30 de setembro de 2019

Cinco anos depois, "Black Lives Matter"?

Cinco anos desde a sua criação, um olhar sobre o que o movimento Black Lives Matter realizou e o importante trabalho que ele deixou inacabado.

Keeanga-Yamahtta Taylor


Manifestantes participam de um protesto para marcar o aniversário de cinco anos da morte de Eric Garner durante um confronto com um policial no bairro de Staten Island em 17 de julho de 2019 na cidade de Nova York. (Spencer Platt / Getty Images)

Tradução / O resultado da autópsia confirmou aquilo que seus vizinhos contaram que aconteceu do lado de fora de um condomínio de apartamentos de Houston, Texas. Pamela Turner, uma mulher de quarenta e três anos, avó de três, estava no chão, tentando se conectar com a humanidade do oficial de polícia que pisava nela mesmo gritando que estava grávida.

O oficial Juan Delacruz ignorou seus pedidos, se afastou, sacou sua arma e atirou cinco vezes. Três das balas atravessaram o corpo de Turner, acabando com sua vida. Uma entrou em sua bochecha, despedaçando seu rosto. Outra acertou seu seio esquerdo, e a última, seu abdômen. O médico legista considerou um homicídio.

O que aconteceu depois já foi ensaiado várias vezes anteriormente. A polícia colocou Delacruz em uma licença administrativa (paga) de três dias; a família contratou os serviços do advogado de direitos civis Benjamin Crump; o Reverendo Sharpton declamou a elegia; e uma manifestação bem organizada e participativa forçou a polícia a estender seus comentários para além das suas discussões típicas.

Nos cinco anos desde que Mike Brown Jr foi morto e as ruas de Ferguson Missouri entraram em erupção, a polícia ao longo dos Estados Unidos matou mais de quatro mil pessoas, um quarto delas afro-americanos. Cinco anos depois, as Vidas Negras Importam? Confrontado por uma série de obstáculos internos e externos, “o movimento” empacou, mesmo enquanto um supremacista branco governa da Casa Branca.

O assassinato de Mike Brown e a revolta que isso inspirou abriram um período de organização e protestos que ousadamente visavam acabar com o reinado de terror policial nas comunidades negras pobres e da classe trabalhadora por todo o país. Para aqueles que pensam que esse tipo de linguagem é hiperbólico, considere as conclusões alcançadas por uma comissão policial de Chicago de 2016 convocadas pelo ex-prefeito Rahm Emanuel após o assassinato cruel do adolescente negro Laquan McDonald pelo policial de Chicago Jason Van Dyke:

Essa indignação [sobre o assassinato de Laquan McDonald] expôs linhas falhas profundas e duradouras entre as comunidades negras e latinas de um lado e a polícia de outro, decorrente de tiroteios da parte da polícia, com certeza, mas também sobre as transgressões difundidas diariamente que impedem pessoas de todas as idades, raças, etnias e gênero em toda a Chicago de terem liberdade básica de se movimentar em seus próprios bairros. Paradas sem justificativa, abusadas verbal e fisicamente, e em alguns casos presas, e então detidas sem consentimento… os arquivos do Departamento de Polícia de Chicago dão validade à crença amplamente difundida de que a polícia não tem consideração pela santidade da vida quando se trata de pessoas de cor.

A própria existência do relatório representa uma evidência da pressão tremenda exercida pelos ativistas do movimento com o presidente Democrata no governo, na véspera de uma eleição histórica. Os eleitores negros haviam feito Obama presidente, e o partido precisava de no mínimo projetar uma aparência de progresso.

O surgimento de um movimento

No segundo mandato de Obama, o que começou como um movimento local em Ferguson eclodiu em uma força nacional muito mais ampla. Ao grande fracasso do júri que não condenou o oficial que matou Mike Brown Jr em Ferguson, se seguiu o júri de Nova York, que não condenou o policial Daniel Pantaleo, apesar do vídeo dele asfixiando Eric Garner até a morte nas ruas de Staten Island. Em uma explosão de raiva e descrença, de esperanças despedaçadas como vidro estilhaçado, as experiências de intimidação e abuso policial uniram jovens negros por todo o país.

Os divisores de águas de Ferguson, Cleveland, Los Angeles, Staten Island, e incontáveis outros alimentaram a rede que se tornou o Black Lives Matter (BLM – ou “Vidas Negras Importam”) no final do outono e início do inverno de 2014 e 2015. Em dezembro de 2014, dezenas de milhares de pessoas em todo o país participaram de atos de desobediência civil não-violentos. No dia 13 de dezembro de 2014, cinquenta mil pessoas marcharam pelas ruas de Nova York com gritos que conectavam Ferguson, Missouri, à cidade de Nova York e então à nação: “Mãos ao alto, não atire”, “Eu não consigo respirar”, “Vidas Negras Importam”. Houve protestos em todo o país, em cidades grandes e pequenas. Essas manifestações dispersas se conectavam através do grito, da exigência, e declaração de que as “Vidas Negras Importam,” da maneira semelhante ao grito de “liberdade já” durante o movimento de direitos civis dos anos 60.

Mesmo enquanto comentaristas profissionais na mídia declaravam o movimento como morto, após a reação previsível dos sindicatos policiais e políticos conservadores, a primavera de Baltimore se espalhou pelas ruas, levada por jovens negros exaustos em razão da negligência institucional e do racismo bruto que jaz sob o envenenamento por chumbo nas águas da cidade, a pobreza e as escolas privatizadas. Se formos medir pelo número de organizações formais que surgiram, o movimento na verdade quase nunca esteve vivo, mas ele prosperou nos corações e mentes de jovens negros que desejavam ser ouvidos e vistos.

Contudo, nenhum movimento segue em frente simplesmente por sua causa ser correta. Sua ascensão ou sua queda são determinadas por um cálculo complicado envolvendo estratégia, tática, política, movimentos e contra-movimentos. O movimento Black Lives Matter sempre enfrentou dois desafios externos, sem incluir as lutas internas com as quais se defronta qualquer movimento. Externamente, o movimento precisava lidar com a forma com que a sua mera existência se tornou um ponto de encontro em torno do qual puderam convergir várias vertentes da direita supremacista branca. Para os ativistas mais visíveis, isso significava lidar com ameaças de morte reais, junto da enxurrada de assédio mais comum.

Logo no início da sua candidatura, Trump fez do BLM seu inimigo, chamando ativistas de terroristas e jurando apoio inabalável à polícia. Já o FBI, fazendo jus à sua história, passou a espionar ativistas negros e a inventar novas categorias políticas com as quais pudesse comunicar uma nova ameaça: os ”extremistas da identidade negra.” Nada disso era surpreendente, mas era exaustivo, e mesmo assustador. Quando Trump decidiu instrumentalizar o BLM em sua candidatura supremacista branca, apelando diretamente à “lei e à ordem” e alinhando sua campanha à histeria do “blue lives matter” (“vidas azuis importam”, uma reação ao BLM, com o azul fazendo referência aos uniformes dos policiais), ele colocou os ativistas e as organizações na mira.

Mas mais difícil ainda era navegar por entre as manobras da ala dominante do Partido Democrata em seus esforços para dividir o movimento entre os pragmáticos e aqueles que estavam se radicalizando rapidamente diante de um poder policial intransigente. O governo Obama virtualmente tinha uma política de “portas abertas” quando se tratava dos ativistas. Sua estratégia era fazer com que o envolvimento e encontros constantes com eles parecessem algum progresso. Isso significava ter contato regular com ativistas, estabelecer uma comissão nacional sobre policiamento e destacar o Departamento de Justiça para iniciar investigações e compilar relatórios sobre departamentos policiais notoriamente terríveis. E, no entanto, durante toda essa agitação, era difícil entender o que estava mudando. Onde estava o impacto?

Com um certo senso de urgência, o Partido Democrata procurou resolver essas questões para que os progressistas pudessem dedicar toda a atenção às eleições de 2016. Isso significava que os liberais na direção do partido estavam constantemente questionando os motivos, a estrutura e as demandas do movimento, na esperança de levar as coisas adiante. “Quem são seus líderes?” “Quais são suas demandas?” “Nos deem uma solução!” foram algumas das questões – ou melhor, das acusações – direcionadas às lideranças mais visíveis do movimento.

Jantar com o presidente

Esse estilo reflete a influência de organizações não governamentais, que medem a eficácia do ativismo ou organização através das lentes da eficiência e dos resultados palpáveis. Havia pressão por soluções ou iniciativas políticas como uma maneira mais “real” e mensurável de enfrentar os problemas com o policiamento. Quando alguns ativistas se irritaram com esse enquadramento em particular, foram atacados como puristas.

Por exemplo, quando uma ativista de Chicago chamado Aislinn Pulley se recusou a ir a um encontro de portas fechadas na Casa Branca em fevereiro de 2016 por duvidar da sinceridade do governo Obama, o Presidente Barack Obama ligou para ela pessoalmente.

Obama disse, “Você não pode continuar gritando com eles e se recusar a vir porque isso poderia comprometer a pureza de sua posição… O valor de movimentos e ativismo social é trazer você à mesa, trazer você à sala e então tentar descobrir como este problema será resolvido. Portanto, você é responsável por preparar uma agenda que seja alcançável – que possa institucionalizar as mudanças que você almeja e engajar o outro lado.”.

Os comentários do presidente foram ouvidos em algumas partes do movimento. O movimento Black Lives Matter não era unânime em seus pensamentos, estratégias ou táticas – e essas ideias divergentes sobre os objetivos políticos e o processo pelo qual o movimento deveria tomar suas decisões eram profundamente contestadas dentro do movimento. Alguns ativistas aceitavam de bom grado as visitas à Casa Branca e acreditavam que isso significava que eles estavam sendo ouvidos no mais alto nível. Brittany Packnett, que era ativista em St Louis e Ferguson em 2014, explicou porque ela e outros participaram do encontro com Obama:

Para conquistar a liberdade que queremos, ainda restam muitos momentos críticos para agirmos e é prudente não limitarmos quais seriam legítimos. Nossas lutas nunca serão ganhas apenas sentando na mesa das decisões sobre políticas públicas. Os manifestantes assumem riscos, constroem responsabilidade democrática orgânica nas ruas e forçam a adoção de táticas organizadas. Organizadores mobilizam as pessoas com ações estratégicas e diretas para pressionar pela mudança sistêmica em instituições e políticas. Os formuladores de políticas e os líderes institucionais são influenciados por todos os tipos de pessoas que continuam a pressionar em todos os espaços possíveis por mudanças duradouras... Acredito que o trabalho coletivo e variado desse movimento pode (e na verdade, já conseguiu) mover montanhas, mas vamos precisar de cada um de nós e de todas as táticas à nossa disposição para conquistarmos a liberdade que buscamos.

