30 de novembro de 2021

A Big Pharma está matando com o apartheid das vacinas

Com a disseminação da nova variante Omicron e baixos níveis de vacinação em grande parte do mundo, ainda não há um fim real à vista para o COVID. É uma má notícia para a saúde pública global - mas uma ótima notícia para as grandes empresas farmacêuticas.

Luke Savage


Army specialist Angel Laureano holds a vial of the Pfizer-BioNTech COVID-19 vaccine at Walter Reed National Military Medical Center in Bethesda, Maryland, on December 14, 2020. (Lisa Ferdinando / US Department of Defense via Wikimedia Commons)

Tradução / Com o surgimento de outra variante da COVID-19, não há um fim no horizonte para a pandemia global. É uma má notícia para todos que esperavam que 2022 pudesse trazer um retorno a algum tipo de normalidade, ou ver o fim dos tipos de restrições e proibições de viagens sendo agora reintroduzidas. Mas é, decididamente, uma boa notícia, por outro lado, para algumas grandes empresas farmacêuticas que já fizeram uma matança com as vacinas e devem colher grandes lucros à medida que variantes como o Omicron continuam a se proliferar.

A Moderna e a Pfizer adicionaram bilhões em suas capitalizações no mercado em questão de dias, desde que a notícia da Omicron apareceu pela primeira vez em meio a uma demanda antecipada por doses de reforço e, por extensão, enormes lucros. 2021 já foi um ano marcante para as várias empresas farmacêuticas que transformaram com sucesso suas marcas em sinônimo de distribuição de vacinas – os lucros da Pfizer saltaram cerca de 124% nos três primeiros trimestres do ano em comparação com 2020 e os da Johnson & Johnson, cerca de 24%.


No que diz respeito aos modelos de negócios lucrativos, a estratégia de pandemia da indústria farmacêutica é a melhor que pode existir. As vacinas do tipo mRNA produzidas por empresas como Pfizer e Moderna só foram desenvolvidas graças a bilhões investidos em pesquisas com financiamento público, e ambas as empresas pagaram bem abaixo da taxa de imposto nos EUA no primeiro semestre deste ano. Com o incentivo, a proteção e a cooperação de alguns dos Estados mais ricos e poderosos do mundo, ambos empresas também venderam muitas doses aos países ricos – cobrando com sucesso até 24 vezes os custos reais de produção, de acordo com uma análise feita por cientistas de mRNA em Imperial College London, resultando em doses 5 vezes mais caras do que o necessário.

Como essa resposta a uma pandemia global, o lançamento da vacina liderada pela indústria farmacêutica gerou uma crise humanitária completamente evitável que é muito corretamente chamada de apartheid da vacina por seus críticos. Romper com esse controle corporativo é um passo necessário para aumentar o fornecimento de vacinas e levar as doses necessárias com urgência para bilhões de pessoas que precisam delas mundo afora. Mas, como o ciclo global de notícias se preocupa com o surgimento de mais uma variante, também é um pré-requisito básico para acabar com a pandemia para todos, mesmo em países ricos com taxas relativamente altas de vacinação.

Até que as fórmulas de produção de vacinas sejam compartilhadas e as doses amplamente disponibilizadas a baixo custo, podemos esperar mais infecções e mortes desnecessárias – e uma indústria extremamente lucrativa operando a todo vapor.

Sobre o autor

Luke Savage é colunista da Jacobin

29 de novembro de 2021

Sobre "A Peste"

Lições da "Praga" de Camus

Tony Judt

The New York Review

November 29, 2001 issue

A editora Penguin acaba de publicar uma nova tradução de La peste, de Albert Camus, feita por Robin Buss, e o texto que se segue é o da minha introdução, escrita há alguns meses. Muitos leitores já estarão familiarizados com essa fábula sobre a chegada da peste à cidade de Oran, no Norte da África, em 194-, e as diferentes maneiras pelas quais seus habitantes reagem ao impacto devastador que ela exerce sobre sua vida. Hoje, A peste assume um novo significado e um dramático sentido de urgência.

A insistência de Camus em situar a responsabilidade moral individual no centro mesmo de todas as escolhas públicas é um desafio direto aos cômodos hábitos da nossa era. Sua definição de heroísmo — pessoas comuns fazendo coisas extraordinárias movidas pela simples noção de decência — soa mais verdadeira do que admitíamos no passado. Sua descrição de julgamentos instantâneos ex cathedra — "Irmãos, vocês fizeram por merecer" — parecerá sinistramente familiar a todos nós.

A firmeza com que Camus distingue a diferença entre o bem e o mal, a despeito da compaixão que demonstra pelos que duvidam e aceitam fazer concessões, pelos motivos e erros de uma humanidade imperfeita, lança uma luz nada lisonjeira sobre os que, na nossa época, insistem emtudo relativizar e em trocar de opinião segundo as conveniências do momento. E seu controvertido recurso a uma epidemia biológica para ilustrar os dilemas do contágio moral mostrou-se bemsucedido em aspectos que seu autor não poderia ter imaginado. Aqui em Nova York, em novembro de 2001, estamos mais bem situados do que desejaríamos para sentir o golpe vibrado pela premonitória última frase do romance.

