31 de janeiro de 2020

Classe média, Brasil e EUA

Queda na renda ajuda a entender a guinada para o populismo de direita nos dois países

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Morador da Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, vive em média até os 57,3 anos, de acordo com o Mapa da Desigualdade. Gabriel Cabral/Folhapress

Quase todo colunista já usou a frase de Tolstói, no livro “Anna Karenina”: “Todas as famílias felizes são parecidas. Cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira”. Chegou minha vez e recorro ao escritor russo para falar da classe média no Brasil e nos Estados Unidos.

Como demonstrado por vários estudos, houve queda na participação da classe média na renda dos dois países em anos recentes.

Porém, a queda foi diferente em cada economia, influenciada pelo tipo de política econômica adotada lá e cá.

Mais formalmente, a World Inequality Database (WID) apresenta a distribuição de renda pessoal antes dos impostos em vários países. No Brasil, os dados começam em 2001, e a observação mais recente disponível é de 2015. Nos Estados Unidos, os dados começam bem antes, no início do século 20, mas a última observação é de 2014 (coloquei os números no Blog da FGV Ibre).

Considerando o intervalo comum de 2001-14, verificamos aumento da parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos nos dois países. Nos Estados Unidos, o aumento foi de 42,8% para 47%, no Brasil, de 54,3% para 54,6%.

Traduzindo do economês, ainda somos bem mais desiguais do que os Estados Unidos quando consideramos a participação dos 10% mais ricos no total da renda, mas a expansão da parcela apropriada pelo topo da distribuição de renda foi bem menor aqui do que lá, durante a maior parte dos “anos petistas”.

A diferença entre EUA e Brasil aumenta quando consideramos os 50% mais pobres. Nos EUA, a metade inferior da distribuição de renda perdeu participação entre 2001 e 2014: de 15% para 12,5%. No Brasil, houve simplesmente o contrário: aumento de 12,6% para 14,3% no mesmo período. Certamente salário mínimo e ampliação de empregos formais no auge dos “anos Lula e Dilma” explicam parte da diferença.

Os dois países se aproximam quando analisamos a “classe média”, isto é, o grupo entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Nos dois casos houve perda de participação na renda: de 42,3% para 40,4% nos EUA e de 33,1% para 31,1% no Brasil. Essa queda comum de quase dois pontos ajuda a entender parte da insatisfação e guinada para o populismo de direita aqui e nos Estados Unidos.

A situação volta a divergir quando analisamos os “quase muito ricos”, isto é, aqueles entre os 90% mais pobres e o 1% mais rico. Houve aumento da participação desse grupo na renda dos EUA, de 25,5% para 26,8%, mas redução no Brasil, de 28,1% para 27,1%. A perda de um ponto no Brasil também ajuda a entender a revolta da alta classe média por aqui.

E o 1% mais rico? Houve aumento da participação na renda nos dois países, pois esse grupo tem mais meios de se proteger em qualquer situação. Nos EUA, o crescimento foi de 17,3% para 20,2%.

No Brasil, de 26,2% para 27,5%. A redistribuição para cima foi muito maior lá do que aqui, mas houve redistribuição para cima nos dois casos.

Volto a Tolstói. Nos EUA e no Brasil houve compressão da classe média entre 2001 e 2014, mas de modo diferenciado. Por lá, os 90% mais pobres perderam participação para os 10% mais ricos. Por aqui, os 50% mais pobres e o 1% mais rico ganharam participação e, consequentemente, os 49% do meio (a classe média e os quase ricos) perderam.

E depois de 2014? Os dados de 2015 indicam nova concentração de renda no Brasil, mas agora seguindo o padrão dos Estados Unidos: os 90% de baixo perderam enquanto os 10% no topo ganharam. Só saberemos se isso é a nova tendência ou efeito temporário da recessão de 2015 quando tivermos dados mais recentes.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Dentro e contra o Estado Brasileiro

Um estudo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil é rico em lições para socialistas que querem usar o estado sem serem capturados por ele.

Leo Panitch

Jacobin

Crianças reunidas em uma sala de aula em maio de 2013, na aldeia de Kamayurá, no Mato Grosso. Foto: Ezra Shaw / Getty

Resenha do livro de Rebecca Tarlau, Occupying Schools, Occupying Land: How the Landless Workers' Movement Transformed Brazilian Education (Oxford University Press, 2019)

Tradução / Após a derrocada dos regimes comunistas, e a colaboração de tantos partidos social-democratas na globalização capitalista neoliberal, compreensivelmente, surgiu na esquerda radical uma forte sensibilidade anarquista, que continuou influente por um período de tempo considerável. A partir dos protestos anti-globalização que abrangeram continentes na virada do milênio até a rápida disseminação do Occupy Wall Street de Nova Iorque para outras cidades nos EUA e em outros países, o humor predominante refletiu uma suspeita generalizada, senão um desdém, por qualquer estratégia política que envolvesse ir ao Estado.

E então, meio que de repente, pareceu ocorrer uma epifania generalizada de que você pode protestar até o inferno congelar, mas não vai mudar o mundo desse jeito. Essa epifania veio durante o curto período conectando as ocupações das praças em Madrid e Atenas e os rápidos avanços eleitorais do Syriza e do Podemos, em meados da década. Também semeou as insurgências de Corbyn e Sanders dentro dos partidos de centro-esquerda dominantes no Reino Unido e nos Estados Unidos.

A obra de John Holloway Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder, inspirado pelo movimento Zapatista no México, resumiu de maneira famigerada o humor anterior na esquerda. Outro livro importante, inspirado por outro exemplo latinoamericano muito diferente capturou o contraste com o zeitgeist posterior: “Ocupando Escolas, Ocupando Terras: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Transformou a Educação Brasileira” de Rebecca Tarlau.

Tarlau é uma militante do Socialistas Democráticos da América e professora na Universidade Estadual da Pensilvânia, além de filha de Jimmy Tarlau, por muito tempo líder sindical no Trabalhadores de Comunicação da América (Communications Workers of America – CWA). Ela apresenta em vívidos detalhes a “longa marcha pelas instituições” do movimento dentro do sistema educacional brasileiro, da escola primária até as universidades, e do Rio Grande do Sul até o Pernambuco, recorrendo mais à sua graduação em antropologia na Universidade de Michigan Ann Arbor do que nos seus estudos de pós-graduação em pedagogia na Universidade da Califórnia em Berkeley. O resultado é uma das análises mais profundas já escritas sobre o que significa estar “dentro e contra o Estado” como uma prática estratégica.

Forjados nas dificuldades da luta contra o regime militar brasileiro durante a década de 70, os quadros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) estavam alinhados bem de perto com aqueles do novo Partido dos Trabalhadores (PT). A distinta orientação estratégica do PT na época poderia ser expressa da seguinte forma: “nós somos militantes de organização, é nisso que somos bons. Mas precisamos entrar no Estado. Quando o fizermos, teremos que continuar sendo militantes de organização. Nós temos que usar os recursos estatais para ajudar a organizar aqueles que permanecem desorganizados.”

Foi essa orientação que inspirou o famoso experimento de Porto Alegre de elaboração de orçamento participativo, onde um prefeito do PT já tinha sido eleito no final da década de 80. Como posso atestar pessoalmente, quando ativistas que frequentavam os Fóruns Sociais Mundiais na virada do milênio ouviam sobre as conquistas desse experimento, a maioria deles retornavam de Porto Alegre soando muito como o jornalista Lincoln Steffens depois de sua ida a URSS em 1919 e voltavam declarando, “eu vi o futuro, e ele funciona.”

Na verdade, o processo de orçamento participativo estava repleto de contradições e limitações, como já estava bem nítido para aqueles que tinham lançado o experimento uma década antes — não menos no sentido de que os participantes na base nunca tiveram a oportunidade de decidir nas questões estratégicas mais importantes com as quais o governo local do PT teve que lidar. Sim, os representantes das favelas tinham permissão para escolher colocar recursos na construção de um esgoto ou de uma estrada, mas eles nunca foram envolvidos na abordagem de questões estratégicas sobre como lidar com os proprietários de terras que reivindicavam aquela terra, tão logo essas estradas e esgotos estivessem construídos.

Por contraste, o MST se engajou ativamente no desenvolvimento de competências políticas e estratégicas em seus acampamentos e assentamentos (bem como em sua escola nacional de quadros, no sul de São Paulo). Militantes do MST também se dedicavam, como tão bem mostra Rebecca Tarlau, para nutrir tais competências através do sistema público de educação.

Quando o PT elegeu seus primeiros prefeitos no final da década de 80, o partido descobriu que enfrentaria acusações de “clientelismo” se contratava um ônibus para levar manifestantes à Brasília para desafiar o modo como as despesas federais em serviços públicos estavam sendo direcionadas para as cidades. Já que os líderes partidários se comprometeram a acabar com as práticas clientelistas, eles não sabiam como responder a essa crítica, então eles simplesmente pararam de fazer isso. O MST não teve que enfrentar a mesma contradição política. No entanto, sua própria longa marcha pelas fracas estruturas educacionais do Estado clientelista e dos governos municipais logo deixou esses governos dependendo do MST para ajudar a administrar as escolas, mesmo que o MST tenha conseguido radicalizar muitos dos professores que inicialmente tinham suspeitas em relação ao movimento.

O que nesse quesito tornava o MST distinto como movimento social era, e continua sendo, seu status explícito como um movimento de classe — e, não menos explicitamente, um movimento socialista. A maior parte da literatura sobre movimentos sociais nas décadas recentes tomou forma em hostilidade à análise de classe, sem falar na hostilidade contra a “grande narrativa” de substituição do capitalismo pelo socialismo. A façanha de Tarlau é direcionar a análise de movimentos sociais de volta para a análise de classe. Ela também enfatiza o tipo de estratégia socialista que envolve trabalhar “dentro e contra” as instituições do Estado para transformá-las — ao invés de meramente protestar por fora delas, ou ainda menos de “esmagá-las”, no velho sentido insurrecional.

Contudo, esse livro incrivelmente sóbrio não é, de jeito nenhum, um exercício de tietagem. De fato, o estudo de Tarlau sobre o envolvimento do MST na “co-governança em disputa” nas instituições educacionais brasileiras oferece um contraste ríspido com grande parte da literatura existente sobre as experiências brasileiras com instituições de orçamento participativo, que tão frequentemente as apresentavam como "utopias reais". O MST não transformou todo o sistema educacional brasileiro, mudou apenas aqueles aparatos em proximidade aos seus próprios espaços de ocupação e assentamento, e as instituições de ensino superior diretamente envolvidas no treinamento de professores para áreas rurais.

Como mostra Tarlau, o Ministério da Educação em si praticamente não foi afetado.Isso levanta mais perguntas sobre o que significaria ir além da transformação de estruturas estatais que estão primariamente envolvidas na reprodução social, trazendo em questão aquelas instituições que estão centralmente envolvidas na reprodução econômica capitalista, como bancos centrais e departamentos de finanças ou comércio.