Outros estavam desconfiados. Aislinn Pulley, a ativista de Chicago que Obama repreendeu por se recusar a encontrá-lo, tinha uma visão de mudança bem diferente daquela oferecida pelo presidente. Ela escreveu uma carta aberta em resposta às críticas dele:

Eu não poderia, com integridade, participar de uma farsa que serviria apenas para legitimar a falsa narrativa de que o governo está trabalhando para acabar com a brutalidade policial e o racismo institucional que a alimenta. Pelo número crescente de famílias que lutam por justiça e dignidade por seus parentes mortos pela polícia, eu me recuso a dar cobertura política aos seus autores e facilitadores, fazendo uma aparição entre eles... Afirmamos que a verdadeira mudança revolucionária e sistêmica em última instância será provocada apenas por trabalhadores, estudantes e jovens comuns – se organizando, se manifestando e tomando o poder das elites corruptas.

Tensões e debates desse tipo no interior de movimentos políticos não eram nada de novo, é claro, especialmente no movimento negro. Em 1964, o estrategista do movimento Bayard Rustin argumentou que o movimento pelos direitos civis e por novas formas de militância negra deviam estar preparados para mudar “do protesto à política”. Ele argumentou que “está claro que as necessidades dos negros não podem ser satisfeitas a menos que avancemos para além do que até agora foi colocado na agenda. Como esses objetivos radicais serão alcançados? A resposta é simples, enganosamente simples: através do poder político… Somos desafiados agora a ampliar nossa visão social, a desenvolver programas funcionais com objetivos concretos. ”

Rustin estava sugerindo que a mudança para a política formal marcaria um sinal de maturidade política e poderia proporcionar mudanças muito mais substanciais para as comunidades negras do que apenas protestar. Ele tinha em mente um amplo programa social-democrata seguido por uma nova onda de políticos. (Havia quase cem negros em cargos eleitos em 1964.) Nós conseguimos os políticos (dez anos após a convocação de Rustin, havia várias centenas de negros em cargos eleitos) – culminando na eleição de Barack Obama em 2008 – mas não o Estado de Bem-Estar Social.

A repreensão pública de Obama não era exatamente sobre a questão da “política eleitoral”, mas você pode ouvir ecos (em uma versão mais estreita) da mensagem de Rustin. Obama estava declarando que em 2016 era hora de parar de “gritar” e oferecer soluções pragmáticas que poderiam ser adotadas. Sua resposta revelava sua própria impaciência com a continuação do Black Lives Matter, agora ameaçando causar uma distração em relação às próximas eleições gerais em 2016. Mas, mais importante, sua intervenção pessoal também pretendia dividir o movimento entre os “que fazem” e os “que sonham”.

Para muitos ativistas, a enlouquecedora rede de violência policial e o sistema de justiça criminal em geral – a estrutura de multas e taxas, fianças caras e a arbitrariedade das sentenças – exigiam mais do que mesas-redondas e relatórios. Muitos buscavam mudanças estruturais, em vez de alterações superficiais, nos sistemas de justiça criminal federal, estadual e local. Alguns estavam adotando a política abolicionista e a crença de que a sociedade estaria melhor sem todo o paradigma carcerário. Em vez de gastar US$80 bilhões por ano para colocar seres humanos em gaiolas, talvez esses recursos pudessem ser redistribuídos de forma a melhorar a vida das pessoas, em vez de serem usados ​​para punir.

Desse modo, a repreensão de Obama e a resposta de Pulley revelavam mais do que bate-bocas estratégicos sobre o objetivo dos movimentos sociais. Dos muitos problemas na sociedade estadunidense expostos pelo Black Lives Matter, destaca-se a acentuada divisão dentro da política negra. O rancor político refletia parcialmente uma divisão entre gerações, mas também mostrava um cisma entre o ódio de classe dos trabalhadores negros e o otimismo de classe de uma pequena elite negra.

Alguns ativistas se irritaram com o paternalismo de Obama, que se apressou em lembrar o público estadunidense (geralmente branco) de que ele não era o “presidente da América Negra”, ao mesmo tempo em que trocava de linguagem para o “ebânico” para convencer os afro-estadunidenses a tirarem o “tio Pookie” do sofá e ir votar.

Mas não era só o Obama. Suas excentricidades raciais eram um lembrete amargo sobre como os negros eleitos frequentemente engordam mastigando o grosso dos votos dos negros, apenas para depois entregar pouco além das suas próprias imagens como símbolos do suposto progresso racial. Mas a realidade era que em muitas cidades, prefeitos negros, vereadores negros, delegados negros e policiais negros supervisionavam a desigualdade e a opressão que alimentaram o Black Lives Matter.

O racismo nu da descrição que Donald Trump fez de Baltimore como um covil “infestado de roedores”, onde “nenhum ser humano quer viver” capturou a atenção da nação, mas uma verdade mais ampla recebeu menos – autoridades negras eleitas em nível local e nacional traíram seus eleitores por meio de negligência institucional e depois contaram com um policiamento brutal para gerenciar a crise que se seguiu.

Foi essa traição das promessas de “esperança” e “mudança” que reuniram os jovens rebeldes em Ferguson e depois em Baltimore – que Obama e a prefeita de Baltimore, Stephanie Rawlings-Blake, descreveram como “bandidos” – para agir em nome de milhões.

Esse foi o contexto espinhoso da frustração de Aislinn Pulley e de sua rejeição ao convite para conversar com o presidente dos Estados Unidos. O ponto aqui não é se a decisão de Packnett de encontrar com Obama ou a de Pulley de declinar do convite foi mais correta que a outra. A realidade é que todos os movimentos sociais são expressões do profundo desejo de mudança ou de reforma da situação atual.

Para o Black Lives Matter, isso poderia ser expresso como a esperança de que os policiais “parassem de nos matar”, mas, no final das contas, era um movimento pela reforma do status quo do policiamento. Mas o que acontece com frequência é que, com o decorrer dos eventos, os participantes do movimento chegam a conclusões radicalmente diferentes sobre qual deveria ser seu objetivo. Para muitos ativistas do BLM, sua conclusão começou a ser que a polícia não podia realmente ser reformada. Isso os colocou em conflito com a natureza da reforma do próprio movimento.

A tirania da falta de estrutura na era das redes sociais

No entanto, o maior problema foi a incapacidade do movimento de criar espaços para debater e lidar com a tensão entre reforma e revolução, ou mais grosseiramente, entre câmeras corporais e a abolição da prisão. Todos os movimentos são confrontados com debates existenciais sobre sua viabilidade e longevidade. Sempre há decisões cruciais a serem tomadas por qualquer movimento em relação à direção e ao melhor caminho para se chegar lá. Porém, sem a oportunidade de avaliar, discutir ou ponderar coletivamente o que o movimento é ou deveria ser, essas divergências políticas às vezes podem se transformar em amargos ataques pessoais.

Entre os ativistas do movimento, disputas pessoais acrimoniosas foram expressas por todo o cenário das redes sociais, criando um acervo material de arquivos para os agentes do Estado. Isso também alimentou a animosidade e a discórdia entre pessoas que tinham todo interesse na colaboração e na solidariedade. A cultura do apontamento chamava a atenção para cada transgressão, munida da crença de que o ato teria sido cometido com a pior das intenções. A boa vontade que muitos imaginavam e queriam que estivesse no coração do movimento só poderia ser construída com base em confiança e em relacionamentos genuínos. Era difícil construí-las sem estruturas formais, responsabilidades claras e mecanismos de liderança e de prestação de contas.

De fato, a “prestação de contas democrática e orgânica” na qual Packnett insistia estava ausente. A falta de pontos de entrada claros na organização do movimento e a ausência de qualquer organização ou estrutura democrática que prestasse contas dentro do movimento deixaram poucos espaços para se avaliar o estado do movimento, atrasando sua capacidade de articulação e adiando a generalização de lições e táticas estratégicas de uma localidade para a próxima ou de uma ação para a próxima. Em vez disso, a ênfase na autonomia, mesmo à custa da desconexão em relação ao movimento mais amplo, deixava cada localidade apenas com seus próprios dispositivos para aprender e conjurar sua própria estratégia.

O movimento BLM alegava não ter líderes, abraçando o “horizontalismo” de seu antecessor no movimento Occupy. Mas todos movimentos possuem lideranças; alguém ou algum grupo de indivíduos está decidindo que isso ou aquilo ou não vai acontecer; alguém decide como esse ou aquele recurso será ou não usado; alguém decide se essa ou aquela reunião vai ou não ocorrer. A questão não é se existem líderes, é se esses líderes precisam prestar contas perante aqueles que eles representam. Também importa a maneira pela qual se determina a função deles como líderes. No caso da reunião com Obama, parece que os participantes foram selecionados pelo governo Obama como indivíduos ou organizações que eles determinaram que seriam a liderança do movimento. Talvez isso fosse inevitável, mas a falta de prestação de contas diante das pessoas comuns que compunham a massa do movimento poderia causar confusão ou ressentimentos.

No entanto, a insistência de que não havia liderança, mesmo enquanto pessoas estavam sendo consideradas líderes pela ordem política, obscurecia o modo como as decisões estavam sendo tomadas e quem deveria responder por elas. Esses problemas se aprofundaram quando começou a parecer que o movimento estava indo na direção errada ou estagnado, pois ficou difícil determinar a quem procurar por orientação.

Isso não significa que “se ao menos” tivesse havido aquele encontro ou aquela reunião, ou mesmo se houvesse mais democracia na tomada de decisões, que o movimento Black Lives Matter teria triunfado sobre a brutalidade policial. Mas isso levanta a questão crucial de como os militantes emergem de uma batalha perdida – ou mesmo de uma guerra perdida – com mais clareza sobre sua experiência, as lições aprendidas e os relacionamentos recuperados que podem permitir que eles lutem outro dia com uma noção melhor do que fazer da próxima vez.