A peste é o romance mais bem-sucedido de Albert Camus. Publicado em 1947, quando o autor tinha 33 anos, obteve um triunfo instantâneo. Um ano depois já tinha sido traduzido para nove idiomas, e muitos outros viriam a seguir. Nunca chegou a estar fora de circulação e foi alçado à condição de clássico da literatura mundial mesmo antes da morte prematura do autor, num acidente de carro, em janeiro de 1960. Mais ambicioso do que O estrangeiro, o romance de estreia que fez sua reputação, e mais acessível do que seus escritos posteriores, A peste é o livro pelo qual Camus tornou-se conhecido de milhões de leitores. Ele poderia ter achado isso estranho — O homem revoltado, publicado quatro anos depois, era o que, pessoalmente, ele preferia entre seus livros.

Como muitas das melhores obras de Camus, A peste exigiu de seu autor muito tempo de trabalho. Ele começou a juntar material para o livro em janeiro de 1941, ao chegar a Oran, a cidade do litoral da Argélia onde se passa sua história. Continuou a trabalhar no manuscrito em Le Chambon-sur-Lignon, um vilarejo nas montanhas na região central da França, aonde foi para se recuperar de uma das frequentes crises provocadas pela tuberculose no verão de 1942. Camus, contudo, logo se viu atraído para a participação na Resistência, de modo que só pôde voltar a dar atenção ao livro depois da libertação da França. Àquela altura, no entanto, o obscuro romancista argelino já havia se transformado numa figura nacional: um herói da resistência intelectual, editor de Combat (um diário nascido na clandestinidade e que exerceu enorme influência nos anos do pós-guerra) e um ícone de uma nova geração de homens e mulheres franceses, sedentos por ideias e por ídolos.

Camus parecia se encaixar à perfeição no papel. Atraente e encantador, um partidário carismático de radicais mudanças políticas e sociais, desfrutava de uma autoridade sem igual sobre milhões de seus compatriotas. Nas palavras de Raymond Aron, os leitores dos editoriais de Camus tinham “desenvolvido o hábito de formar seu pensamento diário a partir dele”. Havia outros intelectuais na Paris do pós-guerra destinados a desempenhar papéis importantes nos anos que estavam por vir: o próprio Aron, Simone de Beauvoir e, é claro, Jean-Paul Sartre. Mas Camus era diferente. Nascido na Argélia em 1913, era mais jovem que seus colegas da Rive Gauche, a maioria dos quais já estava na casa dos quarenta anos ao fim da guerra. Ele era mais "exótico", tendo chegado da distante Argel e não saído da estufa formada pelas escolas e faculdades parisienses; e havia nele algo de especial. Um observador da época captou bem isso: "O que me chamou a atenção foi o seu rosto, tão humano e sensível. Há nesse homem uma integridade tão patente que impõe um respeito quase imediato; simplesmente ele não é como os outros homens".1

A reputação pública de Camus garantiu o sucesso do seu livro. Mas o momento em que foi publicado também foi, em parte, responsável por isso. Quando o livro foi lançado, os franceses começavam a esquecer os constrangimentos e as soluções de compromisso dos quatro anos de ocupação alemã. O marechal Philippe Pétain, o chefe de Estado que iniciou e encarnou a política de colaboração com os nazistas vitoriosos, tinha sido julgado e preso. Outros políticos colaboracionistas tinham sido executados ou banidos da vida pública. O mito de uma gloriosa resistência nacional era cuidadosamente cultivado por políticos de todos os matizes ideológicos, de Charles de Gaulle aos comunistas; incômodas memórias pessoais tinham recebido uma tranquilizadora camada de verniz estampando a versão oficial, segundo a qual a França havia sido libertada dos seus opressores pelos esforços conjuntos da resistência doméstica e das forças da França Livre, lideradas desde Londres por De Gaulle.

Nesse contexto, a alegoria de Albert Camus a propósito da ocupação da França na época da guerra reabria um doloroso capítulo do passado recente francês, mas por um viés indireto e aparentemente apolítico. Por aquele ângulo, evitava provocar suscetibilidades partidárias, comexceção das extremas esquerda e direita, abordando temas delicados sem que as pessoas se recusassem de antemão a ouvi-lo. Se o romance tivesse aparecido em 1945, a atmosfera raivosa e partidarizada animada por sentimentos de vingança teria sufocado suas reflexões ponderadas a respeito da justiça e da responsabilidade. Se tivesse sido adiado até os anos 1950, seu tema teria provavelmente sido posto de lado, em face dos novos alinhamentos surgidos em função da Guerra Fria.


