30 de maio de 2016

Os socialistas não são pacifistas? Algumas guerras não são justificadas?

Socialistas querem erradicar a guerra por que ela é brutal e irracional. Mas nós pensamos que existe uma diferença entre a violência dos oprimidos e a dos opressores.

Jonah Birch


Ilustração por Phil Wrigglesworth

Em junho de 1918, Eugene Debs fez um discurso que o colocaria na prisão. Falando em Canton, Ohio, o líder do Partido Socialista denunciou o presidente Woodrow Wilson e a Primeira Guerra Mundial para a qual ele guiou os Estados Unidos.

Para Debs, a matança em massa que havia assolado toda a Europa por quatro anos sangrentos era um conflito travado em nome dos interesses dos capitalistas, mas combatido por trabalhadores. Em cada país era o rico quem havia declarado guerra e se mantinha lucrando à partir dela; mas eram os pobres quem eram enviados para lutar e morrer aos milhões.

Isso, Debs disse à sua audiência, era como sempre foi, enquanto exércitos têm sido enviados para batalharem uns aos outros em nome de reis ou países. “As guerras através da história têm sido travadas para conquista e pilhagem,” ele disse. “A classe dominante tem sempre declarado as guerras; a classe dominada tem sempre lutado as batalhas. A classe dominante tem tido tudo a ganhar e nada a perder, enquanto a classe dominada não tem tido nada a ganhar e tudo a perder – especialmente suas vidas.”

A mensagem de Debs aos trabalhadores era simples: seu inimigo não eram as pessoas da Alemanha, os soldados da classe trabalhadora que eles estavam sendo embarcados para assassinar; eram os dominadores, em ambos os lados, que ordenaram suas tropas rumo a batalha. Eram os capitalistas e seus representantes nos governos americano e alemão, cuja riqueza e poder lhes deu controle sobre os destinos de milhões.

O discurso de Debs foi demais para as autoridades nos Estados Unidos – eles os prenderam sob uma nova lei de restrição da liberdade de expressão, o Ato de Espionagem de 1917, e o sentenciaram a dez anos de prisão. Notavelmente, nas eleições de 1920, Debs concorreu para presidente na cédula Socialista enquanto permanecia em uma penitenciária federal em Atlanta, e ainda conseguiu conquistar quase 1 milhão de votos.
Tornando o Mundo Seguro Para o Capitalismo

No exemplo de Debs, podemos ver as principais ideias que têm sustentado a abordagem do movimento socialista para a questão da guerra. Socialistas têm sempre visto a propensão do Capitalismo para guerras de conquista e pilhagem como a expressão definitiva da brutalidade do sistema. Na organização da violência de Estado em uma escala sem precedentes, nós vemos a tendência do Capitalismo de subordinar as necessidades humanas à lógica do lucro e do poder. No intervalo entre a promessa de igualdade democrática e a realidade da opressão de classe que a guerra expressa, vemos a injustiça fundamental que define nossa ordem social.

Sob o Capitalismo, a exploração ocorre na maior parte do tempo através do mercado. É a relação contratual ostensivamente não-coercitiva entre trabalhadores e empregadores que mascara as desigualdades de classe mais profundas subjacentes. Mas o poder de fazer a guerra dos Estados Capitalistas ainda é essencial para o funcionamento saudável do sistema. Capitalistas em países como Estados Unidos ainda dependem dos militares de seus próprios governos, tanto para fazer cumprir “as regras do jogo” na Economia Global e para ajudá-los a competir mais eficientemente contra outras Classes dirigentes.

Contra esse estado de coisas, os Socialistas apoiam a organização de movimentos de massa contra as guerras travadas por nosso governo [1]. Nós participamos [2] na luta contra restrições à liberdade de expressão e outros direitos democráticos que inevitavelmente acompanham essas guerras. Contra os chamados por “unidade nacional”, nós lutamos por solidariedade internacional e organização de classe mais forte para lutar pelos interesses dos trabalhadores. No longo prazo, esperamos traduzir estes movimentos em uma luta mais ampla por uma transformação radical da Sociedade ao longo de linhas democráticas.

Em nenhum lugar essa abordagem é mais importante do que nos Estados Unidos [3] – o mais poderoso país capitalista do mundo. Hoje, os EUA gastam mais com seus militares do que os próximos 7 países que mais gastam nisso combinados. Nosso governo tem cerca de 800 bases militares no estrangeiro. Soldados estadunidenses ou tropas aliadas estão presentes em cada região do globo.

No último século e meio, o Estado Estadunidense tem travado guerras brutais em nome de um império crescente, desde a guerra hispano-americana de 1898 até as recentes invasões do Afeganistão e Iraque. Interveio de novo e de novo na África, Ásia, América Latina para proteger os interesses dos negócios e chutar os movimentos que pudessem ameaçar seu controle sobre recursos-chave ou minar a estabilidade do sistema global capitalista.

Frequentemente estas aventuras foram descritas como sendo necessárias para trazer liberdade e democracia para países oprimidos, ou para proteger cidadãos estadunidenses do perigo. O registro histórico, entretanto, conta uma história diferente.

Mesmo na época da Guerra Hipano-Americana de 1898, considerada por muitos como sendo a alvorada do imperialismo estadunidense moderno, o governo estadunidense estava invadindo Cuba, Porto Rico e as Filipinas em nome da libertação de seus povos do jugo do colonialismo espanhol. Quando, depois da vitória ter sido assegurada, Washington decidiu fazer daqueles três territórios protetorados estadunideses (ou, no caso de Porto Rico, uma colônia por completo), eles garantiram que tinham apenas as intenções mais benevolentes. E quando os residentes desses países levaram essas promessas de liberdade e democracia muito literalmente, os Estados Unidos decidiram que não tinham escolha além de esmagar as lutas por independência que emergiram. Nas Filipinas, uma insurreição nacionalista que irrompeu em 1899 foi suprimida às custas de várias centenas de milhares de vidas filipinas.

Em cada guerra entre aquela época e agora o padrão tem sido o mesmo. O governo estadunidense entrou na Primeira Guerra Mundial em 1917 (depois que Wilson venceu as eleições de 1916 na base de suas promessas anti-guerra) para “tornar o mundo seguro para a democracia,” enquanto enviava Marines por toda a América Latina na defesa dos interesses econômicos e políticos do Capital. Lutou a Segunda Guerra Mundial para “livrar o mundo da tirania,” mas gastou os anos do pós-guerra manipulando eleições na Itália, patrocinando uma perversa guerra civil na Grécia e escorando o xá do Irã. Enviou milhões para o túmulo na Coréia e no Sudeste Asiático para “salvar” as pessoas de lá do Comunismo, enquanto instalava ditaduras brutais tanto no Vietnã do Sul quanto na Coreia do Sul. Enquanto isso, os decisores políticos dos EUA secretamente organizaram a derrubada de governos populares e democráticos por todo o mundo – desde Mohammad Mosaddegh no Irã, passando por Patrice Lumumba no Congo e Salvador Allende no Chile.

Para justificar estas campanhas, os oficiais estadunidenses têm muitas vezes recorrido ao perverso racismo. O General William Westmoreland uma vez justificou a brutalidade das forças que ele liderava no Vietnã dizendo que “os orientais não colocam o mesmo valor na vida como faz um ocidental… Nós valorizamos a vida e a dignidade humana. Eles não se importam com a vida e a dignidade humana.”

A cada turno o governo estadunidense tem mostrado [4] seu compromisso com a democracia e a liberdade no estrangeiro como sendo tão superficial quanto o seu compromisso com a igualdade em casa. Vez após outra, tem provado que seu temor pelo controle democrático sobre os recursos do mundo corre mais fundo que sua retórica pró-Democracia. Como Henry Kissinger, que serviu como um consultor em políticas estrangeiras a três presidentes, disse dos esforços da administração de Nixon para tombar o governo socialista eleito no Chile, “não vejo por que nós devemos ficar parados e assistir um país se tornar comunista por causa da irresponsabilidade de seu próprio povo.” O mesmo se deu nos anos 80 nas tentativas de minar os governos esquerdistas na pequena Nicarágua e na menor ainda Granada.

Mais recentemente, esse padrão tem se repetido no Oriente Médio – agora o campo de batalha central para os EUA e seus competidores imperiais, por causa de seu papel como o centro da produção global de petróleo.

Se as guerras no Iraque e no Afeganistão foram inicialmente justificadas como necessárias para defender vidas estadunidenses, detruir a Al-Qaeda, e erradicar o terrorismo, elas não atingiram nenhum desses objetivos. Nem resultaram em governos democráticos em nenhum desses países. Ao contrário, as centenas de milhares de vidas perdidas nestas guerras apenas desestabilizaram a região e intensificaram as divisões sectárias. Ao invés de dar suporte a movimentos democráticos, os EUA tem apoiado regimes ditatoriais no Egito e no Bahrein, e ajudado a fortalecer as monarquias mais cruéis e reacionárias na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos.

Os Estados Unidos têm também permitido a Israel escalar sua violência diária (com assaltos semi-regulares de matança em massa em Gaza), ocupação e expansão de assentamentos às custas de palestinos. E têm assistido enquanto os lados em enfrentamento na guerra civil síria tem dirigido um massacre que afogou as lutas sírias por democracia no sangue de centenas de milhares de seus cidadãos.

Dados o escopo e a escala da violência imperial estadunidense, é crucial que os Socialistas nos Estados Unidos se oponham às intervenções militares de seu governo. Tal posição é necessária para qualquer solidariedade genuína da classe trabalhadora. Toda vez que o governo dos EUA explode uma festa de casamento afegã ou ajuda a proteger um esquadrão da morte no Iraque; toda vez que ele envia alguém para apodrecer em uma prisão no Afeganistão ou na Baía de Guantánamo; toda vez que ele permite que a CIA torture um prisioneiro; torna a solidariedade de classe através das fronteiras mais remota.

Por que trabalhadores em outros países deveriam se aliar àqueles nos EUA, em nome de quem eles são bombardeados e ocupados? Na medida em que estadunidenses compram o nacionalismo que inevitavelmente segue as maquinações estrangeiras de seu governo, tornam a emergência de um movimento de classe contra a opressão e a exploração impossíveis.

Enquanto isso, a posição dos trabalhadores estadunidenses apenas se deteriora mais. Quando centenas de bilhões de dólares são gastos atacando países ao redor do globo, não estão disponíveis para programas de Bem-Estar Social que poderiam ajudar aqueles em casa. O desperdício de sangue e recursos, o racismo, e os levantes reacionários que acompanham as guerras no estrangeiro ricocheteiam para detrimento dos trabalhadores nos EUA. Em um tempo em que milhões de estadunidenses estão sofrendo com o desemprego e a pobreza, os mais de $2 trilhões gastos na invasão e ocupação do Iraque parecem cada vez mais obscenos.

Tudo isso significa que o movimento trabalhista estadunidense tem um incentivo material para se opor os desejos de guerra de seu próprio governo. É por esta razão que os Socialistas pensam que um movimento internacional da classe trabalhadora contra a guerra e o imperialismo não é apenas necessário, mas também possível.
O Inimigo em Casa

Entretanto, se Socialistas em um país como os EUA se opõem às guerras travadas por seus governos, não significa que eles são pacifistas. – ou seja, que eles se opõem a todas as guerras ou tem uma posição baseada em princípios contra qualquer tipo de violência. A questão é quem está travando a guerra e em nome de quais interesses e políticas.

