27 de julho de 2020

Como a deportação se tornou o núcleo da política de migração da Europa

Nos últimos anos, os estados membros da União Europeia construíram as suas políticas de migração em torno de um sistema cada vez mais elaborado de filtragem de pessoas e de encontrar formas de expulsá-las. Este esforço para colocar obstáculos não é apenas caro ou ineficiente, mas também totalmente anti-humano - submetendo a vida dos migrantes aos caprichos dos recrutadores e a processos burocráticos opacos.

Daiva Repečkaitė


Pessoas em condição de solicitação de refúgio viajando de barco no Mar Mediterrâneo, entre Malta e Tunísia. (Marco Di Lauro / Getty Images)

Tradução / "Os solicitantes de abrigo com pedidos rejeitados são terrivelmente difíceis de deportar”, escreveu a revista The Economist em janeiro de 2017, analisando a ambição de Malta em usar seu período na presidência da União Europeia para conter a migração pelo mar. Enquanto os líderes debatiam sobre como classificar e processar as pessoas, Sarjo Cham, da Guiné-Bissau, só queria jogar futebol com seus amigos malteses e internacionais. “Eu tenho dinheiro para viajar com eles [para torneios no exterior]. A única coisa que não tenho é um documento de viagem”, disse ele em um painel de discussão no mês de dezembro.

De fato, os solicitantes rejeitados e as burocracias relativas à falta de documentos são “um inferno” por motivos diferentes. No último caso, a forma de tratamento de quem teve sua solicitação negada é uma questão de demonstrar controle – sobre as fronteiras, movimentos e até mesmo a linguagem.

Vindo de um país onde chefes do tráfico internacional aterrorizavam a população, Sarjo poderia ter tido mais sorte com seu caso de solicitação na Suécia. Mas se ele fosse rejeitado lá, ele também seria impedido de jogar futebol, pois os clubes esportivos também excluem pessoas sem um número de identificação.

Por outro lado, em 2018, Malta criou um programa de residência para solicitantes rejeitados que trabalhavam e demonstravam “esforços de integração” ao longo de vários anos – e uma política semelhante de “mudança de categoria” existe na Alemanha. Alguns outros estados membros da União Europeia, como República Tcheca, Eslováquia e Romênia, oferecem um status formal de tolerância, enquanto a Grécia permite que os eles trabalhem apenas nos ramos da agricultura, do trabalho doméstico e da indústria têxtil. Alguns dos demais países oferecem autorizações temporárias de residência.

Portanto, embora pessoas com e sem probabilidade de conseguir vaga em um abrigo atravessem os mesmos desertos e embarquem nos mesmos navios, o tratamento que recebem é amplamente divergente em toda a UE. A Diretiva de Retornos, adotada em 2008 para garantir direitos básicos para pessoas sem direito de permanecer em um país da UE, exige apenas que os países atendam às suas necessidades básicas de sobrevivência.

Na Áustria, na Suécia, no Reino Unido e em alguns outros estados, solicitantes de abrigo que são rejeitados não têm permissão de trabalho. Em meio a uma colcha de retalhos de direitos radicalmente diferentes em relação à saúde, educação e benefícios sociais, essas pessoas são deixadas e acabam dependendo de conexões informais para encontrar um espaço para ficar e uma fonte de renda.

Como devemos designá-los?

Alei de acolhimento é complicada. Ao participar de uma mesa-redonda de uma ONG, você pode ouvir sobre COI (informações sobre o país de origem), TCNs (nacionais de terceiros países, ou seja, não pertencentes à União Europeia) ou até mesmo NRAS (solicitantes rejeitados não removidos). De maneira geral, linguagem técnica é difícil de explicar ao público. Repita “refugiados e beneficiários de proteção subsidiária” – duas categorias que possuem o maior número de direitos – várias vezes em um artigo de notícias e isso consumirá grande parte das palavras. A mídia, portanto, busca um termo abreviado e geralmente os chama de “refugiados” ou “migrantes”.

