5 de abril de 2021

Sobre populismos e revoluções passivas

A nova onda de governos progressistas na região relança um debate que, não por ser antigo, não é mais atual. A interpretação canônica da esquerda sobre os populismos latino-americanos merece ser revista.

Pablo Pizzorno


Néstor Kirchner, Evo Morales, Lula da Silva e Hugo Chávez posam para uma foto que entrou para a história.

Em meio à crise pelos efeitos da pandemia, o momento político sul-americano dá sinais favoráveis ​​para um novo ciclo progressista / populista na região. Os governos de direita que proliferaram nos últimos anos têm dificuldade em se estabilizar e enfrentar um descrédito crescente, enquanto invariavelmente sua principal oposição se consolida nas forças políticas que lideraram a onda progressista na primeira década deste século. Mesmo com rotas muito diferentes, os casos da Argentina, Bolívia e provavelmente também do Equador, nos próximos dias, marcam um possível roteiro para o futuro próximo da região.

A possibilidade desta mudança tem suscitado várias intervenções sobre o equilíbrio do ciclo progressista e os chamados populismos do século XXI. Ali, diante do antipopulismo dominante, com viés conservador, há também uma crítica de posições de esquerda que reativa as tensões históricas dessa tradição diante das experiências nacional-populares.

Diques de contención

Apesar de incorporar a dimensão ambiental como elemento inédito, o espírito desse tipo de crítica reedita a interpretação canônica da esquerda sobre os clássicos populismos latino-americanos. Nessa perspectiva, essas experiências foram construídas como “diques de contenção” à radicalização das massas e seu caráter é essencialmente uma veneziana para a acumulação política dos setores populares.

Nessa leitura, os governos populistas / progressistas se sustentam na operação Gatopardista, que consiste em incorporar certas demandas subalternas em troca da manutenção do controle político sobre as massas. Para os populismos do século XXI, essa função histórica residiria em desativar a capacidade autônoma dos movimentos sociais que conduziram tanto a resistência às experiências neoliberais quanto as rebeliões populares do início do século que impulsionaram a mudança de época.

Porém, desse ponto de vista, a participação prometida aos movimentos sociais em governos progressistas rapidamente se voltou para a perda de autonomia desses grupos e sua submissão a uma matriz estadocêntrica baseada em um verdadeiro processo de “expropriação das energias sociais”.

Aqui a caracterização de populista adquire todo o seu significado, remetendo a uma tradição de longa data oposta ao papel das lideranças carismáticas de tipo nacional-popular ("bonapartistas" ou "cesaristas", na linguagem marxista tradicional) e à alegada captura transformacionista de as lideranças de organizações populares realizadas sob esses regimes. De maneira mais geral, neste tipo de análise, a função histórica dos populismos clássico e atual tem sido relacionada à categoria gramsciana de revolução passiva.

De volta às fontes

Em seu estudo sobre o Risorgimento, Gramsci aplica o conceito de revolução passiva ao processo pelo qual setores moderados se impõem a grupos subordinados na direção política da luta pela unificação nacional e na posterior formação do moderno Estado italiano. Desse modo, a revolução passiva ou revolução-restauração é vista como um processo de formação de um Estado nacional a partir de cima, à maneira de um reformismo moderado dirigido por elites estatais que neutraliza a presença dos elementos populares mais radicais, diferenciando-se assim de uma revolução do tipo jacobino.

Nesse contexto, Gramsci se refere à operação transformista como o processo de incorporação de lideranças de grupos radicais à classe política tradicional. Essa função, para os sardos, nada mais era do que a demonstração de que os setores moderados representavam um grupo social relativamente homogêneo, cuja supremacia não se limitava à dimensão coercitiva, mas era capaz de mostrar uma verdadeira "direção intelectual e moral" sobre os demais grupos sociais. Para Gramsci, uma classe hegemônica, além de dominante, deve ser dirigente.

