2 de novembro de 2024

Eleição nos EUA opõe ruptura radical de Trump a estabilidade frágil de Kamala

Disputa na próxima terça pode levar ordem internacional a cenário de fragmentação e incerteza

Carlos Gustavo Poggio
Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)


[RESUMO] Eleição presidencial nos Estados Unidos, na próxima terça (5/11), talvez seja as mais decisiva e impactante da história do país. Caso vitorioso, Donald Trump voltaria ao poder com o Partido Republicano totalmente submisso às suas vontades e uma Suprema Corte mais favorável, o que lhe daria carta branca para implementar agenda mais extremada que abalaria a ordem global. A democrata Kamala Harris, por sua vez, representa uma esquerda que, emparedada pela polarização, oferece uma continuidade frágil do sistema, sem força para renovação.

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No célebre romance gótico, Victor Frankenstein, um jovem cientista ambicioso, decide desafiar as leis da natureza. Ele reúne pedaços de corpos e, em um experimento ousado, dá vida a uma criatura que, em vez de glória, lhe traz horror.

Incapaz de encarar sua criação, Frankenstein a abandona, deixando-a à própria sorte. Rejeitada e amargurada, a criatura se torna vingativa, voltando-se contra o próprio criador e destruindo tudo o que ele ama. Sem controle ou direção, o monstro representa o pesadelo de uma ambição que, uma vez solta, não pode mais ser contida.

"Flags I", obra do artista pop americano Jasper Johns - Divulgação

Donald Trump parece o monstro do romance de Mary Shelley, reanimado com pedaços de ideologias que pareciam mortas na realidade americana, como o protecionismo, o nacionalismo e o autoritarismo.

Em 2016, ele foi levado ao centro do Partido Republicano para revitalizar uma base desiludida e recuperar um eleitorado que se sentia esquecido. Todavia, como na história de Shelley, essa criatura logo se mostrou difícil de controlar.

No início, muitos republicanos olharam com horror para a sua retórica agressiva e para o desprezo que ele demonstrava pelas normas do partido. Ainda assim, acreditavam que poderiam moderá-lo e que figuras tradicionais do partido —como o líder no Senado, Mitch McConnell— seriam capazes de mantê-lo dentro dos limites institucionais.

Durante o governo Trump, os avanços mais evidentes aconteciam nos temas em que havia convergência de sua agenda com a de McConnell, como na questão de cortes de impostos. Em outras questões, no entanto, como as relações comerciais com a China e o enfraquecimento da Otan, o Congresso e indivíduos em sua própria administração atuaram como freios, contendo o alcance de suas políticas.

O vice-presidente Mike Pence tornou-se uma ilustração clara desses freios: no último ato de seu governo, Pence cumpriu a Constituição e certificou a vitória de Joe Biden, desafiando os desejos de Trump e reforçando a autoridade das instituições americanas. Esse episódio emblemático destacou como, mesmo no auge de seu poder, Trump ainda era limitado pelas normas e lideranças tradicionais.

Com o tempo, os criadores de Trump foram sendo afastados, derrotados ou silenciados, enquanto ele consolidava seu poder. Hoje, a criatura está solta —o velho Partido Republicano, morto e enterrado, deu lugar a uma entidade nova, moldada à imagem de Trump, sem amarras ou controle.

McConnell e outros líderes republicanos tradicionais foram marginalizados, aposentados ou ajustaram suas carreiras para apoiar Trump incondicionalmente, como é o caso do senador Lindsey Graham. Trump tornou-se não apenas o líder do partido, mas o próprio partido, e, com isso, ganhou carta branca para conduzir uma agenda mais extrema e menos institucionalmente moderada.

Enquanto os republicanos passavam por essa transformação, o Partido Democrata seguiu uma trajetória mais conservadora, e Kamala Harris, sua candidata à Vice-Presidência em 2020, foi escolhida mais por conveniência política, para atender a demandas identitárias e aplacar a ala mais progressista da sigla, do que por uma base de apoio própria.

Agora, Kamala teve de reposicionar algumas de suas políticas para se alinhar ao centro, revelando uma postura cautelosa. Sem a experiência consolidada de um líder transformador, ela, caso eleita, provavelmente delegará boa parte das decisões de política externa a especialistas do establishment Democrata.

Kamala representa uma esquerda que, diante da polarização e do avanço da direita populista, se vê forçada a proteger a ordem existente, mais do que impulsionar mudanças profundas. Essa curiosa dinâmica, uma direita revolucionária e uma esquerda conservadora, coloca os EUA em um cenário de incerteza global.

Se Trump for eleito, seu estilo insurgente e sua rejeição aos compromissos internacionais tradicionais abalarão ainda mais a ordem global, criando um vácuo de liderança que potências rivais, como China e Rússia, estarão prontas para ocupar.