Além disso, na medida em que fala sobre as experiências muito diferentes do MST e do PT no Brasil, o estudo levanta ainda outra pergunta: ou seja, quais competências estratégicas um partido político de massas deve tentar desenvolver, se seu objetivo é ocupar todo o terreno do Estado a fim de transformá-lo? Essa é a pergunta chave encarando a esquerda socialista em nossos tempos. Que o importante livro de Rebecca Tarlau nos induza a refletir a esse respeito é mais uma de suas consideráveis conquistas.

Colaborador

Leo Panitch foi professor de ciência política na Universidade de Iorque e co-editor da revista Socialist Register. Seu último livro, junto de Sam Gindin, foi The Making of Global Capitalism.

O "acordo do século" de Trump é uma descarada disputa de terra

Donald Trump, Benjamin Netanyahu e muitos líderes democratas estão divulgando o novo plano de paz do governo para o Oriente Médio. Mas o esquema nada mais é do que uma apropriação de terra descarada que aprofundará ainda mais o controle israelense e privará milhões de palestinos de direitos civis básicos.

Seraj Assi

Jacobin

O muro de separação de Israel pode ser visto próximo ao campo de refugiados palestinos de Shuafat em 28 de janeiro de 2020 em Jerusalém, Israel. Lior Mizrahi / Getty.

Tradução / Em um melodrama político encenado na terça-feira, o presidente Donald Trump, ladeado por Benjamin Netanyahu, lançou sua visão para a paz no Oriente Médio, saudando-a como o “Acordo do Século”.

Da perspectiva de Israel, o plano Trump é realmente o acordo do século. Como disse o primeiro-ministro de Israel: “É um ótimo plano para Israel. É um grande plano de paz”. Já, para os palestinos, que estavam ausentes da cerimônia, o plano não passa de um esquema de apropriação de terras surrupiadas em plena luz do dia.

O acordo de Trump colocaria uma Jerusalém única, incluindo sua Cidade Velha, sob o controle de Israel e daria a Israel o direito de anexar todos os assentamentos, bem como o Vale do Jordão – quase um quarto da Cisjordânia. Netanyahu já prometeu apreender todos os assentamentos e o vale do Jordão, que seu governo deve votar para anexar neste fim de semana.

O plano prevê um estado palestino “condicionado” que será completamente desmilitarizado e desprovido de um exército e uma força aérea, onde Israel continuará a exercer total controle militar – também do espaço aéreo. Esse “estado-mínimo”, como Netanyahu cinicamente o apelidou, seria um arquipélago descontínuo e canonizado na Cisjordânia e Gaza, cercado por um mar de assentamentos israelenses e instalações militares. O que privaria milhões de palestinos apátridas dos direitos civis básicos.

Em outras palavras, os palestinos estão sendo solicitados a repetir o mesmo erro que cometeram nos Acordos de Oslo de 1993, onde concordaram em “condicionar” o Estado, apenas para ver Israel turbinar sua ocupação, expandir seus assentamentos e arrebatar Jerusalém. Sem surpresa, os líderes palestinos boicotaram o plano.

Israel está ciente de que há mais palestinos do que israelenses vivendo no território sob o controle de Israel. Ao endossar os assentamentos israelenses, o plano substituiria uma ocupação de décadas por um sistema oficial de apartheid, onde a maioria palestina seria governada por uma minoria de colonos israelenses, e apenas um grupo étnico teria plenos direitos civis.

O plano de Trump é o culminar de uma série de medidas anti-palestinas adotadas por seu governo, da transferência da embaixada dos EUA para Jerusalém, do reconhecimento de assentamentos israelenses na Cisjordânia e do congelamento de todas as formas de financiamento aos palestinos.

Mas não é apenas Trump. A maioria dos democratas permaneceu calada ou aplaudiu a política de Trump. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, elogiou o acordo por fornecer “um terreno comum” que os democratas poderiam defender, dizendo: “Se houver uma possibilidade de paz, queremos dar uma chance a ela”. Pelosi e outros democratas tradicionais ainda se recusam a ver a postura anti-palestina de Trump como é: inseparável de sua agenda reacionária.

Bernie Sanders e Elizabeth Warren foram os únicos candidatos presidenciais democratas a se manifestar contra o plano. Warren chamou de “carimbo de borracha para anexação [que] não oferece chance para um verdadeiro Estado palestino”. Sanders alertou que “apenas perpetuará o conflito” e que um acordo de paz “deve acabar com a ocupação israelense e permitir a autodeterminação palestina” em um estado independente”. Joe Biden, embora pareça criticar o plano como um “golpe político”, nem sequer mencionou os palestinos, twittando: “Passei a vida trabalhando para melhorar a segurança e a sobrevivência de um judeu e democrata. Israel. Este não é o caminho”.

O plano de Trump é obra de cínicos e evangélicos de direita que demonstram total desprezo pelos direitos palestinos, principalmente Jared Kushner (genro e conselheiro sênior de Trump) e David Friedman (embaixador dos EUA em Israel). Os dois homens financiaram assentamentos israelenses na Cisjordânia há anos. Friedman, um colono, insistiu no direito de Israel de anexar a Cisjordânia, porque “Israel está do lado de Deus”.

Talvez o mais assustador de tudo seja a retórica paternalista da equipe de Trump, que flerta com o racismo do “fardo do homem branco”. “Acreditamos que, em última análise, teremos o apoio dos palestinos”, declarou Trump, como se os palestinos não pudessem ver o que é do seu interesse. Ou, como Kushner, questionando a viabilidade do autogoverno palestino independente, colocou: “A esperança é que, com o tempo, se tornem capazes de se governar”. Os governantes do apartheid da África do Sul – que se baseavam na suposição racista de que as terras dos bantus deveriam permanecer sob o controle dos brancos, porque os bantus ainda não eram capazes de governar a si mesmos – não poderiam ter melhorado isso.

Muitos palestinos estão buscando outro paralelo histórico: o sistema Mandate, que foi imposto aos palestinos há um século e nomeou o governo britânico como “curador” até que os habitantes nativos “pudessem se manter por conta própria”. Assim como a Declaração de Balfour excluiu palestinos pelos direitos nacionais que concedeu aos judeus, o plano de Trump vê os direitos nacionais palestinos como dispensáveis. E assim como a Declaração de Balfour falhou em mencionar os palestinos pelo nome, em vez de se referir a eles como a “população não-judia da Palestina”, os pacificadores dos EUA continuam planejando o futuro dos palestinos com a ausência de palestinos.

Mais uma vez, os palestinos enfrentam a sombria perspectiva de ter seu destino ditado por autoridades estrangeiras que, dotadas de um mandato de superpotência e munidas de memorandos e propostas secretas, estão dizendo a eles o que Lord Curzon disse condescendentemente aos indígenas há mais de um século: “Você não pode ficar sem nós”.

Talvez a única virtude do plano Trump seja que ele novamente dissipe o mito da solução de dois Estados. Como a luta sul-africana nos lembra, um povo que vive no apartheid não precisa de um Estado separado – ele precisa de justiça e liberdade. E para os palestinos, nossa próxima luta é menos por um Estado do que pela democracia e pelos direitos civis.

Sobre o autor

Seraj Assi é o autor de "The History and Politics of the Bedouin".

29 de janeiro de 2020

A democracia está em crise. Karl Marx pode ajudar.

Karl Marx é frequentemente considerado um pensador puramente econômico. Mas o famoso socialista era um democrata comprometido - e seus escritos oferecem soluções potenciais para democratizar nosso sistema político antidemocrático.

Bruno Leipold 

Jacobin

O monumento Karl Marx em Chemnitz, Alemanha.

Tradução / Há um reconhecimento generalizado na esquerda norte-americana e europeia de que nossas instituições democráticas estão falhando. Desde a campanha de Bernie Sanders por uma revolução política contra as estruturas da oligarquia dos EUA até a proposta de Rebecca Long-Bailey para abolir a Câmara dos Lordes do Reino Unido e causar ao Estado britânico um "choque sísmico", socialistas democráticos proeminentes estão bem cientes de que o movimento por uma a ordem social mais justa é inextricável do impulso para democratizar nossos sistemas políticos.

Os problemas são familiares: influência corporativa e da elite sobre a tomada de decisões e a legislação, poder executivo não controlado, representantes distantes e irresponsáveis. Nossos sistemas políticos alienam aqueles que estão sujeitos às suas decisões e ameaçam bloquear qualquer governo socialista que chegue ao poder. Menos claro, entretanto, são quais mudanças concretas podem começar para resolver esses problemas.

Uma fonte fecunda de ideias são os escritos políticos e constitucionais de Karl Marx. Isso pode ser uma surpresa, considerando que Marx é normalmente considerado um pensador puramente econômico, com pouco a dizer sobre o desenho das constituições e das instituições políticas.

E é verdade que Marx nunca produziu sua própria teoria constitucional totalmente desenvolvida. Mas o famoso socialista era um democrata comprometido cujos escritos contêm uma crítica matizada do constitucionalismo liberal e do governo representativo, bem como um esboço de quais instituições populares deveriam substituí-lo.

Muitas dessas ideias - a necessidade de responsabilizar os representantes, a importância da supremacia legislativa sobre o executivo e a necessidade de uma transformação popular mais ampla dos órgãos do Estado, especialmente do serviço público - foram inspiradas pela experiência de Marx na Comuna de Paris, o levante da classe trabalhadora que controlou brevemente a cidade de março a maio de 1871. Eles também estavam de acordo com, and partly drawn from, de uma tradição radical mais antiga de pensamento político que abrangia cartistas britânicos, democratas franceses e antifederalistas norte-americanos (uma tradição que Karma Nabulsi, Stuart White e eu exploramos em nosso próximo livro, Radical Republicanism).

Seria errado tratar as ideias de Marx como um projeto a seguir rigidamente. Seus escritos não fornecem detalhes suficientes para isso (nada surpreendente para alguém que se opõe a escrever “receitas para as cozinhas do futuro”), e nenhum pensador deve ser tratado como um repositório fixo da verdade. Mas quando pensamos sobre como democratizar nossas instituições políticas, os escritos de Marx são um recurso importante a partir do qual podemos nos basear.

Crucialmente, também nos dá a oportunidade de nos lembrar da centralidade da democracia para o socialismo. A democracia não é apenas uma pré-condição essencial para a construção do socialismo, nossa motivação para democratizar o sistema político brota da mesma fonte que nosso desejo de democratizar a economia: que as pessoas tenham controle sobre as estruturas e forças que moldam suas vidas.

"O sufrágio universal irá servir o povo"

Marx acreditava que o sufrágio universal era um pré-requisito essencial para o socialismo. Nos seus momentos mais otimistas pensava que “o seu resultado inevitável… é a supremacia política da classe trabalhadora”. Mas preocupava-se com o fato do governo representativo estar minando o potencial emancipatório do voto ao atribuir aos eleitos grande poder discricionário sobre como votar e agir nos órgãos legislativos.