Se A peste deve ser lido, como certamente o foi, como uma simples alegoria a respeito do trauma vivido pela França durante a guerra, esse é um tema ao qual voltarei mais adiante. O que não deixa dúvidas é o fato de que se tratava de um livro intensamente pessoal. Camus pôs algo de si mesmo — suas emoções, suas memórias e sua sensibilidade em relação a um lugar — em todas as obras que publicou; esse é um dos motivos pelos quais se distinguia de outros intelectuais de sua geração e que explica a atração duradoura e universal que exerce. Porém, mesmo pelos padrões de Camus, A peste é notavelmente introspectivo e revelador. Oran, o cenário do romance, era uma cidade que ele conhecia bem e da qual cordialmente não gostava, ao contrário da cidade natal por ele adorada, Argel. Considerava Oran tediosa e materialista, e suas memórias sobre a cidade foram marcadas mais ainda pelo fato de sua tuberculose ter se agravado durante sua estada ali. Emconsequência disso, foi proibido de nadar — um de seus maiores prazeres — e se viu forçado a permanecer sentado semanas a fio em meio ao calor sufocante, opressivo, que proporciona o pano de fundo da história.

Essa privação involuntária de tudo o que ele mais amava na sua terra natal argelina — a areia, o mar, o exercício físico e a sensação mediterrânica de bem-estar e liberdade que Camus sempre contrapôs à paisagem cinzenta e soturna do Norte — foi agravada quando ele foi enviado ao interior da França para convalescer. A região do Maciço Central é tranquila e revigorante, e o vilarejo afastado ao qual Camus chegou em agosto de 1942 poderia ser tomado como o local ideal para um escritor. Porém, doze semanas depois, em novembro de 1942, os aliados desembarcaram no Norte da África. Os alemães reagiram ocupando todo o Sul da França (até então governado desde a cidade de Vichy, sede de uma estação de águas, pelo governo fantoche de Pétain) e a Argélia se viu isolada do continente. Camus ficou, a partir desse momento, separado não apenas da sua terra natal, mas também da sua mãe e da sua esposa, as quais só veria novamente depois da derrota da Alemanha.2

Doença, exílio e separação estavam, portanto, presentes tanto na vida de Camus como em seu romance, e suas reflexões a esse respeito compõem um contraponto vital à alegoria. Devido à sua experiência direta e intensa, as descrições de Camus da peste e da dor gerada pela solidão são excepcionalmente vívidas e sentidas. A profundidade do seu próprio sentimento é sugerida pela observação do narrador, logo no começo da história, de que "a primeira coisa que a peste trouxe para os nossos concidadãos foi o exílio", e que "estar separado de alguém a quem amamos [...] [era] a maior agonia desse longo período de exílio".

Isso por sua vez proporciona, tanto para Camus como para o leitor, um vínculo com seu romance anterior: pois doença, separação e exílio são condições que nos chegam de forma inesperada e indesejada. Servem de exemplo do que Camus compreendia como o "absurdo" da condição humana e a natureza aparentemente aleatória dos esforços humanos. Não é por acaso que um dos seus principais personagens, Grand, supostamente sem motivo algum, relata uma conversa ouvida numa tabacaria a respeito de "um jovem empregado de uma empresa que tinha matado um árabe numa praia". Isso, é claro, é uma alusão ao ato seminal de violência arbitrária em O estrangeiro, e na mente de Camus está associado às devastações provocadas pela pestilência em A peste, e não apenas pelo cenário argelino comum a ambas. 


Porém Camus fez mais do que simplesmente inserir na sua história pequenos episódios e emoções extraídos de seus primeiros escritos e da sua situação pessoal. Ele colocou a si mesmo, de forma bastante direta, nos personagens de seus romances, usando três deles em particular para representar e iluminar seu característico ponto de vista moral. Rambert, o jovem jornalista que se vê separado da mulher em Paris, fica a princípio desesperado para fugir da cidade isolada emquarentena. Sua obsessão com seu sofrimento pessoal o deixa indiferente à tragédia mais ampla, da qual se sente bastante distante — ele não é, afinal, um cidadão de Oran, tendo sido surpreendido ali apenas por obra do acaso. É justo na véspera da sua partida que compreende como, a despeito de si mesmo, ele se tornou parte da comunidade e compartilha seu destino; ignorando o risco e apesar de suas necessidades egoístas anteriores, ele permanece em Oran e se une às “equipes sanitárias”. Partindo de uma resistência inteiramente privada contra o infortúnio, ele ascende à solidariedade de uma resistência coletiva contra o flagelo comum.

A identificação de Camus com o dr. Rieux reflete seu estado de espírito instável desses anos. Rieux é um homem que, diante do sofrimento e de uma crise comum, faz o que deve fazer e se torna um líder e um exemplo, não levado por uma coragem heroica, mas antes por uma espécie de otimismo necessário. No fim dos anos 1940, Camus estava exausto e deprimido, sentindo o peso do fardo das expectativas depositadas nele como intelectual público: conforme confiou aos seus diários, "todos querem que o homem ainda empenhado em sua busca já tenha alcançado logo suas conclusões". Do filósofo “existencialista” (um rótulo que sempre desagradou a Camus) as pessoas esperavam uma visão de mundo pronta e acabada; mas Camus não tinha nenhuma a oferecer.3 Como expressou por meio de Rieux, ele estava "farto do mundo em que vivia"; tudo o que podia oferecer com alguma certeza era "algum sentimento por seus semelhantes e [ele estava] determinado a rejeitar qualquer injustiça e qualquer concessão".

