Jonah Birch
Ilustração por Phil Wrigglesworth |
Em junho de 1918, Eugene Debs fez um discurso que o colocaria na prisão. Falando em Canton, Ohio, o líder do Partido Socialista denunciou o presidente Woodrow Wilson e a Primeira Guerra Mundial para a qual ele guiou os Estados Unidos.
Para Debs, a matança em massa que havia assolado toda a Europa por quatro anos sangrentos era um conflito travado em nome dos interesses dos capitalistas, mas combatido por trabalhadores. Em cada país era o rico quem havia declarado guerra e se mantinha lucrando à partir dela; mas eram os pobres quem eram enviados para lutar e morrer aos milhões.
Isso, Debs disse à sua audiência, era como sempre foi, enquanto exércitos têm sido enviados para batalharem uns aos outros em nome de reis ou países. “As guerras através da história têm sido travadas para conquista e pilhagem,” ele disse. “A classe dominante tem sempre declarado as guerras; a classe dominada tem sempre lutado as batalhas. A classe dominante tem tido tudo a ganhar e nada a perder, enquanto a classe dominada não tem tido nada a ganhar e tudo a perder – especialmente suas vidas.”
A mensagem de Debs aos trabalhadores era simples: seu inimigo não eram as pessoas da Alemanha, os soldados da classe trabalhadora que eles estavam sendo embarcados para assassinar; eram os dominadores, em ambos os lados, que ordenaram suas tropas rumo a batalha. Eram os capitalistas e seus representantes nos governos americano e alemão, cuja riqueza e poder lhes deu controle sobre os destinos de milhões.
O discurso de Debs foi demais para as autoridades nos Estados Unidos – eles os prenderam sob uma nova lei de restrição da liberdade de expressão, o Ato de Espionagem de 1917, e o sentenciaram a dez anos de prisão. Notavelmente, nas eleições de 1920, Debs concorreu para presidente na cédula Socialista enquanto permanecia em uma penitenciária federal em Atlanta, e ainda conseguiu conquistar quase 1 milhão de votos.
Tornando o Mundo Seguro Para o Capitalismo
No exemplo de Debs, podemos ver as principais ideias que têm sustentado a abordagem do movimento socialista para a questão da guerra. Socialistas têm sempre visto a propensão do Capitalismo para guerras de conquista e pilhagem como a expressão definitiva da brutalidade do sistema. Na organização da violência de Estado em uma escala sem precedentes, nós vemos a tendência do Capitalismo de subordinar as necessidades humanas à lógica do lucro e do poder. No intervalo entre a promessa de igualdade democrática e a realidade da opressão de classe que a guerra expressa, vemos a injustiça fundamental que define nossa ordem social.
Sob o Capitalismo, a exploração ocorre na maior parte do tempo através do mercado. É a relação contratual ostensivamente não-coercitiva entre trabalhadores e empregadores que mascara as desigualdades de classe mais profundas subjacentes. Mas o poder de fazer a guerra dos Estados Capitalistas ainda é essencial para o funcionamento saudável do sistema. Capitalistas em países como Estados Unidos ainda dependem dos militares de seus próprios governos, tanto para fazer cumprir “as regras do jogo” na Economia Global e para ajudá-los a competir mais eficientemente contra outras Classes dirigentes.
Contra esse estado de coisas, os Socialistas apoiam a organização de movimentos de massa contra as guerras travadas por nosso governo [1]. Nós participamos [2] na luta contra restrições à liberdade de expressão e outros direitos democráticos que inevitavelmente acompanham essas guerras. Contra os chamados por “unidade nacional”, nós lutamos por solidariedade internacional e organização de classe mais forte para lutar pelos interesses dos trabalhadores. No longo prazo, esperamos traduzir estes movimentos em uma luta mais ampla por uma transformação radical da Sociedade ao longo de linhas democráticas.
Em nenhum lugar essa abordagem é mais importante do que nos Estados Unidos [3] – o mais poderoso país capitalista do mundo. Hoje, os EUA gastam mais com seus militares do que os próximos 7 países que mais gastam nisso combinados. Nosso governo tem cerca de 800 bases militares no estrangeiro. Soldados estadunidenses ou tropas aliadas estão presentes em cada região do globo.
No último século e meio, o Estado Estadunidense tem travado guerras brutais em nome de um império crescente, desde a guerra hispano-americana de 1898 até as recentes invasões do Afeganistão e Iraque. Interveio de novo e de novo na África, Ásia, América Latina para proteger os interesses dos negócios e chutar os movimentos que pudessem ameaçar seu controle sobre recursos-chave ou minar a estabilidade do sistema global capitalista.
Frequentemente estas aventuras foram descritas como sendo necessárias para trazer liberdade e democracia para países oprimidos, ou para proteger cidadãos estadunidenses do perigo. O registro histórico, entretanto, conta uma história diferente.
