6 de março de 2020

A Europa está finalmente enviando ajuda à Grécia (só que para expulsar refugiados)

Desde 2016, a União Europeia terceirizou a repressão aos migrantes para a Turquia, subornando o regime de Erdogan para impedir a chegada de refugiados. Mas, quando Ancara abandonou o acordo, o estado grego tornou-se guarda de fronteiras da Europa - com consequências mortais para os apátridas e despossuídos.

Tommaso Segantini


Um requerente de asilo mostra cartuchos de gás lacrimogêneo lançados pela polícia grega na passagem da fronteira de Pazarkule em Edirne, na Turquia, enquanto continuam esperando para entrar na Grécia em 5 de março de 2020. Gokhan Balci / Agência Anadolu via Getty

Uma enorme crise humanitária está se desenrolando atualmente em solo europeu.

No que alguns interpretaram como uma tentativa da Turquia de pressionar os países europeus a ajudarem suas operações militares na Síria e a fornecer ajuda financeira, o presidente do país, Recep Tayyip Erdoğan, abriu, em 28 de fevereiro, repentinamente suas fronteiras com a Grécia.

Isso inevitavelmente estimulou as esperanças de muitos refugiados na Turquia que desejam chegar na Europa. Agora um grande número de refugiados está tentando entrar na Grécia. A Turquia é um dos principais países receptores de refugiados do mundo e atualmente abriga cerca de 4 milhões – a maioria sírios.

A Grécia respondeu enviando tropas para impedir que os refugiados cruzassem suas fronteiras, afastando-os violentamente e suspendendo os pedidos de asilo. O governo de direita do partido Nova Democracia prometeu ainda deportar os imigrantes que conseguissem entrar no país.

Todas essas medidas são ilegais sob o direito internacional. Elas violam diretamente o princípio da não repulsão, que garante o acesso dos refugiados a um procedimento justo de asilo e os protege de serem devolvidos aos países onde correm risco de vida e perseguição. Tudo isso ficou claro pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que afirmou que a lei dos refugiados não fornece à Grécia “nenhuma base legal para a suspensão da recepção de pedidos de asilo”.

Além dessas medidas, houve uma repressão violenta contra os movimentos de refugiados. Confrontos entre imigrantes e guardas na fronteira resultaram na morte de um refugiado sírio assassinado a tiros pela polícia grega e um garoto se afogou quando um barco afundou na costa de Lesvos. A guarda costeira grega também foi filmada dando tiros para forçar barcos com refugiados a voltarem à Turquia. Várias ONGs e voluntários que operam na ilha foram forçados a suspender suas atividades depois que multidões de grupos de extrema-direita começaram a atacar trabalhadores humanitários e jornalistas.

As autoridades européias, no entanto, declararam sua solidariedade com o governo grego. A UE prometeu nesta semana 700 milhões de euros em ajuda financeira, juntamente com “embarcações de patrulha costeira, helicópteros e veículos” para garantir que “a ordem seja mantida na fronteira externa da Grécia”. Eles estão apoiando os esforços de militarização fronteiriça da Grécia, reforçando as medidas descritas pela Anistia Internacional como “desumanas” e uma “traição terrível de [suas] responsabilidades com os direitos humanos”.

Hipocrisia da Europa
Acrise atual é uma consequência direta do acordo da UE de 2016 com a Turquia. Aqui, os países europeus deram a Erdoğan a luz verde para suas ambições no Oriente Médio, restrições de vistos mais flexíveis para cidadãos turcos e 6 bilhões de euros em ajuda – tudo em troca da Turquia estreitar suas fronteiras com a Grécia e impedir que refugiados chegassem à Europa.

Semelhante ao pacto anteriormente firmado entre a Itália e o ditador líbio Muammar Gaddafi, o acordo de 2016 também deu a Erdoğan uma arma poderosa para chantagear e desestabilizar a Europa – com a ameaça de que Istambul aliviaria seu controle e permitiria que refugiados cruzassem a Grécia à vontade. A crise atual mostra claramente essa chantagem em curso. Estudiosos e ativistas criticaram o acordo como ilegal sob o direito internacional, bem como pelo fato de ele simplesmente deixar de lado as considerações sobre direitos humanos.