No entanto, a noção de transformismo, intimamente ligada na definição gramsciana ao desdobramento hegemônico de um grupo social sobre outros, dá lugar em sua atualização anti-populista de esquerda à ideia de cooptação dos movimentos sociais como um operação manipuladora e unilateral realizada desde o início.

A outra figura gramsciana aludida é a do cesarismo, herdada da noção marxista de bonapartismo, ambos prototípicos das primeiras análises da esquerda tradicional contra os populismos clássicos do século XX. A assunção de lideranças carismáticas com apoio popular e, por vezes, relacionadas com o exército, levou à ligação com O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, que, no caso do peronismo, foi empunhado pelas forças de esquerda da época para condenar a mobilização de 17 de outubro de 1945 e negar o status de "autênticos trabalhadores" aos sindicatos que ali se mobilizaram.

Na ocasião, socialistas e comunistas lançaram mão o mote de lumpemproletariado, junto com as conhecidas advertências de Marx e Engels quanto à predisposição desses setores marginais para ingressar nas fileiras reacionárias. Foram esses partidos, que se autoproclamam porta-vozes da classe operária, que mais vigorosamente sentiram a necessidade de distinguir as hostes peronistas do "verdadeiro" proletariado argentino.

Após a queda de Perón, no final dos anos 1950, uma leitura desse tipo seria teoricamente retrabalhada por Milcíades Peña, jovem intelectual de origem trotskista que construiu uma das caracterizações paradigmáticas da esquerda argentina a respeito do peronismo. Para Peña, a entrada em massa de trabalhadores rurais sem experiência de classe na indústria diminuiu a combatividade da classe trabalhadora e criou as condições para que se impusesse o projeto de um sindicalismo construído e fiscalizado pelo Estado.

Em vez de os trabalhadores irem para os sindicatos, disse Peña, os sindicatos, por meio do Ministério do Trabalho e Previdência Social (STP), foram aos trabalhadores. Desta forma, afirmou: "Perón abortou, canalizando as reivindicações operárias através do Estado, a ascensão combativa do proletariado argentino, que provavelmente teria ocorrido no final da guerra. Porque é evidente que se Perón não tivesse concedido melhorias, o proletariado teria lutado para obtê-las"[1].

Gramsci, inspirado no trabalho de Marx sobre o bonapartismo, desenvolveu a ideia do cesarismo como a intervenção de uma personalidade heróica cuja liderança emergia em situações de empate catastrófico entre uma força progressista e uma regressiva. No entanto, esta resolução não tinha sentido político per se, pois poderia haver um cesarismo progressista e regressivo, e para os sardos era preciso não se apressar em tirar conclusões esquemáticas e superficiais sobre o seu significado histórico.

Nesse sentido, em uma de suas notas, Gramsci alertava sobre os cuidados que deveriam ser tomados ao se analisar um movimento do tipo cesarista, bonapartista ou boulangista (do general Boulanger, de fugaz popularidade na França entre 1896 e 1890). Seu argumento foi guiado por uma crítica ao economismo, que visava as correntes mais ortodoxas e deterministas do marxismo.

Diante de um movimento do tipo boulangista, Gramsci alertou que deveria ser feita uma análise detalhada que avaliasse: a composição social das massas que aderem a esse movimento, seu papel no equilíbrio de forças, o sentido de suas demandas e a conformidade dos objetivos com o fim proposto. E concluiu:

Apenas em último recurso, e apresentado de uma forma mais política do que moralista, é a hipótese de que tal movimento será necessariamente desnaturado e servirá a fins muito diferentes daqueles esperados pelas multidões aderentes. Ao contrário, essa hipótese é afirmada antecipadamente, quando nenhum elemento concreto (e que, portanto, aparece com as evidências do bom senso e não através de uma análise "científica" esotérica) ainda existe para confirmá-la. Portanto, tal hipótese aparece como uma acusação moral de ambigüidade e má-fé ou de pouca astúcia, de estupidez (para os capangas). A luta política torna-se assim uma série de acontecimentos pessoais entre aqueles que tudo sabem, e fizeram um pacto com o diabo, e aqueles que são ridicularizados por seus próprios líderes, sem querer ser convencidos disso por causa de sua estupidez incurável. [2]