Entre Hillary Clinton e as "fundações progressistas"

Essas tensões dentro do movimento BLM foram ampliadas pelo notório assédio de ativistas, iniciado pelos minions de Trump e pela manipulação contínua realizada pelos agentes do Partido Democrata. A pressão para levar o movimento adiante e ao mesmo tempo permanecer em contato com autoridades para quem o engajamento visava criar a aparência de algum progresso gerou uma enorme desgaste para os ativistas. Essa tensão transbordou quando o Partido Democrata nomeou Hillary Clinton como sua candidata.

O slogan da campanha de Clinton, “A América Já é Ótima,” era uma réplica ao “Tornar a América Ótima Novamente”, de Trump, mas também deixava transparecer um nível de distanciamento político que chocou os jovens negros que estavam envolvidos em uma luta de vida ou morte, alimentando o debate sobre a melhor maneira de se avançar na luta. Ao mesmo tempo, os ativistas tinham certeza de que, se Clinton vencesse, ela ficaria em dívida com os jovens eleitores negros, dando credibilidade a uma estratégia focada em iniciativas políticas que poderiam ter sido realizadas dentro do governo Clinton.

O impulso do movimento começou a minguar por várias razões; mas o resultado disso foi tornar a disputa no interior do jogo político parecer um caminho mais viável para se seguir em frente. Enquanto a persistência de abusos e assassinatos policiais fazia com que o problema parecesse intratável, a ausência de debates democráticos e de elaboração estratégica levariam a uma ênfase menor para as marchas e ações em massa. Ao invés disso, as manifestações foram ficando menores, menos sonoras, lideradas por pequenos grupos de pessoas que, assim, ficavam vulneráveis ​​à prisão.

Esse ciclo de ações menores, que facilmente terminavam em prisões, se tornou uma profecia autorrealizável, com muitos desses ativistas criticando a falta de disposição de outros para se “sacrificar”. A pequena dimensão e a marginalidade dos protestos se tornaram um porrete moral com o qual bater nas pessoas que não estavam dispostas a se arriscar a serem presas. Nesse contexto, se envolver com a ordem política estabelecida parecia uma rota mais realista para se fazer algo – pelo menos para algumas pessoas, certamente não para todos.

Esse era o caso de maneira ainda mais patente, conforme as fundações supostamente progressistas vinculavam grande parte de seu financiamento à capacidade dos ativistas de “obter resultados”. O financiamento das fundações passou a inundas as organizações do movimento quase imediatamente após a revolta de Ferguson. O dinheiro era necessário e foi aceito prontamente, enquanto os organizadores tentavam sustentar o impulso gerado pela revolta de Ferguson e as manifestações subsequentes se espalhavam por todo o país, à medida que a polícia continuava matando afro-americanos. Porém, as doações de entidades que iam do Google à Ford Foundation, passando por dezenas de outras, vinham com algo mais além do dinheiro ou financiamento: obviamente, elas estavam tentando conectar o caráter progressista inerente dos movimentos sociais às suas “marcas”.

Em alguns casos, no entanto, como com a Ford Foundation, historicamente o dinheiro vem acompanhado de um esforço para manipular os objetivos e a direção do movimento. A Ford era notória na década de 1960 por usar seus vastos recursos para empurrar os radicais negros em direção ao “desenvolvimento comunitário” e ao capitalismo negro, para longe de seu potencial insurgente. Karen Ferguson escreveu de forma incisiva sobre as maneiras pelas quais a Ford alavancou sua intervenção financeira no movimento negro dos anos 1960 para promover líderes “responsáveis”, aqueles que ela considerava capazes de promover uma direção política com a qual ela concordasse.

Mas não era apenas a Fundação Ford. Megan Ming Francis descreve um processo de “captura de movimento” ao contar como os doadores de fundações nas décadas de 1920 e 1930 usaram o financiamento como isca para ajudar a mudar o foco político da NAACP (a “Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor”) do terrorismo branco e do linchamento para a educação, constituindo uma menor ameaça para o status quo político.

As fundações continuam a influenciar os movimentos no sentido da moderação e do compromisso. Essa lógica está enraizada na realidade dessas organizações multibilionárias que, em última análise, se vêem resgatando o sistema de seus excessos.

Considere um artigo publicado recentemente pelo presidente da Fundação Ford, Darren Walker. No artigo, Walker aconselha a sabedoria das “nuances”, como uma rejeição de posições políticas “extremas”. Como ele sugere de maneira articulada,

A oposição extrema parece ter entrado para o manual de estratégias dos líderes em todas as categorias. Nesta visão de mundo, é tudo ou nada, bom ou mau, o melhor ou o pior… Enquanto isso, não se encontra nuances e complexidade em lugar nenhum. E, assim, nossos desafios extremos permanecem extremamente sem solução.

Walker descreve como extremistas políticos os ativistas na cidade de Nova York que vêm lutando pelo fechamento da horrível prisão de Rikers Island. Walker fez parte de uma comissão que concordou em fechar Rikers, apenas para construir várias cadeias menores para substituí-la. Ele diz que é um compromisso – um exemplo do tipo de nuances para as quais os abolicionistas penais parecem impermeáveis. Walker defende que rejeitar uma solução de compromisso é “deixar a perfeição ser inimiga do progresso. Se pularmos etapas, corremos o risco de criar um novo tipo de lacuna – uma lacuna de oportunidades e alianças perdidas”.

Mas tudo isso é um subterfúgio para a sua verdadeira intervenção:

Podemos enxergar como nossos sistemas capitalistas entraram em colapso, enquanto também apreciamos como os mercados ajudaram a reduzir em todo o mundo o número de pessoas que vivem na pobreza... Podemos criticar as fortunas ilícitas, enquanto também apreciamos a necessidade atual de que o capital privado financie certos bens públicos valiosos e incentivamos os indivíduos ricos a compreender seus próprios privilégios e a apoiar reformas institucionais.

Raramente neste mundo você ganha algo sem motivo. As dezenas de milhões de dólares que a Fundação Ford distribui para organizações e ativistas de todos os tipos vêm com a intenção de redirecionar ou remodelar a insurgência e as rupturas em direção a meios mais moderados. Isso nunca fica tão claro, porque se ficasse, não seria eficaz. Walker aqui não está falando apenas pela Ford, mas pode-se considerar que esse é o objetivo da maioria das empresas que desenvolvem uma ala filantrópica como forma de influenciar o debate sobre questões sociais. Uma das maneiras com que isso funciona hoje é com a ênfase sobre iniciativas e soluções políticas como a via prática para fazer avançar um movimento ou agenda social.

Considere como o movimento pela plataforma política do Black Lives foi alardeado de tal maneira que o fez parecer tão importante quanto as próprias marchas e mobilizações. Certamente, muitas das reformas exigidas pela plataforma de políticas tinham longo alcance e, se implementadas, poderiam ser transformadoras. Mas sem um movimento social em campo para criar a força necessária para coagir a ordem política estabelecida a abandonar sua intransigência, como isso se tornaria possível?

A ascensão da plataforma política e sua projeção como uma conquista culminante para o movimento revelaram mais sobre o estado do movimento do que se pretendia. De maneira semelhante à abordagem de uma lista de desejos para uma campanha presidencial, é fácil pedir a lua e as estrelas – e às vezes é necessário imaginar qual seria o aspecto da liberdade – mas depois que as demandas foram entregues e as promessas foram feitas, alguém tem que lutar para torná-las realidade. A plataforma não era capaz de responder à questão central de como aproveitar a força física de um movimento social para fazer isso.

Os dólares das fundações podem ter outras consequências não-intencionais. A capacidade de garantir financiamento mina o potencial para o desenvolvimento de práticas mais democráticas no interior do movimento, dando às pessoas com acesso ao financiamento uma voz desproporcionalmente grande. Com mais recursos, vem também mais autoridade pela maneira como isso eleva o perfil, a presença e a voz de alguns. Essa dinâmica acaba cortando o tipo de unidade de propósito necessário para enfrentar o desafio de impedir o abuso e os assassinatos policiais. Em vez disso, os ativistas passam a serem compelidos a competir entre si por financiamento, com base em sua contribuição “única” para o movimento.

Essas observações não pretendem ser uma espécie de pregação sobre como o dinheiro das fundações suja os nossos movimentos – embora sem dúvida suje. Deveríamos parar e nos perguntar sobre o porquê de empresas que ganham bilhões sob o capitalismo estadunidense estarem tão ansiosas para “doar” dinheiro a ativistas, muitos dos quais adotam alguma versão de política anticapitalista. Como mencionei acima, a influência financeira das fundações sempre tem sido um fator, pelo menos durante a maior parte do século XX e atualmente. Todos nós podemos conceber maneiras singulares de arrecadar dinheiro para nós mesmos, mas é difícil imaginar a grande escala de ativismo necessária para enfrentar os problemas de nossa sociedade a base de venda de bolos e eventos sociais.

No entanto, a disponibilidade desse dinheiro exige ainda mais democracia dentro de nossos movimentos. Significa que a tomada de decisão precisa se estender para além dos funcionários, do conselho executivo ou de seja lá quem estiver recebendo um salário para alcançar o pessoal que compõe as fileiras do movimento. Isso significa que grande parte de nossa organização e ativismo às vezes será confusa, lenta e mal-direcionada, mas também pode tornar mais fácil para que todos reivindiquem a propriedade do movimento.

A participação mais ampla de todos os que estiveram envolvidos no movimento Black Lives Matter poderia ter resultado em mais contato entre as diferentes camadas do movimento. Com a criação de espaços políticos em que essas diferentes camadas poderiam se envolver e ter maior influência recíproca, poderia haver um aumento do senso de urgência no movimento e nas mobilizações de massas. Algumas pessoas concluíram que mobilizações da massa não são mais necessárias; que as pessoas simplesmente aparecem e depois voltam para casa. Certamente, esse pode ser um efeito, mas não devemos subestimar o poder transformador da união e da ação coletiva necessárias para que as pessoas se manifestem juntas. Não se trata apenas de sua influência sobre a formulação de políticas ou sobre as instituições de governo, mas também nas maneiras pelas quais o poder se manifesta entre aqueles que compõem as fileiras da marcha.

O artista e crítico radical John Berger escreveu sobre manifestações de massas:

Teoricamente, as manifestações têm o objetivo de revelar a força da opinião ou sentimento popular: teoricamente, são um apelo à consciência democrática do Estado.

Nesse sentido, escreveu Berger, os números de presentes em um protesto são significativos, não por causa de seu impacto sobre o Estado, mas sobre aqueles que tomam parte no protesto:

A importância do número de envolvidos pode ser encontrada na experiência direta daqueles que participam ou que testemunham e simpatizam com a manifestação. Para eles, os números deixam de ser números e se tornam a evidência de seus sensações, as conclusões de sua imaginação. Quanto maior a manifestação, mais poderosa e imediata (visível, audível, tangível) ela se torna como metáfora para sua força coletiva total.

