida a sua promessa de encher os navios com ouro. Na província de Cicao em Haiti, onde ele e os seus homens imaginaram que existiam grandes minas de ouro, ordenaram que todas as pessoas maiores de catorze anos obtivessem uma certa quantidade de ouro cada três meses. Quando a traziam, davam-se-lhes umas placas de cobre para as usarem em volta do pescoço. Índios encontrados sem estas placas veriam as suas mãos cortadas e seriam sangrados até à morte.

Tinha sido dada aos índios uma tarefa impossível. O único ouro nas proximidades eram pequenas quantidades de ouro em pó arrecadada das correntes. Então fugiram, foram perseguidos com cães e foram mortos. Quando se tornou claro de que já não havia mais ouro, os índios foram levados como escravos para grandes propriedades, conhecidas posteriormente como encomiendas. Eram trabalhadas a um ritmo feroz e morriam aos milhares. No ano 1515, só havia talvez 50,000 índios. No ano de 1550 só havia 500. Um relato do ano 1650 evidencia que nenhum dos originais aruaques ou dos seus descendentes restava na ilha.

A fonte principal — e em muitas matérias a única fonte — de informação sobre o que aconteceu nas ilhas após a chegada de Colombo é Bartolomé de las Casas, que, como jovem padre, participou na conquista de Cuba. Por um período de tempo foi proprietário de uma plantação na qual os índios escravos trabalhavam, mas desistiu dela e tornou-se um crítico impetuoso da crueldade espanhola. Las Casas transcreveu o diário de Colombo e, nos seus cinquentas, começou o multi-volume Historia de las Indias.

No livro dois da sua Historia de las Indias, Las casas (que inicialmente pressionou a que substituíssem índios por escravos negros, pensando que estes seriam mais fortes e sobreviveriam, mas depois cedeu quando viu os efeitos nos negros) conta sobre o tratamento que era dado aos índios pelos espanhóis. Após pouco tempo os espanhóis recusavam-se a caminhar qualquer distância. “Montavam as costas dos índios se estivessem com pressa” ou eram carregados em macas pelos índios em turnos. “Neste caso também tinham índios carregando grandes folhas para lhes tapar o sol e outros para fazer-lhes vento com asas de ganso.”

Controle total levou à crueldade total. Os espanhóis “não pensavam nada ao apunhalar índios às dezenas e vintenas ou cortar fatias destes para testar a condição das suas espadas.” As tentativas dos índios para se defenderem falharam. Las Casas relata, “sofreram e morreram nas minas e em outros trabalhos em silêncio desesperado, não conhecendo sequer uma alma no mundo a quem pudessem pedir ajuda.” E descreve o seu trabalho nas minas:

... as montanhas são taladas do topo à base e da base ao topo mil vezes; eles cavam, quebram rochas, movem pedras e carregam os detritos nas suas costas para lavar nos rios, onde aqueles que lavam o ouro estão na água o tempo todo com as suas costas tão constantemente curvadas que se lhes quebram.

Após cada seis ou oito meses de trabalho nas minas, que era o tempo requerido para cada grupo recolher o ouro necessário para derreter, um terço dos homens morria. Enquanto que os homens eram enviados a muitas milhas de distância para as minas, as mulheres ficavam para trabalhar a terra, forçadas ao atroz trabalho de cavar e fazer milhares de montes para a planta mandioca.

Assim maridos e mulheres estavam juntos apenas uma vez cada oito ou dez meses e quando se encontravam estavam ambos tão exaustos e deprimidos... que deixaram de procriar. E quanto aos recém-nascidos, morriam cedo porque as suas mães, esgotadas e famintas, não tinham leite para os amamentar... algumas mães chegavam mesmo a afogar os seus filhos por completo desespero... desta maneira, maridos morriam nas minas, mulheres no trabalho e os filhos por falta de leite... e em pouco tempo esta terra que era tão extraordinária, tão poderosa e fértil... estava despovoada,

Quando chegou à Hispaniola em 1508, Las casas afirma, “havia 60,000 pessoas a viver nesta ilha, incluindo os índios; portanto de 1494 até 1508, mais de três milhões de pessoas tinham morrido da guerra, escravatura e das minas. Quem nas futuras gerações irá acreditar em isto? Mesmo eu escrevendo-o como uma testemunha ocular conhecedora mal o posso crer...”

O que Colombo fez aos aruaques das Bahamas, Cortez fez aos Astecas de México, Pizarro aos Incas de Peru, e os colonos ingleses de Virginia e Massachusetts aos powhatan e pequots. Usaram as mesmas tácticas e pelas mesmas razões — o frenesim nos pioneiros estados capitalistas da Europa por ouro, escravos, por produtos da terra, por pagar aos obrigacionistas e accionistas das expedições, financiar as monarquias burocráticas que ascendiam na Europa Ocidental, estimular o crescimento da economia do novo dinheiro a emergir do feudalismo, por participar no que Karl Marx mais tarde viria a chamar “acumulação primitiva de capital.” Estes foram os começos violentos de um sistema intrincado de tecnologia, negócio, política e cultura que iria dominar o mundo nos próximos cinco séculos.

