10 de julho de 2020

Ennio Morricone estava comprometido com a democratização radical da música

A escrita melódica do grande compositor Ennio Morricone foi uma das mais marcantes da história do cinema. Mas além de seus clássicos musicais do cinema, o "Maestro" também estava comprometido com a democratização radical da música.

Robert Barry


Ennio Morricone recebendo o Prêmio Cidade de Roma em 1996.

Tradução / Ennio Morricone, que morreu em Roma em 6 de julho, aos 91 anos, será justamente lembrado por suas trilhas sonoras inovadoras para filmes de Sergio Leone, Pier Paolo Pasolini, Brian De Palma e inúmeros outros. O “Maestro”, como era frequentemente chamado, havia sido um escritor de canções pop na década de 1960 para cantores como Mina, Rita Pavone e Gianni Morandi, e sua escrita melódica está entre as mais marcantes da história do cinema.

Do imediatamente reconhecível uivo do coiote de seu tema para The Good, The Bad and the The Ugly ao romantismo majestoso da faixa “Chi Mai” (originalmente escrita para o filme Magdalena do diretor polonês Jerzy Kawalerowicz, mais tarde alcançando o número dois nas paradas do Reino Unido após sua inclusão no Life and Times of David Lloyd George, da BBC), as músicas de Morricone foram consistentemente bem-sucedidas tanto em convocar imediatamente um mundo inteiro quanto em se alojar permanentemente na memória do ouvinte.

O que é menos notado é o importante papel desempenhado pelo compositor nas vanguardas italianas de meados do século. A criança prodígio que passou pelo curso de harmonia de quatro anos do conservatório de Roma em seis meses, aos doze anos, mais tarde participaria do Darmstadt Ferienkurse für Neue Musik no sudoeste da Alemanha, e recebeu dicas da dodecafonia vienense - não apenas em obras de concerto como a tensa e febril Musica Per 11 Violini, mas até em canções pop como “Se Telefonando”. Foi em Darmstadt, como ele disse a Richard Bratby do Spectator em 2018, que Morricone “realmente entendeu o que era escrever música contemporânea”.

Fundada em 1946, a escola de verão de Darmstadt foi estabelecida como um flanco na guerra fria cultural dos militares americanos com a União Soviética. Como escreveu a historiadora britânica Frances Stonor Saunders, durante a Guerra Fria, “o governo dos Estados Unidos destinou vastos recursos a um programa secreto de propaganda cultural na Europa Ocidental”, abrangendo exposições de arte, revistas e festivais de música.

Embora seja um pouco exagerado sugerir, como Saunders faz, que Darmstadt foi a única iniciativa das forças americanas, ainda assim recebeu apoio material e financeiro substancial da potência ocupante e os primeiros anos tiveram intérpretes e compositores carimbados e aprovados pelo governo militar dos EUA. Apesar – ou talvez por causa – disso, o festival rapidamente se tornou um bastião das tendências mais radicais da música de concerto ocidental. Compositores europeus intransigentes como Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen o tratavam como seu feudo pessoal e, em meados dos anos 50, o próprio nome “Darmstadt” tornou-se sinônimo de experimentação ultrassônica.

No ano de 1958, um Morricone de trinta anos – então ainda um trompetista e arranjador de jazz em atividade – chegou pela primeira vez à cidade de Hesse, representando um ano crucial na história de Darmstadt. Ele marcou a controversa aparição inaugural de John Cage. Já notório por sua composição “silenciosa” 4’33’’ e uso de procedimentos aleatórios, os concertos e palestras de Cage causaram arrepios entre seu público, mas Morricone os lembraria como peculiarmente empolgantes. No livro Ennio Morricone: In His Own Words, em coautoria com Alessandro De Rosa, ele relembra um passeio pela floresta no dia seguinte com um grupo de seus compatriotas, todos ainda “desorientados” pela apresentação da noite anterior.

“A certa altura chegamos a um pequeno espaço aberto, no centro do qual havia uma rocha”, lembrou. “Decidimos nos reunir em círculo ao redor da rocha e cada um de nós teria que produzir um som.” Com o próprio Morricone conduzindo de um poleiro na rocha, o grupo iniciou uma improvisação coletiva com apenas suas vozes, produzindo “chamados curiosos” na clareira. “Esse episódio iniciou a jornada que poderíamos continuar por vários anos com o nome de Gruppo d’Improvvisazione Nuova Consonanza.”

O Nuova Consonanza, ao qual Morricone se juntou oficialmente em 1965, continuou fazendo curiosos apelos animalescos até que se desfez em 1980. Fundado pelo amigo de Morricone - e o iniciador daquela estranha cerimônia nos bosques de Darmstadt - Franco Evangelisti e apresentando em vários momentos as contribuições de compositores célebres como Frederic Rzewski, Egisto Macchi, Mario Bertoncini e Roland Kayn, a produção gravada do grupo varia descontroladamente desde a pioneira improvisação livre de sua estreia em 1966 à eletrônica ricamente atmosférica do “Credo” de 1969 ao funk psicodélico selvagem de seu álbum de 1970 The Feed-Back.

Por toda parte há uma sensação emocionante de liberdade coletiva, uma espécie de pura exultação nos prazeres do próprio som. Em um álbum, eles tomaram decisões de composição baseadas em lances em um jogo de xadrez (o próprio Morricone supostamente jogava com um padrão profissional); em outras faixas você pode ouvir o que soa como o farfalhar do papel como uma das principais forças instrumentais. As cordas do piano eram tocadas com arcos de violino, isqueiros e garrafas plásticas; instrumentos de sopro foram empregados como ressonadores para vozes sussurradas.

Eles chamavam seu som de uma espécie de “antimúsica”. E, na verdade, a consistência do grupo foi definida principalmente negativamente por meio de uma série de interdições impostas por Evangelisti no início do grupo: nenhum timbre orquestral padrão, nenhuma melodia reconhecível e nenhum instrumento individual deveria dominar o grupo. Como Morricone reconheceu, isso equivalia a uma democratização radical da música, na qual as formas individualistas de expressão estavam firmemente fora do cardápio e qualquer um podia participar.

A influência de Nuova Consonanza tem sido ampla, desde Sonic Youth e John Zorn até a improvisação livre de Evan Parker – principalmente nas trilhas sonoras mais conhecidas de Morricone. Ele usou o grupo, improvisando mais uma vez sob sua batuta, nas trilhas sonoras do thriller giallo Cold Eyes of Fear e também no profundamente estranho filme de Elio Petri A Quiet Place in the Country.

Você também pode detectar uma nota de sua abordagem radical à instrumentação na decisão de Morricone de empregar o que ele chamou de “instrumenti povere” (com um possível aceno para o movimento contemporâneo da arte povera na escultura e nas belas artes) no filme posterior de Petri, Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita. Mas, em retrospecto, o grupo se destaca como um tipo estranho de singularidade. Como David Toop escreveu em seu Ocean of Sound, "Era como se os ideais de obras de arte abertas e sociedade aberta convergissem por um momento".

Sobre o autor 

Robert Barry é escritor e compositor freelancer. Seu último livro publicado se chama "Compact Disc" (Bloomsbury, 2020).

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