23 de julho de 2020

A reforma fatiada

É crítica quase infantil citar que fazer só PIS-Cofins é um remendo

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


Temos proposta de reforma do PIS-Cofins. O assunto é complicado, e já pipocaram as críticas usuais na imprensa.

Isso é normal, pois ninguém gosta de pagar imposto, muito menos de aumento da carga tributária. Vejamos as principais reclamações.

A primeira crítica é meio utópica, quase infantil: o ideal seria reformar todos os tributos indiretos ao mesmo tempo, fazer “somente” PIS-Cofins seria um remendo. Em resposta a essa crítica vale adaptar Churchill: sim, a reforma fatiada é a pior reforma tributária, exceto todas as outras formas já tentadas no Brasil.

Mais, já escrevi nesta coluna que juntar contribuição federal com imposto estadual e municipal em um só tributo é arriscado, quase irresponsável, pois pode tirar recursos da seguridade social.

A arrecadação de PIS, Cofins, ICMS e ISS pode ser integrada digitalmente, mas mantendo os tributos separados legalmente. Se a nova contribuição federal sobre bens e serviços der certo, ela abrirá caminho para o novo imposto estadual/municipal sobre bens e serviços.

Agora o principal: a proposta do governo onera os serviços para simplificar o sistema. Essa crítica pode estar certa ou errada, dependendo da narrativa adotada.

Hoje os serviços pagam 3,65% sobre faturamento (soma de lucros, salários e gasto com insumos). Com a reforma, os serviços pagarão 12% sobre valor adicionado (lucros e salários). Como o valor adicionado responde pela maior parte do faturamento nos serviços, os serviços pagarão mais imposto em relação à situação vigente.

Porém, se considerarmos somente o valor adicionado, hoje há subtributação de serviços e supertributação da indústria no Brasil. A reforma do governo corrige a distorção, equalizando o tratamento entre os setores. Acho essa visão mais correta, a reforma diminui a desoneração dos serviços.

Outro avanço da reforma é simplificar o PIS-Cofins, fazendo com que toda compra de insumos gere crédito tributário, no valor declarado na nota fiscal, para utilização no pagamento dos impostos devidos na venda do produto. Esse é o padrão nos países avançados que têm imposto sobre valor adicionado, melhorando a produtividade e a competitividade da economia.

Paro para dar parabéns ao governo, especialmente ao pessoal da Receita Federal, que já tinha essa proposta pronta desde 2012 (sim, isso foi outra autocrítica ao PT).

Voltando, a grande dificuldade da proposta do governo é que quem paga menos vai ter que pagar mais e isso será inicialmente transferido ao preço. Em outras palavras, é necessário eliminar a desoneração de serviços no Brasil, mas se isso for feito muito rapidamente, haverá grande elevação de preço em várias atividades, como educação e saúde privada.

A saída do problema é modular a migração para a nova alíquota, evitando aumento abrupto de 3,65% sobre faturamento para 12% sobre valor adicionado. Uma transição de quatro a oito anos diminuirá, mas não eliminará, a chiadeira dos serviços.

O grande desafio da reforma da tributação indireta no Brasil é que a indústria quer se desonerar onerando os serviços, enquanto os serviços querem se desonerar onerando todo mundo com uma nova CPMF.

Nessa briga a indústria tem razão, pois paga relativamente mais tributos do que o resto da economia, mas o governo adotou uma postura intermediária no PIS-Cofins: haverá simplificação, mas não desoneração da indústria. E haverá oneração dos serviços, para alinhar a tributação entre os dois setores. Resta definir transição gradual para evitar tarifaço em uma economia que ainda não saiu da estagnação.​

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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