10 de agosto de 2024

Venezuela em disputa

As eleições venezuelanas dividem a esquerda global, mas o verdadeiro conflito não é sobre a democracia, mas sobre o controle do petróleo e da soberania.

Valério Arcary



Tradução / A polêmica sobre o resultado das eleições venezuelanas divide a esquerda brasileira e internacional. Mas a disputa não é sobre democracia. “Quem brinca com o fogo pode se queimar”, ensina a sabedoria popular. Se a oposição de extrema direita prevalecer, ninguém se engane, não hesitará em usar o poder para garantir um programa de choque de privatizações e perseguições. O conflito não deveria ser resumido, tampouco, a uma luta entre chavistas e antichavistas.

Há quem não se identifique como chavista, mas denuncia que a campanha para derrubar o governo é reacionária, portanto, que a vitória do PSUV deve ser reconhecida. Uma imensa maioria daqueles que denunciam que Nicolás Maduro arquitetou uma fraude, e deve aceitar uma derrota não é nem remotamente de esquerda. A questão de fundo é o petróleo.

A Venezuela é um país independente, ou o mais próximo disso que é possível no mundo contemporâneo, o que é intolerável para os EUA. A alternativa real é soberania nacional ou recolonização. Aqueles na esquerda que estão convencidos que houve fraude, seja pela razão que for, deveriam se perguntar sobre as consequências de um governo da extrema direita.

Não há uma ditadura, strictu sensu na Venezuela, mas tampouco há um regime democrático-liberal. O que é incontornável é que a alternativa a Nicolás Maduro é a oposição neofascista. Edmundo González é uma marionete de Maria Corina. Ela é, por sua vez, uma marionete dos EUA. Se chegarem ao poder o destino da Venezuela será semelhante ao do Iraque, vinte anos atrás: um protetorado norte-americano.

Aí, sim, o mais provável será uma ditadura e, possivelmente, uma guerra civil, porque o cenário de resistência armada diante da promessa de privatização da PDVSA e prisão dos líderes chavistas parece inescapável. A disputa não é por transparência eleitoral, mas por controle da PDVSA. Não é sobre lisura eleitoral. A extrema direita não tem compromisso algum com a democracia-liberal. Tem uma inviolável aliança com os EUA e, em especial, com Donald Trump. Atrás de Maria Corina, estão Jair Bolsonaro no Brasil, José Antonio Kast no Chile, Javier Milei na Argentina, e Álvaro Uribe na Colômbia.

Depois de vinte e cinco anos de conspirações políticas e cerco econômico, a despeito de uma aposta estratégica duvidosa, ou muito arriscada, como preservar uma economia capitalista para não antagonizar os EUA frontalmente, como Cuba fez em 1961, o regime não foi derrotado. Tomou decisões perigosamente, erradas, como a suspensão da liberdade de organização de outras correntes de esquerda, uma política de choque fiscal para conter a superinflação, o favorecimento de uma casta civil-militar que detém grandes privilégios, mas o governo não caiu.

Realizou mais de vinte pleitos pelo critério do sufrágio universal, apesar das sanções e de um criminoso cerco que chegou ao absurdo da apropriação das reservas nos bancos dos EUA, e de toneladas de ouro depositadas em Londres, mas perdeu somente uma delas, o que levou Guaidó a se autoproclamar presidente. Não é razoável concluir que Nicolás Maduro não tem qualquer legitimidade, e seria um “caudilho grotesco” apoiado numa “cleptocracia” militar.

O regime político endureceu e assumiu formas bonapartistas autoritárias. Não se sustenta, todavia, somente no controle das Forças Armadas e da polícia, porque disputa a hegemonia política. Aceitou a realização de eleições depois do acordo de Barbados, para sair do isolamento, facilitar o fim das sanções, e abrir um caminho para sua reintegração no mercado mundial.

Preserva uma implantação entre setores dos trabalhadores e das camadas populares, apesar do peso social, também, da oposição de extrema-direita, em especial, nas camadas médias. O país está fraturado e dividido. Não há um processo revolucionário ininterrupto, desde 2002, quando o golpe contra Hugo Chávez foi derrotado. Mas o país preservou sua independência, e isso não é pouco.

A estratégia dos Estados Unidos para a América Latina foi, durante o intervalo entre 1948 e a queda do Muro de Berlim, a restauração capitalista e o fim da URSS (1989/1991) defender regimes e governos que tivessem uma lealdade incondicional com seus interesses contra o que interpretavam como o “perigo comunista”. Árbenz na Guatemala em 1952, Getúlio no Brasil em 1954, Péron na Argentina em 1955, Jango em 1964, entre muitos outros, foram deslocados por campanhas golpistas. Regimes ditatoriais foram defendidos, tanto por republicanos como Eisenhower ou Nixon ou democratas como Kennedy ou Lindon Jhonson. Monstros como Trujillo, Somoza, Stroessner, Médici, Pinochet e Videla foram protegidos.