O ponto é que esses movimentos ou mobilizações não apenas criam a possibilidade de mudar nossas condições materiais, exercendo a força dos muitos contra à intransigência dos poucos. Os movimentos sociais também criam arenas onde nós mesmos podemos ser transformados. Ações em massa nos tiram do isolamento do dia a dia e nos tornam atores políticos.

Em uma sociedade que erroneamente atribui nossas conquistas aos nossos talentos individuais e que coloca a culpa de nossas falhas em nossas fraquezas individuais, o movimento de massas, essa arena de lutas, nos une para compartilharmos nossas dificuldades e para mostrar que a solução para muitos dos nossos problemas é coletiva. O movimento de massas chacoalha o senso comum predominante em nossa sociedade.

A militante e feminista radical negra Ella Baker compreendia a necessidade de dar esse cutucão na bolha do "senso comum".

Para que nós, como pessoas pobres e oprimidas, nos tornemos parte de uma sociedade que tenha significado, o sistema sob o qual hoje existimos deve ser radicalmente alterado. Isso significa que teremos que aprender a pensar em termos radicais. Eu uso o termo “radical” em seu significado original – chegar ao fundo e compreender a causa raiz dos problemas. Significa enfrentar um sistema que não se presta às suas necessidades e conceber meios pelos quais você pode alterar esse sistema.

A satisfação coletiva no confronto e o potencial para a mudança abrem a possibilidade para se colocar esse tipo de pergunta. Sem isso, é difícil se libertar da razoabilidade e do pragmatismo, como aconselhados por Obama, quando ele deu um sermão para um ativista de Chicago sobre os objetivos estreitos dos movimentos sociais – mudar uma lei ou iniciar uma política pública.

À medida que 2015 e 2016 avançavam, ninguém acreditava que Trump venceria; em vez disso, os ativistas começaram a se concentrar em maneiras para mudar um novo governo Clinton no sentido de uma reforma da polícia. É claro, Trump acabou eleito e todos os planos de mudança para Washington, DC, para iniciar a fase “interna” do movimento nunca se concretizaram. Hoje, existem poucos sinais do movimento popular e de base do Black Lives Matter que, em seus primeiros anos, capturou a imaginação e as esperanças dos jovens negros e além.

Isso certamente não significa que o movimento “fracassou”. Ainda existem muitos ativistas do BLM organizados e engajados de outras formas. É impossível imaginar que o apetite público pela reforma da justiça criminal, incluindo a reforma da fiança e o lento mas constante processo de descriminalização da maconha, poderia estar acontecendo sem a influência do movimento Black Lives Matter. Todos estamos em dívida com o movimento por ter trazido à luz a extensão total com que mulheres negras, incluindo mulheres trans, também são vítimas de violência e abuso racista, sancionados pelo Estado. Muitos dos militantes centrais na organização do movimento enxergam essas novas arenas de luta como uma expressão continuada do movimento BLM.

No entanto, o movimento de massas que capturou a atenção do mundo e que colocou de ponta cabeça o status quo já não existe da mesma maneira. De certa forma, isso é esperado. Nada fica parado, muito menos algo tão vivo e dinâmico quanto um movimento social. As questões sobre estratégia, tática e democracia que surgiram como conseqüência da ascensão do movimento BLM não desapareceram; na verdade, elas permanecem críticas para determinar como podemos transformar nossa situação atual.

Ainda na luta por um futuro onde as Vidas Negras Importam

O que o rosto despedaçado de Pamela Turner, explodido pela bala de um policial, nos fala sobre os esforços do movimento Black Lives Matter? Ele nos conta sobre como o policiamento é absolutamente central para manter o status quo racista, sexista e desigual.

Sindicatos policiais e autoridades eleitas gostam de retratar o policiamento como perigoso, como se fosse uma espécie de última linha de defesa bizarra entre “nós” e algum elemento criminoso ameaçador e obscuro “lá fora”. Na realidade, a maior parte do policiamento envolve vigiar e assediar os pobres e a classe trabalhadora. Quando pessoas negras e pardas são super-representadas entre as fileiras dos pobres e da classe trabalhadora, são essas pessoas que sofrem a maior parte do peso dos encontros com a polícia. Ser morto pela polícia é uma das principais causas de morte de jovens homens negros. O sociólogo Frank Edwards disse que os jovens homens negros têm “maiores chances de serem mortos pela polícia do que… de dar a sorte numa raspadinha da loteria.” Pamela Turner, que sofria de esquizofrenia, estava na mira da polícia local por causa de várias infrações menores que a colocaram em contato com eles. Em abril passado, ela recebeu um aviso de despejo que resultou em uma acusação de “ofensas criminais” e um encontro com o mesmo policial que acabou por matá-la semanas depois.

O policiamento é o último serviço do setor público que o governo financia de maneira mais sólida, enquanto retira o financiamento e negligencia todos os outros aspectos da infraestrutura cívica. À medida que os serviços públicos por todo o país são desmantelados, centenas de milhões de dólares são encontrados para pagar pela brutalidade policial e pelas ações judiciais em torno de assassinatos policiais. Só Chicago já gastou mais de US$ 800 milhões desde 2004 para liquidar ações judiciais por brutalidade policial e mortes injustas.

Se qualquer outra instituição pública incorresse nesse tipo de despesa, seu orçamento e seu serviço seriam reduzidos ou encerrados. Por exemplo, quando em 2012 o Conselho de Educação de Chicago alegou que estava com um déficit na casa dos bilhões de dólares, sua proposta de solução foi fechar 52 escolas públicas. Contudo, em meio as revelações sobre a tentativa da gestão de Rahm Emanuel de encobrir o papel da polícia no assassinato de Laquan McDonald, o prefeito recebeu a bênção do Conselho da Cidade de Chicago para abrir uma nova academia de polícia no valor de US$ 95 milhões.

Por mais corruptos, violentos ou racistas que sejam os policiais, seu orçamento nunca diminuirá. As autoridades eleitas e os ricos e poderosos, cujos interesses tantas vezes eles representam, sabem que à medida que as despesas públicas são cortadas e que os bons empregos com benefícios ficam cada vez mais fora de alcance, o abuso policial traz ordem à uma situação potencialmente insustentável. A dor e o sofrimento dos netos de Pamela Turner, da mãe de Laquan McDonald ou dos pais de Mike Brown Jr são danos colaterais nesta guerra para manter o status quo. É literalmente o preço para seguir com as coisas como estão.

Assim, cinco anos depois, grande parte da discussão institucional sobre a reforma da polícia permanece focada em “maçãs podres”, preconceitos implícitos e na melhoria do treinamento. Como resultado, a principal mudança política foi o uso generalizado de “câmeras corporais”. Desde 2014, as forças policiais por todos os EUA gastaram mais de US$ 192 milhões nesses dispositivos. Em Ferguson, onde o movimento encontrou seu coração e sua alma, agora existem mais policiais negros do que brancos. Nesse sentido, Ferguson finalmente alcançou o resto dos Estados Unidos. Enquanto isso, os negros são detidos 5% a mais e os brancos são detidos 11% a menos do que em 2013.

Reconhecer a teimosa persistência do abuso e da violência policial tem menos a ver com pessimismo do que com sobriedade. Não há solução simples e rápida para a brutalidade policial. A polícia é tão difícil de transformar porque a ordem política estabelecida precisa dela, especialmente quando decide que não tem mais nada a nos oferecer. Foram necessários cinco longos anos, repletos de mortalidade, para que as autoridades que administram o Departamento de Polícia de Nova York demitissem um policial que sufocou a vida de um homem que estava dizendo claramente: “Não consigo respirar”. Foram necessários cinco anos para que o Departamento de Justiça decidisse que não apresentaria acusações federais de direitos civis contra Pantaleo, como se seu estrangulamento ilegal, que tirou a vida de Garner, não fosse a definição da violação de direitos civis.

Mas qual é o valor em se proteger o “estado de direito” quando a própria lei prioriza aquilo que tem mais valor para a elite, enquanto ignora aquilo que tem mais valor para a maioria de nós? Em outras palavras, nem a lei e nem a aplicação da lei estão do nosso lado, e isso no fim das contas torna extremamente difícil o movimento pela reforma de ambos. Geralmente, obtemos o tipo de mudanças que desejamos quando somos capazes de pressionar e coagir a elite política, sua ordem estabelecida e suas leis, para fazê-los nos enxergar e nos escutar. E para fazer isso, são importantes a maneira como nos organizamos, o que pensamos, o que exigimos, o que imaginamos e pelo que mantemos nossa esperança.

Estes são valores-chave para qualquer movimento social. A democracia – onde vemos todas os nossos anseios, nossos fracassos e nossos esforços como conectados – significa tentar trazer a bordo o máximo de pessoas possível e descobrir como fazer isso funcionar. As vidas negras podem importar – mas isso vai exigir uma luta não apenas para mudar a polícia, mas para mudar o mundo que depende da polícia para gerenciar sua distribuição desigual dos bens essenciais à vida.

Sobre o autor

Keeanga-Yamahtta é uma colunista da Jacobin e professora assistente no Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Princeton. É autora de "From #BlackLivesMatter to Black Liberation".

Uma crise grave e sem saída à vista

Com tantas contradições, solução será mais dolorida

João Pedro Stédile


Marlene Bergamo/Folhapress

O Brasil vive uma crise profunda. A estagnação da economia, decorrente da dependência do capitalismo mundial, impôs uma grave crise social. Mais desemprego, perda de direitos, precarização e achatamento salarial. Essa situação resultou na atual crise política, em que o governo não representa os interesses da maioria do povo e da nação.

O grande capital quer se proteger da crise e implementa diversas medidas para salvar as grandes empresas e o capital financeiro. Apropriação de bens da natureza (petróleo, minérios, energia, água e biodiversidade) para obter uma renda extraordinária. Corte dos direitos trabalhistas para aumentar sua taxa de lucro. Privatização de 133 empresas que dão muito lucro. Transformação do direito à educação e à saúde em mercadoria. Subordinação ainda maior do nosso destino ao capital dos Estados Unidos.

Para levar adiante esse plano, somente com um governo de extrema-direita. Para elegê-lo, tiveram que prender arbitrária e injustamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), favorito na disputa.