Em 2015, enquanto um grande número de pessoas atravessava a Europa na tentativa de solicitação de abrigo, a Al Jazeera English atribuiu explicitamente que atravessar o Mar Mediterrâneo não é um ato de livre vontade – como implícito no termo “migrante”. Para simpatizar com as aspirações dos solicitantes, a mídia liberal alemã também optou por usar “refugiados” (Flüchtlinge) em vez de “solicitantes de abrigo”.

O jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) traz um trecho do aclamado discurso de Angela Merkel, em 2015, em que ela proclamou que a Alemanha “pode fazer isso”, ou seja, que o país pode lidar com um aumento nas solicitações de refúgio. O discurso se tornou a base da chamada Política de Portas Abertas, embora poucos tenham notado que Merkel nunca prometeu decisões favoráveis para todos.

Segundo o FAZ, “[medidas para gerenciar o influxo] variam desde acelerar o processo de acolhimento e ‘repatriação’ dos refugiados que não podem comprovar perseguição política, até questões de acomodação.” Portanto, quando as autoridades responsáveis pelo processo tomaram suas decisões e a Alemanha, de fato, começou a deportar solicitantes rejeitados, houve confusão generalizada – e alegria por parte do campo internacional anti-imigração. Veja que até mesmo a Alemanha mudou de ideia! Mas não exatamente.

Na verdade, faz décadas que os países europeus têm fortalecido suas políticas de deportação. Antes de 2015, um a cada seis solicitantes de refúgio na União Europeia eram dos Balcãs Ocidentais, e a maioria era rapidamente enviada de volta sem nenhuma cerimônia. Ao reduzir benefícios e criar condições semelhantes às de prisões, os países esperam que os migrantes sem uma solicitação de abrigo convincente decidam racionalmente que não vale a pena.

A Holanda, Suécia e Noruega são conhecidos por possuir meios particularmente elaborados para excluí-los da sociedade formal, negando-lhes acesso a emprego, benefícios, educação e cuidados de saúde. Isso não é novidade. Porém em 2015, a situação compartilhada das pessoas com e sem esperanças razoáveis de proteção fez com que a mídia simpática sentisse que deveria haver uma única palavra para todos eles. A BBC, entre outros, insistiu em “migrantes”. Afinal, existem outras autoridades cujo trabalho é separá-los uns dos outros.

A máquina seletiva

Conforme pessoas de diferentes continentes se moviam lado a lado, as autoridades se apressaram em centralizar o processo de classificação. Os “hotspots” na Itália e Grécia, desenvolvidos em 2015, prepararam pessoas com um caso sólido para se deslocarem para outros países usando o mecanismo de redistribuição. O acordo UE-Turquia de 2016 estabeleceu que pessoas que atravessassem a Turquia para a UE sem um caso forte seriam enviadas de volta, enquanto aquelas com um caso sólido seriam reassentadas a partir da Turquia. Assim, os países do Mediterrâneo lidariam com os rejeitados, enquanto os refugiados reconhecidos seguiriam para o Norte.

Por volta de 2014, as Ilhas Maltesas, localizadas entre a Líbia e a Sicília, foram aliviadas do dever de classificação. A Itália coordenaria todos os resgates no mar na área e direcionaria os navios de resgate para ilhas italianas para processamento adicional. Mais de 2.000 pessoas chegaram a Malta pelo mar em 2013, mas apenas vinte e quatro em 2016, então a infraestrutura para acolhimento de Malta abriu-se para outros.

O país cumpriu sua cota de realocação da UE, trazendo solicitantes de campos gregos, italianos e turcos. Centenas de líbios receberam proteção. Com o número de novos africanos subsaarianos sob controle, o governo começou a explorar a regularização para aqueles que já estavam dentro. A economia próspera de Malta deu a pessoas em todas as etapas do processo de buscar um abrigo a chance de encontrar emprego.

Então, os navios retornaram. Em 2017, Matteo Salvini, da extrema direita italiana Lega, foi ao Facebook prometer “expulsões em massa, fechamento de centros [de recepção], e os navios da marinha [enviando pessoas de volta após resgatá-las]”. No ano seguinte, ele se tornou o ministro do interior e começou a negar a entrada a navios de resgate. Enquanto isso, sob o comando de Donald Trump, o programa de reassentamento de refugiados dos EUA, que costumava aceitar centenas de pessoas de Malta, reduziu-se a algumas dezenas.