O dr. Rieux faz a coisa certa apenas porque enxerga claramente o que precisa ser feito. Numterceiro personagem, Tarrou, Camus incorporou uma exposição mais elaborada de seu pensamento moral. Como Camus, Tarrou está na casa dos trinta anos; deixou sua casa, segundo ele mesmo, movido pelo desgosto que sentia pela postura do pai de defender a pena de morte — tema comque Camus se preocupou intensamente e sobre o qual escreveu bastante nos anos do pós-guerra.4

De modo doloroso, Tarrou refletiu sobre sua vida e seus compromissos passados, e sua confissão a Rieux ocupa o cerne mesmo da mensagem moral do romance: "Pensei que estava lutando contra a peste. Eu me dei conta de que, indiretamente, tinha apoiado a morte de milhares de homens, de que tinha causado suas mortes ao aprovar ações e princípios que inevitavelmente levaram a elas". Essa passagem pode ser lida como expressando as reflexões arrependidas do próprio Camus sobre sua passagem pelo Partido Comunista na Argélia durante os anos 1930. Mas as conclusões de Tarrou vão além da admissão de um erro político: "Estamos todos na peste. [...] Tudo o que sei é que é preciso dar o melhor de si para não vir a ser também uma vítima da peste. [...] E é por isso que decidi rejeitar tudo que, direta ou indiretamente, faça as pessoas morrer ou justifique o fato de outras pessoas fazerem com que morram". Essa é a voz autêntica de Albert Camus e esboça a posição que assumiria pelo resto da vida em relação ao dogma ideológico, ao assassinato político ou judiciário e a todas as formas de irresponsabilidade ética — atitude que mais tarde lhe cobraria um alto custo em termos de amigos e até mesmo em influência no mundo polarizado da inteligência parisiense.


A defesa feita por Tarrou/Camus das suas recusas e dos seus compromissos nos leva de volta à questão do status de A peste. Trata-se de um romance bem-sucedido em vários níveis, como deve ser qualquer grande romance, porém é, acima de tudo, uma inegável história de fundo moral. Camus tinha Moby Dick em alta conta e, como Melville, não hesitava em dotar sua história de símbolos e metáforas. Porém Melville podia se dar ao luxo de ir e vir livremente, para trás e para adiante, entre a narrativa sobre a caça a uma baleia e uma fábula a respeito da obsessão humana; entre a Oran de Camus e o dilema da escolha humana havia a realidade da vida na França de Vichy entre 1940 e 1944. Leitores de A peste, tanto hoje como em 1947, não estariam errados, portanto, em abordá-lo como uma alegoria sobre os anos da ocupação.

Isso se deve, em parte, ao fato de Camus deixar claro que se trata de uma história sobre "nós". A maior parte da história é contada na terceira pessoa. Mas, espalhado estrategicamente ao longo do texto, há o ocasional "nós", e o "nós" em questão — pelo menos para o público mais imediato de Camus — são os franceses em 1947. A “calamidade” que se abateu sobre os cidadãos da Oran ficcional é aquela que vitimou a França em 1940, com a derrota militar, o abandono da República e o estabelecimento do regime de Vichy sob a tutela alemã. O relato de Camus a propósito da chegada dos ratos ecoava uma visão bastante disseminada sobre a divisão em que se encontrava a própria França em 1940: "Era como se o próprio solo sobre o qual nossas casas estavamconstruídas estivesse sendo expurgado de um excesso de bile, deixando vir à tona furúnculos e abcessos que até então o tinham devorado por dentro". Na França, muitos, a princípio, tinhamcompartilhado da reação inicial do padre Paneloux: "Irmãos, vocês fizeram por merecer". Durante um bom tempo as pessoas não se dão conta do que aconteceu e a vida parece seguir seu curso — "quanto às aparências, nada havia mudado". "A cidade era habitada por pessoas que caminhavam como que adormecidas." Depois, quando a peste já tinha passado, a amnésia se instala — "elas negavam que nós [sic] tínhamos sido aquele povo entorpecido". Tudo isso e muito mais — o mercado negro, o fracasso dos administradores em dar às coisas seu verdadeiro nome e em assumir a liderança moral da nação — descreviam com tamanha precisão o passado recente francês que era impossível não reconhecer as verdadeiras intenções de Camus.