Agora, vem à tona os crimes da dupla de Curitiba que usou o apoio da mídia à Operação Lava Jato para se locupletar com benefícios pessoais. E só conseguiram eleger o capitão com mentiras nas redes sociais, com apoio de robôs do exterior.

A situação do país está piorando, em todos os sentidos. Sem investimentos produtivos, a estagnação seguirá por muitos anos, segundo economistas de todas as correntes.

A concentração ainda maior da renda e da riqueza impede o aumento da demanda e do consumo. Apenas os seis maiores capitalistas do Brasil ganham mais do que a soma da renda de 120 milhões de brasileiros. Os bancos, por sua vez, nunca lucraram tanto.

A crise ambiental se aprofundou com as políticas de desmonte dos órgãos ambientais, os crimes dos madeireiros, a expansão do agronegócio e das mineradoras, especialmente na Amazônia.

Não há futuro com este governo e seu plano para tirar o grande capital da crise. A verdadeira saída é construir um programa de desenvolvimento baseado na reindustrialização, no controle dos bancos, no investimento na produção, na agricultura de alimentos e no mercado interno. As empresas públicas, como Petrobras, Eletrobras e Correios, devem ser defendidas para elevar os investimentos e sustentar um novo ciclo de crescimento, emprego e distribuição de renda.

Os militares que se diziam nacionalistas e defensores do povo estranhamente silenciam. Devem estar envergonhados do capitão que apoiaram. O Poder Judiciário, omisso ou conivente, deveria cumprir a Constituição Federal, agir imparcialmente e soltar Lula da prisão.

O povo precisa ir às ruas lutar por emprego, educação, saúde e em defesa da soberania nacional. Assim, será construída a unidade política de forças populares e setores empresariais que ainda queiram defender o país —e não apenas seus bolsos.

Ainda estamos longe de uma solução. A burguesia tem sido surda e burra. O governo é irresponsável e continua com maluquices. E o povo ainda não se mexeu.

No entanto, essas contradições vão se agravar. Quanto mais tempo demorar, mais dolorida será a solução.

Sobre o autor

Economista, coordenador do MST e da Frente Brasil Popular

27 de setembro de 2019

Ortodoxia com complexo de vira-lata

Temos fracassos, mas também sucessos em nossa história de investimento público

Nelson Barbosa


Teto de gastos: cerca de 80% das despesas do governo federal têm seu crescimento anual limitado pela inflação. Pedro Ladeira/Folhapress

O debate sobre aumentar ou não investimento público atiçou a ortodoxia com complexo de vira-lata em nosso debate econômico.

Como os leitores sabem, sou favorável à flexibilização do teto de gasto para recuperar investimento público neste momento, mesmo com emissão de dívida, mas alguns analistas apontaram quatro pontos que merecem reflexão.

Primeiro: ao manter o teto de gasto haverá nova contração fiscal em 2020, que por sua vez derrubará ainda mais a Selic e isso elevará o gasto privado. Assim, seria melhor concentrar todas as medidas expansionistas do lado monetário.

Resposta: todos economistas aprendem que, diante da incerteza, é melhor diversificar em vez de concentrar todas as apostas em um só ativo ou política econômica.

Sim, Selic menor aumenta a atividade econômica (com defasagens), mas no atual contexto de produto abaixo do potencial e inflação abaixo da meta, estímulo complementar focado no investimento ajudará na recuperação mais rápida do emprego, com efeito positivo sobre a produtividade mais à frente.

Segundo: quando a economia opera no seu potencial, o produto está limitado pelo lado da oferta e, portanto, qualquer estímulo fiscal simplesmente diminuirá o gasto privado real (crowding out), sem elevar renda ou emprego.

Resposta: não estamos em pleno emprego e, portanto, a lógica acima não se justifica mesmo dentro da visão ortodoxa. Apesar disso alguns colegas insistem no erro, retrucando que não estamos em recessão, mas isso revela desconhecimento do tema.

Para calcular o impacto da política fiscal sobre a renda, o que interessa é se a economia está abaixo ou não do seu potencial, não se a economia está crescendo. Um país pode ter crescimento e, ainda assim, muitos recursos ociosos, como acontece hoje no Brasil.

Terceiro, o “vira-latismo”: não devemos aumentar o investimento público porque brasileiro não sabe fazer isso. Apesar de parecer ofensiva, essa crítica é válida, pois temos longo histórico de desperdícios pelo Estado.

Resposta: sim, temos fracassos, mas também sucessos em nossa história de investimento público.

Devemos aprender com os dois e discutir como investir melhor em vez de desistir de investir. Mais importante, como hoje a despesa de capital do governo é insuficiente para manter a infraestrutura existente, não é difícil identificar projetos que merecem recursos.

Permanece o desafio do tamanho inicial da dívida pública, mas deixo esse quarto ponto para outra coluna, porque antes preciso tratar de um debate recente na “casa das economistas”.

Há quase duas semanas, Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica) e outros dois autores publicaram um texto defendendo que o governo deveria cortar gastos. Em contraponto, Esther Dweck (ex-secretária do Orçamento Federal) e outros quatro autores publicaram artigo com visão alternativa.

O segundo texto continha um erro contábil: confundir critério de dívida bruta (emissão líquida) com critério de dívida líquida (resultado primário). O erro foi corrigido na versão online do artigo, mas gerou um Erramos por parte da Folha.

Diante desse fato, como escreveu Laura Carvalho ontem, cabe apontar que o artigo de Lisboa também tinha um erro, só que matemático: confundir velocidade com aceleração, ao dizer que houve “crescimento acelerado dos gastos obrigatórios” nos últimos anos.

Os dados do Tesouro mostram o contrário: sim, houve crescimento real, mas com desaceleração em 2011-14, e novamente em 2015-18. Por isonomia, sugiro que a Folha também publique um Erramos sobre tal equívoco.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O fim do antifascismo

O Parlamento Europeu condenou o comunismo como equivalente ao nazismo. Com base numa leitura fantasiosa da história, essa moção criminaliza o “radicalismo” como se fosse “totalitarismo” — e desvaloriza a superioridade moral daqueles que lutaram contra o fascismo.

David Broder

Jacobin

A statue of Lenin and other monuments at Memento Park in Budapest. (Szoborpark / Wikimedia Commons)

Tradução / Em maio de 1945, enquanto a fumaça ainda pairava sobre as ruínas do império de Adolf Hitler, o instituto de pesquisa de opinião francês IFOP perguntou aos cidadãos que país eles acreditavam ter contribuído mais para a derrota da Alemanha nazista. 57% dos entrevistados consideram a União Soviética o ator decisivo, em comparação com 20% para os Estados Unidos e 12% para a Grã-Bretanha. No entanto, quando o instituto realizou a mesma pesquisa em 1994, após o colapso da URSS, verificou que as percepções haviam mudado radicalmente. Cinco décadas depois, apenas 25% acreditavam que a URSS havia contribuído mais para a causa aliada, em comparação com 49% para os Estados Unidos e 16% para a Grã-Bretanha.

A memória histórica pode ser bastante inconstante. Isso não acontece apenas porque a história se afasta à medida que a imagem do passado enfraquece. Na verdade, a memória histórica é algo que muda através de um processo ativo no qual cada geração reinterpreta o mundo transmitido a ela. Nesse caso, é fácil ver como as mudanças na visão ocidental dominante da URSS após 1945 — a Guerra Fria, o repúdio de Stalin por Nikita Khrushchev, as revoltas no bloco oriental e seu colapso final — abalaram o prestígio que esse estado havia desfrutado no final da Segunda Guerra Mundial, tendo sido o ator principal nessa causa nobre.

Mais do que simples mudanças, a memória histórica é remodelada ativamente pelas representações da cultura popular, bem como pelas forças políticas ativas. É assim que devemos entender a aprovação, em 18 de setembro, de uma resolução do Parlamento Europeu “sobre a importância da memória europeia para o futuro da Europa”. Apoiada pelo S&D (centro esquerdo), Renovar a Europa (liberal), Partido Popular Europeu (Democrata-Cristão) e Reformistas e Conservadores Europeus (conservador), a resolução é apresentada como uma condenação a todos os tipos de “totalitarismo”, tomando o Pacto Molotov–Ribbentrop de agosto de 1939 como o ponto de partida de cinco décadas de uma opressão encerrada pelo projeto europeu e pela OTAN.

Há uma história bastante duvidosa aqui. O pacto foi, de fato, o gatilho imediato da invasão da Força de Defesa Alemã na Polônia — provocando a declaração de guerra franco-britânica contra a Alemanha nazista. Ele também incluía cláusulas secretas nas quais Berlim e Moscou dividiam zonas de domínio na Europa Oriental, que duraram até a invasão alemã da URSS em junho de 1941. Do lado de Stalin, essa não era apenas uma “margem de manobra” para construir as defesas soviéticas, mas um ato característico de extremo cinismo em relação às populações da Europa Oriental; isso também foi um choque para os comunistas de toda a Europa, induzidos nos anos anteriores por uma oposição militante ao hitlerismo.

No entanto, ainda podemos duvidar que o pacto “tenha causado a eclosão da Segunda Guerra Mundial” ou que a guerra não tenha passado de uma divisão nazista-soviética da Europa. E o fato de Hitler ter planejado a guerra ainda na década de 1920, ou a realidade — brevemente comprovado por eventos não mencionados na resolução — de que a URSS era a maior vítima de sua política de guerra (27 milhões de mortos) assim como o principal ator no combate ao nazismo? E os eventos da década de 1930, em que os conservadores britânicos e franceses “apaziguaram” o líder nazista — deixando que ele infringisse a proibição do Tratado de Versalhes ao rearmamento alemão, entregando-lhe “concessões” territoriais na Europa central e fechando os olhos para sua intervenção armada na Espanha — enquanto recusavam a aliança antinazista proposta por Stalin?

Anticomunismo sem comunismo

Esses argumentos históricos são bem conhecidos. Mas mais importante para nossos propósitos é a pergunta invocada no título da resolução — ou seja, o que essa versão específica da história diz sobre o “futuro da Europa”. Essa é, afinal, uma radicalização do anticomunismo convencional. Como Primo Levi disse uma vez, nem Alexander Solzhenitsyn descreveu algo similar a Treblinka ou Chelmno — mas essa resolução apresenta o “comunismo” como claramente genocida. Com base no anticomunismo húngaro e polonês, bem como na “filosofia antitotalitária”, a resolução do Parlamento Europeu condena não apenas atrocidades stalinistas, mas toda a experiência do socialismo estatal — e até mesmo os comunistas que se opunham a Stalin — como equivalentes aos nazistas e seus campos de extermínio.