As eleições normais dão aos eleitores um importante poder sancionador (pode-se escolher afastar os trastes), mas os representantes não estão formalmente ligados aos desejos do eleitorado. Marx acreditava que isto criava uma classe de dirigentes não escrutinados que representaria mais facilmente os seus próprios interesse de elite do que os do seu eleitorado.

Ele apoiava vários mecanismos para diminuir a distância entre representantes e representados – acima de tudo, entre eles, o poder de revogação de mandato. Esta medida daria aos cidadãos o poder de sancionar imediatamente os representantes em vez de esperar pelas próximas eleições. Marx brincava que os patrões confiavam no seu “sufrágio individual” para colocar “o homem certo no lugar certo e para, se ele cometer um erro, o retirar imediatamente”, mas ficavam horrorizados com a ideia de que o sufrágio universal pudesse atribuir um poder semelhante aos eleitores.

Marx também apoiava “mandatos imperativos”, nos quais o eleitorado atribui aos representantes instruções legalmente obrigatórias – proporcionando aos cidadãos dar contribuições diretas ao processo legislativo e proibindo representantes eleitos de renegar as promessas de campanha.

Finalmente, Marx era crítico de mandatos parlamentares prolongados e advogava eleições muito mais frequentes. Ao comentar a exigência dos Cartistas da existência de eleições anuais, Marx notava que era uma das “condições sem as quais o sufrágio universal seria ilusório para a classe trabalhadora”.

Ao mesmo tempo, Marx defendia que estas medidas transformariam o governo representativo: “em vez de decidir uma vez de três em três ou de seis em seis anos que membros da classe dominante irão desviar a representação do povo no Parlamento, o sufrágio universal… [iria] servir o povo.”

Na política contemporânea, a esquerda não foi sempre tão bem sucedida como a direita em galvanizar a raiva contra os representes distantes e não escrutináveis. Boris Johnson e os seus parceiros dos meios de comunicação social canalizaram eficazmente a indignação face ao papel do parlamento britânico nas negociações do Brexit para uma narrativa “povo contra o parlamento”. Na Itália, os populistas de direita do Movimento Cinco Estrelas alcançaram um significativo sucesso inicial com os seus ataques aos políticos corruptos e as suas promessas de implementar um mandato imperativo entre os seus representantes e membros. Isto fez com que fosse mais fácil que progressistas rejeitassem as críticas do governo representativo e as contra-medidas como os mandatos imperativos como objetivamente populistas. Mas seria um erro que esquerda cedesse este terreno à direita. As recomendações de Marx podem não ser a exata combinação institucional que vamos apresentar mas devem fazer parte do nosso arsenal constitucional ao considerarmos como tornar os representantes escrutináveis e dar aos cidadãos uma participação verdadeira na sua democracia.

Uma crítica do executivo

Apesar das suas apreensões sobre a democracia representativa, Marx via a legislatura como central para a política representativa. Louvava a Comuna de Paris por ter atribuído cargos do tipo ministerial aos próprios membros do conselho da comuna, em vez de criar um presidente e um gabinete separado.

Para Marx, um poder executivo muito forte era até mais perigoso do que representantes distantes. Ele era especialmente crítico da Constituição Francesa de 1848 (que estabeleceu a Segunda República Francesa), condenando o documento por designar um presidente eleito diretamente que tinha o direito de perdoar criminosos, de afastar conselhos municipais e locais, fazer tratados internacionais e, pior, nomear e despedir ministros sem consultar a Assembleia Nacional. Marx insistia que isto produzia um presidente com “todos os atributos de um poder monárquico” e uma legislatura que “perde toda a influência real” sobre as operações de Estado. A Constituição, atacava ele, apenas tinha substituído a “monarquia hereditária” por uma “monarquia eletiva”.

Uma das razões pelas quais Marx polemizava contra executivos fortes era que ele estava preocupado que escapassem ao controle, vigilância e escrutínio popular. Estava também receoso da natureza pessoal do poder presidencial com líderes a apresentar-se como a “encarnação... do espírito nacional”, “possuindo uma espécie de direito divino” atribuído “pela graça do povo”.

Ao ler alguns destes comentários hoje é fácil pensar em Donald Trump ou Jair Bolsonaro. E, de fato, há alguns paralelos intrigantes entre ele e Louis Napoleon (o presidente que acabou por derrubar a Segunda República). Mas o problema mais estrutural é a presidência imperial dos Estados Unidos que está desvinculada de uma supervisão significativa do Congresso (e cuja criação foi ativamente incentivada pelo Partido Democrata). Problemas semelhantes afetam a Constituição britânica e foram explorados por Tony Blair durante a Guerra no Iraque e por Boris Johnson durante as negociações do Brexit. A atual Constituição francesa, adotada em 1958 sob Charles de Gaulle, foi especialmente concebida para concentrar poder nas mãos do executivo (um legado entusiasticamente seguido por Emmanuel Macron).

Os escritos de Marx lembram-nos que não podemos confundir a crítica ao parlamentarismo (a ideia de que os eleitos são os atores principais dos projetos de reforma) com os ataques a qualquer legislatura. Os parlamentos eleitos indubitavelmente deixam muito a desejar e há enormes e perenes questões organizativas acerca da relação entre o conjunto do movimento socialista e a representação socialista no parlamento.

Mas a resposta não pode ser confiar no poder dos tribunais para defender e fazer avançar os objetivos progressistas ou para colocar um socialista ao leme de um executivo todo-poderoso – ou, como fazem as vezes hoje em dia, renunciar inteiramente a representação legislativa. A legislatura é o mais democrático dos três ramos do Estado – os federalistas fundadores dos Estados Unidos estavam interessados em limitar os seus poderes por alguma razão – e os socialistas democráticos deveriam defendê-lo da intrusão executiva e judicial.

Transformar a burocracia

As ideias de Marx sobre representação e legislatura implicariam reformas sérias e abrangentes nos mais modernos governos representativos. Mas são os seus pontos de vista sobre a burocracia que mais o afastam dos sistemas políticos com a qual estamos familiarizados.

Marx procurava uma transformação fundamental do Estado que colocaria trabalhadores normais no coração da administração pública. Propunha abrir a burocracia de Estado a eleições competitivas e sujeitá-la ao mesmo poder sancionador de revogação que defendia para os representantes. Aos seus olhos, isto iria fazer com que o Estado deixasse de ser um corpo separado, alienado, que governava sobre um povo que estava sobre seu controle. Transformaria “os mestres altivos do povo nos seus servos sempre removíveis, uma responsabilização falsa numa responsabilização real, uma vez que atuariam continuamente sob supervisão pública”.

Estes comentários estavam alinhados com a desconfiança de longa data de Marx – mesmo repugnância – dos burocratas (o que não deixa de ser irónico, dada a habitual associação que se faz de Marx ao estatismo burocrático). Denunciava-os como uma “casta treinada”, um “exército de parasitas do Estado”, uma classe de “sicofantas e sinecuristas bem pagos”. E ele sustentou que “homens trabalhadores simples” eram capazes de realizar os negócios do governo de forma mais “modesta, consciente e eficiente” do que seus supostos “superiores naturais”.

A visão de Marx é sem dúvida apelativa. Com demasiada frequência, as pessoas comuns estão sujeitas aos caprichos de burocratas – forçados a saltar obstáculos sem fim apenas para garantir os meios de sua existência. Mas numa sociedade moderna, complexa, a sua visão se confrontaria com obstáculos formidáveis, incluindo insuficiente perícia técnica e captura corporativa de administradores inexperientes. No mínimo, é difícil imaginar uma burocracia fortemente democratizada sem uma esfera económica que a acompanhe e que dê às pessoas muito mais tempo para fazer parte da administração pública (e na qual as pessoas queiram assumir tais tarefas).

Os escritos de Marx não nos oferecem nenhuma orientação real sobre como o seu plano para democratizar a burocracia poderia funcionar. Na medida em que pudesse ter em mente um modelo, este parecia aproximar-se da Atenas antiga, onde os cidadãos eram rotativamente governantes e governados através do uso de sorteios que selecionavam para cargos administrativos (uma característica da democracia ateniense que foi pouco compreendida e amplamente esquecida na altura em que Marx estava escrevendo).

Notavelmente, é este elemento da antiga democracia que ressurgiu recentemente na teoria e na prática democráticas como uma forma potencial de abordar algumas das falhas do governo representativo. Há muita discussão, por exemplo, acerca das Assembleias de Cidadãos – grupos de pessoas aleatoriamente selecionadas que são encarregadas de deliberar e fazer recomendações tanto sobre políticas específicas quanto sobre reformas constitucionais. As Assembleias de Cidadãos têm sido utilizadas para discutir emendas constitucionais na Irlanda e para conceber propostas de reforma eleitoral na Colômbia Britânica e Ontário, no Canadá, e existe uma campanha para incluir em qualquer futura convenção constitucional do Reino Unido.

Para além disto, o especialista em teoria política John McCormick avançou com uma proposta intrigante de uma forma moderna de tribuna plebeia romana. O órgão teria 51 membros, sorteados entre a população mais popular (exceto os 10% mais ricos) e poderia propor legislação, iniciar referendos e revogar cargos de responsáveis públicos.

Este tipo de sorteio podia ser uma forma de concretizar algumas das esperanças de Marx para um sistema político em que os cidadãos desempenhem diretamente tarefas governamentais e administrativas.

Marx, o democrata

Marx sempre acreditou que o governo representativo era um progresso enorme frente aos regimes absolutistas que o substituiu. Mas também discutia a sua identificação com a “democracia”. Defendia que as mudanças institucionais acima esboçadas gerariam um sistema político com “instituições realmente democráticas”.

De acordo com Marx, estas estruturas eram vitais para fazer avançar o socialismo na esfera económica – seria um erro grave pensar que os socialistas poderiam simplesmente tomar as instituições estatais existentes e guiar o navio em direção ao socialismo (o erro que Marx admitiu que também cometeu algumas vezes). Os socialistas, escreveu ele, “não podem simplesmente tomar conta da maquina estatal já construída e manejá-la para os seus próprios fins”. Para o poder político “ficar nas mãos do próprio povo”, seria imperativo que o povo “deslocasse a maquina estatal, a maquina governamental da classe dominante através da sua própria maquina governamental”.

Esta continua a ser uma das mais importantes intuições políticas e constitucionais de Marx: a transformação económica radical deve ser acompanhada de uma transformação política radical. Desconsiderar uma, mina a outra.

Numa altura em que o socialismo está ressurgindo, mas ainda é frágil, os pontos de vista de Marx sobre a democracia popular merecem maior atenção. A forma como escolhemos entender as suas intuições depende de nós.

Sobre o autor

Bruno Leipold teaches political theory at the London School of Economics and Political Science.