Como disse Juan Carlos Portantiero, é como se essa passagem tivesse se dedicado à análise de classe dos movimentos populistas na América Latina. Gramsci exige um exame minucioso de cada experiência boulangista (ou populista, aliás) em relação à massa social que mobiliza, suas demandas concretas e seu papel na relação de forças em que intervém. Só daí se poderia derivar a hipótese de que se trata de um movimento destinado a trair as reivindicações de seus adeptos. Desse modo, Gramsci zomba das análises que, a priori, lêem de forma manipuladora a ligação entre as massas populares e lideranças movimentistas desse tipo.

Foi precisamente o jovem Portantiero dos anos setenta que preparou uma recepção de Gramsci em sintonia com uma abordagem política da esquerda às experiências populistas, numa perspectiva que poucos anos depois abandonaria definitivamente [3]. Na época, Portantiero observava que a constituição política das classes populares na América Latina adquiriu uma trajetória diferente da do modelo canônico europeu em que se baseavam as teses de classe.

Se a forma "europeia" de constituição política implicou um crescimento sucessivo das lutas sociais que posteriormente se expressaram como lutas políticas - tipicamente, da ação sindical ao partido de classe -, o "desvio" latino-americano consistiu no fato de que esse crescimento foi constitutivo de uma crise política e fundadora de uma nova fase estatal em que os setores subalternos entraram no jogo político sem terem esgotado aquela suposta trajetória de acumulação autônoma. Foi, em suma, uma leitura que viu na intervenção populista um momento decisivo na constituição política das classes populares e não um bloqueio estatal a um hipotético caminho de radicalização por baixo.

Um bombeiro incendiário

Vamos recapitular o que foi dito com um exemplo histórico. Em 25 de agosto de 1944, Perón, como Secretário de Trabalho e Bem-Estar do governo militar, fez um famoso discurso na Bolsa de Valores perante representantes do mundo empresarial. Seguindo a pregação anticomunista oficial, Perón explicou que as massas trabalhadoras desorganizadas eram um terreno fértil para a agitação do ativismo comunista.

A Argentina, disse o coronel, não estava alheia à consolidação global das ideologias extremas que ele próprio pôde verificar em sua jornada pela Europa, e o iminente pós-guerra só aprofundaria sua difusão. “Está nas nossas mãos”, acrescentou, “fazer com que a situação se resolva antes de chegar a esse extremo, em que todos os argentinos terão algo a perder, e na proporção direta do que se possui: quem tem, portanto, muito, perderá tudo e quem não tiver nada ficará como antes". O auditório, naturalmente, era formado pela primeira turma de argentinos.

Para Perón, a solução para este problema residia na ação preventiva do Estado, que devia deter seu "abstencionismo suicida" para garantir uma regulação justa da relação entre empregadores e trabalhadores. O objetivo era suprimir o que o funcionário indicou ao auditório como as causas da agitação: a injustiça social. Assim, ao exagerar a influência comunista sobre os trabalhadores argentinos, Perón ofereceu aos empresários uma solução que consistia em renunciar a uma parte do seu lucro em troca de banir os perigos da rebelião: "É preciso saber dar trinta por cento na hora do que perder tudo depois", ele graficou.

Desse modo, o famoso discurso da Bolsa parece adaptado às leituras que enxergam na intervenção populista um dique para conter a radicalização das massas. Nele, à maneira de uma revolução passiva, foi proposta uma solução de compromisso cujo objetivo era desativar o impulso autônomo dos setores populares. Perón, na tentativa de ganhar a confiança dos empresários, dramatizou o impacto de uma iminente agitação da classe trabalhadora e propôs à classe proprietária a entrega de certas concessões para conseguir a entrada domesticada dos trabalhadores no Estado.

O que aconteceu, porém, foi que esta inestimável colaboração de Perón com a salvaguarda da ordem burguesa não foi correspondida pela burguesia.