Como o teórico militar do século XIX Carl von Clausewitz disse, “Guerra é a continuação da política por outros meios.” Clausewitz queria dizer que para entender o caráter de uma dada guerra, você tem de entender quem estava lutando e por quais propósitos. É claro, Clausewitz, um general prussiano nas guerras napoleônicas, não era bem um radical de Esquerda, mas seu ponto básico é um importante para os Socialistas compreenderem.

O movimento socialista quer erradicar a guerra por que ela é brutal e irracional – um desperdício de vida humana e recursos sociais que produz uma devastação enorme. Mas em um mundo cheio de exploração e opressão, é preciso diferenciar entre a violência daqueles lutando para manter a injustiça e aqueles lutando contra a injustiça.

Uma pessoa não pode, por exemplo, misturar a violência do apartheid sul-africano com aquela dos elementos armados do Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela. O mesmo vale para a violência dos militares estadunidenses na Guerra do Vietnã – uma guerra que eventualmente matou 3.5 milhões de pessoas – e aquela da Frente de Libertação Nacional Vietnamita, que lutou para libertar o Vietnã da dominação estadunidense e francesa.

Para o movimento socialista, a máxima de Clausewitz aponta para a necessidade de pesar qualquer guerra na base dos interesses a que ela serve. Não é coincidência que socialistas como Marx e Engels apoiaram a União na Guerra Civil estadunidense, reconhecendo que apesar da fala de Lincoln de que sua intenção era reunir o país sem acabar com a escravidão, uma guerra [5] contra os Confederados se tornaria necessariamente uma guerra contra a classe dos proprietários das plantations [6]. De fato, como Lincoln – que nos anos 1840 se opôs à Guerra Mexicana-Estadunidense por que a via como um esforço para expandir a escravidão para novos territórios – veio a reconhecer, o Norte só poderia ter sucesso mobilizando os escravos em uma batalha por sua própria liberdade.

Nada disso é para sugerir que os Socialistas possuem uma abordagem puramente instrumental para com a violência – que nós pensamos, como tão comumente afirmam, que “os fins justificam os meios.” Em nossos esforços para atingir o tipo de mudança que procuramos, a violência só pode minar a nossa causa no longo prazo; nós nunca podemos esperar igualar a capacidade para a violência do Estado Capitalista, e nosso movimento somente será enfraquecido enquanto a luta pelo Socialismo for transformada de um conflito social e político em um militar.

Também não apoiamos necessariamente governos apenas por que acontece deles estarem em conflito com o nosso: não perdoamos a violência imperial, por exemplo, da Rússia e da China apenas por que eles estão ocasionalmente discordando dos nossos próprios dominadores.

Mais fundamentalmente, é importante deixar claro que nosso suporte por grupos lutando contra sua opressão, nas mãos do governo dos EUA ou de qualquer outro, não significa que seremos sempre acríticos com essas forças. Alguém precisa apenas olhar para os níveis crescentes de desigualdade e a penetração cada vez maior do Capitalismo Global na África do Sul desde a queda do Apartheid, ou no Vietnã desde a libertação, para ver que mesmo lutas vitoriosas não precisam produzir um resultado realmente justo. De fato, enquanto expressam solidariedade com movimentos desafiando a opressão, os Socialistas precisam estar dispostos a criticar aqueles que travam estas lutas, sempre que necessário – seja esta crítica feita em termos políticos, estratégicos ou mesmo morais.

Mas também não tratamos todos os lados em um conflito particular como se eles fossem o mesmo. Acima de tudo, nós nos opomos ao papel de nosso próprio governo na propagação de guerras, ou na expansão de sua influência militar e política, às custas das classes trabalhadoras do mundo. Como o revolucionário alemão Karl Liebknecht colocou em seu discurso durante a Primeira Guerra Mundial, nós entendemos que “o principal inimigo está em casa.”

Sobre esta base, nós esperamos forjar um movimento internacional que possa não apenas desafiar uma intervenção imperial específica, mas que possa representar uma ameaça às próprias fundações de um sistema que cria guerra e violência de massa numa escala sem-precedentes na História.
Além do Imperialismo

Hoje, a Esquerda é fraca demais para atingir esse objetivo. Nos Estados Unidos, o movimento trabalhista carece de capacidade para atividade sustentada contra a guerra. Mas o que o exemplo de Eugene Debs nos mostra é que existe uma longa história de oposição radical ao imperialismo [7] da qual nós podemos tirar esperança e inspiração.

A tradição anti-imperialista de Esquerda sobreviveu depois que o próprio Debs morreu. Se ela perdeu força durante os anos de Guerra Fria de repressão macartista após a Segunda Guerra Mundial, ela reviveu durante os anos 60 e 70. Figuras como Martin Luther King Jr. se tornaram vozes cada vez mais críticas da Guerra do Vietnã. Mesmo que ele seja frequentemente pintado como um moralista anódino, um precursor para o liberalismo multicultural, King foi na verdade um visionário cuja política se tornou cada vez mais radical em conjunto com o movimento que ele liderava. Nada expressava melhor esse radicalismo crescente do que sua decisão de se opor publicamente à Guerra do Vietnã – um movimento que mesmo seus conselheiros mais próximos recomendaram que ele não fizesse por causa de suas potenciais consequências políticas.

Ignorando seus conselhos, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de seu assassinato, King proferiu o discurso mais controverso de sua carreira. Falando para a Igreja Riverside de Nova Iorque, ele se abriu contra a Guerra do Vietnã e cobrou a administração de Johnson para que parasse sua campanha de bombardeio sem precedentes e iniciasse a retirada de meio milhão de tropas estadunidenses do Sudeste Asiático.

Denunciando a “loucura” da política da administração Democrata, King se focou na incrível brutalidade que as pessoas comuns no Vietnã encaravam nas mãos dos militares estadunidenses. “Eles devem ver os estadunidenses como estranhos libertadores,” ele concluiu, quando essa suposta libertação envolvia apoiar governos corruptos e anti-democráticos, destruir vilas inteiras, desflorestar o interior com napalm e Agente Laranja, e matar mulheres, crianças e idosos.

Uma estimativa conservadora das mortes civis geradas pela guerra é de 2 milhões, apenas entre Sul-Vietnamitas, de uma população de 19 milhões. Uma taxa análoga de baixas civis nos Estados Unidos hoje seria próxima de 33 milhões.

E sobre os soldados estadunidenses, na maioria esmagadora das vezes jovens tirados de comunidades rurais indigentes e guetos urbanos segregados? Notando o número desproporcional de afro-estadunidenses que haviam sido enviados para matar e morrer nos pântanos do Vietnã, King castigava a administração por “tirar os jovens negros que tinham sido acorrentados pela nossa sociedade e os enviar 8000 milhas para longe, para garantir liberdades no Sudeste Asiático que eles não haviam encontrado em Georgia ou no Harlem Leste.

King apontou que as esperanças de um esforço real para combater a pobreza nos EUA que haviam sido inspiradas pelo programa da “Grande Sociedade” de Johnson haviam sido destruídas pela escalada no Vietnã. Uma campanha genuína para erradicar a pobreza em casa seria impossível, ele havia concluído, “enquanto as aventuras como no Vietnã continuarem a sugar homens e talentos e dinheiro como um demoníaco tubo de sucção de destruição.”

Dado tudo isso, King disse que não poderia mais ficar em silêncio, apesar da forte pressão de seus supostos aliados na administração Johnson para evitar a crítica pública da política do governo para o Vietnã. Comparando a escala incrível de violência no Vietnã com a relativamente pequena destruição causada por uma série de revoltas que estouraram em muitas cidades grandes dos EUA – que haviam causado muita gritaria na mídia sobre a ameaça representada por “extremistas negros” – King descreveu sua percepção de “que eu não poderia nunca mais levantar minha voz contra a violência dos oprimidos nos guetos sem ter primeiro falado claramente do maior fornecedor de violência no mundo hoje: meu próprio governo.” Alguns dias depois, ele marchou em um protesto de massa contra a guerra no Central Park em Nova Iorque.

O discurso de King, conhecido pela posteridade como “Além do Vietnã,” fez com que ele ganhasse a ira mesmo de figuras antes simpatizantes no establishment progressista. Ele foi desconvidado de uma visita planejada com Johnson na Casa Branca. Um dos conselheiros do presidente escreveu privadamente que King havia “feito sua jogada com os ‘comunas’” [8]. Enquanto isso, ele foi atacado em editoriais que apareceram no dia seguinte em 168 jornais de maior circulação. O New York Times escreveu que sua denúncia da guerra era “um desperdício e auto-destrutiva.” O Washington Post fez ainda melhor, dizendo que King “diminuiu sua utilidade para sua causa, seu país e seu povo.”

O que King veio a entender [9] foi que o racismo e a desigualdade dentro do país, e a guerra no exterior, estavam interligados. Este reconhecimento o colocou em desacordo com seus antigos apoiadores progressistas, cujas vontades de desafiar o status quo acabaram – como é tão comum para o establishment progressista – quando a posição dos EUA como o maior poder imperial mundial entrou em questão.

Assim, ao confrontar estas questões e desafiar seus antigos amigos, King estava lidando com um conjunto de problemas que qualquer movimento social de massa que faça sérios avanços nos EUA vai ter de encarar, uma hora ou outra: você não pode falar sobre mudança social em seu país enquanto ignora a carnificina gerada pela política externa estadunidense. Para a Esquerda dos EUA, e especialmente qualquer futuro movimento socialista por aqui, essa é uma lição a ser aprendida.

28 de maio de 2016

Nem só de pão vive o homem

Celso Amorim

Folha de S.Paulo

O ministro das Relações Exteriores, José Serra, durante cerimônia de posse no Itamaraty. Pedro Ladeira/Folhapress

A nota 192 do Ministério das Relações Exteriores dá conta da viagem oficial do chanceler a Cabo Verde.

Que bom que ao menos aproveitará a escala (necessária para os aviões da FAB) para uma visita bilateral a um país africano. É um começo. O crescimento da cooperação com Cabo Verde no governo Lula foi enorme, com pelo menos duas visitas presidenciais e inúmeros encontros ministeriais.

Em uma das viagens, o presidente, foi convidado especial para uma reunião da Cedeao, o Mercosul (ou Unasul) da África Ocidental, de grande importância estratégica para o Brasil, em função do Atlântico Sul, que, desde os anos 1980, por iniciativa brasileira, foi declarado pela ONU uma Zona de Paz e Cooperação.

Foi, em parte, o reconhecimento dessa importância que levou o governo Dilma a autorizar o início de uma missão naval no país, tarefa que nossa Marinha abraçou com entusiasmo.

Curiosamente, porém as duas embaixadas que se cogita fechar (segundo notícias de jornal) - Libéria e Serra Leoa - estão nesta região: dois países afetados pelo ebola, que mereceriam interesse especial do Brasil, não só por solidariedade (não indiferença), mas em benefício próprio, em um mundo em que os problemas de saúde pública, como as pandemias, são parte inevitável da globalização.