28 de janeiro de 2020

Aos trancos e barrancos

Crise no INSS revela falta de planejamento e preparo

Juracy Soares
Rodrigo Keidel Spada

Folha de S.Paulo

Fila para atendimento em agência do INSS em Brasília. André Coelho/Folhapress

Não é de hoje que as entidades do serviço público alertam sobre o esvaziamento do efetivo de todos os poderes do Estado. Em meio a polêmicas sobre a condução dos trabalhos e a fila de quase 2 milhões de pedidos de benefícios represados no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), é bom lembrar que desde 2016 esse cenário vem se complicando, quando o então governo Michel Temer (MDB) encaminhou ao Congresso Nacional a reforma da Previdência.

Com a promulgação da reforma no ano passado, o cenário tornou-se ainda mais grave para os cidadãos, pois a expectativa é de que cerca de 70 mil profissionais deverão se aposentar somente no serviço público federal.

Com a publicação do decreto que autorizou a contratação de 7.000 militares a atuarem em “força-tarefa” para “vencer” a fila do INSS, o governo federal demonstrou absoluta falta de planejamento e de preparo, como se fosse possível administrar o Estado aos trancos e barrancos.

Não será com medidas amadoras e simplistas que o governo irá resolver a carência de uma área altamente demandada, especialmente por pedidos de aposentadorias e licenças médicas.

Além dos entraves legais, que envolveria treinamento dos militares, essa medida desrespeita os princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, previstos no artigo 37 da Constituição Federal, e configura desvio de finalidade.

A reforma administrativa pode causar um efeito dominó, inclusive no âmbito dos estados em crise fiscal. E se a falta de servidores ativos chegar às administrações tributárias dos entes subnacionais?

Nos Fiscos estaduais, temos várias unidades federativas sem concurso para auditor fiscal há mais de 20 anos. Há um efetivo de servidores altamente capacitados que estão se aposentando, e uma parcela dos secretários de Fazenda tem o entendimento de que simplesmente a inteligência artificial e o entrelaçamento de dados podem dar cabo do atendimento às demandas do Estado e do cidadão.

Essa situação do INSS é cômoda para a União, pois significa retardar o pagamento do benefício a milhões de brasileiros. Já no caso do Fisco, se isso ocorrer, haverá forte redução da arrecadação de tributos por absoluto desmantelamento da capacidade operacional das Fazendas dos três entes (que já operam com o quadro de pessoal reduzido).

É importante ressaltar que respeitamos os militares do nosso país. São homens e mulheres altamente qualificados e prontos para agir dentro de sua missão constitucional. O governo, ao tratar os militares como “Posto Ipiranga”, põe em risco a população que demanda atendimento qualificado.

As verbas que estão sendo sonegadas pelo atraso à população são verbas alimentícias, que não podem ficar sujeitadas ao dia em que o governo finalizar os ajustes nos sistemas, o que, segundo informações da própria administração, deve levar mais de seis meses.

Acreditar que simplesmente deslocar 7.000 militares para o INSS vai dar conta de serviço que requer qualificação específica revela outro equívoco do governo federal; ou seja, a tendência a desmontar a infraestrutura do serviço público e expor a população ao constrangimento e à humilhação ao fazerem com que tenham que implorar pelo seu direito, como se não fosse dever do governo e do Estado.

Ingresso por concursos é importante dispositivo contra a corrupção, o paternalismo e o uso político dos cargos públicos. Atende aos princípios da impessoalidade, moralidade, eficiência e motivação.

O cenário anunciado pelo governo não se justifica constitucionalmente e representa apenas a ponta do iceberg. Defendemos que o governo abandone essas ideias.

Sobre os autores

Juracy Soares

Presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) e vice-presidente do Fonacate (Fórum Nacional das Carreiras Típicas de Estado)

Rodrigo Keidel Spada

Presidente da Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Afresp) e coordenador do Focae-SP (Fórum Permanente das Carreiras de Estado)

26 de janeiro de 2020

Como o capitalismo subdesenvolveu a América rural

Uma mistura tóxica de sofrimento econômico, racismo e declínio da vida comunitária preparou o terreno para o populismo autoritário nas áreas rurais devastadas da América. O trumpismo não será derrotado, a menos que a esquerda possa promover uma agenda progressista para reconstruir a América rural.

Marc Edelman


Kris Notaro / Flickr
Tradução / Após a eleição presidencial dos EUA em 2016, a intelligentsia liberal percebeu tardiamente que os EUA rural e das cidades pequenas estava em crise. Um setor da opinião liberal insistia que a chave para a vitória de Donald Trump foi o racismo, e não no sofrimento econômico (em parte por causa de sua própria cumplicidade com o projeto neoliberal de livre mercado). Outro setor, cego à importância central da desigualdade racial para o capitalismo dos EUA, preferiu enfatizar explicações econômicas restritas à ascensão de Trump.

Estas formas de pensar falharam em compreender as diferentes maneiras pelas quais o sofrimento econômico, o racismo e o declínio da vida comunitária interagiram para preparar o terreno para o populismo de direita. Subestimaram também o custo humano da catástrofe que envolve as áreas rurais e as pequenas cidades, com vista para as “patologias sociais do colapso” que se tornaram cada vez mais flagrantes.

Desde a virada para políticas neoliberais mais agressivas, de mercado livre, nos anos 80, o capitalismo dos EUA subdesenvolveu sistematicamente regiões rurais e cidades pequenas. E a crise de 2008 botou gasolina no fogo. Bancos de poupança mútua e cooperativas de crédito, pequenas empresas, indústrias e jornais locais, instituições de saúde e assistência a idosos, escolas e bibliotecas foram vítimas de implacáveis ​​políticas de austeridade.

Como as pessoas não podiam mais compartilhar a riqueza que haviam produzido, enquanto as bases fiscais comunitárias e as instituições sociais diminuíam, o “ressentimento rural” e a ansiedade econômica fizeram crescer o medo de mudanças culturais e demográficas, e aumentaram a aceitação de apelos autoritários e teorias da conspiração.

Perdendo a guerra contra a pobreza

A masculinidade prejudicada e a perda de privilégios dos brancos foram certamente ingredientes vitais nesse coquetel tóxico, juntamente com a questão dos direitos à posse de armas. Mas essas “questões culturais” estavam ligadas ao declínio econômico e à fragmentação social: homens brancos que sofreram contratempos econômicos “são o grupo de proprietários mais apegados às armas” e os que mais provavelmente veem sua casa como um abrigo que exige defesa contra intrusos ameaçadores.

Em julho de 2018, o Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca afirmou que a “guerra contra a pobreza” iniciada durante a presidência de Johnson, na década de 1960, estava “amplamente encerrada com sucesso”. Essa avaliação rósea surgiu diante da ampla evidência de que as coisas estavam ficando muito piores.

Depois de 1980, os salários estagnaram e se descolaram do crescimento da produtividade. Entre 1940 e 1980, a diferença salarial entre as cidades mais pobres e as mais ricas diminuiu cerca de 1,4% ao ano, mas após 1980, essa convergência terminou.

No cenário internacional, em meados da década de 1970, o colapso da estrutura criada em Bretton Woods provocou uma “abertura” das finanças e do comércio globais. Dentro dos EUA, na frente doméstica, ataques ao trabalho organizado, especialmente depois do governo de Ronald Reagan, minaram a capacidade de barganha dos trabalhadores.

Em 2018, 40 milhões de pessoas viviam na pobreza nos EUA; 18,5 milhões na pobreza extrema e 5,3 milhões “em condições de pobreza absoluta”, como no Terceiro Mundo. Em 2011, 1,5 milhão de famílias – metade delas brancas – estavam sobrevivendo com renda inferior a 2 dólares por pessoa por dia. Essas famílias incluíam 3 milhões de crianças. Nove milhões de pessoas, nos EUA, têm renda zero em dinheiro. Em 2016, 63% careciam de US$ 500 em economias para usar em uma emergência e 34% não tinham economia nenhuma. Nesse mesmo ano, a taxa oficial de pobreza no país era de 12,7%.

Um estudo de 2017 em quinze estados, que representam 39% de todos as residências nos EUA, constatou que as chamadas casas da ALICE (com recursos limitados, com restrição de renda, empregados) – estavam acima da linha da pobreza, mas ganhavam menos do que a “renda mínima de sobrevivência”. Esses lares representavam dois quintos (40%) do total. Entre 2007 e 2016, a riqueza média das famílias caiu 31%.

Muitos dos pobres e quase pobres estão empregados, geralmente em várias colocações de baixa renda, e precisam contar com cupons de alimentos para comer – na verdade, um subsídio público para seus empregadores, que incluem algumas das maiores e mais rentáveis empresas do mundo. Em 2017, 78% dos trabalhadores dos EUA disseram estar vivendo de salário em salário. Quase 40% dos adultos em idade ativa tiveram problemas para atender a pelo menos uma necessidade básica – comida, assistência médica, moradia ou serviços públicos – em 2017.

Um número crescente de pobres vende seu plasma sanguíneo duas vezes por semana, para sobreviver. A coleta de sangue dobrou entre 2008 e 2016. Enquanto as exportações de plasma estão em expansão, os doadores frequentes quase sempre sofrem consequências negativas para a saúde.
Os estadunidenses de baixa renda gastam grande parte de seu dinheiro em gasolina e em carros para ir ao trabalho, especialmente em áreas rurais onde não há transporte público.

Os programas evangélicos cristãos e de direita dominam as ondas de rádio nessas inevitáveis​​ viagens de longa distância. Uma visita ao hospital ou conserto de carro pode desencadear uma espiral para baixo que culmina na perda de emprego e na falta de moradia. As famílias nos EUA estão profundamente endividadas, com hipotecas, automóveis, cartões de crédito, contas médicas e empréstimos estudantis. O endividamento, que há muito tempo tem um papel importante no desaparecimento de fazendas e outras pequenas empresas, é uma fonte adicional de estresse para muitos.

Financeirização neoliberal

Em Glass House: The 1% Economy and the Shattering of the All-American Town, Brian Alexander descreve uma comunidade de Ohio cuja história se repete em milhares de lugares. Lá havia uma grande fábrica de vidro; era um lugar onde “um operário de fábrica poderia morar a três quarteirões de um proprietário de fábrica” e onde os proprietários apoiavam a emissão de títulos para financiar boas escolas e hospitais que atraíam funcionários qualificados.

Na década de 1980, os predadores empresariais montaram uma operação – cobraram dívidas, desmembraram, esmagaram o sindicato e pilharam a empresa. Os novos proprietários – fundos de hedge e estabelecimentos de private equity, de especulação financeira – diminuíram salários e pensões e ordenaram que os executivos morassem em outros lugares “para que não se incomodassem com pedidos de envolvimento cívico ou contribuições de caridade”.

A prioridade agora era maximizar o valor para os acionistas – e não desperdiçar lucros nas instituições da comunidade. A desindustrialização dos EUA atingiu cresceu após a crise de 2008: áreas não metropolitanas superaram o resto do país em perdas de empregos industriais, com uma queda de 35% nas vagas.