Entretanto, a maior parte dos alvos de Camus não se deixa rotular facilmente, e a alegoria foge ao espírito da retórica moral polarizada, muito comum no período do pós-guerra. Cottard, que se resigna à peste, julgando-a forte demais para ser combatida, e que considera as "equipes sanitárias" uma perda de tempo, é claramente alguém que vem a ser um "colaboracionista" emrelação ao destino da cidade. Ele prospera em meio à nova situação e só tem a perder com a volta aos "velhos tempos". Mas ele é retratado com simpatia, e Tarrou e os outros continuam a manter contato com ele e até a discutir com ele suas ações. Tudo o que pedem, nas palavras de Tarrou, é que ele "tente não espalhar deliberadamente a peste".

No final, Cottard é violentamente espancado pelos cidadãos recém-liberados — um lembrete das punições violentas dirigidas aos supostos colaboradores por ocasião da Libertação, praticadas muitas vezes por homens e mulheres cujo entusiasmo pela vingança violenta os ajudou — e a outros — a esquecer as próprias concessões feitas na época da guerra. A sensibilidade demonstrada por Camus em relação à raiva e ao ressentimento nascidos de um sofrimento genuíno e de uma memória culpada introduz uma nuance de empatia, algo raro entre seus contemporâneos, fazendo com que a história se eleve bem acima das convenções da sua época.

A mesma sensibilidade (e integridade — Camus estava escrevendo com base na sua experiência pessoal) dá forma à representação dos próprios integrantes da resistência. Não por acaso, Grand, o tímido e reprimido funcionário, figura nada inspiradora, é apresentado como a encarnação da verdadeira e pouco heroica resistência. Para Camus, assim como para Rieux, a resistência nada tinha a ver com heroísmo — ou, se tinha, era, então, o heroísmo da bondade. “Pode parecer uma ideia ridícula, mas a única maneira de lutar contra a peste é com a decência.” Unir-se às “equipes sanitárias” não era em si mesmo um ato de grande significação — “não fazer aquilo, ao contrário, teria parecido incrível na época”. Esse ponto é enfatizado seguidamente no romance, como se Camus se preocupasse com a possibilidade de ser mal compreendido: “Quando vemos o sofrimento que isso acarreta”, observa Rieux a certa altura, “é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste”.

A exemplo do narrador, Camus se recusa a “fazer um elogio excessivamente eloquente à determinação e ao heroísmo aos quais atribui um grau apenas moderado de importância”. Isso precisa ser compreendido no contexto. Existiram, é claro, demonstrações de enorme coragem e grande sacrifício na Resistência francesa; muitos homens e mulheres morreram por essa causa. Porém Camus sentia-se pouco à vontade com a ostentação em torno do mito do heroísmo desenvolvido na França do pós-guerra e tinha horror ao tom de superioridade moral com o qual supostos ex-integrantes da Resistência (inclusive alguns de seus famosos colegas intelectuais) mostravam-se condescendentes em relação aos que nada tinham feito. Na visão de Camus, era a inércia, ou a ignorância, que explicava a incapacidade de ação por parte das pessoas. Os Cottard desse mundo eram uma exceção; a maioria das pessoas é melhor do que imaginamos — como diz Tarrou, “só é preciso dar a elas uma oportunidade”.5


Consequentemente, alguns dos intelectuais contemporâneos de Camus não demonstraram particular interesse por A peste. Esperavam dele algum tipo de obra mais “engajada” e acharampoliticamente incorretos as ambiguidades do livro e o tom de tolerância e moderação desiludidas. Simone de Beauvoir, em especial, desaprovou severamente o recurso de Camus a uma praga natural como um substituto para (era o que ela pensava) o fascismo — o procedimento isentava os homens de suas responsabilidades políticas, ela insistia, e se esquivava da história e dos verdadeiros problemas políticos. Em 1955 o crítico literário Roland Barthes chegou a uma conclusão negativa semelhante, acusando Camus de oferecer aos leitores uma “ética antihistórica”. Mesmo hoje essa crítica ocasionalmente vem à tona entre os que se dedicam ao estudo de Camus na academia: ele deixa o fascismo e Vichy escapar à condenação, acusam eles, ao lançar mão da metáfora de uma “peste não ideológica e não humana”.

Comentários como esses são duplamente reveladores. Em primeiro lugar mostram em que medida a história aparentemente simples de Camus se prestava a incompreensões. A alegoria pode ter sido associada à França de Vichy, mas a “peste” transcende os rótulos políticos. Não era o “fascismo” que Camus estava visando — um alvo fácil, afinal, em especial em 1947 —, mas os dogmas, a subserviência e a covardia em todas as suas formas públicas e combinadas. Certamente Tarrou não é nenhum fascista; mas ele insiste em dizer que, nos primeiros tempos, quando concordava com doutrinas que autorizavam o sofrimento de outros em nome de ideais elevados, também era um portador da peste, mesmo enquanto lutava contra ela.

