17 de março de 2014

Recuo estratégico ou normalização da curva?

Dawisson Belém Lopes


Motivado pela importante e provocativa reflexão do professor Oliver Stuenkel publicada nesta Folha ("O risco do recuo estratégico brasileiro", 10/3), gostaria de contrapor alguns argumentos.

Em primeiro lugar, penso que o autor confunde em seu artigo a perda de centralidade da via diplomática –uma tendência das atuais políticas externas latino-americanas– com um suposto "recuo estratégico" do Brasil nas relações internacionais.

A rigor, a gradual substituição dos agentes tradicionais da política externa –diplomatas, cônsules, oficiais de chancelaria– por outros atores, governamentais e não governamentais não implicou necessariamente a deterioração da presença do Brasil no mundo.

Antes, foi o xadrez da política internacional que começou a ser jogado com outras regras.

Por um lado, constituiu-se de uma ampla rede transnacional para além dos canais oficiais do Estado. ONGs, igrejas, empresas, autoridades subnacionais, entre outros invadiram a cena –e a política externa brasileira não passou incólume por essa transformação.

Por outro lado, os Poderes Executivos nos países da América Latina ampliaram suas frentes de atuação internacional. No Brasil, tanto a Presidência da República quanto os diversos ministérios desenvolveram, desde a redemocratização, novas estruturas para dar suporte à projeção externa do país.

A combinação desses fatores levou ao esvaziamento das fórmulas diplomáticas convencionais no continente. Assim, perderam força Ministérios de Relações Exteriores, missões oficiais e academias diplomáticas, ao passo que novos interlocutores e processos se estabeleceram.

Quero discordar do professor Stuenkel também no que concerne à avaliação conjuntural. Parece-me excessiva a associação que propõe em seu artigo entre o "recuo estratégico" e a "atenção e tempo" escassos que a presidente Dilma Rousseff dedica aos temas internacionais.

Aceitar essa correlação sem ressalvas seria subestimar a complexidade institucional brasileira e sucumbir a impressões que, até o momento, não passaram por escrutínio mais severo.

Na literatura acadêmica, o critério das viagens presidenciais é mobilizado para indicar a "presidencialização" da atividade diplomática. Pois bem: para surpresa geral, quando se compara a média de visitas anuais dos mandatários brasileiros ao estrangeiro, nota-se que, embora menos frequente que Lula na ponte aérea, Dilma viajou mais que Fernando Henrique Cardoso, ironicamente alcunhado, por um humorístico popular dos anos 1990, de "Viajando Henrique Cardoso".

Outro parâmetro usual para aferir a inserção internacional do país é contabilizar brasileiros na direção de grandes agências intergovernamentais. Nesse quesito, o atual governo já emplacou duas candidaturas vitoriosas: José Graziano na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e Roberto Azevêdo na Organização Mundial do Comércio (OMC).

A título de comparação, a máquina diplomática lulista não conseguiu eleger, em oito anos, nem sequer um compatriota.

Do ponto de vista administrativo, o baixo número de vagas abertas para ingresso na carreira diplomática durante o governo Rousseff –um suposto indicador de desapreço presidencial pelos diplomatas– foi o mesmíssimo da segunda presidência de FHC. É oportuno lembrar que ambos enfrentaram graves crises econômicas internacionais e tiveram de operar com restrições orçamentárias.

Ademais, eventos pontuais –como o não comparecimento da delegação brasileira a uma conferência em Munique ou a não abertura de uma representação diplomática em Cabul– não constituem, por si sós, evidências de "recuo estratégico". Cumpre resgatar o contexto em que tais decisões foram tomadas para não exagerar o seu significado.

Para usar o dialeto dos estatísticos, a hipótese mais provável é que o ativismo da política externa brasileira entre 2003 e 2010 seja correspondente a um "ponto fora da curva". Com Rousseff, essa curva estaria retomando sua inclinação normal. Para o bem ou para a mal.

DAWISSON BELÉM LOPES, 33, é professor de política internacional e comparada na Universidade Federal de Minas Gerias e autor de "Política Externa e Democracia no Brasil"

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