Isso, pelo menos, serve ao propósito de retratar até o mais severo nacionalismo polonês ou húngaro em termos de vitimização e redenção. Parece que os nazistas já foram condenados o suficiente, mas não os comunistas. De acordo o Partido polonês Lei e Justiça (PiS), “os judeus foram compensados pelos eventos da Segunda Guerra Mundial, os poloneses nunca” (uma posição que nitidamente descarta a “polonidade” dos judeus assassinados). No entanto, a resolução também retrata o comunismo como um câncer que compromete a democracia europeia, mesmo em países onde quase não existem forças comunistas reais. Como nos Estados Unidos Macarthista, o “anticomunismo” ataca muito mais do que apenas comunistas.

Isso é particularmente notável na Polônia, onde o pedido contínuo da PiS pelo expurgo de “comunistas” serve como elo de um nacionalismo ressentido. Enquanto na revolução anticomunista de 1989, o líder Jarosław Kaczyński se apresentava como um democrata-cristão centrista, ele é hoje uma figura de extrema-direita que trava a batalha “anticomunista”, mesmo contra forças distantes da esquerda política. A chamada campanha de “lustração” (ou “descomunização”) alega que os ex-comunistas nunca foram expurgados adequadamente — e quando o Tribunal Polonês derrubou as medidas de “lustração” do PiS como inconstitucionais e antidemocráticas, seus juízes foram retratados como meros patetas comunistas.

Podemos identificar desenvolvimentos semelhantes na Hungria, onde o líder de extrema direita Viktor Orbán (que em 1989 era um liberal) está travando uma guerra contra o “comunismo” década adentro. Em 2011, ele introduziu uma nova constituição centrada no espírito arcaico da “Santa Coroa da Hungria”, nos valores familiares e no cristianismo, ao mesmo tempo que retirava a palavra “república” do nome do país. Assim, ele substituiu até a constituição de 1990, alegando que ela preservava uma estrutura “comunista”, dada suas notas republicanas e seculares. Na Hungria, todos os símbolos comunistas (incluindo a estrela vermelha, o martelo e a foice) são proibidos; a luta contra o “comunismo” é rotineiramente usada para deslegitimar qualquer oposição.

Isso corresponde ao que Richard Seymour denominou “anticomunismo sem comunismo” — a prática pela qual líderes como o brasileiro Jair Bolsanaro e o italiano Matteo Salvini (e antes dele, Silvio Berlusconi) travam uma guerra cultural contra o “comunismo”, mesmo onde a esquerda já deixou de existir ou se converteu em posições centristas e neoliberais. Na ausência de comunistas reais, a extrema direita os substitui por algum outro “demônio” (especialmente minorias raciais) ou simplesmente apresenta valores democrático-republicanos como inimigos da “cultura nacional” e do “senso comum”. A luta contra o “marxismo cultural” desempenha um papel semelhante no discurso alt-right americano.

Esta versão do anticomunismo também é impulsionada pela resolução do Parlamento Europeu e sua maneira específica de invocar a ameaça “stalinista”. Na ausência de formações políticas comunistas de massa, até mesmo onde elas já governaram, esse histórico é armado contra outro grande bicho-papão — a Rússia — que é acusada de “distorcer fatos históricos e encobrir crimes cometidos pelo regime totalitário soviético” como parte de sua “guerra de informação contra a Europa democrática com o objetivo de dividir a Europa”. Trocando alhos por bugalhos, os memoriais de guerra soviéticos erguidos após 1945 são retratados como veículos da “ideologia totalitária” que a Rússia aparentemente estaria nos empurrando até hoje.

Por esse motivo, a resolução representa uma estranha combinação de interesses entre os centristas liberais do Ocidente e as forças nacionalistas dos países do Grupo de Visegrado, para quem o grande inimigo é a “Rússia”, em uma Guerra Fria renovada. Para quem enxerga uma mão russa na vitória de Trump, no Brexit, ou nos ataques ao príncipe Andrew, parece mais heróico pensar em si próprio como um cavaleiro contra o “totalitarismo”. No entanto, essa obsessão antirussa também leva a um apagamento sem precedentes do antifascismo, mesmo por partidos como o Democrata italiano (um partido em grande parte descendente do Partido Comunista Italiano) e o Partido Trabalhista do Reino Unido, tendo ambos votado a favor da resolução do Parlamento Europeu.

A história da Segunda Guerra Mundial não é uma jogada de moralidade. Winston Churchill foi um grande oponente de Hitler na defesa do Império Britânico; uma figura venerada da resistência alemã, tal qual Claus von Stauffenberg, apoiou o uso do trabalho escravo polonês e a defesa das conquistas territoriais de Hitler. Quem estiver suficientemente motivado pode com toda a certeza encontrar casos de assassinatos injustos cometidos por combatentes da resistência comunista; também houve crimes não mencionados nesta resolução, como os estupros em massa cometidos pelas tropas do Exército Vermelho (e ocidentais, em menor grau).

Esses fatos merecem uma investigação histórica adequada, como de fato receberam. Mas eles não causam a relativização da história de ideologias que promovem abertamente a guerra racial, a conquista e a subjugação ou escravização de mulheres e minorias. No entanto, a comparação do comunismo ou mesmo de “ideologias radicais” em geral ao nazismo feita pelo Parlamento Europeu, faz exatamente isso. Ninguém compararia o Holocausto às condições sob o regime socialista do pós-guerra na Polônia como tentativa de fazê-lo parecer terrível — a acusação polêmica está inevitavelmente focada na direção oposta, na alegação de que os comunistas “não eram melhores” que os nazistas.

Demonizando a esquerda

Além do analfabetismo histórico, a resolução do Parlamento Europeu também é motivada por um objetivo bem diferente: determinar quem são os legítimos combatentes da liberdade. A julgar pelos promotores da resolução, parece que essa categoria se estende de Emmanuel Macron a Viktor Orbán, mas não aos oponentes de esquerda do neoliberalismo e da OTAN. A esse respeito, é notável a referência explícita à OTAN como o alicerce da “liberdade” e da “família europeia”, juntamente com as “reformas e o desenvolvimento socioeconômico, com a assistência da UE” realizada nos países da Europa Central e Oriental. Aqui, não apenas o projeto europeu em geral, mas a OTAN e a reestruturação neoliberal são retratadas como a barreira ao totalitarismo.

Após 1945, muitos países democráticos proibiram o ressurgimento de partidos fascistas ou nazistas — o expurgo do antigo pessoal desses regimes ocorreu em maior ou menor grau dependendo país. Após o colapso do bloco oriental, esse processo foi imitado em muitos países do centro-leste da Europa, que por sua vez baniram os partidos comunistas. No entanto, se hoje a ameaça “stalinista” é puramente imaginária, Salvini, Orbán e Kaczyński estão usando o “antitotalitarismo” para condenar a esquerda, negando serem fascistas.

Em um convincente artigo sobre a “herança do totalitarismo”, Owen Hatherley evoca o Szoborpark em Budapeste, um “cemitério” de monumentos ao stalinismo húngaro. Lá estão as botas da estátua de Stalin, derrubada pela revolução de 1956, mas também os memoriais de guerra soviéticos e até mesmo o tributo às Brigadas Internacionais, social-democratas e comunistas que foram combater o fascismo na Espanha — agora condenados como tantos totalitários. Em 1989, Orbán elogiou Imre Nagy, o líder comunista executado em 1958 por ter enfrentado a União Soviética — em 2018,sua estátua foi demolida como apenas mais um monumento ao totalitarismo. Se o comunismo realmente fosse equivalente ao nazismo, teria sido como queimar cópias da Lista de Schindler.

É por isso que se opor à resolução do Parlamento Europeu sobre o “totalitarismo” não nada tem a ver com a defesa de Stalin, com a negação de crimes como o massacre de Katyn ou com a alegação de que o Pacto Molotov-Ribbentrop era apenas um acordo de paz. Trata-se de se opor à reformulação impensada da história para os mais rasos fins políticos, nos quais o Holocausto nazista é relativizado simplesmente para fazer a Rússia parecer má. Os liberais geralmente gostam de afirmar que estão defendendo “os fatos” contra as alegações de figuras como Orbán e Salvini, que estão tentando debilitar nossa democracia. Se eles [os liberais] realmente estiverem tão comprometidos com essa causa, podem começar recusando a visão de extrema direita da história.

Sobre o autor

David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

Esquema de detenção em massa de muçulmanos de Modi

A agenda de extrema-direita de Narendra Modi está avançando sem uma oposição significativa. Seu último ataque foi contra 1,9 milhão imigrantes, com a intenção de desalojar muçulmanos bengalis do nordeste do país.

Serene Kasim e Saurav Sarkar


O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, discursa na Assembléia Geral das Nações Unidas na sede da ONU em 27 de setembro de 2019 na cidade de Nova York. (Drew Angerer / Getty Images)

Tradução / Em 31 de agosto de 2019, o governo indiano hindu de extrema-direita classificou 1,9 milhão de seus residentes como apátridas.

O objetivo oficial dado pelo governo era erradicar pessoas sem documentos. Mas é sabido que a verdadeira motivação era deslocar os muçulmanos bengalis do Estado indiano de Assam, no nordeste da Índia. Isso ficou óbvio nos discursos e promessas feitas antes das eleições realizadas ano passado que levaram o governo do BJP (Partido Bharatiya Janata) de volta ao poder para um segundo mandato consecutivo.

Um ato nocivo por si só e é provável que as implicações sejam ainda mais graves para o futuro da sociedade indiana, promovendo um projeto de isolamento e punição aos muçulmanos, ao mesmo tempo em que aumenta as detenções de imigrantes irregulares, sobretudo muçulmanos.

Violência administrativa

O instrumento que retira direitos de 1,9 milhão de pessoas é o Registro Nacional de Cidadãos (NRC), uma instituição criada em 1951 para identificar quem pertencia à Índia na época. Foi resgatada em 2014 e retomou sua função em Assam este ano.

1,9 milhão de pessoas representam 6% da população total de Assam e é duas vezes o número de refugiados rohingya do vizinho Bangladesh.

O propósito da recriação atual do NRC era identificar imigrantes irregulares vindos de Bangladesh, de maioria muçulmana. Mas seu alcance vai muito além.