Em segundo lugar, a acusação de que Camus era ambíguo demais em seus juízos, demasiadamente pouco político em suas metáforas, lança luz não sobre as suas fraquezas, mas simsobre suas qualidades. Isso é algo que talvez agora estejamos em melhor situação para compreender do que se encontravam os primeiros leitores de A peste. Graças a Primo Levi e a Václav Havel, adquirimos familiaridade com a “zona cinzenta”. Compreendemos melhor que, emcondições extremas, raramente encontramos categorias simples e reconfortantes de bem e mal, culpado e inocente. Sabemos mais sobre as escolhas e as soluções de compromisso com as quais homens e mulheres são obrigados a lidar em tempos difíceis, e não nos apressamos mais tanto assim em julgar os que procuraram se acomodar em situações impossíveis. Os homens podem vir a fazer a coisa certa a partir de uma combinação de motivos e podem, com a mesma facilidade, cometer atos terríveis com a melhor das intenções — ou sem intenções de tipo algum. Disso não decorre a crença de que as pragas que a humanidade faz desabar sobre si mesma sejam “naturais” ou “inevitáveis”. Porém atribuir responsabilidades por elas — evitando, assim, que voltem a acontecer no futuro — pode não ser uma tarefa tão simples. E com Hannah Arendt fomos apresentados a mais uma complicação: a noção da “banalidade do mal” (uma expressão que o próprio Camus teria tido o cuidado de evitar), a ideia de que crimes inomináveis podem ser cometidos por homens bastante comuns, com consciência limpa.6

Essas noções são agora lugares-comuns do debate moral e histórico. Mas Albert Camus foi o primeiro a chegar a essas questões, recorrendo às suas próprias palavras, com uma perspectiva original e uma intuição que escaparam a quase todos os seus contemporâneos. É isso que eles consideravam tão desconcertante em seus escritos. Camus era um moralista que não hesitava emdistinguir entre o bem e o mal, mas que se abstinha de condenar a fragilidade humana. Ele era umestudioso do “absurdo” que se recusava a se curvar diante da necessidade.7 Era um homempúblico voltado para a ação e que insistia no fato de que todas as questões verdadeiramente importantes se resumiam, em última instância, a atos individuais de generosidade e de bondade. E, como Tarrou, ele acreditava em verdades absolutas e aceitava os limites do possível: “Outros homens farão a história. [...] Tudo o que sei é que nesta terra há pestes e há vítimas — e devemos fazer o possível para nos recusar a ficar do lado da peste”.

Assim, A peste não ensina nenhuma lição. Camus era um moraliste, mas não um moralizador. Ele alegou ter se esforçado muito para não escrever algo “panfletário”, e, na medida em que essa novela não oferece consolo algum a polemistas políticos de nenhuma tendência, pode-se considerar que ele teve sucesso. Mas justamente por esse motivo o livro não apenas sobreviveu às suas origens como uma alegoria a respeito da França ocupada, mas também transcendeu sua era. Ao olharmos para trás e fazermos um sombrio balanço do século XX, podemos ver mais claramente agora que Albert Camus identificou os dilemas centrais de nossa era. Como Hannah Arendt, ele viu que "o problema do mal será a questão fundamental da vida intelectual do pós-guerra na Europa — da mesma forma que a morte se tornou o problema fundamental depois da última guerra".8

Cinquenta anos depois de sua primeira publicação, numa era de satisfação pós-totalitária comas nossas condições e perspectivas, quando intelectuais anunciam o Fim da História e políticos pregam a globalização como um paliativo universal, a frase com que Camus encerra seu grande romance soa mais verdadeira do que nunca, um sino de alarme ecoando na noite da complacência e do esquecimento:

O bacilo da peste nunca morre ou desaparece inteiramente, [...] pode permanecer latente por décadas na mobília ou nas roupas, [...] espera pacientemente em quartos, sótãos, baús, lenços e papéis velhos e [...] talvez chegue o dia em que, para instrução ou desgraça da humanidade, a peste convocará seus ratos e os enviará para morrer em alguma cidade que se mostra satisfeita consigo mesma.

Notas

1. Julien Green, Journal, 20/2/1948, citado por Olivier Todd, Albert Camus: Une vie (Paris: Gallimard, 1996), pp. 419-20.

2. O editor literário Jean Paulhan, ao encontrar Camus em Paris, em janeiro de 1943, observou que ele "sofria" com a impossibilidade de voltar a Argel, para "sua esposa e o seu clima". Jean Paulhan a Raymon Guérin, 6/1/1943, em Paulhan, Choix de lettres, 1937-1945 (Paris: Gallimard, 1992), p. 298.

3. "Nunca fui um filósofo e nunca pretendi ser um." Em "Entretien sur la révolte", Gazette des lettres, 15/2/1952.

4. Em seu romance autobiográfico Le Premier homme, publicado postumamente, Camus escreve sobre o seu pai ter chegado em casa e vomitado, depois de assistir a uma execução pública.

5. É importante observar que foi em Chambon-sur-Ligne, precisamente o mesmo vilarejo nas montanhas em que Camus esteve convalescendo em 1942-3, que a comunidade protestante local se uniu em torno do seu pastor para salvar um grande número de judeus que haviam buscado refúgio entre fazendas e aldeias isoladas, inacessíveis. Esse ato incomum de coragem coletiva, infelizmente raro naqueles dias, oferece um contraponto histórico à narrativa de Camus a respeito de uma escolha moral — e uma confirmação de suas intuições sobre a decência humana. Ver Philip P. Hallie, Lest Innocent Blood Be Shed: The Story of the Village of Le Chambon and How Goodness Happened There (Nova York: Harper and Row, 1979).