Demagogos populistas como Trump culpam por esses cortes de empregos exclusivamente o livre comércio e a fuga de fábricas – seus críticos liberais também citam automação e falta de inovação – mas a financeirização neoliberal tem sido claramente central nessa realidade.

A financeirização – o envolvimento dos especuladores financeiros nos negócios e nos mercados, e a propriedade dos ativos não pelo que eles podem produzir, mas pelo modo como podem ser despojados e invertidos para gerar valor para o acionista – tem suas origens longe das comunidades afetadas e tende a ser um processo opaco.

Como Jennifer Clapp aponta: “Essa falta de transparência sobre quais atores estão envolvidos na condução dessas tendências cria espaço para narrativas concorrentes – muitas vezes, avançadas pelos próprios agentes financeiros – que apontam para outras explicações para resultados sociais e ambientais negativos.” Como o neoliberalismo não entrega a prometida prosperidade, as pessoas que procuram entender o que aconteceu com suas comunidades recorrem cada vez mais a teorias da conspiração e reivindicações “pós-factuais”.

Os bancos de poupança mútua locais costumavam alimentar as economias de cidades pequenas. Seus diretores contribuíam para instituições locais, conheciam clientes e, às vezes, faziam empréstimos com base na confiança.

A partir da década de 1980, os investidores em private equity geraram pequenos depósitos mútuos e de poupança em todo o país, antecipando sua conversão em instituições de ações. Os depositantes poderiam comprar ações a preços privilegiados antes das ofertas públicas iniciais (IPOs). Normalmente, as ações são valorizadas em 15% no dia do IPO e em 20% a 50% nos meses seguintes.

Os diretores e investidores incentivaram os grandes bancos regionais a engolir e fechar os bancos locais, e ganham dinheiro enquanto as ações sobem 200 a 400% acima do nível do IPO. No processo, sugaram a riqueza das comunidades, impuseram critérios mais rígidos de concessão de empréstimos e cortaram o espaço das pequenas empresas. Muitas pessoas se viram presas em “desertos bancários”, forçadas a confiar em estabelecimentos de alto custo com cheques e credores (agiotas) de dia de pagamento (geralmente financiados pelos bancos maiores que criaram esses “desertos”).

Como bancos mútuos, cooperativas e cooperativas de crédito reinvestiram a riqueza que as comunidades produziram localmente, agindo como baluarte contra corporações e bancos vorazes. Cerca de um quarto das 8.000 cooperativas de crédito ativas em 2007 havia fechado em 2017. Entre 2000 e 2015, mais de um terço das 3.346 cooperativas agrícolas ainda ativas no início do século foram forçadas a fechar.

Bolha das hipotecas e sem-teto

Quando a bolha das hipotecas estourou em 2008, o número de sem-teto disparou,pois os financiados deixaram de pagar o que costumam ser empréstimos predatórios. Nos EUA, as execuções hipotecárias residenciais aumentaram drasticamente, passando de pouco mais de 380 mil, em 2006, para 1 milhão por ano, entre 2009 e 2012. As execuções hipotecárias voltaram aos níveis anteriores à crise em 2016. Em 2012, quase um quarto dos proprietários com hipotecas tinham dívidas impagáveis – elas eram superiores ao valor de suas casas. Um impressionante valor de 7 trilhões de dólares em patrimônio líquido evaporou-se.

Os despejos em residências alugadas foram ainda mais generalizados: 83 milhões em todo o país entre 2000 e 2016 – uma média de 4,9 milhões por ano. Esse número exclui os muitos “despejos informais” que ocorreram quando os locatários cedem à pressão dos proprietários e se mudam antes de enfrentar uma ação legal. Pelo menos um quarto das famílias pobres gasta 70% ou mais de sua renda com aluguel e serviços públicos. Apenas uma em cada quatro famílias que se qualificam para programas de habitação a preços acessíveis realmente recebe assistência.

A crise habitacional teve um impacto devastador. Uma única execução hipotecária arruína a classificação de crédito de um indivíduo e o despejo legal de uma casa de aluguel gera um registro judicial. Qualquer infortúnio pode impedi-los de conseguir emprego ou acomodação no futuro, uma vez que patrões e proprietários realizam rotineiramente verificações de crédito ou rastreiam os candidatos, num registro de despejo. O despejo também leva à perda de emprego, pois trabalhadores sobrecarregados cometem erros e são demitidos.

Pessoas sem endereço permanente enfrentam dificuldades ao preencher solicitações de emprego. Eles frequentemente perdem o acesso a cupons de alimentos, Medicaid e outros benefícios quando os avisos de renovação são enviados para seus endereços antigos. As crianças precisam mudar de escola no meio do ano, prejudicando sua educação.

Grandes grupos de investidores também criam insegurança habitacional, mirando em parques de trailers, alugando trilhas e sugando dinheiro que, de outra forma, seria gasto localmente. Frank Rolfe e Dave Reynolds, que possuem um portfólio de US$ 500 milhões em parques de trailers, administram uma Mobile Home University que ensina aos investidores como iniciar um negócio que promete retornos anuais de até 20%.

Os investidores em estacionamentos residenciais aproveitam o que Rolfe chama de “desprezo da sociedade”. Os moradores de estacionamentos – 6% da população – são incapazes de resistir: são mais propensos a suportar o aumento do aluguel do que a pagar os US$ 3 mil dólares de custo para mover um trailer para outro parque.

Crise no campo

A década de 1980 trouxe a pior crise para a agricultura dos EUA desde a Depressão da década de 1930. O custo dos fertilizantes disparou, as taxas de juros subiram, os bancos cobraram empréstimos e os preços dos grãos despencaram com a perda de vendas para a URSS após a invasão do Afeganistão.

Um punhado de empresas gigantescas ficou com uma parcela cada vez maior dos lucros acumulados entre o portão da fazenda e o prato de jantar, através da rápida consolidação de fornecedores de insumos e máquinas e do processamento e exportação de mercadorias.

Máquinas maiores e mais poderosas possibilitaram que menos agricultores cultivassem áreas maiores, o que agravou os problemas de endividamento, concentração de terras e o declínio na população sustentada pela agricultura. Os sobreviventes da crise dos anos 80 sofreram recentemente uma segunda crise quando o boom das commodities dos anos 2000 chegou ao fim. Entre 2013 e 2017, os agricultores tiveram uma queda de 48% na renda líquida real da fazenda – o maior declínio em quatro anos desde a Depressão. Mais da metade dos proprietários rurais perde dinheiro com a agricultura.

Os efeitos multiplicadores desestabilizam ainda mais as economias locais e as comunidades que deles dependem. A concentração da propriedade agrícola, especialmente quando as empresas substituem as unidades familiares, também leva à diminuição da frequência escolar nos distritos rurais e, muitas vezes, ao fechamento de escolas que há muito eram centros de vida comunitária.

Lojas e lanchonetes de propriedade familiar nas ruas principais da cidade pequena eram locais de contato humano. Eles investiram lucros localmente e deram empregos para famílias rurais. Com a proliferação de shoppings e cadeias de lojas, esses negócios de “mãe e filho” deixaram de existir.

Aproximadamente 600 mil desapareceram entre 2007 e 2012. Mesmo quando a economia se recuperou, as empresas não voltaram aos seus locais anteriores: em 2016, menos de um quarto dos condados dos EUA haviam substituído os negócios perdidos na recessão.

Menos empresas pequenas significa menos receita com publicidade para jornais locais, milhares dos quais foram fechados, já tendo sido prejudicados pela migração de leitores e dólares em anúncios para a Internet. A mesma financeirização destrutiva que tem estrangulado indústrias e bancos locais afeta as empresas de mídia locais. Isso priva as comunidades não apenas de reportagens e anúncios locais, mas também de qualquer espaço para marcar nascimentos, mortes, casamentos, formaturas e realizações esportivas – tudo o que faz com que os habitantes de uma cidade se identifiquem com um lugar e se orgulhem dele. Além disso, pode-se estabelecer uma conexão clara entre o fechamento de jornais e a menor participação eleitoral, redução da competição nas eleições locais e aumento da corrupção do governo, já que as autoridades não enfrentam mais o escrutínio dos “vigias” jornalísticos.

Os fundos de hedge e as empresas de private equity compraram papéis locais a preços de pechincha em todo o país. Eles cortam custos mesclando as funções de produção, vendas e editoriais de vários jornais, reunindo audiências grandes o suficiente para permanecerem atraentes para seus anunciantes (que cada vez mais tendem a ser grandes redes e não empresas locais). Frequentemente, a consolidação significava o fechamento de empresas consideradas de “baixo desempenho”, criando “desertos de notícias” que deixam comunidades menores sem fonte de notícias locais.

Após as primeiras ondas de fechamento de lojas nas principais ruas das cidades pequenas, os empregos de baixo salário nas cadeias e shoppings também começaram a desaparecer com a expansão do comércio eletrônico.

De acordo com a Bloomberg, não foi apenas a concorrência dos comerciantes on-line que impulsionou essa tendência: “A causa principal é que muitas dessas cadeias de longa data estão sobrecarregadas de dívidas – geralmente de aquisições alavancadas lideradas por empresas de capital privado”. O “apocalipse do varejo”desencadeou um círculo vicioso: com o desaparecimento dos negócios de tijolo e argamassa – seja na Main Street ou no shopping – gigantes do comércio eletrônico como a Amazon se tornaram cada vez mais vitais para os moradores rurais, muitos dos quais mal podiam pagar gasolina e o tempo necessários para percorrer longas distâncias para fazer compras.

Para agravar o mal-estar, desde meados da década de 2000, as grandes empresas sobreviventes montaram frequentemente “processos em lojas sombrias”, alegando que sua avaliação tributária deveria se basear na venda de propriedades comparáveis ​​desocupadas. Isso força as pequenas cidades a dedicar fundos escassos a custos legais e corrói ainda mais as bases tributárias locais.

Algumas das poucas lojas de varejo que ainda existem nesse ambiente sombrio são as lojas de um dólar, que afastam os mantimentos estabelecidos do mercado. O número de lojas de um dólar aumentou de 20 mim para 30 mil desde 2011. Cadeias como a Dollar General – cujos proprietários incluem BlackRock e Vanguard e que atendem a clientes que um analista de mercado descreve como “uma subclasse permanente” – podem gastar até US$ 250 mil em uma nova loja; em comparação, um Walmart pode custar mais de US$ 15 milhões.

Os lucros de uma mercearia local costumavam voltar para a comunidade ou para um proprietário que morava nas proximidades. Os lucros da Dollar General vão direto para o escritório empresarial.

Vitrines e shoppings vazios, jornais desaparecidos e pontos de venda crescentes não são apenas sinais de perda de emprego e precariedade econômica. As pessoas do campo as veem como lembretes severos e dolorosos de abandono e um tecido social esgarçado.