Como vários estudos históricos mostraram, esses empresários careciam do sentimento de ameaça de um movimento operário combativo, que nos países fascistas levara os patrões a acompanhar políticas de reformas trabalhistas, mesmo ao preço de sacrifícios imediatos.

Pelo contrário, se havia preocupação dos presentes, era a própria política social do coronel na STP que, como dizia Juan Carlos Torre, em vez de pacificar, o que fazia era aumentar o estado de mobilização do mundo do trabalho para então convidar as classes proprietárias a agirem de acordo [4]. Em suma, para os empresários, Perón se comportava - nas palavras de Alain Rouquié - como um bombeiro incendiário, que iniciava os incêndios para depois ser chamado para apagá-los.

Um pedido assinado por mais de trezentas entidades patronais em maio de 1945 sintetiza esta posição contra a ação da STP. Expressava "a crescente inquietação de um ambiente de inquietação social que vinha estragar a vigorosa e disciplinada eficiência do esforço produtivo, e cuja gravidade encontrava sua origem no impulso constante que lhe aguardava das dependências oficiais". E acrescentou: “Referimo-nos à criação de um clima de suspeita, provocação e rebelião, em que se estimula o ressentimento e um espírito permanente de hostilidade e reivindicação”.

Em vez da barragem de contenção que Perón havia prometido aos empresários da Bolsa, aos olhos dessas entidades a intervenção da STP gerou o que foi considerado a questão mais grave de todos: um extenso clima de rebelião e demandas dos trabalhadores que ameaçavam perturbar a disciplina de trabalho.

No local de trabalho, a burguesia argentina foi a primeira a perceber como aquela classe trabalhadora renovada e fortalecida, formada "heteronomamente" a partir da intervenção populista, começou a travar não apenas uma verdadeira luta de classes crioula, mas também um processo ainda mais profundo, o da desagregação de lugares previamente estabelecidos na comunidade política.

Assuma contradições (e classifique-as)

Em nossa opinião, apesar do fato de que a veia normativa do populismo não pode ser perdida de vista, a centralidade do componente de passividade ou desmobilização que ocorre no modelo de revolução passiva não pode ser assimilada a essas experiências históricas.

Tanto os populismos clássicos como os do século XXI traçaram os contornos de uma questão popular que não estava necessariamente contida no desenvolvimento do movimento social preexistente, pelo que a sua intervenção resultou frequentemente no aparecimento de novos conflitos gerados de cima e não apenas na tentativa de moderar e desativar tensões anteriores.

Enfim, é verdade que os populismos, com a inestimável colaboração de muitos antipopulistas, têm repetidamente provocado enfrentamentos de forma dicotômica, com pouca vontade de explorar nuances, que acabam caindo na simplicidade do maniqueísmo. É verdade também que essa divisão estática tende a ignorar nós de conflitividade social e demandas adiadas que acabam sendo relegadas por ambos os polos do debate público.

Porém, embora seja necessário pensar fora das dicotomias, é menos aconselhável declará-las estéreis e intervir como se não existissem. As polarizações também expressam força social organizada, remetem a tradições arraigadas na vida nacional e condensam os espaços privilegiados de conflito que permeiam uma sociedade, invadindo o senso comum e politizando o cotidiano.

Nesse sentido, assumir a relevância das contradições de um dado momento político não significa negar as contradições que nele se aninham, mas sim classificar sua hierarquia.

Notas

[1] M. Peña (1971). Masas, caudillos y elites. La dependencia argentina de Yrigoyen a Perón. Buenos Aires: Fichas, p. 71.

[2] A. Gramsci (1984). Notas sobre Maquiavelo, sobre la política y sobre el Estado moderno. Buenos Aires: Nueva Visión, p. 46.

[3] J. C. Portantiero (1981). Los usos de Gramsci. México: Folios.

[4] J. C. Torre (1990). La vieja guardia sindical y Perón. Buenos Aires: Sudamericana.

Sobre o autor

Pablo Pizzorno é doutor em Ciências Sociais e docente da Universidad de Buenos Aires.

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