Mesmo na época da Guerra Hipano-Americana de 1898, considerada por muitos como sendo a alvorada do imperialismo estadunidense moderno, o governo estadunidense estava invadindo Cuba, Porto Rico e as Filipinas em nome da libertação de seus povos do jugo do colonialismo espanhol. Quando, depois da vitória ter sido assegurada, Washington decidiu fazer daqueles três territórios protetorados estadunideses (ou, no caso de Porto Rico, uma colônia por completo), eles garantiram que tinham apenas as intenções mais benevolentes. E quando os residentes desses países levaram essas promessas de liberdade e democracia muito literalmente, os Estados Unidos decidiram que não tinham escolha além de esmagar as lutas por independência que emergiram. Nas Filipinas, uma insurreição nacionalista que irrompeu em 1899 foi suprimida às custas de várias centenas de milhares de vidas filipinas.
Em cada guerra entre aquela época e agora o padrão tem sido o mesmo. O governo estadunidense entrou na Primeira Guerra Mundial em 1917 (depois que Wilson venceu as eleições de 1916 na base de suas promessas anti-guerra) para “tornar o mundo seguro para a democracia,” enquanto enviava Marines por toda a América Latina na defesa dos interesses econômicos e políticos do Capital. Lutou a Segunda Guerra Mundial para “livrar o mundo da tirania,” mas gastou os anos do pós-guerra manipulando eleições na Itália, patrocinando uma perversa guerra civil na Grécia e escorando o xá do Irã. Enviou milhões para o túmulo na Coréia e no Sudeste Asiático para “salvar” as pessoas de lá do Comunismo, enquanto instalava ditaduras brutais tanto no Vietnã do Sul quanto na Coreia do Sul. Enquanto isso, os decisores políticos dos EUA secretamente organizaram a derrubada de governos populares e democráticos por todo o mundo – desde Mohammad Mosaddegh no Irã, passando por Patrice Lumumba no Congo e Salvador Allende no Chile.
Para justificar estas campanhas, os oficiais estadunidenses têm muitas vezes recorrido ao perverso racismo. O General William Westmoreland uma vez justificou a brutalidade das forças que ele liderava no Vietnã dizendo que “os orientais não colocam o mesmo valor na vida como faz um ocidental… Nós valorizamos a vida e a dignidade humana. Eles não se importam com a vida e a dignidade humana.”
A cada turno o governo estadunidense tem mostrado [4] seu compromisso com a democracia e a liberdade no estrangeiro como sendo tão superficial quanto o seu compromisso com a igualdade em casa. Vez após outra, tem provado que seu temor pelo controle democrático sobre os recursos do mundo corre mais fundo que sua retórica pró-Democracia. Como Henry Kissinger, que serviu como um consultor em políticas estrangeiras a três presidentes, disse dos esforços da administração de Nixon para tombar o governo socialista eleito no Chile, “não vejo por que nós devemos ficar parados e assistir um país se tornar comunista por causa da irresponsabilidade de seu próprio povo.” O mesmo se deu nos anos 80 nas tentativas de minar os governos esquerdistas na pequena Nicarágua e na menor ainda Granada.
Mais recentemente, esse padrão tem se repetido no Oriente Médio – agora o campo de batalha central para os EUA e seus competidores imperiais, por causa de seu papel como o centro da produção global de petróleo.
Se as guerras no Iraque e no Afeganistão foram inicialmente justificadas como necessárias para defender vidas estadunidenses, detruir a Al-Qaeda, e erradicar o terrorismo, elas não atingiram nenhum desses objetivos. Nem resultaram em governos democráticos em nenhum desses países. Ao contrário, as centenas de milhares de vidas perdidas nestas guerras apenas desestabilizaram a região e intensificaram as divisões sectárias. Ao invés de dar suporte a movimentos democráticos, os EUA tem apoiado regimes ditatoriais no Egito e no Bahrein, e ajudado a fortalecer as monarquias mais cruéis e reacionárias na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos.
Os Estados Unidos têm também permitido a Israel escalar sua violência diária (com assaltos semi-regulares de matança em massa em Gaza), ocupação e expansão de assentamentos às custas de palestinos. E têm assistido enquanto os lados em enfrentamento na guerra civil síria tem dirigido um massacre que afogou as lutas sírias por democracia no sangue de centenas de milhares de seus cidadãos.
Dados o escopo e a escala da violência imperial estadunidense, é crucial que os Socialistas nos Estados Unidos se oponham às intervenções militares de seu governo. Tal posição é necessária para qualquer solidariedade genuína da classe trabalhadora. Toda vez que o governo dos EUA explode uma festa de casamento afegã ou ajuda a proteger um esquadrão da morte no Iraque; toda vez que ele envia alguém para apodrecer em uma prisão no Afeganistão ou na Baía de Guantánamo; toda vez que ele permite que a CIA torture um prisioneiro; torna a solidariedade de classe através das fronteiras mais remota.
Por que trabalhadores em outros países deveriam se aliar àqueles nos EUA, em nome de quem eles são bombardeados e ocupados? Na medida em que estadunidenses compram o nacionalismo que inevitavelmente segue as maquinações estrangeiras de seu governo, tornam a emergência de um movimento de classe contra a opressão e a exploração impossíveis.
Enquanto isso, a posição dos trabalhadores estadunidenses apenas se deteriora mais. Quando centenas de bilhões de dólares são gastos atacando países ao redor do globo, não estão disponíveis para programas de Bem-Estar Social que poderiam ajudar aqueles em casa. O desperdício de sangue e recursos, o racismo, e os levantes reacionários que acompanham as guerras no estrangeiro ricocheteiam para detrimento dos trabalhadores nos EUA. Em um tempo em que milhões de estadunidenses estão sofrendo com o desemprego e a pobreza, os mais de $2 trilhões gastos na invasão e ocupação do Iraque parecem cada vez mais obscenos.
