25 de março de 2020

Lições de Wuhan

Se não debatermos uma resposta democrática às pandemias agora, corremos o risco de ceder a liderança aos tiranos.

Mike Davis

The Nation

Os funcionários almoçam enquanto ficam a dois metros um do outro na fábrica de Dongfeng Fengshen em Wuhan, província de Hubei, China. (Getty Images)

Tradução / Um artigo recente na revista Infection discute as razões para o aparente sucesso da China na supressão da primeira vaga de Covid-19. A quarentena draconiana em Wuhan e nas cidades vizinhas, como as restrições nacionais a viagens, reduziram dramaticamente a velocidade da transmissão para o resto da China. Isto permitiu a milhares de médicos, enfermeiros e pessoal de emergência de toda a China irem para Hubei, onde tiveram os testes necessários, os ventiladores, as máscaras de proteção e as camas para tratar um grande número de casos críticos.

Segundo os relatórios chineses, corroborados pela Organização Mundial de Saúde, o número de casos foi mantido em um milhão de pessoas, de um total de 57 milhões da população da província de Hubei, uma taxa de menos de 2%, menor do que a que se esperava. Em contraste, o governador da Califórnia, Newsom, escreveu ao presidente Trump que os peritos do estado preveem uma taxa de infeção da população de 56% (25,5 milhões de casos) nas próximas oito semanas.

Naturalmente, à medida que a China relaxa a quarentena e os trabalhadores voltam às fábricas e escritórios, a infeção pode regressar, na ausência de uma vacina. Há sinais alarmantes de que isso pode estar a acontecer, com cidadãos chineses a trazerem de volta a infeção de Itália e de outros lugares. Os três países asiáticos que, como a China, suprimiram os surtos locais – Taiwan, Singapura e Coreia do Sul – sofrem a mesma ameaça iminente. Mas, tendo ganho a confiança pública, atuarão provavelmente ainda mais depressa para controlar a segunda vaga, mesmo que a um custo económico elevado.

O sucesso espetacular da China, mesmo que temporário, foi atribuído por muitos jornalistas ocidentais e responsáveis públicos ao facto de ser um estado quase-totalitário de vigilância. A sua prova principal é a reação precoce dos burocratas locais, que suprimiram dados vitais e enganaram a imprensa. Mas é difícil que isso seja a história completa.

Como o senador republicano da Luisiana, Bill Cassidy, que é um gastroentrologista reconhecido, sublinhava há poucos dias, os cientistas médicos chineses foram “impressionantes” em partilhar rapidamente informação vital com a comunidade mundial. De facto, o fluxo constante de relatórios e estatísticas tornou-se a fundação informativa para conduzir a luta em quase todo o lado. Vejam o site Covid do Instituto Nacional de Saúde e leiam a literatura.

Ao mesmo tempo, a China e Cuba estão a elevar as pressão ao fornecerem uma significativa ajuda e peritagem médica a nações pobres. Os médicos internacionalistas cubanos têm estado desde há décadas na primeira linha de resposta a epidemias no Terceiro Mundo, sofrendo elevadas perdas nas batalhas recentes contra o Ébola na África ocidental. São as tropas de choque confiáveis, mas os chineses também trazem a artilharia pesada, contentores de testes, fatos de proteção e outro material. Enquanto os irmãos europeus de Itália, no que pode ser um golpe de morte para o projeto europeu, fecham as fronteiras e recusam partilhar recursos, a China prepara uma operação médica massiva em coordenação com a Rússia.

Pequim, como se compreende, está a lutar por uma política hegemónica e a tentar refrescar a sua imagem no momento em que Washington colocou na Estátua da Liberdade o cartaz “fiquem longe e nem telefonem”, e a Organização Mundial de Saúde está paralisada pela inação dos governos ocidentais. Para um camponês da Libéria ou uma mãe no Quénia, ou para um italiano idoso fechado no seu apartamento, o que conta não são promessas mas máscaras, medicamentos e muitos médicos no terreno.

Ao reconhecer os feitos da China, no entanto, devemos evitar concluir a lição errada: a capacidade pública para uma ação decisiva numa emergência não necessita de uma supressão da democracia. Apesar do que muitos estão a afirmar, colocar um milhão de Uígures em campos de reeducação não era uma pré-condição para combater o vírus em Hubei, nem a prática de Big Brother de vigiar as ruas de todas as cidades da China, nem marcar o seu “crédito social” são relevantes para a quarentena nacional.

Mesmo assim, é inevitável que os líderes de extrema-direita na Casa Branca, em Downing Street e noutros lugares, venham a aproveitar todas as oportunidades, como no 11 de setembro, para se apropriarem de novos poderes autoritários, explorando as consequências da sua própria inação e da liderança desastrosa, para criarem mais precedentes no fecho de espaços públicos, proibindo assembleias ou mesmo suspendendo eleições.

É por isso que devemos debater os modelos democráticos de uma resposta efetiva às pragas do presente e do futuro, para mobilizar a coragem popular, para dar uma direção à ciência, para usar os recursos disponíveis para um sistema abrangente de saúde universal e de medicina pública. De outro modo, cederemos a liderança desta era de emergência constante aos nossos tiranos.

Sobre o autor

Mike Davis, editor colaborador do The Nation, é escritor, historiador e ativista político. Seu próximo livro, Set the Night on Fire: L.A. in the Sixties, em co-autoria de Jon Wiener, sai em abril.

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