Uma nota à margem, que não passará despercebida, entre outros, do movimento feminino, nestes tempos de misoginia e violência contra as mulheres. Coincidência ou não, a Libéria, uma das vítimas da tesoura, é o único país africano governado por uma mulher, uma estadista muito respeitada, escolhida por voto direto, que pacificou o país depois de anos de uma brutal guerra civil e comandou, com coragem e discernimento, a luta contra o ebola. (O Brasil ajudou ainda que de forma modesta).

Os dois países, juntamente com a nossa irmã da CPLP, Guiné Bissau, integraram o núcleo de países objeto de atenção da Comissão de Construção da Paz, para cuja criação o Brasil contribuiu decisivamente com ideias e apoio político e que foi brilhantemente presidida por nosso Embaixador junto às Nações Unidas.

O que se passa nesses países, nos domínios da Paz e da Segurança, mas também no da saúde, é de vital importância para a Guiné-Bissau, país de língua portuguesa, do qual nem o mais fervoroso mercantilismo ousaria nos afastar.

A presidenta Ellen Sirleaf visitou o Brasil, pouco depois de eleita. O mesmo fez o Presidente de Serra Leoa, cuja ministra do exterior era também uma mulher. Será que a questão de gênero tem algo a ver? Ou é simples falta de informação?

Sobre o autor
CELSO AMORIM, diplomata de carreira, foi ministro das Relações Exteriores (governos Itamar e Lula) e da Defesa (governo Dilma)

23 de maio de 2016

Avaliando Che

Che Guevara foi um revolucionário honesto e comprometido mas nunca abraçou a sua essência mais democrática.

Samuel Farber

Jacobin

Greta Gabaglio / Shutterstock

Tradução / Os principais líderes da Revolução Cubana — Fidel Castro, Raúl Castro e Che Guevara — tinham estilos de liderança política diferentes. Fidel Castro, de longe o líder mais importante, foi, até se retirar por questões de saúde em 2006, um astuto e táctico político revolucionário com a intenção de consolidar o seu poder e inicialmente adverso a correr riscos que o levassem a perder o controlo da ilha por implementações prematuras de objectivos ideológicos.

O segundo em comando era o irmão mais jovem de Fidel, Raúl, que rapidamente adquiriu uma reputação pelas suas actividades repressivas assim como pela sua disciplina organizativa e competência. Raúl era um antigo membro da Juventude Socialista, o grupo de jovens do Partido Socialista Popular (PSP) cubano, porém mostrava ainda empatia pela União Soviética. Depois havia Che Guevara, cuja imagem icónica sobreviveu ao colapso da União Soviética e ao declínio do comunismo Cubano.

De alguma forma, quase cinquenta anos após a sua morte, Che emergiu como o mais importante dos três líderes. No entanto, tal como tenho referido, as políticas de Che Guevara tinham muito mais em comum com as políticas dos irmãos Castro do que os seus admiradores actuais estão dispostos a admitir.

Primeiro, compartiu com estes uma política revolucionária de cima [para baixo] que lhe permitiu reter, juntamente com os Castro, o controlo político e a iniciativa na ilha, baseado na concepção política monolítica de um tipo de socialismo imune a qualquer controlo democrático e a iniciavas a partir de baixo.

Tal como os irmãos Castro, Guevara tinha um compromisso profundo a um estado de um só partido e a uma versão extrema de vanguardismo, que por vezes lavou ao nível do absurdo. Por exemplo, a sua resposta às condições sociais e políticas que encontrou na parte oriental do Congo, quando se deu conta de não estarem reunidas quaisquer condições necessárias para uma revolução socialista — tais como a demanda por terra por parte da vasta população rural, uma classe trabalhadora (que não existia na região Katanga), e uma presença significativa imperialista que pudesse provocar um sentimento nacional de resistência — foi criar um Partido Comunista de vanguarda que iria liderar isoladamente a revolução nessa parte do país.

Tão cedo quanto os dias de luta de guerrilha na Serra Maestra, Guevara, articulava explicitamente a concepção dos líderes revolucionários cubanos, atribuindo-lhes, na revolução, um papel de apoio e subordinado à classe trabalhadora e campesina. Mais tarde, quando liderava a sua pequena força de guerrilha, na Bolívia, subordinava as necessidades e o potencial político dos militantes e trabalhadores bolivianos politicamente conscientes aos guerrilheiros das suas reduzidas forças sob o seu comando.

Mesmo quando ocasionalmente se referia à classe trabalhadora como tendo um papel na tomada do poder, fá-lo a respeito de uma putativa ideologia da classe trabalhadora do Partido Comunista, tratando a classe trabalhadora como uma abstracção ideológica. Mais tarde, após ter deixado o governo cubano para empenhar-se na luta de guerrilha, fora do país, aprofundou o seu compromisso com uma perspectiva que colocava a autonomia tecnológica e o determinismo — não a classe trabalhadora — no centro da economia socialista de uma maneira reminiscente da novela utópica, Looking Backward, de Edward Bellamy, uma novela que este muito admirava .

As idiossincrasias de Che Guevara

Mas Che Guevara era também diferente dos irmãos Castro em alguns aspectos importantes. Era um igualitário radical, uma característica que tinha raízes na sua formação boémia na Argentina. Os seus quase seis anos no poder em Cuba (1959-1965) não lhe diminuíram esta característica de todo. O mesmo caso com a sua honestidade política, particularmente em comparação com o muito manipulador Fidel Castro. Tinha também um lado profundamente ascético que o levou, por exemplo, a tentar impor, em contraste com outros líderes revolucionários, políticas puritanas durante a sua ocupação da vila Sancti Spiritus no centro de Cuba, em 1958, e considerar, numa reunião do ministério da indústria, que ele dirigia, que o desenvolvimento da “consciência” poderia inverter o progresso material em bens de consumo.

De acordo com Guevara, o povo cubano podia ser educado a construir [o socialismo], sem televisão, baseado no exemplo dos vietnamitas, que não tinham televisão e no entanto estavam a construir o socialismo.

O Internacionalismo de Guevara ou, mais precisamente, a sua vontade de expandir a revolução fora da ilha, particularmente no resto da América Latina, estava mais vincada que nos irmãos Castro. Sem embargo, estava baseada num claro ultra-vanguardismo e na substituição da classe trabalhadora e do campesinato pela “ditadura do proletariado” do Partido Comunista, levando ao estabelecimento de uma nova classe dirigente.

O igualitarismo e internacionalismo de Che estava também ligado ao voluntarismo que se expressava a si mesmo tanto na política como na política económica através dos seus sublinhados sobre os incentivos morais e na criação de um “Homem Novo” que seria totalmente dedicado à sociedade e alheio às suas satisfações pessoais.

As características políticas e pessoais de Guevara – a sua honestidade política e o seu radicalismo igualitário — talvez o tivessem feito mais capaz de ser um comunista oposicionista do que um dirigente comunista a longo termo, que teria que lidar com o crescimento da desigualdade e a corrupção que acompanhou a Revolução Cubana.

Apesar de que o seu igualitarismo, honestidade e ascetismo o pudessem ter ajudado a construir e consolidar a Revolução Comunista Cubana, o sistema que ele ajudou a construir iria quase de certeza virar-se contra os seus valores mais elementares.

Max Weber famosamente arguia que a ética ascética puritana teve um papel essencial no desenvolvimento original do capitalismo, mas isso mais tarde, depois

do ascetismo se comprometer em remodelar o mundo e a desenvolver os seus ideais pelo mundo, os bens materiais ganharam um crescente e finalmente poder inexorável sobre a vida dos homens como em nenhum outro período anterior da história. Hoje o espírito ascético religioso — de forma definitiva, quem sabe? — escapou da jaula. Mas o capitalismo vitorioso, uma vez que se apoia em fundações mecânicas, já não precisa do seu suporte. O mesmo pode também ser aplicado ao Comunismo que Guevara ajudou a construir em Cuba.

O objetivo comum

Não obstante as diferenças que Guevara tinha com os irmãos Castro e os comunistas cubanos pró-Moscovo, este partilhava com eles, até mesmo ao fim, o mesmo projecto para derrubar o capitalismo e construir uma nova sociedade socialista. Este projecto que compartiam estava fundado na criação de um novo sistema de classes baseado em um colectivismo estatal, um modelo de propriedade no qual o estado detém e controla a economia e a burocracia política central “detém” o estado. A pertença à classe dirigente é determinada pela ocupação de um lugar na burocracia que está no centro do poder numa sociedade e que une o poder político ao económico.

Tais sociedades burocráticas são caracterizadas pela produção de valores de uso que satisfazem as necessidades sociais determinadas pela classe dirigente. Neste sistema, a maior parte do excedente não é apropriado pela empresa individual que produziu o excedente, nem tampouco é obtido primariamente pelo mercado.

Em vez disso, é apropriado pelo estado para a economia como um todo. O estado apropria o excedente através dos seus mecanismos de planeamento e controlo — determinando o quê, quanto e onde os bens são produzidos. O excedente não vai financiar primariamente os salários e privilégios dos burocratas (não mais do que os lucros vão financiar principalmente os consumos privados da classe capitalista), ainda que os oficiais do estado possam de facto desfrutar de alguns privilégios especiais.

Vai primeiramente financiar a acumulação e investimento, defesa e outras formas de despesas assim decididas pela burocracia tal como fazem os capitalistas e o capitalismo de mercado sob o capitalismo.

Existe uma contradição determinante neste sistema social entre a necessidade de planeamento e a ausência de liberdade política essencial para a eficiência e precisão do planeamento. Sem liberdade política não há autenticidade de respostas, informação verdadeira e iniciativa independente a partir de baixo que torna possível os planos económicos serem bem desenvolvidos. Os rebeldes anti-burocráticos e revolucionários que possam ter sido inspirados pelo espírito revolucionário intransigente representado por Guevara podem apenas atingir os seus objectivos através de um processo que traz no mesmo saco políticas socialistas, democracia e revolução.

Socialismo: porque a verdadeira libertação da classe trabalhadora apenas pode ser alcançada quando tanto a economia como a política estejam sobre o controlo dos homens e mulheres que através do seu trabalho façam a existência social possível. Democracia: porque a regra da maioria e o respeito pelos direitos das minorias e liberdades civis é a única maneira da classe trabalhadora poder, de facto, e não apenas em teoria, controlar o seu destino. Revolução: porque nem mesmo as reformas mais bem-vindas e autênticas podem trazer uma verdadeira emancipação e libertação. Em qualquer caso, a resistência dos poderosos à mudança social radical faz com que seja provável tornar a revolução tanto inadiável como desejável.

Republished from Haymarket Books.

Colaborador

Samuel Farber was born and raised in Cuba and is the author of numerous books and articles dealing with that country. He is a member of Jewish Voice for Peace and supports BDS.

18 de maio de 2016

O socialismo soa bem na teoria, mas a natureza humana não o torna impossível de se realizar?

Nossa natureza compartilhada na verdade nos ajuda a construir e definir os valores de uma sociedade mais justa.

Adaner Usmani e Bhaskar Sunkara

Jacobin

Ilustração por Phil Wrigglesworth

Tradução / “Bom na teoria, ruim na prática.” Quem declara interesse no socialismo e na ideia de uma sociedade sem exploração e hierarquia recebe frequentemente essa resposta desdenhosa. Legal, o conceito soa bem, mas as pessoas não são muito gentis, certo? O Capitalismo não é mais adequado à natureza humana – uma natureza dominada por competitividade e corrupção?