Tudo isso significa que o movimento trabalhista estadunidense tem um incentivo material para se opor os desejos de guerra de seu próprio governo. É por esta razão que os Socialistas pensam que um movimento internacional da classe trabalhadora contra a guerra e o imperialismo não é apenas necessário, mas também possível.
O Inimigo em Casa
Entretanto, se Socialistas em um país como os EUA se opõem às guerras travadas por seus governos, não significa que eles são pacifistas. – ou seja, que eles se opõem a todas as guerras ou tem uma posição baseada em princípios contra qualquer tipo de violência. A questão é quem está travando a guerra e em nome de quais interesses e políticas.
Como o teórico militar do século XIX Carl von Clausewitz disse, “Guerra é a continuação da política por outros meios.” Clausewitz queria dizer que para entender o caráter de uma dada guerra, você tem de entender quem estava lutando e por quais propósitos. É claro, Clausewitz, um general prussiano nas guerras napoleônicas, não era bem um radical de Esquerda, mas seu ponto básico é um importante para os Socialistas compreenderem.
O movimento socialista quer erradicar a guerra por que ela é brutal e irracional – um desperdício de vida humana e recursos sociais que produz uma devastação enorme. Mas em um mundo cheio de exploração e opressão, é preciso diferenciar entre a violência daqueles lutando para manter a injustiça e aqueles lutando contra a injustiça.
Uma pessoa não pode, por exemplo, misturar a violência do apartheid sul-africano com aquela dos elementos armados do Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela. O mesmo vale para a violência dos militares estadunidenses na Guerra do Vietnã – uma guerra que eventualmente matou 3.5 milhões de pessoas – e aquela da Frente de Libertação Nacional Vietnamita, que lutou para libertar o Vietnã da dominação estadunidense e francesa.
Para o movimento socialista, a máxima de Clausewitz aponta para a necessidade de pesar qualquer guerra na base dos interesses a que ela serve. Não é coincidência que socialistas como Marx e Engels apoiaram a União na Guerra Civil estadunidense, reconhecendo que apesar da fala de Lincoln de que sua intenção era reunir o país sem acabar com a escravidão, uma guerra [5] contra os Confederados se tornaria necessariamente uma guerra contra a classe dos proprietários das plantations [6]. De fato, como Lincoln – que nos anos 1840 se opôs à Guerra Mexicana-Estadunidense por que a via como um esforço para expandir a escravidão para novos territórios – veio a reconhecer, o Norte só poderia ter sucesso mobilizando os escravos em uma batalha por sua própria liberdade.
Nada disso é para sugerir que os Socialistas possuem uma abordagem puramente instrumental para com a violência – que nós pensamos, como tão comumente afirmam, que “os fins justificam os meios.” Em nossos esforços para atingir o tipo de mudança que procuramos, a violência só pode minar a nossa causa no longo prazo; nós nunca podemos esperar igualar a capacidade para a violência do Estado Capitalista, e nosso movimento somente será enfraquecido enquanto a luta pelo Socialismo for transformada de um conflito social e político em um militar.
Também não apoiamos necessariamente governos apenas por que acontece deles estarem em conflito com o nosso: não perdoamos a violência imperial, por exemplo, da Rússia e da China apenas por que eles estão ocasionalmente discordando dos nossos próprios dominadores.
Mais fundamentalmente, é importante deixar claro que nosso suporte por grupos lutando contra sua opressão, nas mãos do governo dos EUA ou de qualquer outro, não significa que seremos sempre acríticos com essas forças. Alguém precisa apenas olhar para os níveis crescentes de desigualdade e a penetração cada vez maior do Capitalismo Global na África do Sul desde a queda do Apartheid, ou no Vietnã desde a libertação, para ver que mesmo lutas vitoriosas não precisam produzir um resultado realmente justo. De fato, enquanto expressam solidariedade com movimentos desafiando a opressão, os Socialistas precisam estar dispostos a criticar aqueles que travam estas lutas, sempre que necessário – seja esta crítica feita em termos políticos, estratégicos ou mesmo morais.
Mas também não tratamos todos os lados em um conflito particular como se eles fossem o mesmo. Acima de tudo, nós nos opomos ao papel de nosso próprio governo na propagação de guerras, ou na expansão de sua influência militar e política, às custas das classes trabalhadoras do mundo. Como o revolucionário alemão Karl Liebknecht colocou em seu discurso durante a Primeira Guerra Mundial, nós entendemos que “o principal inimigo está em casa.”
Sobre esta base, nós esperamos forjar um movimento internacional que possa não apenas desafiar uma intervenção imperial específica, mas que possa representar uma ameaça às próprias fundações de um sistema que cria guerra e violência de massa numa escala sem-precedentes na História.
Além do Imperialismo
Hoje, a Esquerda é fraca demais para atingir esse objetivo. Nos Estados Unidos, o movimento trabalhista carece de capacidade para atividade sustentada contra a guerra. Mas o que o exemplo de Eugene Debs nos mostra é que existe uma longa história de oposição radical ao imperialismo [7] da qual nós podemos tirar esperança e inspiração.