Em contraste, Kamala oferece uma continuidade frágil, uma tentativa de manter o sistema internacional sob uma lógica que já mostra sinais de desgaste. Em vez de reformas robustas, a abordagem dela tende a preservar o que ainda resta das alianças e dos acordos multilaterais, mas sem a força transformadora necessária para renovar a liderança americana.

Em um eventual segundo mandato, Trump encontraria um cenário bem mais favorável que no seu primeiro. Com o Partido Republicano quase inteiramente nas mãos de seus apoiadores leais, sem a presença das vozes moderadoras que poderiam frear suas ações, o Congresso já não representa uma barreira significativa.

A Suprema Corte, que tradicionalmente servia como um contrapeso ao Poder Executivo, agora reforça sua autoridade, como ficou claro na decisão que declarou Trump imune a ações legais por medidas tomadas durante sua Presidência, consolidando ainda mais sua proteção contra as consequências de suas próprias ações. O republicano se tornaria uma figura ainda mais volátil, com menos compromissos para com seu próprio partido e mais propenso a governar conforme seus impulsos.

A escolha do senador J.D. Vance como seu candidato a vice em 2024 foi a primeira pista. Em 2016, ter Mike Pence como seu companheiro de chapa representava uma estratégia calculada: aproximar-se do eleitorado evangélico, um dos pilares do Partido Republicano, que via Trump com desconfiança.

Pence, um conservador firme e respeitado, oferecia uma garantia de que a administração de Trump teria um vínculo com a base do partido e com a ideologia republicana clássica. Desta vez, o critério determinante para a escolha do vice foi claro: lealdade incondicional a Trump. Vance, mais do que qualquer outro, representa uma nova elite republicana que emergiu para servi-lo, não ao partido.

Essa mudança revela uma lição aprendida por Trump ao longo de seus quatro anos na Casa Branca: ele agora valoriza a obediência absoluta sobre qualquer qualidade ideológica ou credibilidade eleitoral.

Com um partido moldado à sua imagem e lideranças que priorizam a lealdade acima de tudo, Trump se vê liberado de praticamente qualquer contenção interna. Esse cenário, de um presidente que opera sem freios institucionais e com um vice leal apenas à sua figura, configura uma nova dinâmica de poder com impactos que transcendem as fronteiras dos Estados Unidos.

As consequências para a ordem internacional são profundas, pois a política externa americana, sob um eventual novo governo Trump, tenderia a ser ditada por interesses imediatos e isolacionistas, abandonando compromissos históricos e deixando aliados à própria sorte. Essa mudança não só ameaça a estabilidade das alianças tradicionais, como também abre espaço para o avanço de potências rivais.

Trump, ao longo de sua carreira política, nunca escondeu seu desdém pela Otan e por alianças multilaterais em geral. Seu isolacionismo em 2024 representa um enfraquecimento ativo da aliança militar que, desde 1949, tem sido um pilar da segurança transatlântica.

Uma reeleição de Trump certamente levaria países europeus a questionar a confiança na proteção americana, acelerando um processo de militarização independente na Europa. Na prática, a Otan deixaria de ser a aliança coesa que tem sido, transformando-se em um bloco de países com agendas menos sincronizadas e mais suscetíveis à influência de poderes externos, como Rússia e China.

Este contraste define o cenário de 2024: enquanto Trump encarna uma direita que rompe com a tradição e busca uma mudança radical, Kamala simboliza uma esquerda que tenta preservar o sistema.

No entanto, mesmo que ela saia vitoriosa, a sombra de Trump e a força das ideias que ele representa continuarão presentes. O republicano se tornou um exemplo para outros países sobre a volatilidade da política americana e a permanência de ideais nacionalistas e protecionistas, que demonstraram ter ressonância profunda. Para aliados e rivais, a ascensão do trumpismo como forca política evidencia que os Estados Unidos podem não ser mais o pilar de estabilidade que historicamente pretendiam ser.

O monstro que o Partido Republicano ajudou a criar ameaça agora não só o sistema político americano, mas também a estrutura da ordem internacional. A vitória de Kamala pode oferecer uma estabilidade temporária, mas sua influência é limitada e insuficiente para conter a desestabilização gerada por um afastamento contínuo dos EUA do papel tradicional de liderança global.

O mundo aprendeu que os EUA podem virar as costas a décadas de alianças e compromissos em uma única eleição. No final, o legado do trumpismo talvez não seja apenas o de uma ruptura temporária, mas o de uma nova realidade em que o imprevisível se tornou a norma.

O trumpismo provou que as fundações da política americana são menos sólidas do que muitos imaginava —e essa incerteza é o novo alicerce sobre o qual as relações internacionais terão de se reequilibrar.

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