Socialistas não acreditam nesses lugares-comuns. Eles não veem a História como uma mera crônica de crueldade e egoísmo. Eles também veem incontáveis atos de empatia, reciprocidade, e amor. As pessoas são complexas: elas fazem coisas indescritíveis, mas também se envolvem em atos notáveis de bondade e, mesmo em situações difíceis, mostram profunda consideração pelos outros.

Isso não significa que nós somos “elásticos” – que não existe algo como uma “natureza humana.” Progressistas às vezes fazem essa afirmação, muitas vezes discutindo com aqueles que veem pessoas como máquinas de “maximização de utilidade” que andam e falam. Apesar da boa intenção, essa acusação vai longe demais.

Por pelo menos duas razões, socialistas estão comprometidos com a visão de que todos os humanos compartilham alguns interesses importantes. A primeira é moral. As acusações dos socialistas sobre como as sociedades de hoje falham em prover necessidades básicas como comida e abrigo em um mundo de abundância, ou bloqueiam o desenvolvimento de pessoas presas em empregos ingratos, fatigantes e mal pagos, estão baseadas em uma crença central (declarada ou não) sobre os impulsos e interesses que animam as pessoas em todos os lugares.

Nossa indignação com que se negue a indivíduos o direito de ter vidas livres e satisfatórias está ancorada na ideia de que as pessoas são inerentemente criativas e curiosas, e que o capitalismo muito frequentemente asfixia estas qualidades. Para simplificar, nós lutamos por um mundo mais livre e mais satisfatório por que todo mundo, em todos os lugares, se preocupa com sua liberdade e satisfação.

Mas esta não é a única razão por que socialistas se interessam pelas motivações universais da humanidade. Ter um conceito de “natureza humana” também nos ajuda a encontrar sentido no mundo que nos rodeia. E nos ajudando a interpretar o mundo, ele auxilia em nossos esforços para mudá-lo também.

Em um trecho famoso Marx diz que “a história de todas as sociedades até aqui tem sido a história da luta de classes.” Resistência à exploração e opressão é uma constante através da História – é tão parte da natureza humana quanto competitividade, ou ganância. O mundo que nos cerca está cheio de exemplos de pessoas defendendo suas vidas e dignidade. E enquanto estruturas sociais podem moldar e restringir a ação individual, não existem estruturas que passem o rolo compressor sobre direitos e liberdades das pessoas sem despertar resistência.

É claro, a história de “todas as sociedades até aqui” é também uma coleção de relatos de passividade e mesmo aquiescência. A ação coletiva de massa contra a exploração e opressão é rara. Se humanos por todos os lados estão comprometidos com a defesa de seus interesses individuais, por que nós não resistimos mais?

Bem, a visão de que todas as pessoas têm incentivos para exigir liberdade e satisfação não implica que elas sempre terão a capacidade para fazer isso. Mudar o mundo não é uma tarefa fácil. Sob condições normais, os riscos associados com agir coletivamente muitas vezes parecem esmagadores.

Por exemplo, trabalhadores que escolhem se associar a um sindicato ou entrar em greve para melhorar suas condições de trabalho podem despertar perseguições por seus chefes ou mesmo perder seus empregos. A ação coletiva requer que muitos indivíduos diferentes decidam assumir esses riscos juntos, então não é surpreendente que isso seja incomum e mesmo que dure pouco.

Colocando de outra maneira, socialistas não acreditam que a ausência de movimentos de massa seja um sinal de que as pessoas em geral não tenham desejos inerentes de contra-atacar, ou pior, que elas nem mesmo reconhecem quais são seus interesses. Ao invés disso, protestos são incomuns porque as pessoas são espertas. Elas sabem que no atual momento político a mudança é uma esperança distante e arriscada, então elas desenvolvem outras estratégias para se virar.

Mas às vezes as pessoas se levantam e assumem riscos. Elas se organizam e constroem movimentos progressistas populares. A história está repleta de exemplos de pessoas lutando contra a exploração, e uma de nossas principais tarefas como socialistas é apoiar esses movimentos, para ajudar a fazer da ação coletiva uma escolha viável para ainda mais pessoas.

Nesse esforço – e na luta para definir os valores de uma sociedade mais justa – nós seremos auxiliados, não atrapalhados, pela nossa natureza compartilhada.

16 de maio de 2016

Uma nova abordagem radical para o campo da economia

Uma entrevita com
Anwar Shaikh

Public Seminar

William Playfair bar chart, “Wheat and Labour,” 1822 / Wikimedia Commons

Tradução / Anwar Shaikh vem ensinando economia na The New School a 42 anos. Um dos líderes mundiais da economia heterodoxa, ele argumenta que o modelo neoclássico ensinado na maioria das universidades é uma ferramenta ruim para se entender o capitalismo. Ele espera que o seu novo livro, Capitalismo: Competição, conflito e crise, possa ser a fundação para uma teoria econômica e pedagógica alternativa. Ele recentemente se sentou com a estudante da New School, Ebba Boye, para falar sobre o seu trabalho.

Porque você escreveu esse livro?

Quando eu inicialmente entrei na economia, existia um desejo de entender como o mundo funciona. Eu sou do Paquistão, eu cresci em uma parte do mundo onde a disparidade entre riquezas era enorme e o crescimento era lento. Meu pai era um diplomata que havia sido designado para vários países, então, enquanto eu crescia, observei a diversidade de povos, culturas e economias. No Kuwait, eu observei como eles tinham mais dinheiro do que era possível contar, e mesmo assim, muitos eram pobres e trabalhavam sob condições muito difíceis. Então eu pensei que a economia me ajudaria a entender isso. Mas, quando eu cheguei na economia, eu percebi que a ortodoxia não estava lidando com o mundo no qual eu estava interessado, estava lidando com um mundo de fantasia.

Então você teve que construir a sua própria teoria econômica?

A economia neoclássica (a abordagem dominante no campo, hoje) lida com um mundo de perfeição e racionalidade. A tradição neoclássica começa com premissas altamente idealizadas, e então usa essas premissas como material de construção para sua teoria. Muito da pesquisa econômica foca em mudar algumas premissas para fazer o modelo mais aplicável na realidade. Mas isso não é começar mal?

Eu queria voltar ao meu questionamento original, como o capitalismo funciona? Mas ao invés de começar com um mundo idealizado, eu comecei com observações de fato e tentei conceber um modelo coerente. Mas isso tomou tempo; estou trabalhando nisso por 35 anos e passei 15 anos escrevendo esse livro.

Você teve que começar do zero?

Não, eu não precisei. Houve muito o que se aproveitar dos economistas clássicos, Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. Eu também continuei alguns dos trabalhos de John Maynard Keynes, Joan Robinson, Luigi Pasinetti, Piero Sraffa e Geoffrey Harcourt. A tradição clássica começou com a observação de padrões e resultados reais. A idéia é começar de baixo para cima, do mundo real que observamos ao nosso redor, e daí construímos abstrações.

No seu livro você mostra como é desnecessário e até errado construir um modelo econômico com base na “competição perfeita”. Porque você acha que tantos dos modelos neoclássicos têm isso como premissa central?

Essa é uma coisa muito interessante. Os economistas políticos clássicos, como Smith, Ricardo e Marx, descrevem, com riqueza de detalhes, o que eu chamo de “competição real”. Relações entre capital e trabalho, entre grande e pequeno capital, e entre nações, eram todas conflituosas dentro da estrutura clássica.

Os economistas neoclássicos queriam mostrar que o sistema era harmônico e benéfico para todos. Então eles construíram uma estrutura de trabalho onde esses conflitos foram todos abolidos. Eles apresentaram o capitalismo como um sistema harmônico e ideal. Coisa que não é, evidentemente. Mas isso fornece uma fundação ideológica poderosa, ou uma justificativa, do capitalismo.

Quais são algumas das implicações políticas das teorias mostradas em seu livro?

Deixe-me começar no nível micro. Competição funciona. Ela disciplina empresas individuais, indústrias e nações. Mas também produz resultados que não são desejáveis, especialmente para aqueles que perdem. A primeira lição que temos no livro é que temos que entender o que esses resultados são, que eles representam as consequências naturais do mecanismo capitalista. Então, se nós não gostarmos desses resultados, a questão política é como lidamos com eles?

Livre mercado na teoria ortodoxa, supostamente faz com que todos estejam em melhores condições, tanto indivíduos como nações. Por causa da premissa de pleno emprego, se uma companhia ou indústria for terceirizada, os trabalhadores não sofrem nenhuma desvantagem, porque é só eles simplesmente mudarem para novos empregos. Claro que na prática, economistas ortodoxos admitem que há algumas discrepâncias nessa teoria, mas basicamente eles acreditam que todo mundo vai terminar mais feliz.

Por outro lado, na tradição clássica, o livre comércio é uma guerra, porque a competição é uma guerra. E em toda guerra temos vencedores e perdedores, e os perdedores podem ser permanentemente danificados.

Meu objetivo é mostrar que os dois lados dessa estória, as vantagens e os custos, são consequências naturais porque são intrínsecos à competição.

No nível macro, nós precisamos olhar para os padrões recorrentes no capitalismo e entender os “prosperar e falir”. Os fortes mecanismos do comportamento motivado pelo lucro (ambos) alavancam a economia para frente e também a joga em uma crise profunda.

Você foi um dos economistas heterodoxos que previram a crise econômica. O que foi no seu método que te fez ver o que estava vindo, enquanto os neoclássicos não?

Primeiramente, eu não fui assim tão preciso. Em minhas palestras eu argumentei que a crise iria nos alcançar por volta de 2008-2009,  mas como nós sabemos a economia quebrou já em 2007-2008.

O problema para os neoclássicos é que eles já tinham concluído que não existia nada de “ciclos”. O mercado já era perfeito. Ciclos de crises e negócios acontecem por causa de choques aleatório, e não por causa de algo intrínseco no modelo. Muitos economistas heterodoxos, por outro lado, vão apresentar modelos onde as crises são uma parte natural e recorrente do nosso sistema econômico atual.

Como é o seu modelo micro?

Ao usar modelos estocásticos, você consegue acomodar múltiplos comportamentos humanos, você não precisa se ater a um único comportamento. E se nós agregarmos esses comportamentos em níveis suficientes, nós terminamos conseguindo padrões assombrosamente estáveis, ainda que a observação dos indivíduos nos mostre que as pessoas trilham caminhos completamente diferentes. Pessoas, sendo pessoas, podem escolher passar por cima de padrões habituais. Por exemplo, trabalhadores se comportam de maneira diferente se eles estão organizados, em oposição a quando estão competindo uns com os outros. Isso também é uma parte da história social. E a economia deveria ser capaz de incluir isso desde o seu princípio. É por isso que eu digo que precisamos começar olhando para o que a antropologia tem a nos dizer, e construímos nosso modelo a partir disso. Isso pode soar complicado, mas não é. Tudo o que estamos fazendo é aceitando a complexidade do comportamento humano.