Quão certos estamos de que o que destruímos era inferior? Quem era esta gente que foi à praia e nadou para trazer regalos a Colombo e à sua tripulação, quem viu Cortez e Pizarro cavalgar pelos seus campos? Que conseguiu as pessoas de Espanha de todas aquelas mortes e brutalidade sobre os índios das Américas? Assim o sumariza Hans Koning no seu livro Columbus: His Enterprise:

Por todo o ouro e prata roubado e enviado para Espanha não fez o povo espanhol mais rico. Deu aos seus reis um avanço no equilíbrio de poder por um tempo, uma oportunidade de contratar mais mercenários para as suas guerras. Sem embargo Acabaram por perder essas guerras e tudo o que restou foi uma inflação mortal, uma população faminta, os ricos mais ricos, os pobres mais pobres e uma arruinada classe campesina.

Assim começou a história da invasão europeia das povoações índias nas Américas. Esse início é conquista, escravatura, morte. Quando lemos os livros de história dados às crianças nos Estados Unidos, tudo começa com uma aventura heróica — não há derramamento de sangue — e o Dia de Colombo é uma festa.

Sobre o autor

Howard Zinn (1922-2010) foi um historiador, autor, dramaturgo e ativista social americano. O texto a seguir foi adaptado de sua aclamada A People's History of the United States.

1 de outubro de 2015

O espectro de Trump

Donald Trump speaks to an aggrieved and radicalized middle class with seemingly nowhere else to turn.

Charlie Post

Jacobin

Tradução / Um espectro ronda o Partido Republicano. Ao contrário dos anos 1980, não é o “comunismo” ou a “ameaça soviética”. Não é o “radicalismo islâmico” ou o “terrorismo”. É Donald Trump, o autodenominado “self-made” bilionário – na verdade um dos mais malsucedidos homens de negócios dos últimos tempos – que emergiu como líder na abarrotada corrida pela candidatura presidencial dos republicanos.

A aberta xenofobia de Trump conta muito para sua popularidade na base dos republicanos – predominantemente profissionais brancos de classe média suburbanos (e interioranos), administradores, pequenos empresários e uma minoria de trabalhadores brancos. Evitando o que chama por politicamente correto, ele condena os “estupradores e criminosos”, supostamente provenientes do México e pede a deportação em massa de imigrantes indocumentados.

O enfoque repercute uma ampla seção das classes médias brancas. Em Trump elas veem o antipolítico consumado – um “homem do povo” de discurso contundente, que fala sobre seus medos e ansiedades e irá restaurar a grandeza da América.

O crescimento de Trump tem alimentado pânico no establishment republicano, que agora tenta mobilizar seus recursos para bloquear sua candidatura. Esse establishment está, por exemplo, financiando anúncios que acusam Trump de ser inelegível por causa de suas “visões extremistas” e de ser um “liberal no armário” que já apoiou o direito ao aborto e um programa público nacional de seguro de saúde.

A grande mídia também acolheu os argumentos do “extremismo” de Trump e de sua “inelegibilidade”, alegações que a esquerda deve saudar com algum ceticismo. Afinal de contas, Ronald Reagan parecia estar bem à direita da corrente principal da política dos Estados Unidos, em 1980, e ainda provou ser eminentemente elegível.

À esquerda, dois escritores – Harrison Fluss e Stanley Aronowitz – ofereceram recentemente reflexões diferentes sobre Trump. Para Aronowitz, Trump expõe o papel do dinheiro na política burguesa. Ele “põe o bode no meio da sala, mostrando algo que o sistema político passou mais de um século disfarçando”, pondo assim em causa a legitimidade da democracia representativa na América. Fluss, entretanto, vê Trump como a “fruta podre da classe dominante norte-americana”, cujas ideias não são “uma aberração para o mainstream” da política convencional.

Existem elementos de verdade em ambas as interpretações. Por um lado, a capacidade de Trump e vários super-PACs de gastar quantias ilimitadas de dinheiro permite que pequenos grupos politicamente marginais de contribuintes, o suficientemente ricos para tal, distorçam a arena eleitoral de tal maneira que comprometem a fé na democracia capitalista.

Por outro, a acumulação capitalista e a concorrência desenfreada acarretaram o declínio dos padrões de vida e uma maior insegurança não só para a maioria das pessoas que trabalham, mas também para segmentos das classes médias. Na ausência de um movimento de esquerda ou trabalhista viável, a precariedade que estes grupos enfrentam os torna abertos aos apelos de demagogos de direita como Trump.

No entanto, nenhuma dessas análises lida com o que faz a candidatura de Trump tão atraente para camadas das classes média branca e dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, tão assustadora para o establishment republicano. Simplificando, as candidaturas de Trump e aquelas alinhadas com o Tea Party, como Ben Carson e Ted Cruz, não representam nenhum segmento da classe capitalista nos Estados Unidos.