6. Ver Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (Nova York: Viking, 1963). Essa questão é bem exemplificada no estudo realizado por Christopher Browning a respeito dos assassinatos em massa na Frente Oriental na Segunda Guerra: Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland (Nova York: Aaron Asher Books, 1992).

7. Numa resenha antiga sobre A náusea, de Jean-Paul Sartre, escrita muito antes que eles se conhecessem, Camus observou: "O erro de certo tipo de escrito é acreditar que, como a vida é horrível, ela é trágica. [...] Anunciar a natureza absurda da existência não pode ser um objetivo, apenas um ponto de partida". Ver Alger Républicain, 20/10/1938.

8. Hannah Arendt, "Nightmare and Flight", Partisan Review, vol. 12, no 2 (1945), republicado em Essays in Understanding, Jerome Kohn, ed. (Nova York: Harcourt Brace, 1994), p. 133.

O capitalismo está nos tornando miseráveis - até mesmo os super-ricos

O capitalismo impõe sofrimento maciço aos pobres e à classe trabalhadora. Mas mesmo os detestáveis super-ricos estão se tornando miseráveis pelas coisas sádicas que a competição do mercado implora que façam ao resto de nós.

Luke Savage


Uma cena de Succession da HBO. (HBO)

Tradução / Na semana passada, o The Guardian publicou uma coluna intitulada: “Eu sou um terapeuta para os super-ricos e eles são tão miseráveis quanto mostra Succession.” Pelo título, o artigo é puro clickbait: um exemplo clássico do tipo de manchete que tende a atrair tráfego em uma economia de mídia social que prospera com a provocação. E, com certeza, foi recebido por um dilúvio muito previsível de comentários que expressam uma mistura de vergonha alheia e falta de simpatia pelos exorbitantes ricos – deixando milhares de tweets florescerem.

Mas o artigo escrito por Clay Cockrell – um psicoterapeuta que por acaso se tornou um especialista no tratamento de indivíduos ultra-ricos e que agora considera Succession, série da HBO, mais perto de um documentário do que de um drama – vale a pena ser lido pelo lampejo de visão que oferece sobre a vida interior dos super-ricos.

Assim como o título sugere, muitos dos clientes de Cockrell acham a felicidade indescritível, apesar da insondável liberdade pessoal e conforto material que vêm da riqueza. Tendo mimado os filhos, alguns lutam para ser pais eficazes. Muitos alegadamente têm problemas para formar relacionamentos não instrumentais ou não transacionais, acham difícil confiar nas pessoas ao seu redor e sentem-se desprovidos de significado ou propósito na vida. A questão do dinheiro em si, por sua vez, é espinhosa e desconfortável, e está claro pelas pesquisas existentes que muitas pessoas ricas experimentam um tipo de ansiedade perpétua por status, em vez da sensação de segurança que se poderia esperar. Como Cockrell escreve:

É difícil falar sobre dinheiro. O dinheiro está envolto em culpa, vergonha e medo. Há uma percepção de que o dinheiro pode imunizá-lo contra problemas de saúde mental quando, na verdade, acredito que a riqueza pode tornar você – e as pessoas mais próximas de você – muito mais suscetíveis a eles.

O que é digno de nota aqui está totalmente separado de como a maioria de nós se sente, corretamente, sobre a extrema riqueza, sem nenhuma necessidade premente de aumentar nossa compaixão com os exorbitantes ricos. Nem é preciso dizer que pessoas com problemas reais sempre merecem mais simpatia do que aqueles que voam em jatos particulares, residem em mansões nababescas ou ocupam o topo das hierarquias gerenciais das grandes corporações. Ser mal pago e explorado é uma experiência muito mais comum do que ser rico e o tributo psicológico que isso acarreta representa uma injustiça maior do que quaisquer patologias que um punhado de proprietários de iates esteja atualmente litigando com a ajuda de terapeutas bem pagos.

Nem, eu acho, que a verdadeira lição seja alguma repetição banal do velho clichê de que a felicidade não pode ser comprada. O que em última análise é impressionante sobre o artigo de Cockrell tem mais a ver com o que sugere sobre a quase impossibilidade de reconciliar a posse de extrema riqueza com impulsos morais ou éticos básicos ou outras características humanas. Algumas pessoas ultra-ricas, é claro, são simplesmente incapazes de ter empatia ou compaixão para começar e, como tal, não sentem nenhum remorso por explorar e manipular o mundo ao seu redor. Em uma estimativa do jornalista Jon Ronson, os casos de psicopatia são 4 vezes maiores entre os CEOs do que entre a população em geral – o que nos dá muitos motivos para acreditar que o mundo enclausurado da elite possui um número desproporcional de Patrick Batemans.