A tradição anti-imperialista de Esquerda sobreviveu depois que o próprio Debs morreu. Se ela perdeu força durante os anos de Guerra Fria de repressão macartista após a Segunda Guerra Mundial, ela reviveu durante os anos 60 e 70. Figuras como Martin Luther King Jr. se tornaram vozes cada vez mais críticas da Guerra do Vietnã. Mesmo que ele seja frequentemente pintado como um moralista anódino, um precursor para o liberalismo multicultural, King foi na verdade um visionário cuja política se tornou cada vez mais radical em conjunto com o movimento que ele liderava. Nada expressava melhor esse radicalismo crescente do que sua decisão de se opor publicamente à Guerra do Vietnã – um movimento que mesmo seus conselheiros mais próximos recomendaram que ele não fizesse por causa de suas potenciais consequências políticas.
Ignorando seus conselhos, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de seu assassinato, King proferiu o discurso mais controverso de sua carreira. Falando para a Igreja Riverside de Nova Iorque, ele se abriu contra a Guerra do Vietnã e cobrou a administração de Johnson para que parasse sua campanha de bombardeio sem precedentes e iniciasse a retirada de meio milhão de tropas estadunidenses do Sudeste Asiático.
Denunciando a “loucura” da política da administração Democrata, King se focou na incrível brutalidade que as pessoas comuns no Vietnã encaravam nas mãos dos militares estadunidenses. “Eles devem ver os estadunidenses como estranhos libertadores,” ele concluiu, quando essa suposta libertação envolvia apoiar governos corruptos e anti-democráticos, destruir vilas inteiras, desflorestar o interior com napalm e Agente Laranja, e matar mulheres, crianças e idosos.
Uma estimativa conservadora das mortes civis geradas pela guerra é de 2 milhões, apenas entre Sul-Vietnamitas, de uma população de 19 milhões. Uma taxa análoga de baixas civis nos Estados Unidos hoje seria próxima de 33 milhões.
E sobre os soldados estadunidenses, na maioria esmagadora das vezes jovens tirados de comunidades rurais indigentes e guetos urbanos segregados? Notando o número desproporcional de afro-estadunidenses que haviam sido enviados para matar e morrer nos pântanos do Vietnã, King castigava a administração por “tirar os jovens negros que tinham sido acorrentados pela nossa sociedade e os enviar 8000 milhas para longe, para garantir liberdades no Sudeste Asiático que eles não haviam encontrado em Georgia ou no Harlem Leste.
King apontou que as esperanças de um esforço real para combater a pobreza nos EUA que haviam sido inspiradas pelo programa da “Grande Sociedade” de Johnson haviam sido destruídas pela escalada no Vietnã. Uma campanha genuína para erradicar a pobreza em casa seria impossível, ele havia concluído, “enquanto as aventuras como no Vietnã continuarem a sugar homens e talentos e dinheiro como um demoníaco tubo de sucção de destruição.”
Dado tudo isso, King disse que não poderia mais ficar em silêncio, apesar da forte pressão de seus supostos aliados na administração Johnson para evitar a crítica pública da política do governo para o Vietnã. Comparando a escala incrível de violência no Vietnã com a relativamente pequena destruição causada por uma série de revoltas que estouraram em muitas cidades grandes dos EUA – que haviam causado muita gritaria na mídia sobre a ameaça representada por “extremistas negros” – King descreveu sua percepção de “que eu não poderia nunca mais levantar minha voz contra a violência dos oprimidos nos guetos sem ter primeiro falado claramente do maior fornecedor de violência no mundo hoje: meu próprio governo.” Alguns dias depois, ele marchou em um protesto de massa contra a guerra no Central Park em Nova Iorque.
O discurso de King, conhecido pela posteridade como “Além do Vietnã,” fez com que ele ganhasse a ira mesmo de figuras antes simpatizantes no establishment progressista. Ele foi desconvidado de uma visita planejada com Johnson na Casa Branca. Um dos conselheiros do presidente escreveu privadamente que King havia “feito sua jogada com os ‘comunas’” [8]. Enquanto isso, ele foi atacado em editoriais que apareceram no dia seguinte em 168 jornais de maior circulação. O New York Times escreveu que sua denúncia da guerra era “um desperdício e auto-destrutiva.” O Washington Post fez ainda melhor, dizendo que King “diminuiu sua utilidade para sua causa, seu país e seu povo.”
O que King veio a entender [9] foi que o racismo e a desigualdade dentro do país, e a guerra no exterior, estavam interligados. Este reconhecimento o colocou em desacordo com seus antigos apoiadores progressistas, cujas vontades de desafiar o status quo acabaram – como é tão comum para o establishment progressista – quando a posição dos EUA como o maior poder imperial mundial entrou em questão.
Assim, ao confrontar estas questões e desafiar seus antigos amigos, King estava lidando com um conjunto de problemas que qualquer movimento social de massa que faça sérios avanços nos EUA vai ter de encarar, uma hora ou outra: você não pode falar sobre mudança social em seu país enquanto ignora a carnificina gerada pela política externa estadunidense. Para a Esquerda dos EUA, e especialmente qualquer futuro movimento socialista por aqui, essa é uma lição a ser aprendida.