Meu argumento é que é possível criar modelos abstratos que podem ser usados para analisar a economia, usando uma estrutura de trabalho que vai se encaixar muito melhor com o conhecimento que temos de como as pessoas realmente se comportam. Não há necessidade para as premissas feitas por economistas neoclássicos.

O que você espera alcançar ao escrever esse livro?

Eu desejo criar uma fundação para um currículo alternativo. Espero que outras pessoas com a mesma motivação, face às mesmas contradições óbvias entre as fundações dos economistas ortodoxos e o mundo que eles enxergam, não precisem passar por todo o processo que eu precisei.

Quais são as suas percepções sobre como as teorias econômicas heterodoxas são recebidas pela comunidade econômica ortodoxa?

Eu acho que economistas convencionais, desde pelo menos os anos 80, têm deixado de fora todos os outros pontos de vista, ao declarar que todos os outros pontos de vista podem ser derivados de dentro de suas estruturas de trabalho. Tudo que eles precisam fazer é adicionar um número suficiente de imperfeições. Isso começou com Paul Samuelson e a tentativa de incorporar a economia Keynesiana à ortodoxia, ao dizer que os resultados Keynesianos foram devido a rigidez dos salários. Então veio a rigidez dos preços e a rigidez das taxas de juros.

Eu sempre me opus a idéia de que resultados reais pudessem ser entendidos como imperfeições. Me parece que então que você está aprisionado no interior da perfeição, e você tem sempre de voltar a mesma para ter a que recorrer. Eu queria construir um sistema que não dependeria de jeito nenhum das expressões tradicionais – sem maximização, sem a utilidade sendo a maior motivação do comportamento do consumidor, sem redução de custos como a definição de competição, sem a idéia de que somente pequenas empresas são competitivas. Porque essas não são necessárias para se argumentar sobre o funcionamento da economia.

Micro é muito importante, mas nós não precisamos dessa micro ficcional, nós precisamos de uma microeconomia real.

Muitos que criticam o campo da economia, focam no uso de modelos abstratos e suas limitações para o entendimento do mundo real. Como você usa modelos e abstrações em seu livro?

A abstração é necessária em qualquer análise. A questão é como a abstração foi criada. Se abstração é idealização, que eu defendo ser a raiz fundamental da teoria ortodoxa, então isso é muito diferente da abstração enquanto tipificação. Galileo fez uma abstração sobre o movimento dos planetas. Essa abstração foi derivada da observação. A igreja ocidental tinha outra abstração. Ela não era derivada da observação, mas de uma necessidade ideológica. E a igreja tentou deixar de fora os outros pontos de vista.

Eu sei que o que você quer mesmo é falar sobre as teorias em seu livro. Mas eu realmente quero ouvir um pouco mais sobre como é estar em um ambiente econômico heterodoxo, e como você é recebido pelos neoclássicos.

Mas é claro. Bem, quando eu estava fazendo a minha graduação havia mais comunicação entre diferentes pontos de vista. Pessoas como Paul Samuelson e muitas das outras grandes figuras da época, todos leram os originais de Keynes e Marx. Em Cambridge você poderia conversar com Maurice Dobb por um lado e então com Piero Sraffa e Nicholas Kaldor por outro. Todos eram educados no sentido Europeu, eles tinham uma ampla educação e um amplo espectro teórico.

Esse espectro se estreitou. A Chicago School e o MIT começaram a tomar a profissão. Isso aconteceu especialmente com o advento da teoria das expectativas racionais. De repente, tudo que era legítimo tinha que ser moldado de acordo com os seus termos, do contrário não era economia… Se você não construísse a sua teoria com os mesmos fundamentos dos economistas neoclássicos, você simplesmente não era reconhecido como um economista de verdade.

E o único modo que o espectro se amplia para os economistas heterodoxos é quando o capitalismo, sem se impressionar com a teoria econômica, se mostrava como um terremoto. Então esses espaços se abriam por um tempo. Talvez tenhamos uma possibilidade como esta exatamente agora?

Você tem algum conselho para jovens economistas adentrando o campo heterodoxo?

Não gaste o seu tempo reclamando sobre a economia neoclássica. Isso é uma armadilha. Basicamente já foi tudo dito. Não é o suficiente estar em oposição. Penso que a atenção ao método é importante, mas você realmente tem que ter uma visão, um plano. Suponha que você acabou de chegar de Marte e você tem que analisar o capitalismo. Como você abordaria o funcionamento do sistema? Você iria ler o que os outros já disseram, mas também precisaria de começar a construir a sua teoria de uma fundação diferente.

Sobre a entrevitadora

Head of Rethinking Economics, Norway; Economics MA from The New School

10 de maio de 2016

Quem governa o mundo? A América não é mais a resposta óbvia

"Não podemos obter uma compreensão realista de quem governa o mundo enquanto ignoramos os mestres da humanidade."

Noam Chomsky

The Guardian

"Não podemos obter uma compreensão realista de quem governa o mundo enquanto ignoramos os mestres da humanidade." Fotografia: Jae C Hong/AP

Tradução / Quando perguntamos “Quem governa o mundo?” em geral adotamos a convenção padronizada de que, nos assuntos mundiais, os atores são os Estados, principalmente os grandes poderes, e consideramos suas decisões e as relações entre eles. Isso não está errado. Mas seria bom mantermos em mente que esse nível de abstração pode também ser altamente enganador.

Os Estados, é claro, têm estruturas internas complexas, e as escolhas e decisões das lideranças políticas são fortemente influenciadas pelas concentrações internas de poder, enquanto as populações em geral são frequentemente marginalizadas. Isso é verdade até mesmo para as sociedades mais democráticas e obviamente para as outras. Não poderemos chegar a um entendimento realista sobre quem governa o mundo enquanto ignorarmos os “senhores da humanidade”, como foram chamados por Adam Smith. Em outros tempos, eram os comerciantes e donos de fábricas da Inglaterra; nos nossos, os conglomerados multinacionais, enormes instituições financeiras, impérios do varejo e similares. Ainda segundo Adam Smith, também é aconselhável considerar a “máxima vil” à qual os “senhores da humanidade” estão dedicados: “Tudo para nós e nada para os outros” – uma doutrina conhecida também como luta de classes, amarga e incessante, frequentemente unilateral, muito em prejuízo da população dos países e do mundo.

Na ordem global contemporânea, as instituições dos mestres realizam um poder enorme, não só na arena internacional, mas também dentro de seus Estados de origem, na qual eles dependem para proteger o seu poder e para fornecer apoio econômico por uma grande variedade de meios. Quando consideramos o papel dos mestres da humanidade, nos voltamos para tais prioridades políticas do estado do momento como a Parceria Trans-Pacífico, um dos acordos de direitos de investidores mal chamados "acordos de livre comércio" na propaganda e comentários. Eles são negociados em segredo, para além das centenas de advogados de empresas e lobistas que escrevem os detalhes cruciais. A intenção é tê-los adotado em bom estilo stalinista com procedimentos "fast track", projetado para bloquear a discussão e permitir apenas a escolha de sim ou não (daí sim). Os designers regularmente fazem muito bem, não é de surpreender. As pessoas são incidentais, com as consequências que se poderiam antecipar.

A segunda superpotência
Os programa neoliberal da geração passada concentrou riqueza e poder em muito menos mãos, enquanto minou a democracia funcionando, mas eles têm despertado a oposição, bem como, o mais proeminente na América Latina, mas também nos centros de poder global. A União Europeia (UE), um dos desenvolvimentos mais promissores do período pós-Segunda Guerra Mundial, se fez cambaleante por causa do efeito duro das políticas de austeridade durante a recessão, condenados até pelos economistas do Fundo Monetário Internacional (se não a atores políticos do FMI). A democracia tem sido prejudicada, como a tomada de decisão deslocado para a burocracia de Bruxelas, com os bancos do norte lançando sua sombra sobre seus trabalhos.

Os partidos tradicionais foram rapidamente perdendo membros n esquerda e na direita. O diretor-executivo do grupo de pesquisa com sede em Paris EuropaNova atribui o desencanto geral com "um clima de impotência irritado como o verdadeiro poder de moldar os eventos em grande parte deslocadas dos líderes políticos nacionais [que, pelo menos em princípio, estão sujeitos à política democrática] para o mercado, as instituições da União Europeia e corporações, "muito de acordo com a doutrina neoliberal. processos muito semelhantes estão em curso nos Estados Unidos, por razões um tanto similares, uma questão de importância e preocupação não só para o país mas, por causa do poder dos EUA, para o mundo.

A oposição crescente ao ataque neoliberal destaca outro aspecto crucial da convenção padrão: ela deixa de lado o público, que muitas vezes não consegue aceitar o papel aprovado de "espectadores" (em vez de "participantes") que lhe são atribuídos na teoria democrática liberal. Tal desobediência sempre foi motivo de preocupação para as classes dominantes. Apenas mantendo a história americana, George Washington considerava as pessoas comuns que formaram as milícias que ele comandava como "um povo extremamente sujo e desagradável ​​[evidenciando] um tipo inexplicável de estupidez na classe mais baixa dessas pessoas."

Em Política violenta, sua resenha magistral de insurgências da "insurgência americana" para o Afeganistão contemporâneo e Iraque, William Polk conclui que o general Washington "estava tão ansioso para marginalizar [os combatentes desprezíveis] que ele chegou perto de perder a revolução." De fato, ele "poderia ter realmente feito" se não tivesse a França intervindo de forma maciça e "salvou a Revolução", que até então tinha sido ganha por guerrilheiros - quem hoje chamaríamos de "terroristas" - Enquanto o exército de estilo britânico de Washington "foi derrotado tempo após tempo e quase perdeu a guerra ".

Uma característica comum das insurgências de sucesso, registro de Polk, é que uma vez populares dissolve apoio após a vitória, a liderança suprime as "pessoas sujas e desagradáveis" que, na verdade, ganharam a guerra com táticas de guerrilha e terror, por medo de que eles poderiam desafiar privilégios de classe. desprezo das elites "para" a classe mais baixa dessas pessoas "tomou várias formas ao longo dos anos. Nos últimos tempos, uma expressão desse desprezo é a chamada para a passividade e obediência ("moderação na democracia") por internacionalistas liberais que reagem aos efeitos democratizantes perigosos dos movimentos populares da década de 1960.

Afirma-se, por vezes, optar por seguir a opinião pública, provocando muita fúria nos centros de poder. Um caso dramático foi em 2003, quando a administração Bush pediu que a Turquia se juntar a sua invasão do Iraque. Noventa e cinco por cento dos turcos se opuseram ao curso da ação e, para espanto e horror de Washington, o governo turco aderiu a seus pontos de vista. A Turquia foi fortemente condenada por essa partida de comportamento responsável. Vice-secretário de Defesa Paul Wolfowitz, designado pela imprensa como o "idealista-em-chefe" da administração, repreendeu os militares turcos por permitir a prevaricação do governo e exigiu um pedido de desculpas. Sem se perturbar por estas e inúmeras outras ilustrações do nosso lendário "anseio pela democracia", o comentário respeitável continuou a elogiar o presidente George W. Bush por sua dedicação à "promoção da democracia", ou, por vezes, o criticaram por sua ingenuidade ao pensar que uma potência externa poderia impor seus anseios democráticos sobre os outros.