O novo NRC forçou todos os residentes de Assam a enviar documentos como passaportes, registros de terra ou certidões de nascimento para mostrar que estavam no país legalmente ou eram descendentes de pessoas que estavam no país antes da meia-noite de 24 de março de 1971, quando Bangladesh entrou em guerra pela independência do Paquistão, com o eventual apoio armado da Índia.

Dada a escassez de documentação em papel na Índia e a natureza complicada de suas máquinas burocráticas, um número surpreendentemente grande de pessoas foi afetado negativamente. Cerca de 1,9 milhão de pessoas, incluindo algumas com 65 anos, agora são legalmente forçadas a ir aos tribunais para provar que o único país em que já viveram não deve detê-las.

Na ausência de um tratado de repatriamento com Bangladesh, não está claro o que acabará por acontecer com aqueles que estão detidos por serem imigrantes irregulares de Bangladesh; atualmente não há via legal para deportação.

Simultaneamente, o governo ordenou que os Estados construíssem centros de detenção em todo o país, em lugares tão distantes quanto Assam, no nordeste, Karnataka, no sul, e Maharashtra, no oeste (todos os Estados que possuem governos do BJP, aliás). A tendência é reunir migrantes irregulares de Bangladesh em todo o país.

Uma chave na maquinaria

Como esse esforço kafkiano foi supervisionado pela Suprema Corte, o projeto manteve um nível de integridade estatística, identificando mais hindus do que muçulmanos a serem despojados de seus direitos.

Em 9 de setembro, ficou claro que a grande maioria dos irregulares do NRC eram hindus bengalis, que formam a base tradicional de eleitores do BJP em Assam e compartilham a mesma visão de uma nação hindu.

O ministro do Interior, Amit Shah, anunciou que o governo reintroduziria uma emenda na lei, permitindo o status de requerente de asilo apenas para os não-muçulmanos excluídos do NRC.

Assim, a verdadeira agenda do BJP por trás do projeto foi novamente revelada; nunca se tratou de identificar pessoas irregulares. Os alvos são os 200 milhões de muçulmanos que vivem na Índia.

Raízes nativistas e nacionalistas

As raízes do NRC moderno estão nos dois projetos do nativismo e do nacionalismo hindu na Índia. O pequeno Estado do nordeste de Assam tem sido um centro de oposição há mais de quarenta anos. O movimento de Assam de 1979 a 1985 começou como um esforço para excluir os não-assameses do Estado. Em 1985, o governo central liderado pelo Congresso assinou o Acordo de Assam com grupos de estudantes e o governo estadual comprometendo-se com a expulsão de supostos estrangeiros.

É importante observar que o movimento estudantil de Assam não se concentrou, inicialmente, em imigrantes irregulares de Bangladesh, mas naqueles provenientes de outras partes da Índia. No entanto, a organização paramilitar de direita hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), que forma a base social do BJP, ajudou a mudar o foco do movimento liderado pelos estudantes não-assameses para os imigrantes irregulares de Bangladesh.

Como resultado, um movimento que começou como um esforço para preservar a identidade cultural do Estado do nordeste dos estrangeiros – por mais bizarro que soe um empreendimento desse – se transformou em algo muito mais nocivo sob os auspícios do RSS: um projeto para definir os muçulmanos bengalis como “infiltrados”, uma quinta coluna de muçulmanos que tentavam minar a concepção da Índia pela direita hindu.

O projeto da direita hindu em Assam é parte de um esforço mais amplo: o desejo de colocar dúvidas sobre a lealdade dos muçulmanos indianos (eles também direcionam sua animosidade contra os cristãos). O BJP, o RSS e suas organizações de direitos hindus – conhecidas coletivamente como Sangh Parivar – buscam restringir seus direitos o máximo possível e transformar a Índia em uma democracia herrenvolk.

Como o Amit Shahm, que é presidente do Partido Bharatiya Janata, raivosamente xenófobo colocou recentemente, os supostos imigrantes muçulmanos de Bangladesh são “cupins” para eles. “Todo infiltrado”, disse ele, “será expulso”.

O verdadeiro impacto do NRC ainda não foi sentido ainda. O BJP pretende expandir o NRC para âmbito nacional. A implementação do programa em Assam foi acompanhada de instruções do governo central aos Estados para começar a construir centros de detenção como parte de uma campanha nacional para arrancar imigrantes irregulares do país. Sabe-se que pelo menos dois centros de detenção estão em obras, além de quase uma dúzia em Assam, incluindo um enorme complexo, e muitos mais serão provavelmente construídos.

Contexto político

Com uma segunda vitória eleitoral consecutiva, os nacionalistas hindus estão empoderados na Índia. Eles sentem uma abertura para o estabelecimento de alguns de seus pesadelos mais queridos. Não apenas os muçulmanos residentes de Assam estão na mira, mas a Índia está tirando a Caxemira da maioria muçulmana do Estado e de seu status autônomo especial, deixando-o totalmente expostos, com uma escalada surpreendente em relatos de violações de direitos humanos pelo Exército indiano.

Nas escolas, o BJP está engajado na tradição política indiana de reescrever livros didáticos, desta vez com a agenda nociva do Hindutva.

Isso agora estendeu-se aos currículos nas universidades. O ataque às universidades como espaços de debate aberto também aumentou com a recente vitória eleitoral. A ala estudantil da direita hindu, o Akhil Bharatiya Vidyarthi Parishad (ABVP), está lentamente conquistando o controle do movimento estudantil.

No nível popular, as multidões estão atacando impunemente muçulmanos e dalits, os mais baixos da hierarquia de castas. Em alguns casos, as vítimas são forçadas a recitar slogans do Hindutva ou estão sendo linchadas e, na maioria dos casos, os agressores não são acusados. Em um caso particularmente hediondo, eles foram celebrados por um ministro do governo.

Dadas as raízes relativamente profundas que a tradição secular tem entre os setores da população, pode-se esperar a articulação de uma “resistência”, se não uma força política organizada e eficaz, que lute contra o domínio de Hindutva.

Se você consegue imaginar Donald Trump instituindo sua agenda sem a oposição dos socialistas democratas (DSA) para combatê-lo, ou a presença de uma forte esquerda social-democrata para se opor, você consegue entender o que está acontecendo hoje na Índia.

O partido da oposição no Congresso, há muito tempo uma relíquia dinástica que não tem um foco político, mostra pouca inclinação para enfrentar a agenda de Hindutva. Embora se opusesse ao NRC em Assam, ele o apoiou no Estado central de Haryana. O funcionário do Congresso e o ex-ministro-chefe do Estado, B. S. Hooda, disseram que “os estrangeiros precisam sair, é responsabilidade do governo identificá-los”.

Enquanto isso, a maioria da esquerda na Índia, liderada pelo Partido Comunista da Índia (marxista), está completamente desorganizada, tendo perdido uma de suas principais bases de poder, em Bengala Ocidental, na última eleição. Em seu lugar, ascendeu o BJP naquela região pela primeira vez na memória moderna.

O que resta são algumas lideranças locais, como a ministra-chefe de Bengala Ocidental, Mamata Banerjee, que admiravelmente se levantou e venceu a implementação do NRC no seu Estado (por enquanto), mas que também é vista como um oportunista.

Aqueles na Índia que se opõem à agenda da direita estão horrorizados com o que está acontecendo em seu país. Mesmo com a oposição organizada, algo raramente visto em escala nacional, pode ser tarde demais para mobilizar uma resistência consistente para impedir Modi e seus capangas.

Sobre os autores

Serene Kasim é um comunicadora de Bangalore.

Saurav Sarkar é editor assistente do Labor Notes.

26 de setembro de 2019

Diversionismo

Há soluções que conciliam equilíbrio fiscal, crescimento e redução de desigualdades

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Teto de gastos: cerca de 80% das despesas do governo federal têm seu crescimento anual limitado pela inflação. Pedro Ladeira/Folhapress

O artigo “Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?”, publicado nesta Folha em 14/9 por Esther Dweck, Fernando Lara, Guilherme Mello e Pedro Rossi, interpretou de forma equivocada os dados disponibilizados pelo Banco Central quando argumentou que os déficits primários registrados de 2015 a 2018, por exemplo, teriam respondido por apenas 0,5 ponto percentual (p.p.) do PIB/ano para o aumento da dívida bruta do governo.

Na verdade essa contribuição alcançaria 1,9 p.p.

Nem mesmo a alteração significativa desses números invalidou os argumentos centrais do artigo, como pode ser verificado na versão já corrigida do site da Folha. Mas o erro tem de ser lamentado por ensejar uma enxurrada de reações virulentas nas redes sociais e veículos de mídia de quem parece querer jogar areia sobre:


  1. a falta de evidência empírica para a tese de que o crescimento desenfreado de despesas causou a crise econômica.
  2. as sucessivas frustrações nas projeções de crescimento dos que defendiam que a agenda implementada no país nos últimos quatro anos traria de volta a confiança dos investidores.
  3. a percepção crescente entre economistas e sociedade civil de que o corte de gastos sociais pode agravar nosso grave quadro de estagnação concentradora de renda.

Quanto ao primeiro ponto, cabe sempre lembrar que um erro não invalida o outro.

Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano em “Por que o governo deve cortar gastos para o Brasil crescer”, publicado também nesta Folha em 8/9, com o qual os autores buscavam debater, afirmam por duas vezes que as dificuldades orçamentárias no país derivam de um “crescimento acelerado de gastos obrigatórios”. Ora, os autores certamente sabem que o termo “aceleração” se refere à segunda derivada da variável, ou seja, só se aplicaria nesse caso a uma situação em que as despesas obrigatórias crescem a um ritmo cada vez maior.

Pois bem. De acordo com a Tabela 1.1 - A da Secretaria do Tesouro Nacional, as despesas obrigatórias do governo central —benefícios previdenciários, despesas com pessoal e encargos sociais, e outras—  cresceram em média, em termos reais, 6,6% ao ano entre 1998 e 2002; 7,4% ao ano entre 2006 e 2010; 4,9% ao ano entre 2011 e 2014, e apenas 2,1% ao ano entre 2015 e 2018.

Ou seja, de fato essas despesas cresceram um pouco mais rápido entre 2003 e 2010 —período em que o Brasil acumulou superávits primários graças ao crescimento também acelerado das receitas—, do que no segundo governo FHC.