Serviços sociais

Nas últimas décadas, os governos federal e estaduais reduziram o financiamento para serviços sociais, diminuindo a força de trabalho do setor público e corroendo suas condições de trabalho. O fechamento de hospitais rurais dobrou entre 2011 e 2013 e 2013 e 14. Muitos tiveram dificuldades devido à falta de pacientes com seguros patrocinados pelo empregador, que geralmente oferecem reembolsos mais altos do que o Medicaid e o Medicare. Os serviços obstétricos estão agora indisponíveis em mais da metade dos municípios rurais. Diante de longas e dispendiosas solicitações aos profissionais, muitas mulheres recebem atendimento pré-natal inadequado, resultando em maiores taxas de mortalidade materna e infantil.

Entre 1990 e 2015, o número de mortes maternas por mil nos EUA subiu para 26,4; na Louisiana, alcançou 58,1 chocantes, a mesma taxa da Jordânia, e um pouco pior do que a encontrada em El Salvador e no Iraque. Durante o mesmo período, as mortes maternas caíram abaixo de 10 por mil na Alemanha, França, Japão, Canadá e Reino Unido. Mais de 440 lares de idosos rurais fecharam ou se fundiram na última década, geralmente porque os pagamentos do Medicaid não são suficientes para cobrir seus custos; quando os residentes precisam se mudar para instalações distantes, ficam afastados de amigos ou de cônjuges idosos que não conseguem fazer a viagem.

As disparidades na saúde se tornam ainda maiores quando as autoridades locais, sem dinheiro, vendem parques públicos para aumentar a receita, privando os moradores de espaço para exercícios e recreação.

As agências dos correios há muito são essenciais para as pessoas nas áreas rurais, que dependem delas para obter informações, medicamentos e contato humano básico. Em 2012, cerca de 3.000 agências postais rurais escaparam por pouco do fechamento, mas um desgaste lento está diminuindo suas fileiras de qualquer maneira. A crescente importância da Amazon nas áreas rurais levou o Serviço Postal dos EUA (USPS) subfinanciado a um ponto de ruptura, uma vez que correios particulares como FedEx e UPS não operam em muitas áreas rurais. Estão trabalhando em turnos mais longos, muitas vezes sem pagamento de horas extras, e estão com falta de pessoal.

Essas condições estão sendo usadas como pretextos para a privatização – junto com o mandato do congresso de 2006 que fazia exigências muito altas ao USPS, fazendo com que seu déficit subisse.

A força-tarefa de Trump para “reformar” o USPS foi parcialmente inspirada pela hostilidade ideológica da direita ao setor público e pela fome de aumentar os lucros dos serviços de correios privados. O fato de a Amazon ser o maior cliente do USPS também foi importante.

Como os impostos sobre a propriedade são uma fonte importante de financiamento para a educação, quando as populações e as bases tributárias diminuem, as escolas fecham, mudam para horários de quatro dias ou consolidam-se com os distritos vizinhos. Isso afasta outro foco vital da vida social das cidades pequenas e da identidade coletiva. Trinta por cento de todos os fechamentos de escolas em todo o país em 2011–12 foram em distritos rurais, prendendo estudantes em áreas isoladas e forçando-os a fazer longas viagens de ônibus que prejudicam seu desempenho escolar.
As bibliotecas públicas rurais são “centros comunitários de fato”, geralmente fornecendo os únicos espaços públicos para reuniões.

Para aqueles incapazes de comprar computadores ou acessar a Internet, as bibliotecas fornecem um gateway essencial para recursos educacionais, informações médicas, serviços governamentais e pedidos de emprego. Embora o fechamento de bibliotecas em cidades devastadas como Detroit tenha recebido muita atenção após a crise de 2008, o mesmo quadro pode ser encontrado em todo o país, especialmente nas áreas rurais: horário de funcionamento reduzido, dificuldades em manter pessoal qualificado, instalações inadequadas e deterioradas e cortes de financiamento. Lobbies poderosos da direita, como o Americanos para a Prosperidade, dos irmãos Koch, também fizeram campanha contra iniciativas que buscavam financiar bibliotecas públicas.

Quando as escolas subfinanciadas caem na mediocridade, o pensamento crítico sofre e as pessoas se tornam mais suscetíveis à manipulação demagógica e aos truques das mídias sociais. Os cortes na biblioteca pública têm o mesmo efeito. Como o St. Louis Post-Dispatch publicou em 2016: “não financie bibliotecas. Crie uma nação de tolos”.

Opioides

A escala do problema dos opioides é impressionante. Em 2015, 92 milhões de pessoas – 38% dos adultos nos EUA – usavam opioides prescritos, com 11,5 milhões (quase 5%) relatando uso indevido. Os distribuidores farmacêuticos comercializavam agressivamente analgésicos como OxyContin e fentanil: em alguns estados, os médicos escreviam mais receitas do que o número de moradores. De 2008 a 2017, as empresas farmacêuticas enviaram quase 21 milhões de comprimidos de opioides para apenas duas farmácias em uma cidade rural da Virgínia Ocidental, com uma população de 2.900 habitantes. Não surpreende que as mortes por overdoses sejam maiores na Virgínia Ocidental do que em qualquer outro estado dos EUA.

De acordo com a Lei de Substâncias Controladas, os atacadistas são obrigados a relatar pedidos suspeitos à Administração de Repressão às Drogas. No entanto, de acordo com um relatório do Comitê de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado, os “três grandes” distribuidores – McKesson, AmerisourceBergen e Cardinal Health – “falharam consistentemente em cumprir essas obrigações nos últimos dez anos.” As empresas segmentavam regiões, médicos e até pacientes individuais para aumentar as vendas. Subestimaram sistematicamente os riscos do vício e até adquiriram patentes para tratamento do vício, para que pudessem se beneficiar do desastre que haviam feito tanto para criar.

Os médicos que atuam com “fábricas de comprimidos” se engajaram em esquemas para enganar o Medicaid e seguradoras privadas. Eles frequentemente aceitam propinas de fabricantes de medicamentos e palestras lucrativas, onde divulgam as virtudes e minimizam os perigos de opioides específicos. A Big Pharma gasta mais do que qualquer outro lobby em Washington.

A cada ano, mais cidadãos morrem de overdose de drogas do que nas guerras do Vietnã, Afeganistão e Iraque. Para piorar as coisas, o flagelo da metanfetamina, centrado nas áreas rurais, “voltou com força total” depois de ter desaparecido nos anos 2000. Em alguns estados, as mortes por metanfetamina superam em muito as dos opioides.

Encarceramento branco

As taxas de encarceramento de pessoas brancas – especialmente mulheres brancas – aumentaram desde 2000, provavelmente devido ao aumento da presença da polícia nas áreas rurais consumidoras de drogas. Os viciados em drogas também tornam familiares, vizinhos e funcionários não confiáveis, comprometendo ainda mais a coesão social e a vida econômica.

Muitos da classe trabalhadora que apoiam Trump experimentam estresse financeiro severo, agravado por altos níveis de diabetes, falta de exercício, bebida pesada e obesidade. Os pesquisadores consideram o estresse precursor e consequência dessas condições, e um elemento no desenvolvimento do medo, do ódio por grupos externos e da simpatia pelo autoritarismo.

Em 2017, pelo terceiro ano consecutivo, a expectativa de vida nos EUA caiu, com overdoses de drogas e outras “mortes por desespero” desempenhando um papel significativo. De 1999 a 2016, as taxas de suicídio aumentaram em 49 dos 50 estados, com aumentos de mais de 30% em 25 estados mais rurais. Os agricultores, em particular, estão se matando em números recordes.

Trump aproveitou essa raiva e alienação. Seu racismo, autoritarismo casual, nacionalismo simplório e promessas exageradas atingiram comunidades despedaçadas. O enquadramento de Trump na crise econômica atraiu os instintos de uma audiência que há muito abrigava temores existenciais e profundos ressentimentos contra elites cosmopolitas, minorias raciais, imigrantes e parceiros comerciais estrangeiros inescrupulosos. Os discursos de Trump também apelaram para empresários ricos bem-intencionados, que lideram a retórica republicana sobre regulação “pesada”, “grande governo” e minorias “indignas”, imigrantes ou funcionários públicos. Os brancos que são intolerantes a “grupos externos” são menos favoráveis à democracia e mais propensos a ansiar por um “líder forte”.

Em 2016, as pessoas rurais tinham visto governos aparentemente incapazes ou relutantes em lidar com a convergência de múltiplas crises que afligem suas comunidades. Isso reviveu memórias passadas de promessas não cumpridas – especialmente as das administrações democratas neoliberais. O Partido Democrata não conseguia sequer perceber a existência de uma crise, muito menos apresentar soluções críveis – e necessariamente radicais – para ela.

Ao nomear uma candidata, Hillary Clinton, que era amplamente vista e com precisão como um membro da classe política estabelecida, emprestou credibilidade à fala bombástica de Trump sobre a “carnificina americana”. Como em outros países onde populistas da direita demagógicos ganharam o poder, setores da população que sofriam maior marginalização econômica puniram os “moderados” e “centristas”. O sentimento de abandono e mobilidade para baixo tornou os moradores rurais brancos, nos EUA, mais receptivos a um candidato que falou sobre sua angústia em termos familiares.

O declínio rural não foi simplesmente produto da desindustrialização, do livre comércio, da crise agrícola ou da automação. Desde a década de 1980, o capital financeiro desenvolveu novas maneiras imaginativas de ganhar dinheiro e apreender uma ampla gama de ativos soa distritos rurais, desde fábricas até bancos de poupança mútua, lojas locais e jornais — ou até mesmo o sangue das pessoas. Uma agenda de austeridade, que priorizou cortes de impostos para os ricos, minou a capacidade das pequenas comunidades de financiar instituições vitais, como escolas, bibliotecas e asilos.

Políticas de desregulamentação dizimaram, corroeram as normas de saúde e segurança no local de trabalho e devastaram o meio ambiente. Os trabalhadores se viram presos em empregos precários, e com mais de um emprego de baixo salário, para poder pagar suas despesas, muitas vezes sem saber quais turnos seriam dadas até o último minuto ou privados de quaisquer direitos trabalhistas como os chamados “contratados independentes”. A maior parte da vasta riqueza produzida pelas zonas rurais acabou nos bolsos dos acionistas de empresas e instituições financeiras sediadas em centros urbanos distantes.

Populismo de extrema-direita

Insistir na importância dessas crises para explicar a ascensão de Trump não é minimizar o racismo de muitos de seus apoiadores, que em 2016 incluíram a maioria dos eleitores brancos da classe trabalhadora e ricos, mulheres e homens. Os ultrajes diários da administração Trump parecem ter pouco ou nenhum impacto na devoção da base do presidente. Se o “trumpismo” é ou não “uma religião fundada no patriarcado e na supremacia branca” – como Charles M. Blow sugeriu no New York Times – ou um culto de carga milenar de pessoas desesperadas “implorando por fábricas”, nas palavras de Mike Davis, sua atração depende muito de apelos emocionais e gatilhos, assim como regimes populistas de direita em outros lugares.