O público turco não estava sozinho. Oposição global para a agressão anglo-americana foi esmagadora. O suporte para planos de guerra de Washington não chegou a 10% em quase nenhum lugar, de acordo com pesquisas internacionais. A oposição provocou enormes protestos em todo o mundo, nos Estados Unidos, bem como, provavelmente, a primeira vez na história que a agressão imperial foi fortemente contestada mesmo antes de ser lançada oficialmente. Na primeira página do New York Times, o jornalista Patrick Tyler informou que "ainda pode haver duas superpotências no planeta: os Estados Unidos e a opinião pública mundial".

O protesto sem precedentes nos Estados Unidos foi uma manifestação da oposição à agressão que começou décadas antes na condenação das guerras dos EUA na Indochina, atingindo uma escala que foi substancial e influente, mesmo que tarde demais. Em 1967, quando o movimento anti-guerra estava se tornando uma força significativa, historiador militar e especialista em Vietnã Bernard Fall advertiu que "o Vietnã como uma entidade cultural e histórica ... está ameaçado de extinção... [como] a zona rural morre literalmente sob os golpes da maior máquina militar já desencadeada em uma área deste tamanho. "

Mas o movimento anti-guerra se tornou uma força que não pode ser ignorada. Nem poderia ser ignorado quando Ronald Reagan assumiu o cargo determinado a lançar um ataque sobre a América Central. Sua administração imitou de perto os passos que John F. Kennedy tinha tomado 20 anos antes de lançar a guerra contra o Vietnã do Sul, mas teve que recuar por causa do tipo de protesto público vigoroso que tinha sido ausente no início de 1960. O assalto foi horrível o suficiente. As vítimas ainda têm de recuperar. Mas o que aconteceu com o Vietnã do Sul e mais tarde em toda a Indochina, onde "a segunda superpotência" imposta seus impedimentos só muito mais tarde no conflito, era incomparavelmente pior.

Afirma-se frequentemente que a enorme oposição da opinião pública para a invasão do Iraque não teve efeito. Isso parece incorreto para mim. Mais uma vez, a invasão foi horrível o suficiente, e seu resultado é absolutamente grotesco. No entanto, poderia ter sido muito pior. O vice-presidente Dick Cheney, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, e o resto dos mais altos funcionários de Bush nunca poderiam sequer contemplar o tipo de medidas que o presidente Kennedy e o presidente Lyndon Johnson adotaram 40 anos antes, em grande parte sem protestar.

Poder ocidental sob pressão

O problema de quem domina o mundo leva então, de vez, a preocupações tais como a ascensão da China ao poder e seu desafio aos Estados Unidos e à “ordem mundial”; a nova guerra fria que se desenvolve na Europa Oriental; a Guerra Global ao Terror; a hegemonia americana e o declínio dos Estados Unidos, e uma série de considerações semelhantes.

Os desafios enfrentados pelo poder ocidental no início de 2016 são frequentemente sintetizados no quadro convencional por Gideon Rachman, colunista-chefe de relações exteriores no Financial Times de Londres. Ele começa por rever o cenário ocidental da ordem mundial: “Desde o fim da Guerra Fria, o poder militar avassalador dos EUA tem sido o fato central da política internacional.” Isso é particularmente crucial em três regiões: no Leste da Ásia, onde “a Marinha dos EUA acostumou-se a tratar o Pacífico como um ‘lago americano’”; na Europa, onde a OTAN – significando os Estados Unidos, que respondem por assombrosos três-quartos dos gastos militares [da aliança]” – “garante a integridade territorial de seus estados-membros”; e no Oriente Médio, onde as gigantescas bases navais e aéreas dos EUA “existem para proteger os amigos e intimidar os rivais”.

O problema da ordem mundial hoje, continua Racman, é que “essas ordens de segurança estão agora sendo desafiadas nas três regiões”, por causa da intervenção russa na Ucrânia e na Síria, e porque a China está transformando seus mares vizinhos, de lago americano, em “águas claramente contestadas”. A pergunta fundamental das relações internacionais, então, é se os Estados Unidos poderiam “aceitar que outros grandes poderes pudessem ter algum tipo de zona de influência em sua vizinhança.” Rachman pensa que poderiam, por razões de “difusão do poder econômico através do mundo – combinada com simples senso comum.”

Há, por certo, modos de olhar o mundo a partir de diferentes pontos de vista. Mas, vamos nos ater a essas três regiões, com certeza criticamente importantes.

Os desafios atuais: o leste da Ásia

Começando pelo “lago americano”, pode provocar alguma surpresa um relato de meados de dezembro de 2015, segundo o qual “um bombardeiro B-52 americano, em missão rotineira sobre o Mar do Sul da China, voou involuntariamente para dentro da área de 3,5 quilômetros de uma ilha artificial construída pela China, como declarou um oficial sênior da defesa, acirrando uma questão que divide Washington e Pequim.” Quem está familiarizado com os sinistros setenta anos de registros da era nuclear sabe bem o que esse é o tipo de incidente, que várias vezes esteva a ponto de levar à deflagração final de uma guerra nuclear. Mas mesmo quem não apoia as ações agressivas e provocadoras da China no Mar do Sul da China notará que o incidente não envolveu um bombardeiro chinês, com capacidade nuclear, no Caribe, ou ao largo da costa da Califórnia, onde a China — para sorte do mundo — não tem pretensões de estabelecer um “lago chinês.”

O líderes chineses compreendem muito bem que as rotas de comércio marítimo de seu país estão cercadas por poderes hostis — do Japão ao Estreito de Málaca e além, apoiados pela avassaladora força militar dos EUA. Por isso, a China procura expandir-se para o oeste, com grandes investimentos e movimentos cuidadosos para alcançar integração. Em parte, esses desenvolvimentos estão dentro do âmbito da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), que inclui os países da Ásia Central e a Rússia, e em breve a Índia e o Paquistão, com o Irã como observador – um status negado aos Estados Unidos, que foram também chamados a fechar todas as suas bases militares na região. A China está construindo uma versão moderna da velha Rota da Seda, com a intenção não apenas de integrar a região sob influência chinesa, mas também de alcançar as zonas produtoras de petróleo da Europa e do Oriente Médio. Está investindo enormes somas para criar um sistema asiático de energia e comércio integrado, com oleodutos e linhas ferroviárias extensas e de alta velocidade.

Uma das peças do programa é uma estrada que corta algumas das mais altas montanhas do mundo e chega até o novo porto construido pela China em Gwadar, no Paquistão, para proteger os navios petroleiros contra a potencial interferência dos EUA. O programa poderá também, esperam a China e o Paquistão, incentivar o desenvolvimento industrial do Paquistão, que os Estados Unidos não facilitaram apesar da ajuda militar maciça. Pequim ainda procura incentivar o Paquistão a reprimir o terrorismo doméstico, uma questão séria para a China na província ocidental de Xinjiang. Gwadar será parte do “colar de pérolas” da China, formado por bases que estão sendo construídas no Oceano Índico, com objetivos comerciais mas também para uso militar, na expectativa de que a China possa algum dia, pela primeira vez na era moderna, ser capaz de projetar seu poder até o Golfo Pérsico.

Todas estas ações se mantêm imunes ao poder militar avassalador de Washington, para não dizer da aniquilação por uma guerra nuclear, que destruiria igualmente os Estados Unidos.

Em 2015, a China criou também o Banco Asiático de Investimentos em Infra-Estrutura (AIIB), do qual é o principal acionista. Cinquenta e seis nações participaram de sua abertura em Pequim, em junho, incluindo aliados dos EUA como Austrália, Grã Bretanha e outros — que aderiram desafiando os desejos de Washington. Estiveram ausentes Estados Unidos e Japão. Alguns analistas acreditam que o novo banco pode tornar-se um competidor das instituições de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial), nas quais os Estados Unidos têm poder de veto. Há também algumas expectativas de que a Organização de Cooperação de Xangai possa eventualmente tornar-se uma contrapartida da OTAN.

Os desafios atuais: a Europa Oriental

Examinemos a segunda região: a Europa Oriental. Há uma crise sendo fermentada na fronteira da OTAN com a Rússia. Não é uma questão menor. Em seu estudo acadêmico iluminador e sensato sobre a região,Frontline Ukraine: Crisis in the Borderlands, Richard Sakwa escreve – de modo muito plausível – que a “guerra entre Rússia e Geórgia de agosto de 2008 foi na verdade a primeira das ‘guerras para deter o crescimento da OTAN’; a crise da Ucrânia, de 2015, é a segunda. Não está claro se a humanidade sobreviveria à terceira.”

O Ocidente vê o crescimento da OTAN como um fato benigno. Não por acaso a Rússia, a maioria do Sul Global e algumas vozes ocidentais destacadas têm uma opinião diferente. George Kennan logo alertou de que o crescimento da OTAN é um “erro trágico”, e foi acompanhado por políticos sêniores norte-americanos, numa carta aberta à Casa Branca, que descrevem o movimento como “um erro político de proporções históricas”.

A crise atual tem suas origens em 1991, com o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. Havia então duas visões contrastantes sobre um novo sistema de segurança e economia política na Eurásia. Nas palavras de Sakwa, uma visão era a da “‘Europa mais extensa’, que teria União Europeia em seu núcleo, mas tenderia a coincidentir com a comunidade política e de segurança Euro-Atlântica. Do outro lado havia a ideia de uma ‘Europa Maior’, uma visão de continente europeu estendendo-se de Lisboa até Vladivostok, com múltiplos centros, incluindo Bruxelas, Moscou e Ancara, mas com um propósito comum de superar as divisões que tradicionalmente flagelaram o continente.”

O líder soviético Mikhail Gorbachev foi o maior defensor da Europa Maior, um conceito que teve também raízes europeias no gaullismo e outras iniciativas. Contudo, à medida em que a Rússia entrou em colapso, pressionada pelas devastadoras reformas de mercado dos anos 1990, a visão diluiu-se, para renovar-se apenas à medida em que a Rússia começou a se recuperar e buscar um lugar na cena mundial sob Vladimir Putin, que junto com seu parceiro Dmitry Medvedev tem repetidamente “demandado a unificação geopolítica de toda a ‘Europa Maior’, de Lisboa a Vladivostok, para criar uma genuína ‘parceria estratégica’”.

Essas iniciativas foram “saudadas com polido desprezo”, observa Sakwa, vistas como “pouco mais que uma cobertura para o estabelecimento de uma ‘Rússia Maior’ por dissimulação” e um esforço para fincar uma cunha entre a América do Norte e a Europa Ocidental. Tais preocupações têm origem nos medos, do início da Guerra Fria, de que a Europa posa tornar-se uma “terceira força” independente de ambos, o grande e o pequeno superpoder, movendo-se em direção a vínculos mais próximos do último (como pode ser visto na Ostpolitik de Willy Brandt e outras iniciativas).

A resposta ocidental ao colapso da Rússia foi triunfalista. O fato foi aclamado como sinal do “fim da história”, a vitória final da democracia capitalista ocidental, quase como se a Rússia estivesse sentido instruída a voltar ao seu status pré-Primeira Guerra Mundial — uma colônia econômica virtual do Ocidente. A ampliação da OTAN começou imediatamente, violando garantias dadas a Gorbachev. Elas estabeleciam que as forças do bloco não se deslocariam “uma só polegada para leste”, em contrapartida à concordância, pelo presidente russo, a que a Alemanha unificada se tornasse membro da OTAN – uma concessão extraordinária, à luz da história. A hipótese de que a OTAN pudesse expandir-se para além da Alemanha não foi discutida com Gorbachev, ainda que fosse considerada em privado.