Só que o primeiro ano de déficit primário em 2014 veio justamente após um período de desaceleração no crescimento dessas despesas. Em nenhum dos anos do período 2011-2014, a taxa foi superior à média do período 2003-2010.

Em vez de exigir outro Erramos, interessa mais à sociedade trazer o debate para o terreno das soluções que sejam capazes de conciliar equilíbrio fiscal, crescimento econômico e redução de desigualdades.

Abrir espaço para investimentos sociais por meio de medidas que eliminem subsídios e as famigeradas desonerações é um excelente ponto de partida. As propostas recentes de Arminio Fraga, por exemplo, vão nessa direção.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

25 de setembro de 2019

O reino eremita de Bolsonaro

A reação internacional ao discurso vergonhoso de Jair Bolsonaro na ONU mostra quão reduzido está a posição do Brasil no exterior sob o presidente de extrema direita. Com poucos amigos lá fora, será mais fácil para os adversários derrotá-lo no Brasil.

Andre Pagliarini

Jacobin

Jair Bolsonaro esperando para falar na 74ª sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 24 de setembro de 2019, em Nova York. Johannes Eisele / AFP / Getty Images

Tradução / Todo mês de setembro, por tradição, o Brasil tem a primeira palavra na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York. Isso ocorre porque, como Desmond Parker, chefe de protocolo das Nações Unidas, explicou em 2010, "muito cedo, quando ninguém queria falar primeiro, o Brasil sempre ofereceu-se para discursar primeiro. E assim conquistaram o direito de falar primeiro na Assembleia Geral". Essa prática, em vigor desde 1955, nem sempre faz sentido intuitivo. Com uma influência internacional flutuante ao longo dos anos, pode parecer mais ou menos surpreendente ver o chefe de estado brasileiro no palco antes, por exemplo, do Secretário-Geral ou do presidente dos Estados Unidos. (Como líder do país anfitrião, o presidente dos EUA fala em segundo).

Este ano, no entanto, parecia inteiramente apropriado que Jair Bolsonaro falasse primeiro. Com uma estratégia de governo que depende de provocações pueris contra seus adversários para galvanizar sua base raivosa de apoio on-line, Bolsonaro personifica a ferocidade vazia que define o debate político em 2019. Ele também está no centro de uma tempestade de condenação global há várias semanas. Como um aluno malcriado chamada para o escritório do diretor, Bolsonaro estava devendo muita explicação perante a comunidade internacional.

Nos últimos meses, como é sabido, incêndios na floresta amazônica, quase dois terços do qual se encontra em território brasileiro, provocaram indignação maciça contra o governo Bolsonaro. Ha muitos anos, Bolsonaro vem lamentando as rigorosas proteções ambientais brasileiras e as demarcações de terras indígenas. O fato do desmatamento disparar drasticamente durante seus primeiros meses no cargo não surpreendeu ninguém. Como observam Tyler James Olsen e Brian Dorman, “a maioria desses incêndios são iniciados por pequenos agricultores ou fazendeiros quando preparam áreas da floresta virgem para pasto ou quando limpam porções já desmatadas para uso contínuo, empregando técnicas agrícolas de queimada.” Leis ambientais robustas só valem se saírem do papel. O atual governo não aparenta ter interesse algum em aplicar as devidas proteções. Líderes internacionais, jornalistas, ativistas, e pessoas comuns de todo o mundo se perguntaram por que o presidente do Brasil não estava fazendo mais para apagar as chamas.

Eventualmente, observadores internacionais chegaram à conclusão de que Bolsonaro ou não queria ou não era tecnicamente incapaz de fazer qualquer coisa produtiva. Como escrevi em agosto, “embora o governo Bolsonaro tenha sido uma emergência para brasileiros comuns desde seu início, os incêndios na Amazônia finalmente provocaram a intensa condenação mundial que Bolsonaro merecia há muito tempo. Em resposta, Bolsonaro tem manifestado um nacionalismo prejudicado, descartando críticas como sabotagem ‘colonialista’.”

Essa linguagem defensiva prefigurou o discurso de Bolsonaro na Assembléia Geral, na qual ele alegou representar um “um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo”. De fato, o socialismo, essa ameaça perene do miasma direitista, supostamente empurrou o país para uma “situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.

Lembrando a ameaça comunista de outrora, no início de seu discurso, Bolsonaro invocou a Revolução Cubana, ressaltando que “já nos anos 60, agentes cubanos foram enviados a diversos países para colaborar com a implementação de ditaduras. Há poucas décadas tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados!” Enquanto Bolsonaro falava, a câmera de televisão focava diretamente na delegação cubana. Os representantes da ilha nem se quer olhavam para o presidente brasileiro, focando nas suas anotações. Eles, é claro, ouviram tais discursos antes.

Não havia nada original no resto do discurso. Avaliando a situação na Venezuela, Bolsonaro observou que “o socialismo está dando certo na Venezuela! Todos estão pobres e sem liberdade!” O discurso, aparentemente escrito em grande parte pelo ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, também contou com uma dose pungente de teoria da conspiração, invocando a noção absurda de que o Foro de São Paulo, a conferência transnacional de partidos políticos latino-americanos de esquerda e centro-esquerda, apresenta um perigo existencial a ser enfrentado agressivamente, para que todo o continente não vire a Venezuela de Nicolas Maduro ou o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva (como se não houvessem diferenças profundas entre esses exemplos). No que se refere à questão indígena, Bolsonaro achou necessário declarar o que é óbvio para todos, exceto, talvez, os membros do seu governo: “nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós”.

Tentando negar o consenso entre os indígenas brasileiros de que Bolsonaro é uma ameaça sem precedente aos seus interesses, o presidente afirmou que “a visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o Cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia. Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.

Como talvez fosse óbvio para todos na plateia, o fato do Bolsonaro não conseguir apresentar nenhum líder indígena para fornecer apoio simbólico ao seu governo expõe a fragilidade do argumento de que nem todos os indígenas brasileiros criticam seu governo. Sobre esse assunto e outros, Bolsonaro esperava que seu público ignorasse todas as notícias avassaladoras que ouviram e leram sobre seu país desde janeiro. Tudo está ótimo, ele insistia raivosamente, demonstrando zero interesse em dialogar de fato com a comunidade internacional. Pelo contrário: ele quer que observadores estrangeiros preocupados com a situação brasileira deixam de intrometer.

O discurso de Bolsonaro ilustra a falência intelectual da direita brasileira hoje, uma aglomeração social que respondeu a quase uma década e meia de governos petistas com um profundo, e até agora inabalável, saudosismo pela clareza simplória da Guerra Fria. Ao atacar de forma dramática os espectros do socialismo, globalismo e perseguição religiosa, Bolsonaro também tentou se inserir dentro de uma constelação de líderes de extrema direita ao redor do mundo.

Mas, ao contrário de Donald Trump, cujas palhaçadas de mau gosto são sinais claros de cinismo e desprezo por até mesmo seus apoiadores, Bolsonaro parece realmente acreditar que ele vive em um momento histórico diferente, no qual chefes de governo do terceiro mundo podiam confiar que uma atitude ferrenha contra a esquerda iria angariar apoio unânime no exterior. Mas como a cobertura global do discurso de Bolsonaro deixou claro, o presidente brasileiro é hoje um pária internacional que incendiou a boa vontade internacional em relação ao Brasil, construída durante os governos basicamente bem-sucedidos do PT.

Dado que Bolsonaro na Assembleia Geral soava como um ditador militar de meio século atrás, talvez valha a pena refletir sobre um discurso icônico proferido no mesmo local no auge da Guerra Fria. Discursando na ONU em 1964, Ernesto “Che” Guevara, representando o governo revolucionário cubano, destacou que “os povos da África se veem obrigados a suportar que neste continente se oficialize a superioridade de uma raça sobre a outra, que se assassine impunemente em nome desta superioridade racial. As Nações Unidas não farão nada para impedir isto?”

Ele também criticou diretamente a hipocrisia das autoridades norte-americanas em relação aos direitos civis no Estados Unidos e no exterior: “Os EUA intervêm na América invocando a defesa de suas instituições livres. Chegará o dia em que esta Assembleia adquirirá ainda mais amadurecimento e demandará ao governo norte-americano garantias para a vida da população negra e latino-americana que vive neste país, norte-americanos de origem ou adotivos, a maioria deles.” Finalmente, Che denunciou a inação da ONU, afirmando que “o imperialismo quer converter esta reunião em um vago torneio oratório em vez de resolver os graves problemas do mundo; nós devemos impedir isto.”

O famoso discurso do argentino revolucionário nos mostra que, mesmo diante da extrema polarização ideológica da Guerra Fria, era possível que líderes sérios combinassem uma defesa clara de sua visão de mundo com prescrições políticas concretas. Bolsonaro falha neste quesito de forma retumbante. Sua insistência em atacar moinhos de vento deixa clara a renúncia de seu governo de fazer um papel sério em assuntos internacionais. Fica claro seu compromisso com a insensatez. Sob seu governo, o Brasil se tornou um reino eremita ideológico, inflexível em sua falta de seriedade.

O trabalho de solidariedade internacional nesse momento deve envolver a elevação e capacitação de vozes dissidentes no Brasil, um projeto que pode ser reforçado pelo isolamento progressivo do próprio Bolsonaro. É impressionante, com menos de um ano de mandato, a falta de amizades do presidente no plano internacional. Sem contar Trump, são raríssimos os líderes estrangeiros que falam algo positivo sobre Bolsonaro ou que querem ser vistos com ele. O isolamento do Bolsonaro é ainda mais pronunciada em comparação com uma década atrás, quando Lula era uma verdadeira celebridade internacional a quem Barack Obama chamou de "o cara" e "o político mais popular da Terra".

Sendo que Brasil almeja tanto visibilidade e respeitabilidade internacional — sem falar do investimento estrangeiro que acompanha uma boa reputação internacional — as performances absurdas de Bolsonaro em encontros importantes como a Assembleia Geral há de o prejudicar em casa. Oportunistas de direita que o apoiaram no ano passado em momento ascensão, como João Doria, governador de São Paulo, denunciaram duramente seu discurso, um sinal de que mais ataques provavelmente estão a caminho. Seria perigoso supor que as repetidas humilhações de Bolsonaro diante de públicos estrangeiros são politicamente letais, mas um oponente sem aliados lá fora é sem dúvida mais fácil de derrotar em casa.

Colaborador

Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018-19 e começará uma palestra no Dartmouth College neste outono. Atualmente, ele está preparando um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.

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