Para Debs, a matança em massa que havia assolado toda a Europa por quatro anos sangrentos era um conflito travado em nome dos interesses dos capitalistas, mas combatido por trabalhadores. Em cada país era o rico quem havia declarado guerra e se mantinha lucrando à partir dela; mas eram os pobres quem eram enviados para lutar e morrer aos milhões.
Isso, Debs disse à sua audiência, era como sempre foi, enquanto exércitos têm sido enviados para batalharem uns aos outros em nome de reis ou países. “As guerras através da história têm sido travadas para conquista e pilhagem,” ele disse. “A classe dominante tem sempre declarado as guerras; a classe dominada tem sempre lutado as batalhas. A classe dominante tem tido tudo a ganhar e nada a perder, enquanto a classe dominada não tem tido nada a ganhar e tudo a perder – especialmente suas vidas.”
A mensagem de Debs aos trabalhadores era simples: seu inimigo não eram as pessoas da Alemanha, os soldados da classe trabalhadora que eles estavam sendo embarcados para assassinar; eram os dominadores, em ambos os lados, que ordenaram suas tropas rumo a batalha. Eram os capitalistas e seus representantes nos governos americano e alemão, cuja riqueza e poder lhes deu controle sobre os destinos de milhões.
O discurso de Debs foi demais para as autoridades nos Estados Unidos – eles os prenderam sob uma nova lei de restrição da liberdade de expressão, o Ato de Espionagem de 1917, e o sentenciaram a dez anos de prisão. Notavelmente, nas eleições de 1920, Debs concorreu para presidente na cédula Socialista enquanto permanecia em uma penitenciária federal em Atlanta, e ainda conseguiu conquistar quase 1 milhão de votos.
Tornando o Mundo Seguro Para o Capitalismo
No exemplo de Debs, podemos ver as principais ideias que têm sustentado a abordagem do movimento socialista para a questão da guerra. Socialistas têm sempre visto a propensão do Capitalismo para guerras de conquista e pilhagem como a expressão definitiva da brutalidade do sistema. Na organização da violência de Estado em uma escala sem precedentes, nós vemos a tendência do Capitalismo de subordinar as necessidades humanas à lógica do lucro e do poder. No intervalo entre a promessa de igualdade democrática e a realidade da opressão de classe que a guerra expressa, vemos a injustiça fundamental que define nossa ordem social.
Sob o Capitalismo, a exploração ocorre na maior parte do tempo através do mercado. É a relação contratual ostensivamente não-coercitiva entre trabalhadores e empregadores que mascara as desigualdades de classe mais profundas subjacentes. Mas o poder de fazer a guerra dos Estados Capitalistas ainda é essencial para o funcionamento saudável do sistema. Capitalistas em países como Estados Unidos ainda dependem dos militares de seus próprios governos, tanto para fazer cumprir “as regras do jogo” na Economia Global e para ajudá-los a competir mais eficientemente contra outras Classes dirigentes.
Contra esse estado de coisas, os Socialistas apoiam a organização de movimentos de massa contra as guerras travadas por nosso governo [1]. Nós participamos [2] na luta contra restrições à liberdade de expressão e outros direitos democráticos que inevitavelmente acompanham essas guerras. Contra os chamados por “unidade nacional”, nós lutamos por solidariedade internacional e organização de classe mais forte para lutar pelos interesses dos trabalhadores. No longo prazo, esperamos traduzir estes movimentos em uma luta mais ampla por uma transformação radical da Sociedade ao longo de linhas democráticas.
Em nenhum lugar essa abordagem é mais importante do que nos Estados Unidos [3] – o mais poderoso país capitalista do mundo. Hoje, os EUA gastam mais com seus militares do que os próximos 7 países que mais gastam nisso combinados. Nosso governo tem cerca de 800 bases militares no estrangeiro. Soldados estadunidenses ou tropas aliadas estão presentes em cada região do globo.
No último século e meio, o Estado Estadunidense tem travado guerras brutais em nome de um império crescente, desde a guerra hispano-americana de 1898 até as recentes invasões do Afeganistão e Iraque. Interveio de novo e de novo na África, Ásia, América Latina para proteger os interesses dos negócios e chutar os movimentos que pudessem ameaçar seu controle sobre recursos-chave ou minar a estabilidade do sistema global capitalista.
Frequentemente estas aventuras foram descritas como sendo necessárias para trazer liberdade e democracia para países oprimidos, ou para proteger cidadãos estadunidenses do perigo. O registro histórico, entretanto, conta uma história diferente.
Mesmo na época da Guerra Hipano-Americana de 1898, considerada por muitos como sendo a alvorada do imperialismo estadunidense moderno, o governo estadunidense estava invadindo Cuba, Porto Rico e as Filipinas em nome da libertação de seus povos do jugo do colonialismo espanhol. Quando, depois da vitória ter sido assegurada, Washington decidiu fazer daqueles três territórios protetorados estadunideses (ou, no caso de Porto Rico, uma colônia por completo), eles garantiram que tinham apenas as intenções mais benevolentes. E quando os residentes desses países levaram essas promessas de liberdade e democracia muito literalmente, os Estados Unidos decidiram que não tinham escolha além de esmagar as lutas por independência que emergiram. Nas Filipinas, uma insurreição nacionalista que irrompeu em 1899 foi suprimida às custas de várias centenas de milhares de vidas filipinas.