Logo, a OTAN começou a mover-se além, até as fronteiras da Rússia. A missão geral da aliança foi mudada oficialmente, para um mandato de proteção a “infra-estrutura crucial” do sistema global de energia, rotas marítimas e oleodutos, o que deu dimensões globais à sua área de operação. Além disso, após a revisão, pelo Ocidente, da agora amplamente proclamada doutrina de “responsabilidade de proteger” — nitidamente diversa da versão oficial das Nações Unidas –, a OTAN também pode servir, agora, como uma força de intervenção sob o comando dos EUA.

Particularmente preocupantes para a Rússia são os planos de expandir a OTAN para a Ucrânia. Esses planos foram articulados explicitamente na cúpula da aliança realizada em Bucareste em abril de 2008, quando a Geórgia e a Ucrânia receberam promessa de eventual admissão. As palavras foram perfeitamente claras: “A OTAN dá as boas vindas às aspirações Euro-Atlânticas da Ucrânia e da Geórgia de tornarem-se membros. Concordamos hoje que esses países se tornarão membros da OTAN.” Com a vitória de candidatos pró-ocidentais na “Revolução Laranja” da Ucrânia, em 2004, o representante do Departamento de Estado Daniel Fried correu lá para “enfatizar o apoio dos EUA às aspirações à OTAN e Euro-Atlânticas da Ucrânia”, como revelou documento do WikiLeaks.

As preocupações russas são facilmente compreensíveis. Elas são detalhadas pelo acadêmico de relações internacionais John Mearsheimer na publicação líder do establishment norte-americano,Foreign Affairs. Ele escreve que “a raiz da atual crise [sobre a Ucrânia] é a expansão da OTAN e a determinação de Washington de mover a Ucrânia para fora da órbita de Moscou e integrá-la ao ocidente”, o que Putin viu como “ameaça direta aos interesses vitais da Rússia”.

“Quem pode culpá-lo por isso?”, pergunta Mearsheimer, apontando que “Washington pode não gostar da posição de Moscou, mas deveria entender a lógica por trás dela.” Isso não deveria ser muito difícil. Afinal, como todo mundo sabe, “os Estados Unidos não tolera que grandes poderes distantes finquem forças militares em qualquer parte do hemisfério ocidental, quanto mais em suas fronteiras.”

De fato, a posição dos EUA é muito mais forte. Eles não toleram o que é oficialmente chamado de “rebeldia bem sucedida” à Doutrina Monroe de 1823, que declarou (mas poderia ainda não implementar) o controle dos EUA sobre as Américas. E um pequeno país que assuma tal rebeldia bem sucedida pode estar sujeito aos “terrores da terra” e um embargo esmagador – como ocorreu com Cuba. Não é necessário perguntar como reagiriam os Estados Unidos caso os países da América Latina se unissem ao Pacto de Varsóvia, planejando incorporar também o México e o Canadá. A mera sugestão de tentar qualquer passo nesse sentido teria sido “encerrada com preconceito extremo”, para adotar o jargão da CIA.

Como no caso da China, não é necessário defender razões e ações de Putin para entender a lógica por trás delas. Como no caso da China, há muita coisa em jogo. São questões de sobrevivência.

Os desafios atuais: o mundo islâmico

Voltemo-nos agora para a terceira região de grande interesse, o mundo islâmico (em sentido amplo), também cenário da Guerra Global ao Terror (GWOT) que George W. Bush declarou em 2001, depois do ataque terrorista de 9/11. Para ser mais preciso, re-declarou. A GWOT foi declarada pelo presidente Reagan quando assumiu o poder, com retórica febril sobre uma “praga espalhada por depravados opositores à própria civilização” (como definiu o então presidente) e uma “volta à barbárie na era moderna” (nas palavras de George Shultz, seu secretário de Estado). A GWOT original foi silenciosamente removida da história. Ela transformou-se rapidamente numa guerra terrorista assassina e destrutiva que afetou a América Central, a África do Sul e o Oriente Médio, com impiedosas repercussões no presente, levando inclusive à condenação dos Estados Unidos na Corte Mundial (rejeitada pelos EUA). De qualquer modo, não é a narrativa certa para a história, de modo que desapareceu.

O “sucesso” da versão Bush-Obama do GWOT pode ser prontamente avaliado, numa observação direta. Quando a guerra foi declarada, os alvos terroristas estavam confinados a uma pequena região do Afeganistão tribal. Eles eram protegidos por afegãos, a maioria dos quais não gostava deles e os desprezava, sob o código tribal de hospitalidade que desafiou os norte-americanos quando camponeses pobres recusaram-se a “entregar Osama bin Laden pela quantia, para eles astronômica, de 25 milhões de dólares.”

Há boas razões para acreditar que uma ação policial bem construída, ou mesmo sérias negociações diplomáticas com o Talibã poderiam ter colocado os suspeitos dos crimes de 9/11 nas mãos dos norte-americanos para julgamento e condenação. Mas essas opções não estavam colocadas. Ao contrário, a escolha era de violência em larga escala – não com o objetivo de derrubar o Talibã (isso veio depois), mas de deixar claro o desprezo dos EUA pelas tentativas de oferta do Talibã de extraditar Bin Laden. Não sabemos o quão sérias eram essas tentativas, uma vez que a possibilidade de explorá-las nunca foi levada adiante. Ou talvez os EUA estivessem apenas “tentando mostrar seus músculos, marcar uma vitória e assustar o mundo inteiro. Eles não se preocupam com o sofrimento dos afegãos ou quantas pessoas nós vamos perder.”

Essa foi a avaliação do líder anti-Talibã Abdul Haq, altamente respeitado, um dos muitos oposicionistas que condenaram a campanha de bombardeamento norte-americana lançada em outubro de 2001 como “um grande revés” a seus esforços de derrubar o Talibã desde dentro, um objetivo que considerava possível. Sua avaliação é confirmada por Richard A. Clarke, president do Grupo de Segurança Contraterrorista da Casa Branca durante a presidência de George W. Bush, quando foram feitos os planos de ataque ao Afeganistão. Segundo a descrição de Clarke, quando informado de que o ataque poderia violar as leis internacionais “o presidente gritou na estreita sala de reunião, ‘não me interessa o que dizem os advogados internacionais, nós vamos chutar a bunda de alguém”. Houve também forte oposição ao ataque pelas maiores organizações que trabalhavam no Afeganistão, alertando que milhões de pessoas encontravam-se à beira da fome e as consequências poderiam ser terríveis.

As consequências para os pobres afegãos, anos depois, mal precisam ser revistas.

O próximo alvo a ser golpeado era o Iraque. A invasão EUA-Reino Unido, sem qualquer pretexto realmente crível, é o maior crime do século XXI. A invasão levou à morte de centenas de milhares de pessoas num país onde a sociedade civil já havia sido devastada pelas sanções norte-americanas e britânicas, vistas como “genocidas” pelos dois notórios diplomatas internacionais que as administravam e que, por essa razão, renunciaram a seus postos, em protesto. A invasão também gerou milhões de refugiados, destruiu grande parte do país e instigou um conflito sectário que está agora destroçando o Iraque e toda a região. É um fato espantoso sobre nossa cultura moral e intelectual que, em círculos informados e iluminados, ela possa ser chamada, suavemente, de “a liberação do Iraque”.

Pesquisas do Pentágono e do ministério de Defesa britânico revelaram que apenas 3% dos iraquianos consideravam legítimo os EUA exercerem papel de segurança em sua vizinhança. Menos que 1% acreditavam que as forças da “coalizão” (EUA-Reino Unido) fossem boas para sua segurança. 80% opunham-se à presença das forças da coalizão no país e a maioria apoiava ataques às tropas da coalizão. O Afeganistão foi destruído muito além do que podem avaliar pesquisas confiáveis, mas há sinais de que algo semelhante pode ser igualmente verdadeiro. Particularmente no Iraque, os Estados Unidos sofreram uma severa derrota, abandonando seus objetivos oficiais de guerra e deixando o país sob a influência do único vitorioso — o Irã.

O massacre foi também desfechado em outros lugares, notadamente na Líbia. Os três poderes imperiais tradicionais (Grã Bretanha, França e Estados Unidos) asseguraram a resolução 1973 do Conselho de Segurança e a violaram imediatamente, tornando-se a força aérea dos rebeldes. O efeito foi inviabilizar a possibilidade de um acordo negociado e pacífico; o grande aumento das mortes (multiplicadas ao menos por dez, segundo o cientista político Alan Kuperman); deixar a Líbia em ruína, nas mãos de milícias beligerantes; e, mais recentemente, prover o Estado Islâmico com uma base que pode ser usada para espalhar o terror para mais longe. Propostas diplomáticas bastante inteligentes da União Africana, aceitas em princípio pelo líder da Líbia Muammar Qaddafi, foram ignoradas pelo triunvirato imperial, como analisa o especialista em África Alex de Waal. Um enorme fluxo de armas e jihadistas espalhou terror e violência desde a África Ocidental (agora campeã de assassinatos terroristas) até o Levante, enquanto o ataque da OTAN ocasionou ainda uma enchente de refugiados da África para a Europa.

Foi mais um triunfo da “intervenção humanitária” e — como revelam os longos e muitas vezes macabros registros históricos do início deste tipo de ação na época moderna, quatro séculos atrás — não foi nem um pouco supreendente.

8 de maio de 2016

Será que precisamos de um "think thank" socialista?

Jason Stahl


Tradução / A entrevista de Bernie Sanders no New York Daily News, no mês passado, foi tida como prova por algumas pessoas de que ele teria pouco domínio sobre políticas públicas. Hillary Clinton chegou a avisar os eleitores de que Sanders “tinha [problemas] ao responder questões inclusive sobre seu principal tópico, ou seja, a luta contra os bancos”.

Os apoiadores de Clinton na grande mídia ecoaram as preocupações da candidata; os apoiadores de Sanders, por sua vez, defenderam o candidato deles.

Pode ser tentador lidar com essas posições somente como uma disputa partidária. Mas ela levanta uma questão que tem sido persistente durante esse período eleitoral.

Será que os candidatos deveriam ter total controle dos detalhes das políticas públicas, ou deveriam tentar inspirar os eleitores com grandiosas declarações sobre valores compartilhados? Será que os debates sobre políticas públicas pertencem aos tecnocratas, ou ao público em geral?

A campanha presidencial desse ano oferece três respostas diferentes.

Donald Trump representa uma ponta extrema. Seu clamor em prol de deportações massivas de imigrantes sem documentos, de proibição de entrada de muçulmanos nos Estados Unidos e para uma enorme isenção tributária para a elite econômica mostra que ele liga muito pouco para as especificidades das suas políticas públicas ou mesmo para sua implementação. Sua desconexão com a tecnocracia está tão consolidada que ele raramente tem que lidar com questões feitas pela mídia sobre os detalhes de seus planos.