Também serve de fachada protetora para um projeto de extrema-direita que invoca “valores familiares”, atitudes retrógradas sobre gênero e sexualidade, e uma visão excludente da nação para jogar sobre divisões sociais, reverter ganhos progressistas e intensificar a exploração dos seres humanos e do meio ambiente.

A tarefa de reverter o ataque populista de direita não poderia ser mais urgente. No mínimo, deve envolver investimentos públicos maciços, financiados pela tributação progressiva, para criar uma sociedade mais estável, inclusiva e justa que ofereça oportunidades para todos – especialmente nas zonas que foram sacrificadas ao capital ao longo destes passados 30 anos.

Sobre o autor

Marc Edelman é professor de antropologia no Hunter College e no CUNY Graduate Center.

24 de janeiro de 2020

Compras governamentais

Será que risco de corrupção só existe na contratação de empresas brasileiras?

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

O Fórum Econômico Mundial tentou, neste ano, escapar das acusações de "hipocrisia climática". Denis Balibouse/Reuters

Nesta semana houve o Fórum Econômico Mundial, aquele evento privado em Davos, com palestras interessantes e outras nem tanto.

Em sua passagem por lá, nosso ministro da Economia disse que o Brasil assinará o acordo internacional de compras governamentais (GPA em inglês), dando tratamento isonômico às empresas domésticas e estrangeiras.

Segundo Guedes, assinar o GPA aumentará a concorrência, reduzirá preços e evitará corrupção nas compras do governo. Os dois primeiros objetivos estão corretos, mas o ministro acha mesmo que risco de corrupção só existe na contratação de empresas brasileiras? Sugiro mais informação sobre o tema e menos preconceito em relação ao Brasil, mas vamos em frente.

Até agora o acordo foi assinado por 48 países ou áreas, dos quais 29 na União Europeia. Japão e EUA também são signatários, a China é observadora (somente a jurisdição de Hong Kong está incluída) e os demais membros dos BRICS não fazem parte do acordo.

Devemos aderir? A resposta não é simples.

De um lado, mais liberal, a abertura das compras do governo terá os dois primeiros efeitos apontados por Guedes, melhorando a eficiência da economia. Porém, de outro lado, mais desenvolvimentista, o Brasil renunciará a um instrumento importante para gerar inovação e empregos de alta qualificação no país.

Todo instrumento pode ser bem ou mal gerido. Um automóvel pode ser meio de transporte ou máquina mortífera, dependendo de como é guiado. O mesmo se aplica a várias ações de governo e, na história econômica, muitos países utilizam compras governamentais para o seu desenvolvimento.

O caso dos EUA é emblemático. O “Buy American Act” permite ao governo de lá dar preferência a produtos domésticos. A prática já mudou bastante desde que foi criada, em 1933, mas mesmo sendo signatário do GPA, o governo norte-americano recentemente usou margem de preferência doméstica em alguns setores.

Para ser eficiente no desenvolvimento econômico, a margem de preferência deve ser temporária, baseada em estudos técnicos, e seus efeitos averiguados de modo transparente. Esta foi exatamente a proposta aprovada durante o governo Lula, Lei 12.349/2010, mas pouco utilizada desde então.

E quando não devemos usar margem de preferência? Voltando aos EUA, por lá isto não se aplica em três casos: interesse público, preço doméstico não razoável e ausência de produção doméstica na quantidade e qualidade adequadas.

Como é praxe nos EUA, os três critérios são vagos, deixando o gestor público utilizar o instrumento com pragmatismo, prestação de contas e reavaliação periódica.

E no Brasil? Para produtos não comercializáveis, como obras de construção civil, não faz muito sentido dar margem de preferência. A atividade será realizada aqui, com trabalhadores e insumos na sua maioria brasileiros.

Já em produtos intensivos em pesquisa e desenvolvimento, margens de preferência podem impulsionar a criação de capacidades produtivas no país (exemplo: Embraer), o que dificilmente ocorreria sob livre concorrência.

A chave é saber usar o instrumento e, mesmo assinando o GPA, vários países continuam aplicando preferência doméstica em algumas modalidades de compras governamentais, para estimular o desenvolvimento tecnológico e preservar a segurança nacional.

Em vez de ficar empacado no debate ideológico, o ideal é discutirmos onde, quando e como devemos utilizar o instrumento. É difícil o atual Ministério da Economia desapegar de ideologias, mas como o acordo terá que passar pelo Senado, a discussão ainda vai longe.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O mais recente esquema travado da oposição venezuelana

A oposição venezuelana falhou repetidamente em depor Nicolás Maduro. Agora, está lançando um esforço para que Donald Trump intervenha e tenta vincular Maduro ao Irã e ao Hezbollah.

Tim Gill


Opposition leader Juan Guaidó speaks during a session called by opposition lawmakers at Anfiteatro El Hatillo on January 15, 2020 in Caracas, Venezuela. Carolina Cabral / Getty

Tradução / Embora Donald Trump tenha feito campanha criticando o abuso irrestrito da guerra militar – principalmente no Iraque -, ele descartou essa postura desde que assumiu o cargo, favorecendo a retórica belicosa sobre a ação diplomática. Trump pressionou pelo aumento do orçamento militar e demonstrou pouco interesse em reduzir a intervenção dos EUA. Nas últimas semanas aprovou o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani e comprometeu mais tropas dos EUA no Oriente Médio.

Como o Irã é a região chave da política externa de Trump, a oposição na Venezuela tenta atrair sua atenção, vinculando o presidente Nicolás Maduro àquele país do Oriente Médio e ao Hezbollah.

Há um ano, Trump acreditava que poderia facilmente depor Maduro e colocar o líder da oposição Juan Guaidó no Palácio de Miraflores. Trump reconheceu Guaidó como presidente oficial da Venezuela e conspirou em vários esquemas para levar as Forças Armadas venezuelanas para o lado de Guaidó e depor o presidente legítimo. Quando esses esforços fracassaram, os EUA continuaram a sancionar o governo venezuelano e ameaçou países e empresas estrangeiras que trabalhavam com o país latino-americano.

Mas Maduro continuou firme e, nesse ponto, os EUA foram derrotados. O próprio Trump parece ter chegado a compreender que Maduro é um “biscoito duro”, e pode não sair do cargo tão silenciosamente. Trump pode esporadicamente protestar contra Maduro e aumentar as sanções, mas o presidente venezuelano mantém a lealdade dos militares e demonstrou grande capacidade de resistir e se manter no poder.

Daí a nova estratégia de vincular Maduro ao governo iraniano e ao Hezbollah. Recentemente, Guaidó esteve na Colômbia, onde se reuniu com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em uma suposta “conferência antiterrorista”. O objetivo expresso da viagem foi permitir que Guaidó apresentasse evidências de que o governo Maduro está conspirando com o Hezbollah, um partido político e organização militar apoiado pelo governo iraniano, mas que os EUA classificam como uma organização terrorista.

Em um encontro, em 20 de janeiro, com o secretário Pompeo, Guaidó afirmou que os venezuelanos vivem sob “uma ditadura que tem vínculos com o ELN [grupo militante de esquerda na Colômbia] e o Hezbollah e que não teve vergonha de se infiltrar nas diferentes organizações no assassinato de políticos na Venezuela”. Pompeo tocou o mesmo alarme, insistindo que “seja o ELN ou as FARC, existem elementos do Hezbollah em muitos países da América do Sul”.

Há muito que Pompeo concorda com essas alegações, tendo afirmado, em fevereiro de 2019, numa entrevista à Fox News, que “o Hezbollah tem células ativas – os iranianos estão impactando o povo da Venezuela e da América do Sul”. Desde o governo de Hugo Chávez, militares norte-americanos e os membros da oposição venezuelana levantaram acusações falsas de que a Venezuela trabalhava ativamente com o Hezbollah e dava refúgio a seus membros. O objetivo era claro: dar aos EUA um pretexto para designar a Venezuela como patrocinadora do terrorismo e deslegitimar o governo de Chávez.

A oposição venezuelana agora segue o mesmo manual. Reconhecendo que Trump pode estar menos interessado em depor imediatamente Maduro, a oposição venezuelana tenta capitalizar as crescentes tensões de Washington com Teerã. Carlos Vecchio, embaixador autoproclamado de Guaidó nos EUA, disse ao jornal Washington Examiner que “não precisamos esperar a tragédia para agir”, referindo-se a uma suposta presença do Hezbollah na Venezuela.

Assim como Soleimani e os supostos ataques iminentes que planejava, Pompeo e Guaidó não dão evidências que apoiem suas suspeitas infundadas. Não está claro a que “assassinatos políticos” Guaidó se referiu em sua entrevista coletiva e como e por que o Hezbollah pode estar envolvido. Assim também, com a intrigante e infundada alegação de Pompeo de que o Hezbollah está ligado ao ELN e às FARC.

Ao mesmo tempo, esses vínculos confusos estão fora de questão. As alegações instáveis ​​nunca impediram aos líderes dos EUA assassinar indivíduos no exterior ou de fingir pretensões de iniciar uma guerra militar. Se os líderes estadunidenses e seus aliados puderem formular uma narrativa para justificar suas ações no exterior, eles o farão. Drones atacando um líder do governo iraniano visitando um país soberano pode parecer inconcebível para alguns – ainda assim aconteceu em Bagdá, no assassinato do general iraniano.

Mas é preciso ser claros: o que os líderes da oposição venezuelana estão pressionando, com ajuda de seu aliado, o teórico da conspiração Mike Pompeo, é descarado, desesperado e perigoso. Em 2019, eles incentivaram levantes militares, sanções externas e isolamento internacional. Os líderes dos EUA, de ambos os partidos, pediram às Forças Armadas venezuelanas que desertem e deponham o governo Maduro. Trump pode não se importar com o que acontece na Venezuela, mas muitos ao seu redor certamente se importam – pessoas como o senador Marco Rubio e o conselheiro de Trump Mauricio Claver-Carone. Eles adorariam dar corda à história dos EUA para derrubar líderes latino-americanos.

A oposição na Venezuela percebeu que perdeu força. Sua nova peça é um esforço de última hora para trazer Washington de volta ao país. Enquanto o desespero da oposição segue, não devemos deixar passar nenhuma conspiração.

Sobre o autor

Tim Gill é professor de sociologia na Universidade da Carolina do Norte.

23 de janeiro de 2020

''Os poderosos não aceitam mais uma aposentadoria que seja produto da solidariedade coletiva''

"Le Monde" publica a declaração do filósofo, feita em 16 de janeiro, diante dos trabalhadores ferroviários em greve na estação Vaugirard

Jacques Rancière



Se estou aqui hoje, é evidentemente para declarar total apoio a uma luta exemplar, mas também para dizer em algumas palavras por que ela me parece exemplar.