Malta se viu novamente com o dever de classificação, e o foco mudou de gerenciar para prevenir a migração. Sabendo que as pessoas terão direitos assim que tocarem o solo, as autoridades supostamente contrataram frotas privadas para enviá-las de volta à Líbia e as mantiveram em prisões flutuantes. Enquanto reconhecem, em inúmeras decisões de asilo, que a Líbia não é segura para líbios, as autoridades de Malta acreditam que a Líbia é perfeitamente segura para africanos subsaarianos.

A abordagem de prevenção e dissuasão floresceu ao lado do reconhecimento de que a voraz economia do arquipélago precisa de trabalhadores migrantes. O ex-primeiro-ministro Joseph Muscat disse famosamente que preferiria ter migrantes do que malteses nativos trabalhando duro sob o sol. Mas o mais importante é que os migrantes não devem vir por si mesmos. As autoridades, agências de recrutamento e empresas têm o poder de escolher.

Em um grande paradoxo, quando um navio de resgate atracou após semanas no mar no ano passado, uma das primeiras declarações foi que quarenta e quatro bengaleses a bordo seriam imediatamente deportados. Enquanto isso, as agências de recrutamento estavam ocupadas procurando trabalhadores no sul da Ásia, incluindo Bangladesh. Em 2018, havia mais de 200 trabalhadores registrados de Bangladesh. Ao optar por fazer a perigosa viagem pelo mar em vez de pagar uma agência, os quarenta e quatro foram deixados de fora.

"Um inferno" de difícil para quem?

Agências centralizadas da União Europeia e estados membros pagam milhares de euros para deportar pessoas indesejadas. De acordo com as estatísticas da agência de fronteiras da UE, as autoridades mandaram embora pouco menos de 139.000 pessoas (especialmente ucranianos, albaneses e marroquinos) em 2019, de um total de 298.000 pessoas consideradas “passíveis de deportação”. Mas há alguma esperança para eles: em seu Manual de Retorno – um guia de gerenciamento de deportação para os estados membros – a Comissão Europeia defende a reconsideração das deportações para sobreviventes de tortura, estupro ou tráfico humano.

Por que esses sobreviventes não seriam elegíveis para solicitar vaga em um abrigo? Porque eles podem ter vivenciado essas crueldades não em seu país de origem, mas ao longo do caminho. Isso é comum. Sem vias seguras e legais para o trabalho, indivíduos fortes e saudáveis são elegíveis para permanecer na UE se chegarem com traumas. E se o deserto e o mar não os quebraram o suficiente, o próprio sistema pode fazê-lo. Na Suíça, pesquisadores descobriram que muitos solicitantes rejeitados se sentiam deprimidos ou suicidas.

Esse regime, no qual os países abrem “portas giratórias” e permitem que agências de recrutamento cobrem taxas exorbitantes em vez de permitir que os migrantes já presentes em seus territórios trabalhem e economizem dinheiro, possui muitos críticos. Na Espanha, mais de 1.100 organizações assinaram um pedido para abolir a classificação e categorização de pessoas e, em vez disso, adotar uma abordagem baseada em direitos para garantir que todos estejam seguros enquanto a pandemia continua a se espalhar.

No entanto, governos e seus apoiadores acreditam que as deportações devem continuar por uma questão de princípio, ou no intuito de desencorajar novas chegadas. Trata-se de manter o controle e poder fazer escolhas. Os formuladores de políticas prometeram deportações melhores e mais rápidas quando, em colaboração com comunidades religiosas, a Itália abriu corredores humanitários para reassentar até 600 pessoas da Etiópia, Jordânia e Níger. Em 2018, o país reassentou 400 pessoas da Líbia, Jordânia, Líbano, Sudão e Turquia.

Os corredores humanitários ajudarão os refugiados a evitar a perigosa travessia pelo mar. Os cidadãos dos países receptores aprovam essa iniciativa. No entanto, ela não resolve o problema para as pessoas que já estão em movimento, mas não têm uma reivindicação convincente.