Em cada guerra entre aquela época e agora o padrão tem sido o mesmo. O governo estadunidense entrou na Primeira Guerra Mundial em 1917 (depois que Wilson venceu as eleições de 1916 na base de suas promessas anti-guerra) para “tornar o mundo seguro para a democracia,” enquanto enviava Marines por toda a América Latina na defesa dos interesses econômicos e políticos do Capital. Lutou a Segunda Guerra Mundial para “livrar o mundo da tirania,” mas gastou os anos do pós-guerra manipulando eleições na Itália, patrocinando uma perversa guerra civil na Grécia e escorando o xá do Irã. Enviou milhões para o túmulo na Coréia e no Sudeste Asiático para “salvar” as pessoas de lá do Comunismo, enquanto instalava ditaduras brutais tanto no Vietnã do Sul quanto na Coreia do Sul. Enquanto isso, os decisores políticos dos EUA secretamente organizaram a derrubada de governos populares e democráticos por todo o mundo – desde Mohammad Mosaddegh no Irã, passando por Patrice Lumumba no Congo e Salvador Allende no Chile.
Para justificar estas campanhas, os oficiais estadunidenses têm muitas vezes recorrido ao perverso racismo. O General William Westmoreland uma vez justificou a brutalidade das forças que ele liderava no Vietnã dizendo que “os orientais não colocam o mesmo valor na vida como faz um ocidental… Nós valorizamos a vida e a dignidade humana. Eles não se importam com a vida e a dignidade humana.”
A cada turno o governo estadunidense tem mostrado [4] seu compromisso com a democracia e a liberdade no estrangeiro como sendo tão superficial quanto o seu compromisso com a igualdade em casa. Vez após outra, tem provado que seu temor pelo controle democrático sobre os recursos do mundo corre mais fundo que sua retórica pró-Democracia. Como Henry Kissinger, que serviu como um consultor em políticas estrangeiras a três presidentes, disse dos esforços da administração de Nixon para tombar o governo socialista eleito no Chile, “não vejo por que nós devemos ficar parados e assistir um país se tornar comunista por causa da irresponsabilidade de seu próprio povo.” O mesmo se deu nos anos 80 nas tentativas de minar os governos esquerdistas na pequena Nicarágua e na menor ainda Granada.
Mais recentemente, esse padrão tem se repetido no Oriente Médio – agora o campo de batalha central para os EUA e seus competidores imperiais, por causa de seu papel como o centro da produção global de petróleo.
Se as guerras no Iraque e no Afeganistão foram inicialmente justificadas como necessárias para defender vidas estadunidenses, detruir a Al-Qaeda, e erradicar o terrorismo, elas não atingiram nenhum desses objetivos. Nem resultaram em governos democráticos em nenhum desses países. Ao contrário, as centenas de milhares de vidas perdidas nestas guerras apenas desestabilizaram a região e intensificaram as divisões sectárias. Ao invés de dar suporte a movimentos democráticos, os EUA tem apoiado regimes ditatoriais no Egito e no Bahrein, e ajudado a fortalecer as monarquias mais cruéis e reacionárias na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos.
Os Estados Unidos têm também permitido a Israel escalar sua violência diária (com assaltos semi-regulares de matança em massa em Gaza), ocupação e expansão de assentamentos às custas de palestinos. E têm assistido enquanto os lados em enfrentamento na guerra civil síria tem dirigido um massacre que afogou as lutas sírias por democracia no sangue de centenas de milhares de seus cidadãos.
Dados o escopo e a escala da violência imperial estadunidense, é crucial que os Socialistas nos Estados Unidos se oponham às intervenções militares de seu governo. Tal posição é necessária para qualquer solidariedade genuína da classe trabalhadora. Toda vez que o governo dos EUA explode uma festa de casamento afegã ou ajuda a proteger um esquadrão da morte no Iraque; toda vez que ele envia alguém para apodrecer em uma prisão no Afeganistão ou na Baía de Guantánamo; toda vez que ele permite que a CIA torture um prisioneiro; torna a solidariedade de classe através das fronteiras mais remota.
Por que trabalhadores em outros países deveriam se aliar àqueles nos EUA, em nome de quem eles são bombardeados e ocupados? Na medida em que estadunidenses compram o nacionalismo que inevitavelmente segue as maquinações estrangeiras de seu governo, tornam a emergência de um movimento de classe contra a opressão e a exploração impossíveis.
Enquanto isso, a posição dos trabalhadores estadunidenses apenas se deteriora mais. Quando centenas de bilhões de dólares são gastos atacando países ao redor do globo, não estão disponíveis para programas de Bem-Estar Social que poderiam ajudar aqueles em casa. O desperdício de sangue e recursos, o racismo, e os levantes reacionários que acompanham as guerras no estrangeiro ricocheteiam para detrimento dos trabalhadores nos EUA. Em um tempo em que milhões de estadunidenses estão sofrendo com o desemprego e a pobreza, os mais de $2 trilhões gastos na invasão e ocupação do Iraque parecem cada vez mais obscenos.