A possibilidade de regimes democrático-liberais só veio a ser admitida a partir do final dos anos oitenta, depois dos pactos com Mikhail Gorbatchev. Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura. Washington é uma fortaleza do capitalismo imperialista. Os EUA, mesmo quando a gestão é do partido democrata, só defendem a democracia-liberal enquanto estão seguros de que os seus interesses não serão prejudicados.

Não é possível soberania nacional nos países dependentes da periferia sem ruptura anti-imperialista. Nem uma só nação periférica da Ásia ou África, que eram colônias sob ocupação militar até o final da Segunda Guerra Mundial, saiu da condição periférica, ou até da extrema periferia aceitando, pacientemente, o seu lugar no mundo. Nem mesmo na América Latina, onde as independências nacionais ocorreram há duzentos anos, foi possível uma inserção independente no mercado mundial. Nem sequer o Brasil, o maior e mais complexo país.

Nenhuma nação conseguiu nivelar as suas condições econômicas e sociais com o padrão dos países centrais aceitando as imposições da ordem mundial. As que se emanciparam, ainda que parcialmente, o fizeram através de revoluções. A ordem imperialista nunca aceitou, pacificamente, que uma ex-colônia se libertasse sem terríveis represálias.

A experiência atual da Venezuela – o país com as maiores reservas de petróleo confirmadas – é somente mais um exemplo. Mesmo tendo sido, incomparavelmente, mais moderados ocorreram golpes militares ou institucionais contra os governos de Dilma Rousseff no Brasil em 2016, Evo Morales na Bolívia em 2019, e Pedro Castillo no Peru em 2022.

Romper com os limites da ordem imperialista pode não ser o bastante nos países periféricos, no intervalo de uma geração, para uma elevação da qualitativa das condições de vida da maioria do povo aos níveis dos países que estão no centro, mas demonstrou-se uma condição para a redução acelerada da pobreza extrema e das desigualdades sociais. A frio, evolutivamente, sem desafiar os centros imperialistas, nunca foi possível. A Venezuela foi o país latino-americano que foi mais longe e paga o preço por isso. Subestimar a estratégia da contrarrevolução é uma ingenuidade.

A luta pela independência nacional no mundo contemporâneo é o ápice da luta democrática. Todas as nações têm o direito de ter o domínio sobre os seus destinos. Nada é mais democrático do que libertar um povo dominado e oprimido por Estados muito mais ricos e poderosos. Ainda que a maioria dos países na periferia seja, formalmente, independentes, não têm plena soberania. Porque se construiu um mercado mundial: um espaço onde se movimentam capital, força de trabalho, recursos naturais, tecnologias em uma escala que a humanidade nunca conheceu antes.

Nenhuma nação pode existir fora deste mercado mundial. Qualquer ilusão sobre a possibilidade de uma “autarquia” no mundo contemporâneo é uma ilusão perigosa. Sem integração não há possibilidade de desenvolvimento e, portanto, de redução da pobreza. Mas há um obstáculo intransponível no acesso a este mercado mundial. Não há “governo” mundial, mas há uma ordem internacional muito rígida e injusta. No seu centro está a Troika, a aliança da União Europeia, Reino Unido e Japão com a liderança inviolável dos EUA. Quem não se submete, incondicionalmente, à sua supremacia será perseguido.

As relações de comércio no mercado mundial são desiguais. Os países periféricos, mesmo os mais fortes, como o Brasil, uma nação em grau mais avançado de industrialização, são dependentes da exportação de matérias-primas de pouco valor agregado e precisam, desesperadamente, de acesso a mercadorias que incorporam tecnologias de ponta como máquinas de última geração e, sobretudo de capitais. As relações de troca são assimétricas e injustas. A periferia vende suas commodities por preços que são estabelecidos em Bolsas, como em Chicago, por exemplo.

Os países centrais são exportadores de capital e credores, e os periféricos importadores e endividados. Ao bloquear o acesso ao mercado mundial, como punição pela ousadia de independência nacional, os países centrais condenam as nações rebeldes à asfixia econômica.

O estrangulamento econômico produz crise social porque a vida das massas populares, que já era muito precária, se torna insustentável. Nestas condições terríveis, a realização de eleições ocorre em condições dramaticamente desfavoráveis. Os países em que triunfaram revoluções anti-imperialistas descobriram-se, sem exceções, diante do dilema de estender suas revoluções no entorno, uma dinâmica de revolução permanente, ou enrijecer os seus regimes.

A China enfrentou uma guerra civil e a revolução venceu, mas ficou bloqueada. A Coreia do Norte foi invadida pelos EUA, o Vietnã resistiu em guerra por três décadas, Cuba permanece, dramaticamente, isolada, cercada, bloqueada. Todos foram além do capitalismo, mas qualquer possibilidade de iniciar uma transição ao socialismo foi interrompida. O capitalismo foi restaurado, ou está em dinâmica de restauração, com a possível exceção de Cuba, talvez. As lutas para mudar o mundo são brutais e impiedosas. Têm uma beleza heroica, mas são violentas.

Valério Arcary

Historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor de O Martelo da História. Ensaios sobre a urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016).

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