7 de março de 2020

A Covid-19 mostrou os limites dos direitos humanos liberais

A Covid-19 demonstrou as desigualdades que se escondem por trás do discurso liberal dos direitos humanos - e deixou claro por que a luta por direitos sociais e econômicos coletivos é muito mais transformadora.

Ross Fitzpatrick



Tradução / Uma considerável quantidade de tinta tem sido derramada em avisos tardios na mídia acerca do impacto da pandemia de COVID-19 sobre os direitos humanos. Líderes autocráticos ao redor do mundo têm aproveitado a crise como pretexto para abanar as chamas do fervor nacionalista e para reprimir implacavelmente as liberdades civis.

Na Índia, Narendra Modi utilizou a crise para desencadear uma onda de ataques contra comunidades muçulmanas e incitar o sentimento nacionalista. Para o desgosto de líderes da União Européia, o húngaro Viktor Orbán consolidou ainda mais seus poderes ditatoriais e aprisionou jornalistas, esfacelando o que ainda restava da imprensa livre. Nos Estados Unidos, enquanto isso, Trump demitia o inspetor geral do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, e repetia uma crescente repressão ao dissenso, visível também nas prisões de jornalistas que cobriam os protestos que se seguiram ao assassinato de George Floyd.

À luz desses e de outro montante de inúmeras ameaças aos direitos humanos em todo o planeta, o secretário geral da ONU, António Guterres, alertou que a atual crise global está rapidamente se tornando uma crise de direitos humanos.

O discurso liberal tem demonstrado uma crescente consciência das implicações negativas da COVID-19 sobre os direitos humanos. Na Inglaterra, a introdução de uma legislação emergencial provocou o apelo por mais vigilância a respeito da proteção das liberdades civis individuais, ao passo que na Irlanda surgiram preocupações similares sobre o impacto de tais legislações nos direitos humanos.

Porém, quando surgem ameaças de igual urgência aos direitos sociais e econômicos na discussão sobre medidas de austeridade potencialmente devastadoras, que inclusive vêm debilitando os sistemas de saúde há décadas, o alvoroço liberal que se expressa na linguagem dos direitos humanos é frequentemente substituído por uma crítica comparativamente anódina das políticas governamentais. As críticas baseadas nos direitos humanos, aparentemente, estão fortemente restritas à esfera civil e política.

Por isso, não surpreende que nos últimos tempos tenhamos visto na mídia o surgimento de uma narrativa que cava um fosso entre a saúde dos indivíduos e a saúde da economia, a partir da qual o sacrifício da primeira passa a ser considerado por alguns como um mal necessário para a sobrevivência da segunda. A disputa entre a provisão de serviços sociais básicos para os mais socialmente vulneráveis e a liberdade de operar no mercado sem restrições tem sido enquadrada por comentadores como uma questão de conflito de direitos – uma abordagem que revela ao mesmo tempo a maleabilidade política dos direitos humanos e sua vulnerabilidade à manipulação.

Contudo, para além dos ideólogos de direita, não é preciso olhar muito longe, a resposta do diretor das Nações Unidas, Antono Guterres, já fornece um senso de quão vazia se tornou a retórica dos direitos humanos liberais. Insípida e longe de provocar manifestações por mudanças sociais e econômicas – ou consciência acerca das desigualdades estruturais e das fragilidades sistêmicas que exacerbam o impacto da pandemia naqueles socialmente mais vulneráveis – ela se caracterizava por platitudes.

O fracasso dos porta-vozes globais dos direitos humanos em articular uma visão alternativa a um sistema que é diretamente responsável pelo desdobramento das crises dos direitos humanos expressa tanto a hipocrisia fundamental das declarações segundo as quais “estamos todos juntos nessa” quanto levanta o questionamento sobre a utilidade moral do conceito de direitos humanos.

Compreender as forças ideológicas que deram forma à evolução dos direitos humanos no discurso liberal ocidental explica parcialmente a razão pela qual a retórica contemporânea dos direitos humanos tem sido tão insuficiente na resposta à crise da COVID-19. Conforme argumenta Samuel Moyn, a cooptação dos direitos humanos pelas lideranças intelectuais neoliberais pós 1980 foi motivada por um desejo de proporcionar um verniz de legitimidade a um projeto político-econômico desenhado para cristalizar desigualdades, não para enfrentá-las.

Rotineiramente, os direitos humanos servem como uma ferramenta conveniente para governos justificarem certas formas de intervenção durante crises enquanto restringem outras. Dessa forma, a introdução nos EUA do Ato Patriota após os ataques de 11 de setembro foi embalada com a linguagem dos direitos humanos pela administração Bush, cujo desprezo pela dignidade humana básica é amplamente conhecido.

Enquanto isso, é notável a recusa da União Europeia em suspender sanções internacionais, mesmo que temporariamente, que pioram a situação dos direitos humanos em vários países. Seus gestos mínimos de apoio simbólico são ótimos exemplos de como várias organizações exaltam as virtudes dos direitos humanos, mas na verdade estão engajadas na diplomacia cínica da realpolitik.

Dada a longevidade da hegemonia cultural dos direitos humanos no discurso liberal ocidental e o seu status quase universal como um poderoso agente de mudança, seria equivocado defender o seu completo abandono.

Ao invés disso, libertar os direitos humanos de suas algemas neoliberais e restaurar a centralidade dos direitos sociais e econômicos coletivos deveria ser o ponto de partida para um novo discurso. Apenas assim a retórica dos direitos humanos pode ir além das platitudes e reivindicar o tipo de autoridade moral que um dia possuiu. Até que chegue esse momento, a retórica dos direitos humanos na forma de discursos eloquentes partindo de um establishment neoliberal que supervisiona um regime global de desigualdades deve ser encarada com bastante desconfiança.

Sobre o autor

Ross Fitzpatrick é advogado de direitos humanos e pesquisador político. Foi conselheiro de direitos humanos da missão da República da Irlanda nas Nações Unidas.

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