Do outro lado desse espectro, encontra-se Hillary Clinton. Ela é uma tecnocrata comprometida e que raramente discute as suas políticas em termos mais amplos ou morais. Segundo sua posição, políticas neoliberais planejadas cuidadosamente são a única saída possível e até mesmo isso pode ser ‘pedir muito’.

A estratégia de Clinton foi usada para deslegitimar Sanders. Ele representa uma terceira opção que argumenta que os detalhes das políticas públicas, ainda que importantes, não deveriam ficar no caminho de considerações mais importantes como a construção de movimentos e a necessidade de candidatos representarem os interesses das pessoas comuns nos debates políticos.

A falta de compromisso com as especificidades da política é uma crítica fácil a ser feita contra Sanders e pode vir a definir a sorte das futuras candidaturas socialistas na política eleitoral. Mas não há motivo para cedermos os terrenos tecnocráticos aos neoliberais. Um “think tank” socialista iria nos ajudar a ter certeza de que isso não ocorreria no futuro.

A comunidade baseada na realidade

Os “think tanks” tal como conhecemos hoje têm cerca de cem anos. Em 1927, os dois mais antigos “think tanks” (um deles iniciados em 1916) se fundiram e formaram o Brookings Institution. O Brookings foi uma entre várias instituições “liberais novas” que se formaram no início do século XX em oposição à ideologia do laissez-faire do século XIX. Eles prometeram reformar os males do capitalismo industrial a partir de pesquisas especializadas e de caráter empírico.

Instituições como o Brookings desenvolveriam políticas voltados para atender as necessidades das pessoas e funcionários dos governos iriam implementar essas políticas, geralmente estabelecendo novas instituições federais.

Muitas vezes, as elites corporativas entenderam que tais medidas eram preferíveis às outras alternativas dispostas, a dizer, as várias formas de radicalismo e a corrupção da política partidária.

Para consolidar essa nova instituição como algo ‘a parte’ do sistema, o Brookings consolidou uma identidade “não-partidária”. Seus associados falavam como tecnocratas ilustrados que entendiam o mundo melhor do que a ralé socialista ou os egoístas operadores dos partidos tradicionais.

A política “não-partidária” do Brookings permitiu que eles tivessem sucesso até se oporem a maior parte das iniciativas do New Deal durante a Grande Depressão. Acreditando que a Segurança Social e o programa de Recuperação Nacional da Indústria seriam intervenções excessivas do Estado na economia, a orientação reformista do ‘think tank’ não conseguiu abertura para adentrar na administração Roosevelt.

Essa orientação anti-New Deal continuou durante a administração Truman: o Brookings Institution se opôs às propostas de seguro de saúde nacional. Mas mudanças na equipe ocorridas nos anos 1950 mudaram fundamentalmente a presença do instituto.

O Brookings tornou-se um pilar do consenso tecnocrático liberal durante as administrações Kennedy e Johnson. Eles assinaram embaixo nos principais elementos do pacote Great Society, de Lyndon Johnson, fundindo assim objetivos político-morais com expertise tecnocrática.

Na festa de aniversário de cinquenta anos do Brooking, o president Johnson declarou: “vocês são uma instituição nacional, tão importante para o Executivo – e eu acredito que para o Congresso e para o país também – que se vocês não existissem, nós teríamos que pedir para alguém cria-los.”

Os “think tanks” conservadores como o American Enterprise Institute (AEI) reclamaram da enorme influência que o Brookings tinha no final da década de 1960. O Congresso e a Receita Federal (IRS) reprimiram o AEI sempre que ele ficava muito próximo dos Republicanos. A equipe do AEI argumentava que era exatamente isso que o Brookings estava fazendo com os Democratas – ou seja, disfarçando a construção de políticas públicas com uma aura de empirismo sócio-científico para disfarçar acusações de partidarismo – mas com a diferença de que eles estavam se safando.

O AEI posteriormente acusou tanto os Democratas como o governo federal de terem sido ‘engolidos’ por instituições pró-liberais e que elas seriam responsáveis por um grande número de crises domésticas e internacionais. Aqueles que estavam no AEI e em outras instituições políticas conservadoras, como a Hoover Institution, argumentaram que suas vozes precisavam ser amplificadas dentro de um mercado de políticas públicas em que se criassem soluções conservadoras para tais crises.

Como resultado desses debates, o AEI e posteriormente a Heritage Foundation, mudaram a forma como os americanos passaram a entender os debates sobre políticas públicas. A suposta “objetividade” do debate político fora substituída por um “mercado das ideias”, no qual a identidade conservadora, mais do que o mérito de suas propostas, tornou-se central.

As críticas dos conservadores tinham algum mérito. O consenso liberal limitou os debates da direita e da esquerda. Mas um “mercado de ideias” com diversidade nunca fez parte da agenda deles.

Ao invés disso, os conservadores ficaram obcecados com a necessidade de um “equilíbrio” nos debates de políticas públicas. Num mercado que fosse “equilibrado”, todavia, havia apenas duas posições: a “liberal” e a “conservadora”.

Enquanto as políticas identificadas como “conservadoras” podiam ser rigorosamente pensadas e planejadas do ponto de vista tecnocrático, elas não precisavam ser – e na maior parte do tempo, elas não eram. E esse foi o início da longa descida em direção a candidatura de Donald Trump.

O primeiro exemplo disso foi a chamada “isenção tributária da economia pelo lado da oferta” (supply-side tax cuts) durante o primeiro mandato de Reagan. Os aparatos dos “think tanks” conservadores venderam a ideia de que uma isenção tributária para a elite econômica baseados na noção de que eles trariam resultados e não causariam perda na renda tributária do governo, mesmo que acompanhadas por cortes em serviços governamentais.

Os principais opositores dessa lei argumentaram que a isenção tributária sem reduções correspondentes nos gastos poderia levar os Estados Unidos a um verdadeiro abismo fiscal.

Irving Kristol, porta-voz do neoconservadorismo e sócio do AEI, respondeu na época: “o neoconservadorismo está disposto a deixar esses problemas para que os interregnum liberais lidem com eles. Ele deseja moldar o futuro e vai deixar para que seus oponentes limpem a bagunça depois.”

Tal atitude se tornou o ethos dominante de boa parte do Partido Republicano e de seus candidatos: proponham grandes ideias que moldarão o futuro sem se preocupar com as especificidades políticas, sua implementação ou suas consequências.

Os principais Democratas compraram a visão de Kristol, prometendo “limpar a bagunça depois” e serem melhores gerentes tecnocratas e formadores de políticas públicas do que seus colegas Republicanos.

De certa forma, isso fazia sentido. Como a presidência de Bill Clinton deu a entender, há um desejo público para uma governança sadia e empírica. Incitado por “think tanks” como o Democratic Leadership Council, Clinton retomou muitas das ideias conservadoras – as mais importantes sendo a welfare reform e a criação do NAFTA – e administrou-as com extremo zelo, de uma forma que os governos Republicanos nunca poderiam imitar.

Os oito anos de governo de George W. Bush solidificaram as orientações Republicanas e Democratas perante a produção de políticas públicas.

George W. Bush sonhou com múltiplas e catastróficas guerras no exterior, assim como gigantescas e mal planejadas políticas domésticas, incluindo aqui um retorno às isenções fiscais. Assim como as isenções da era Reagan, elas redistribuíram a riqueza somente para o andar de cima, exacerbando a desigualdade econômica.

A orientação política do Partido Republicano foi perfeitamente sintetizada pelo braço direito de Bush, Karl Rove. Como ele mesmo dissera ao jornalista Ron Suskind em 2004, os membros da administração não eram “parte de uma comunidade baseada na realidade”. Com isso, Rove queria dizer que ele não acreditava que as “soluções emergiriam do estudo cuidadoso de uma realidade discernível”. De acordo com Rove,

“O mundo não funciona mais desse jeito... Nós somos um império agora e quando nós agimos, nós criamos nossa própria realidade. E enquanto nós estudamos essa realidade – de forma cuidadosa, se quiserem – nós vamos agir de novo, criando novas realidades, as quais nós também podemos estudar e vai ser assim que as coisas vão acontecer. Nós somos os atores da História (...) e a vocês, todos vocês, restará apenas estudar o que nós fizemos.”

Uma rejeição mais explícita da ideia de especialidade da tecnocracia administrativa não poderia ser encontrada em outra parte.

Os Democratas, por sua vez, adotaram a identidade zelosa como uma alternativa a visão de mundo de Rove, vendo assim os tecnocratas como a única resposta racional ao pensamento mágico Republicano.

Obama, e agora Hillary Clinton, moldaram cuidadosamente essa ideologia dentro da política do Partido Democrata. Todavia, quanto mais fica apertada a camisa de força tecnocrática – tal como Hillary Clinton tem feito – mais ela sacrifica a imaginação política.

Foi aí que Sanders encontrou sua abertura. Ao exigir que imaginemos políticas capazes de criar novos mundos, Sanders está claramente procurando lançar uma posição socialista no ‘mercado de ideias’, aquele espaço onde o zelo tecnocrático da produção política é menos importante do que as grandes ideias.

Movimento e política

Organizações tradicionais de mídia, as quais a maior parte das equipes estão ansiosas para mostrar suas credenciais “baseadas na realidade”, têm usado essa orientação de Sanders contra ele. Clinton praticamente trouxe todos os criadores de políticas públicas Democratas para sua campanha – até mesmo aqueles que talvez estivessem mais inclinados a votar em Sanders. Isso deixou o pré-candidato basicamente por conta própria na tentativa de oferecer defesas tecnocratas contra seus críticos.

Mas tais defesas não são responsabilidade dele. Sanders deve permanecer focado em conectar-se com seus eleitores com os termos mais amplos possíveis se ele pretende construir um movimento.

A produção de políticas públicas dos socialistas e suas defesas precisam vir de outros lugares. É por isso que precisamos de um “think tank” socialista – para garantir que as políticas tocadas pelos candidatos progressistas estão sendo geradas por instituições vinculadas aos interesses dos trabalhadores.

Nós podemos nos preocupar que os projetos políticos das elites possam eventualmente distrair a construção do movimento socialista e de uma política mais ampla. Mas não precisa ser esse o caso.

A Heritage Foundation, instituição de direita, é um modelo útil nesse sentido. Ao contrário de muitos outros “think tanks” que existem, a Heritage está profundamente conectada aos movimentos conservadores de base. Ela possui uma extensa rede de doação de pequenas quantias junto com as imensas doações privadas e corporativas.

Mais do que isso, os ativistas jovens e conservadores procurando um começo para suas carreiras políticas encontraram um lar na Heritage Foundation. A partir de sua subsidiária, a Heritage Action, conseguiu-se engajar-se ainda mais em direção aos movimentos políticos conservadores. Não há motivo para que um “think tank” socialista não possa emular esse modelo de cima-para-baixo e de-baixo-para-cima.

A maioria das defesas tecnocratas das políticas de Sanders tem sido produzidas bastante informalmente. Se esperamos que os futuros candidatos socialistas em âmbito local, estadual e nacional tenham sucesso, eles não podem desistir dos debates sobre políticas públicas com os candidatos neoliberais. Conceder essa derrota serve apenas para manter a noção reificada de que os neoliberais são os únicos que possuem uma agenda “factível”.

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