Tudo isso significa que o movimento trabalhista estadunidense tem um incentivo material para se opor os desejos de guerra de seu próprio governo. É por esta razão que os Socialistas pensam que um movimento internacional da classe trabalhadora contra a guerra e o imperialismo não é apenas necessário, mas também possível.
O Inimigo em Casa
Entretanto, se Socialistas em um país como os EUA se opõem às guerras travadas por seus governos, não significa que eles são pacifistas. – ou seja, que eles se opõem a todas as guerras ou tem uma posição baseada em princípios contra qualquer tipo de violência. A questão é quem está travando a guerra e em nome de quais interesses e políticas.
Como o teórico militar do século XIX Carl von Clausewitz disse, “Guerra é a continuação da política por outros meios.” Clausewitz queria dizer que para entender o caráter de uma dada guerra, você tem de entender quem estava lutando e por quais propósitos. É claro, Clausewitz, um general prussiano nas guerras napoleônicas, não era bem um radical de Esquerda, mas seu ponto básico é um importante para os Socialistas compreenderem.
O movimento socialista quer erradicar a guerra por que ela é brutal e irracional – um desperdício de vida humana e recursos sociais que produz uma devastação enorme. Mas em um mundo cheio de exploração e opressão, é preciso diferenciar entre a violência daqueles lutando para manter a injustiça e aqueles lutando contra a injustiça.
Uma pessoa não pode, por exemplo, misturar a violência do apartheid sul-africano com aquela dos elementos armados do Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela. O mesmo vale para a violência dos militares estadunidenses na Guerra do Vietnã – uma guerra que eventualmente matou 3.5 milhões de pessoas – e aquela da Frente de Libertação Nacional Vietnamita, que lutou para libertar o Vietnã da dominação estadunidense e francesa.
Para o movimento socialista, a máxima de Clausewitz aponta para a necessidade de pesar qualquer guerra na base dos interesses a que ela serve. Não é coincidência que socialistas como Marx e Engels apoiaram a União na Guerra Civil estadunidense, reconhecendo que apesar da fala de Lincoln de que sua intenção era reunir o país sem acabar com a escravidão, uma guerra [5] contra os Confederados se tornaria necessariamente uma guerra contra a classe dos proprietários das plantations [6]. De fato, como Lincoln – que nos anos 1840 se opôs à Guerra Mexicana-Estadunidense por que a via como um esforço para expandir a escravidão para novos territórios – veio a reconhecer, o Norte só poderia ter sucesso mobilizando os escravos em uma batalha por sua própria liberdade.
Nada disso é para sugerir que os Socialistas possuem uma abordagem puramente instrumental para com a violência – que nós pensamos, como tão comumente afirmam, que “os fins justificam os meios.” Em nossos esforços para atingir o tipo de mudança que procuramos, a violência só pode minar a nossa causa no longo prazo; nós nunca podemos esperar igualar a capacidade para a violência do Estado Capitalista, e nosso movimento somente será enfraquecido enquanto a luta pelo Socialismo for transformada de um conflito social e político em um militar.
Também não apoiamos necessariamente governos apenas por que acontece deles estarem em conflito com o nosso: não perdoamos a violência imperial, por exemplo, da Rússia e da China apenas por que eles estão ocasionalmente discordando dos nossos próprios dominadores.
Mais fundamentalmente, é importante deixar claro que nosso suporte por grupos lutando contra sua opressão, nas mãos do governo dos EUA ou de qualquer outro, não significa que seremos sempre acríticos com essas forças. Alguém precisa apenas olhar para os níveis crescentes de desigualdade e a penetração cada vez maior do Capitalismo Global na África do Sul desde a queda do Apartheid, ou no Vietnã desde a libertação, para ver que mesmo lutas vitoriosas não precisam produzir um resultado realmente justo. De fato, enquanto expressam solidariedade com movimentos desafiando a opressão, os Socialistas precisam estar dispostos a criticar aqueles que travam estas lutas, sempre que necessário – seja esta crítica feita em termos políticos, estratégicos ou mesmo morais.
Mas também não tratamos todos os lados em um conflito particular como se eles fossem o mesmo. Acima de tudo, nós nos opomos ao papel de nosso próprio governo na propagação de guerras, ou na expansão de sua influência militar e política, às custas das classes trabalhadoras do mundo. Como o revolucionário alemão Karl Liebknecht colocou em seu discurso durante a Primeira Guerra Mundial, nós entendemos que “o principal inimigo está em casa.”
Sobre esta base, nós esperamos forjar um movimento internacional que possa não apenas desafiar uma intervenção imperial específica, mas que possa representar uma ameaça às próprias fundações de um sistema que cria guerra e violência de massa numa escala sem-precedentes na História.
Além do Imperialismo
Hoje, a Esquerda é fraca demais para atingir esse objetivo. Nos Estados Unidos, o movimento trabalhista carece de capacidade para atividade sustentada contra a guerra. Mas o que o exemplo de Eugene Debs nos mostra é que existe uma longa história de oposição radical ao imperialismo [7] da qual nós podemos tirar esperança e inspiração.