Passei alguns anos da minha vida estudando a história do movimento operário, e isso me mostrou uma coisa essencial: o que chamamos de conquistas sociais são muito mais do que os benefícios obtidos por grupos particulares, são a organização de um mundo coletivo regido pela solidariedade.

O que é este regime especial (de aposentadoria) dos ferroviários que nos é apresentado como um privilégio arcaico? Era um elemento da organização de um mundo comum, onde as coisas essenciais para a vida de todos deviam ser propriedade de todos. As ferrovias pertenciam à coletividade. E essa propriedade coletiva era gerida também por um grupo de trabalhadores que se sentiam comprometidos com essa comunidade; trabalhadores para quem a aposentadoria de todos era produto da solidariedade de um coletivo concreto.

Demolir tijolo a tijolo

É essa realidade concreta do coletivo solidário que os poderosos de nosso mundo não mais aceitam. É esta construção que eles pretendem demolir tijolo a tijolo. O que eles querem é que o fim da propriedade coletiva, dos coletivos de trabalhadores e da solidariedade a partir da base. Querem que haja apenas indivíduos que possuem sua força de trabalho, um pequeno capital que se pode alugar aos capitais maiores. Indivíduos que, ao se vender dia após dia, acumulem pontos para si e somente para si, enquanto aguardam um futuro em que as aposentadorias não serão mais baseadas no trabalho, mas no capital, isto é, na exploração e na autoexploração.

É por isso que a reforma da previdência é tão decisiva para eles, muito além da questão concreta do financiamento. É uma questão de princípio. A aposentadoria representa como o tempo de trabalho produz tempo de vida e como cada um de nós está ligado a um mundo coletivo. A questão toda é saber o que gera esse elo: a solidariedade ou o interesse privado. Demolir o sistema de aposentadorias fundado na luta coletiva e na organização solidária seria uma vitória decisiva para nossos líderes. Já puseram todas as suas forças nessa batalha duas vezes – e perderam. É preciso fazer tudo hoje para que percam uma terceira vez e abandonem a batalha definitivamente.

A luta de classes construiu o Estado de bem-estar social finlandês

Muitos mitos e meias-verdades circulam sobre países nórdicos como a Finlândia. Mas não se engane: socialistas e trabalhadores militantes construíram o estado social finlandês - não uma elite esclarecida ou pró-negócios.

Tatu Ahponen

Jacobin

Praça do Senado de Helsinque, janeiro de 2017. Tyg728 / Wikimedia.

Tradução / No final do ano passado, foram publicadas notícias de que a primeira-ministra finlandesa Sanna Marin, uma social-democrata de 34 anos, queria reduzir a semana de trabalho para quatro dias e trinta horas. O plano rapidamente chamou a atenção do resto do mundo: parecia que a Finlândia estava novamente definindo um padrão de reformas progressivas ambiciosas.

Marin se apressou em esclarecer que a proposta era sua, não do governo de centro-esquerda, mas, ainda assim, o episódio lançou luz sobre o atraente modelo finlandês, uma espécie país modelo entre as colinas para aqueles que não vivem em países nórdicos.

Muitas vezes, discussões sobre o modelo finlandês se transformam em um debate sobre a Finlândia ser, de fato, socialista. O último artigo a entrar nessa seara foi publicado pelo New York Times em dezembro, de autoria de Anu Partanen e seu marido, Trevor Corson. Partanen é uma correspondente experiente da imprensa norte-americana na Finlândia, muitas vezes convidada a explicar as particularidades dos estados de bem-estar social nórdicos para o público estadunidense. No artigo, os dois argumentam que, longe de um reduto socialista, a Finlândia é um “paraíso capitalista”, certamente um bálsamo para muitos liberais nos Estados Unidos e direitistas na Europa que desejam reivindicar as realizações do estado de bem-estar social sem ceder à esquerda.

Partanen e Corson enfatizam, entre outras coisas, o sistema público de educação, creches e assistência médica da Finlândia, ao mesmo tempo em que observam que o país também possui um setor empresarial robusto que se beneficia desses serviços. “Enquanto as empresas nos Estados Unidos lutam para administrar planos de saúde e encontrar trabalhadores com formação suficiente”, escrevem os autores, “as sociedades nórdicas exigiram que seus governos provessem serviços públicos de alta qualidade a todos os cidadãos. Isso permite que as empresas se concentrem naquilo que fazem de melhor: negócios”.

Então eles estão certos? A Finlândia é mais capitalista do que socialista?

Partanen e Corson não estão totalmente equivocados. Se, por socialismo, entendemos o socialismo de Estado da União Soviética, seria bobagem chamar a Finlândia de socialista. O setor empresarial nórdico está vivo e saudável, assim como a democracia eleitoral e a imprensa. Também não podemos dizer que os países nórdicos alcançaram o socialismo democrático. Embora os sindicatos sejam fortes e o setor público represente uma parcela muito maior da economia, não é como se os trabalhadores fossem donos e controlassem os meios de produção.

A Finlândia e os Estados Unidos são sistemas mistos, com doses de socialismo e capitalismo. No entanto, a Finlândia é claramente mais socialista que os Estados Unidos. Como Matt Bruenig observou, a propriedade estatal e a sindicalização dos trabalhadores nórdicos são muito maiores que nos Estados Unidos. “O governo finlandês”, escreve Bruenig, “possui quase um terço da riqueza do país. Para que os Estados Unidos correspondam a esse valor, o governo dos EUA precisaria transferir cerca de US$ 35 trilhões em ativos para a propriedade pública”. E quanto à densidade da união? “Cerca de 90% dos trabalhadores finlandeses são protegidos por algum acordo sindical. Para elevar os Estados Unidos aos níveis finlandeses, seria necessário sindicalizar mais 119 milhões de trabalhadores.”

Partanen e Corson demonstram surpresa pelo fato de o think tank da Freedom House classificar a Finlândia como mais livre do que os Estados Unidos, aparentemente associando falta de corrupção e facilidade de burocracia ao capitalismo, e não ao socialismo. Mas isso pressupõe que a corrupção e a burocracia são inerentes a sistemas mais socialistas, e que sua ausência indica um regime pró-negócios. Certamente, qualquer socialista que se preze consideraria coisas como propriedade pública e densidade sindical como índices mais claros do “nível de socialismo” em uma sociedade do que a existência de um setor privado.

Fundamentalmente, os autores também entenderam erroneamente a história do estado de bem-estar social finlandês. A dupla reconhece o papel da esquerda socialista na história finlandesa, mas também a subestima, apontando para a fracassada revolução socialista da Finlândia e a recente fraqueza da esquerda finlandesa. No entanto, durante a fase mais ativa da construção do Estado de bem-estar social, a esquerda foi consideravelmente mais forte, com os social-democratas e a Liga Democrática Popular da Finlândia (efetivamente a organização eleitoral do Partido Comunista da Finlândia), contando com cerca de metade dos deputados do país.

O mais importante foi a militância trabalhista. A história das greves no país é tão forte que, de fato, as recentes paralisações (que levaram entre 60 mil a 100 mil pessoas e provocaram a queda de um governo) foram levadas em grande parte a passos largos: é o que os sindicatos fazem; eles fazem greves. E mesmo essas greves foram pequenas em comparação com as grandes greves do passado, incluindo a greve geral de 1956 (envolvendo meio milhão de trabalhadores) e uma greve dos metalúrgicos em 1950 que durou dez dias, ambas demonstrando a potência do movimento trabalhista e forçando grandes concessões da capital. Os capitalistas finlandeses finalmente concordaram em negociações nacionais anuais que definem os salários para todos os trabalhadores sindicalizados.

Os acordos coletivos foram apenas um dos frutos da década de 1966 a 1976, período que demonstrou o desenvolvimento mais veloz para o estado de bem-estar da Finlândia. Um grande número de programas considerados essenciais para o estado de bem-estar social foi aprovado durante esse período: ensino fundamental universal, aposentadorias mínimas para famílias, creche universal, leis sobre segurança e saúde ocupacional e vários outros. Todos foram conquistados com a pressão constante do movimento trabalhista e dos partidos socialistas, dentro ou fora do governo.

É importante mencionar que o estado de bem-estar social finlandês costumava ser um compromisso que não satisfazia o trabalho nem o capital. Quando se tratava de alguns serviços (digamos, seguros de saúde ou pensões para idosos) os sindicatos preferiam que os capitalistas pagassem a conta inteira, enquanto os empresários naturalmente eram reticentes quanto a essa perspectiva. O Estado agiu como intermediário, oferecendo o serviço como provisão pública e, portanto, dando aos trabalhadores os programas e a segurança que eles almejavam, liberando o capital dessa responsabilidade. Ambos lançaram impostos para financiar o programa.

Também seria errado dizer que a esquerda e os sindicatos eram a única força política por trás da formação do Estado de bem-estar social. Alguns apoiadores o fizeram por razões tecnocráticas, acreditando – muitas vezes com bons motivos – que o desenvolvimento orientado pelo Estado produziria melhores resultados econômicos do que a simples dependência do mercado. (Muitas das empresas estatais estabelecidas na década de 1950 eram lideradas por gerentes capitalistas pragmáticos recrutados no setor privado.)

Outros pressionaram o Estado de bem-estar por razões nacionalistas, vendo-o como um meio de manter a lealdade da classe trabalhadora e desenvolver a economia da Finlândia. No entanto, mesmo aqueles que apresentaram tais argumentos, acharam-nos mais fáceis devido ao peso social do trabalho e à esquerda. Uma secretária do Partido do Centro descreveu a tarefa do partido na década de 1950: “ir tão à esquerda que até nos horroriza”.

O resultado não é o socialismo, mas é sem dúvida o modelo mais humano que o mundo já viu. E, com certeza, não foi algo decidido em um comitê tecnocrático ou conquistado simplesmente através de uma campanha de persuasão moral. Foi o produto orgânico de milhares de lutas diferentes, algumas delas decorrentes do movimento trabalhista tradicional, outras do movimento das mulheres (por licença-maternidade). Um relato do estado de bem-estar social que ignora essas batalhas sociais propõe às pessoas uma imagem distorcida do que o provocou e como pode ser conquistado em outras partes do mundo.

Nos Estados Unidos, os ganhos social-democratas não serão alcançados devido às preferências esclarecidas das elites ou à eleição de um presidente único com todos os planos certos. Serão necessárias luta política e organização, particularmente da classe trabalhadora organizada. Essa organização pode não levar a um sistema que seja uma cópia direta do estado de bem-estar nórdico. Porém, talvez leve a um sistema com características próprias, que vai além dos limites dos nórdicos e apresenta um modelo que pode, por sua vez, servir como um novo exemplo para a Europa e todo o mundo, uma nova cidade vibrante na colina.

Sobre o autor

Tatu Ahponen vive em Tampere, Finlândia. Ele é membro da Aliança de Esquerda e vice-membro do conselho do partido.

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