Ninguém se beneficia com a exclusão

Uma equipe de pesquisa holandesa descobriu que solicitantes rejeitados “preferem as limitadas oportunidades de vida de imigrantes não autorizados [em vez de] retornar” ao país de onde vieram. Em vez de dissuadir aqueles que ainda pensam em fazê-lo, a incerteza legal prejudica as pessoas que já chegaram, adoecendo indivíduos anteriormente saudáveis e prontos para o trabalho. O mecanismo de prevenção e deportação esgota os orçamentos e a saúde das pessoas.

ONGs defendem uma abordagem pragmática e humanitária. As pessoas já fizeram a jornada e estão dispostas a ficar. A privação não beneficia ninguém, e a falta de direitos leva as pessoas à economia informal. Os empregadores também prefeririam manter os trabalhadores que contratam e treinam.
Enquanto as administrações nacionais se preocupam em serem vistas como completamente no controle, as cidades se veem confrontadas com as necessidades humanas muito reais dessa população.

Conscientes de forma pragmática de que a falta de moradia, a privação e doenças mentais não são de interesse de ninguém, cidades como Amsterdã e Viena estenderam com sucesso a oferta de serviços sociais e benefícios para àqueles que foram rejeitados, mesmo quando os governos nacionais estavam se esforçando para restringi-los. Dessa forma, os governos podem demonstrar sua rigidez, enquanto as cidades cuidam silenciosamente dessa população vulnerável.

No entanto, nem a caridade nem a prestação irregular de serviços locais oferecem uma solução sustentável para o movimento constante, perigoso e imprevisível de pessoas que procuram reconstruir suas vidas. Teoricamente, os quarenta e quatro bengalis levados a Malta por um navio de resgate ainda podem levantar dinheiro e pagar a uma agência para retornarem como trabalhadores convidados. No entanto, para as pessoas rejeitadas nos centros de triagem em Agadez (Níger), não há agência para solicitar esse processo. Mesmo para os africanos mais qualificados, não há viagens sem visto para conhecer potenciais empregadores. E aqueles que mais desesperadamente precisam de oportunidades não são os mais qualificados.

As discussões sobre soluções devem começar desestigmatizando a migração de trabalho. Afinal, os governos assinam acordos para facilitar a migração de alguns países do Sul Global, mas não da África subsaariana. Acadêmicos de Oxford, Alexander Betts e Paul Collier, sugeriram várias abordagens: abrir-se para a migração circular (“vir, contribuir, ganhar, aprender e retornar”) e criar programas de patrocínio privado, semelhantes aos do Canadá. Loren B. Landau, Caroline Wanjiku Kihato e Hannah Postel defenderam programas de migração de trabalho, estágios e um sistema de loteria de vistos confiável. Protegidos da incerteza do mercado informal, os migrantes poderiam enviar mais dinheiro para suas comunidades e, se o projeto de migração for financeiro, economizar dinheiro mais rapidamente.

Ainda assim, para construir um sistema justo, os formuladores de políticas devem reconhecer que a migração não é apenas um cálculo racional. Uma pessoa que parte em uma jornada carrega as esperanças de toda a sua comunidade – ou, ao contrário, pode ter cortado laços próximos, mas exploradores, em suas comunidades de origem. Muito frequentemente, novas comunidades, como clubes esportivos ou associações voluntárias, as recebem de braços abertos, se tiverem a chance. Então, por que apenas os empregadores, e não essas comunidades, têm o direito de apoiar o direito de alguém a ficar?

Abalados pela pandemia, os sistemas de bem-estar social europeus têm expandido sua abrangência. O bem-estar social é caro, mas também o são a deportação, a detenção e o desencorajamento. Ouvir as necessidades das pessoas seria o primeiro passo para redesenhar um sistema que agora se baseia na classificação de seres humanos e na catalogação de direitos. Para aqueles que precisam apenas de dinheiro, os governos e a Organização Internacional para as Migrações já fornecem subsídios de retorno. Para aqueles que precisam de segurança e liberdade, os empregadores e agências com preços elevados não deveriam ser os únicos a decidir o destino deles.

Colaborador

Daiva Repečkaitė é uma jornalista lituana que reside em Malta. Seu trabalho é focado em saúde e direitos humanos. Você pode encontrá-la no Twitter como @daiva_hadiva.

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