A tradição anti-imperialista de Esquerda sobreviveu depois que o próprio Debs morreu. Se ela perdeu força durante os anos de Guerra Fria de repressão macartista após a Segunda Guerra Mundial, ela reviveu durante os anos 60 e 70. Figuras como Martin Luther King Jr. se tornaram vozes cada vez mais críticas da Guerra do Vietnã. Mesmo que ele seja frequentemente pintado como um moralista anódino, um precursor para o liberalismo multicultural, King foi na verdade um visionário cuja política se tornou cada vez mais radical em conjunto com o movimento que ele liderava. Nada expressava melhor esse radicalismo crescente do que sua decisão de se opor publicamente à Guerra do Vietnã – um movimento que mesmo seus conselheiros mais próximos recomendaram que ele não fizesse por causa de suas potenciais consequências políticas.
Ignorando seus conselhos, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de seu assassinato, King proferiu o discurso mais controverso de sua carreira. Falando para a Igreja Riverside de Nova Iorque, ele se abriu contra a Guerra do Vietnã e cobrou a administração de Johnson para que parasse sua campanha de bombardeio sem precedentes e iniciasse a retirada de meio milhão de tropas estadunidenses do Sudeste Asiático.
Denunciando a “loucura” da política da administração Democrata, King se focou na incrível brutalidade que as pessoas comuns no Vietnã encaravam nas mãos dos militares estadunidenses. “Eles devem ver os estadunidenses como estranhos libertadores,” ele concluiu, quando essa suposta libertação envolvia apoiar governos corruptos e anti-democráticos, destruir vilas inteiras, desflorestar o interior com napalm e Agente Laranja, e matar mulheres, crianças e idosos.
Uma estimativa conservadora das mortes civis geradas pela guerra é de 2 milhões, apenas entre Sul-Vietnamitas, de uma população de 19 milhões. Uma taxa análoga de baixas civis nos Estados Unidos hoje seria próxima de 33 milhões.
E sobre os soldados estadunidenses, na maioria esmagadora das vezes jovens tirados de comunidades rurais indigentes e guetos urbanos segregados? Notando o número desproporcional de afro-estadunidenses que haviam sido enviados para matar e morrer nos pântanos do Vietnã, King castigava a administração por “tirar os jovens negros que tinham sido acorrentados pela nossa sociedade e os enviar 8000 milhas para longe, para garantir liberdades no Sudeste Asiático que eles não haviam encontrado em Georgia ou no Harlem Leste.
King apontou que as esperanças de um esforço real para combater a pobreza nos EUA que haviam sido inspiradas pelo programa da “Grande Sociedade” de Johnson haviam sido destruídas pela escalada no Vietnã. Uma campanha genuína para erradicar a pobreza em casa seria impossível, ele havia concluído, “enquanto as aventuras como no Vietnã continuarem a sugar homens e talentos e dinheiro como um demoníaco tubo de sucção de destruição.”
Dado tudo isso, King disse que não poderia mais ficar em silêncio, apesar da forte pressão de seus supostos aliados na administração Johnson para evitar a crítica pública da política do governo para o Vietnã. Comparando a escala incrível de violência no Vietnã com a relativamente pequena destruição causada por uma série de revoltas que estouraram em muitas cidades grandes dos EUA – que haviam causado muita gritaria na mídia sobre a ameaça representada por “extremistas negros” – King descreveu sua percepção de “que eu não poderia nunca mais levantar minha voz contra a violência dos oprimidos nos guetos sem ter primeiro falado claramente do maior fornecedor de violência no mundo hoje: meu próprio governo.” Alguns dias depois, ele marchou em um protesto de massa contra a guerra no Central Park em Nova Iorque.
O discurso de King, conhecido pela posteridade como “Além do Vietnã,” fez com que ele ganhasse a ira mesmo de figuras antes simpatizantes no establishment progressista. Ele foi desconvidado de uma visita planejada com Johnson na Casa Branca. Um dos conselheiros do presidente escreveu privadamente que King havia “feito sua jogada com os ‘comunas’” [8]. Enquanto isso, ele foi atacado em editoriais que apareceram no dia seguinte em 168 jornais de maior circulação. O New York Times escreveu que sua denúncia da guerra era “um desperdício e auto-destrutiva.” O Washington Post fez ainda melhor, dizendo que King “diminuiu sua utilidade para sua causa, seu país e seu povo.”
O que King veio a entender [9] foi que o racismo e a desigualdade dentro do país, e a guerra no exterior, estavam interligados. Este reconhecimento o colocou em desacordo com seus antigos apoiadores progressistas, cujas vontades de desafiar o status quo acabaram – como é tão comum para o establishment progressista – quando a posição dos EUA como o maior poder imperial mundial entrou em questão.
Assim, ao confrontar estas questões e desafiar seus antigos amigos, King estava lidando com um conjunto de problemas que qualquer movimento social de massa que faça sérios avanços nos EUA vai ter de encarar, uma hora ou outra: você não pode falar sobre mudança social em seu país enquanto ignora a carnificina gerada pela política externa estadunidense. Para a Esquerda dos EUA, e especialmente qualquer futuro movimento socialista por aqui, essa é uma lição a ser aprendida.