Enquanto sua hostilidade aos sindicatos e o apoio a uma brutal austeridade e à redução dos impostos às corporações coincidem com a opinião capitalista preponderante nos Estados Unidos, os republicanos do Tea Party no Congresso contrariaram o capital a respeito do shutdown do governo federal – colocando em risco o crédito do Estado e do capital – e da imigração.

Em 2014, a Chamber of Commerce gastou dezenas de milhões para derrotar os candidatos do Tea Party nas primárias republicanas no Congresso em todo o país. No entanto, embora muitos candidatos fossem derrotados em 2014, isso não impediu que os reeleitos empurrassem John Boehner (R-OH) para fora da presidência da Câmara, irritados com sua oposição ao uso do teto da dívida federal como moeda de troca para diminuir o financiamento do programa de planejamento familiar, das pensões do Medicare e dos veteranos.

Na corrida presidencial, é provável que a Chamber of Commerce – que representa um amplo leque de empresas médias e grandes – e a Business Roundtable – que representa as maiores, as corporações transnacionais – tentem isolar Trump e os candidatos do Tea Party para favorecer Jeb Bush. Se isso falhar, muitos dos capitalistas que apoiam Bush, hoje vão se sentir muito confortáveis com a candidata democrata líder, Hillary Clinton.

Uma das razões é a imigração, uma questão muito complicada para os capitalistas nos Estados Unidos. Evidentemente, eles não querem massas de imigrantes entrando nos Estados Unidos legalmente e ganhando rapidamente direitos de cidadania. No entanto, eles são militantemente contrários a deportações massivas e outras medidas que os privem de uma força de trabalho barata e flexível.

Em 2010, a Câmara de Comércio se juntou à American Civil Liberties Union e à League of United Latin American Citizens para opor-se à lei antiimigrantes do Arizona (SB 1070), que levou milhares de pessoas a fugir desse estado com medo da prisão e da deportação.

Além disso, a Business Roundtable e a Chamber of Commerce têm estado na vanguarda da pressão para a reforma da lei de imigração no Congresso. Ambos querem uma combinação de mais “proteção eficaz das fronteiras”, um (longo e difícil) “caminho para a cidadania” para quase 11 milhões de imigrantes indocumentados nos Estados Unidos e um programa de trabalhadores convidados para futuros imigrantes, que forneceria ao capital norte-americano uma oferta de trabalhadores sem direitos e sem capacidade de se tornarem residentes permanentes ou cidadãos.

O rápido crescimento de Trump é um repúdio a essa agenda. Como o Tea Party, Trump é um exemplo de política radical de classe média. Preso entre uma classe trabalhadora desorganizada e uma classe capitalista cada vez mais voraz, segmentos das classes médias – especialmente brancos suburbanos nos Estados Unidos – se sentem inseguros econômica e socialmente. Eles veem os seus meios de subsistência e sua posição social ameaçada por todos os lados.

Incapazes de desafiar diretamente o capital, setores das classes médias são atraídos para uma política que torna bodes expiatórios os imigrantes, sindicatos, mulheres, pessoas LGBT e de cor. A crescente radicalização de direita das classes médias tem alimentado a expansão das formações de extrema-direita e o surgimento de personagens que são independentes das classes capitalistas em um número de sociedades capitalistas avançadas: o Independence Party, na Grã-Bretanha; o Front National, na França; o Movimento 5 Stelle, na Itália; e o Tea Party e Donald Trump nos Estados Unidos.

Essa radicalização da classe média – o que Trotsky (1969) certa vez chamou de a “poeira humana” – tem algumas semelhanças com os movimentos fascistas clássicos dos anos 1920 e 1930. Genuínos elementos fascistas (grupos de supremacia branca com grupos de luta de rua organizados) têm sido atraídos para o Tea Party e Trump.

No entanto, nem o Tea Party nem Trump podem ser descritos como fascistas. Ambos procuram ganhar poder através de política eleitoral e não querem abolir as eleições e governo representativo. Os capitalistas nos Estados Unidos não optarão, no futuro previsível, por uma opção tão extrema-direita. Se o establishment republicano não conseguir parar Trump, eles provavelmente cruzarão as linhas partidárias e apoiarão uma política neoliberal como Hillary Clinton.

O espectro da Trump não só assusta o establishment republicano, mas a maioria da esquerda nos Estados Unidos. Como acontece de tempos em tempos desde 1930, a ameaça da extrema-direita servirá como uma desculpa para a burocracia sindical e o establishment liberal dos movimentos dos direitos civis, feministas e LGBT mobilizarem suas bases para apoiar os democratas.

Mas esta solução para a ascensão de Trump e da extrema direita não é uma solução para tudo: abraçar o “menor mal” em 2016 significaria mais uma vez renunciar à obra de reconstrução dos movimentos sindicais e sociais e, em vez disso, subordinar nossa política radical ao Partido Democrata. O resultado desastroso seria que a única oposição visível à classe capitalista não viria da esquerda, mas sim de um empresário bilionário.

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