Esse tipo de estratégia de contenção é, entretanto, consistente com as práticas mais amplas de externalização de fronteiras que a UE tem adotado nas últimas décadas em todo o mundo. A gestão de fronteiras tem sido cada vez mais terceirizada para os países de origem ou trânsito dos imigrantes, com o objetivo de criar zonas-tampão para interceptar e empurrar os refugiados antes que eles cheguem à Europa.

Nesse sentido, é simplesmente risível que a chanceler alemã Angela Merkel exorta Erdogan a não expressar seu descontentamento “nas costas dos refugiados” e que o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, exige “respeito pela dignidade humana e… com o direito internacional”. A UE não se importa e nunca se preocupou com o bem-estar dos refugiados. Em vez disso, sempre os considerou um inconveniente irritante e um fardo. É por isso que transformou a Europa em uma fortaleza fortemente protegida, praticamente inacessível para pessoas pobres e refugiados – e não demonstrou hesitação em sangrar suas mãos para mantê-los afastadas.

Na realidade, a chanceler alemã estava na vanguarda das negociações por trás do infame acordo de 2016 e depois na promoção deste acordo. Naquela época, Erdogan era aparentemente considerado um parceiro respeitável e digno de confiança, e o destino dos refugiados não era um problema.

Merkel foi elogiada em 2015 por receber um milhão de refugiados na Alemanha em resposta à onda de indignação pública que se alarmou com a morte de Aylan Kurdi, de três anos de idade. No entanto, ela e seus colegas europeus revelaram sua duplicidade quando, apenas meses depois, assinaram um acordo que condenava milhares de refugiados a uma vida de incerteza e miséria em ilhas gregas superlotadas ou nas cidades da Turquia.

Em vez de expressar uma preocupação genuína pelas comunidades deslocadas à força, o humanismo dos governos europeus se mostrou altamente maleável – essencialmente dependendo das vantagens políticas que eles podem extrair das declarações de boca em boca ou de atos ocasionais de solidariedade.

A atual crise também trouxe um súbito espírito de camaradagem entre os líderes europeus, unido pelo objetivo comum de impedir os refugiados. A presidente da Comissão da UE, Ursula von der Leyen, elogiou a Grécia por servir como “escudo” da Europa, enquanto o presidente da França, Emmanuel Macron, ofereceu “total solidariedade” para ajudar a proteger as fronteiras da Grécia.

É bastante revelador as prioridades da UE – e, de fato, sua própria natureza – ao ver como os governos europeus estão ansiosos para “solidarizar” com os esforços da Grécia de repelir os refugiados, mesmo depois de 10 anos em que impuseram severa austeridade a esse mesmo país. Até então, eles estavam bastante dispostos a humilhar a Grécia, arrastando-a para um círculo vicioso de crise sem o menor indício de solidariedade.

Virando um olho cego
É claro que o uso de refugiados por Erdogan como moeda de troca para perseguir os objetivos políticos da Turquia é vergonhoso. No entanto, o falso humanitarismo descaradamente hipócrita dos líderes europeus é ainda pior. Enquanto os refugiados ficam presos na Turquia, explorados em fábricas de roupas ou mendigando nas ruas de Istambul, os Estados membros da UE não tiveram problemas em fechar os olhos para os custos humanos de seu negócio sujo.

Hoje, quando as vítimas das guerras globais batem à porta da Grécia, a UE está respondendo com armas, gás lacrimogêneo e granadas. Não se deixe enganar pelas tentativas dos governos europeus de culpar Erdogan, traficantes, contrabandistas ou terroristas pelo atual caos e crise. Estes últimos são, acima de tudo, o resultado das políticas deliberadas, imprudentes e desumanas dos Estados europeus para manter os refugiados longe do velho continente a todo custo – rejeitando as consequências humanas de uma ordem mundial injusta e moralmente falida que a UE está comprometida em preservar.

A única resposta decente e humana a essa emergência é pressionar os governos a abrir as fronteiras e permitir a entrada de milhares de homens, mulheres e crianças atualmente presos na fronteira de 120 quilômetros de extensão entre a Turquia e a Grécia. São seres humanos que fogem da pobreza, guerra e perseguição – e deveríamos estar proporcionando a eles as condições de vida decentes que esperamos. Essa solidariedade, e não o aperto de mão hipócrita do establishment europeu, é o caminho para resistir ao crescente clima de xenofobia e racismo.

Sobre o autor

Tommaso Segantini é um escritor freelancer e estudante de estudos de migração cujo trabalho foi publicado em TeleSur, OpenDemocracy e Adbusters.

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