No entanto, mesmo com base nessa estimativa de cair o queixo, ainda estamos falando sobre uma taxa de psicopatia que é inferior a 5%. A grande maioria das pessoas ultra-ricas, então, não são literalmente psicopatas – mesmo que muitos façam regularmente coisas que causam imensos danos, estresse e sofrimento a outras pessoas. Ser extremamente rico é, portanto, pelo menos para alguns, um cabo de guerra psicológico constante. Não é que os ricos sejam oprimidos pelo capitalismo, mas sim que estão envolvidos nele como todo mundo – e, como os maiores beneficiários de nosso sistema econômico hierárquico, eles muitas vezes recebem uma visão panorâmica de suas depredações.

Como disse o Meagan Day na Jacobin em 2017, o capitalismo, em última análise, “força todos, incluindo a classe dominante, a uma posição de dependência e disciplina de mercado”. O resultado, como Vivek Chibber argumenta, é a subordinação moral e ética aos ditames vazios do valor de troca e da competição voraz:

O simples fato de sobreviver à batalha da competitividade força o capitalista a priorizar as qualidades associadas ao “espírito empreendedor”... Qualquer que tenha sido sua socialização anterior, ele rapidamente aprende que terá que se conformar com as regras ligadas ao mercado ou seu estabelecimento será derrubado. É uma propriedade notável da estrutura de classes moderna que faz com que qualquer desvio significativo da lógica da competitividade do mercado apareça como um custo a mais ao capitalista – uma recusa em despejar lama tóxica se manifesta como a perda de participação de mercado para aqueles que o fizerem; o compromisso de usar insumos mais seguros, porém mais caros, aparece como um aumento nos custos unitários e assim por diante. Os capitalistas, portanto, sentem uma enorme pressão para ajustar sua orientação normativa – seus valores, objetivos, ética, etc. – à estrutura social na qual estão inseridos, e não vice-versa... Os códigos morais encorajados são aqueles que ajudam nos resultados financeiros.

A menos que você seja um psicopata, ser extremamente rico muitas vezes envolve necessariamente contorções dolorosas. Na medida em que é possível generalizar sobre um conceito vago e contestado como “natureza humana”, há algo profundamente anormal em explorar e dominar outras pessoas, assim como é profundamente desumano e anti-social que a maioria de seus relacionamentos seja definida pelo dinheiro.

Com a introdução de algo como um imposto sobre a riqueza global, os bilhões não ganhos dos super-ricos poderiam ser redistribuídos para aliviar os encargos reais enfrentados pela vasta maioria explorada sob o capitalismo. Se fosse assim, aqueles que estão na “primeira categoria social” poderiam, consequentemente, passar menos tempo sentados no sofá de um terapeuta.

Sobre o autor

Luke Savage é colunista da Jacobin.

Em Copenhague, a esquerda radical acaba de derrotar os sociais-democratas dinamarqueses pela primeira vez na história

As recentes eleições na Dinamarca viram um aumento acentuado na parcela de votos para a Aliança Vermelho-Verde, tornando-a o maior partido em Copenhague. O resultado mostra que os governantes sociais-democratas não podem continuar decepcionando os dinamarqueses que querem medidas contra o clima e o aumento dos aluguéis.

Nathan Akehurst

Line Barfod, the Red-Green mayoral candidate, and political spokesperson for the party Mai Villadsen during a rally for the party. (Enhedslisten / Facebook)

Tradução / A história dominante da esquerda ocidental nos últimos dois anos foi o declínio da marca d’água alta do radicalismo eleitoral pós-crash. Do Syriza ao Podemos, os partidos ficaram aquém de ganhar o poder ou assumir o cargo – ou, no caso recente do Die Linke da Alemanha , retrocederam de posições já fracas. As organizações de esquerda estão lidando simultaneamente com a rápida escalada de crises estruturais da saúde pública ao meio ambiente e à geopolítica, enormes mudanças em seu ambiente operacional e os limites de sua base de apoio atual.

Mas há outra história na Europa, de partidos menores de esquerda em uma ascensão mais silenciosa. Na última eleição da Bélgica, enquanto o anti-imigrante Vlaams Belang subia para se tornar o segundo maior partido da rica Flandres, a região mais pobre da Valônia viu uma onda de votos para o Partido dos Trabalhadores Belga ( PTB ). A primeira-ministra sueca designada Magdalena Andersson exigirá o apoio do Partido de Esquerda para aprovar um orçamento, e o Partido de Esquerda Socialista tem um papel decisivo da mesma forma na Noruega, embora nenhum desses partidos esteja no governo. E neste mês, na Dinamarca, a Aliança Vermelho-Verde (Enhedslisten) – um partido formado por socialistas, comunistas, sindicalistas e ambientalistas – comemorou seus melhores resultados nas eleições municipais.

Uma história importante nas eleições de 16 de novembro na Dinamarca foi uma boa noite para a direita dominante às custas das forças anti-imigrantes de extrema direita. Mas na esquerda, a Aliança Vermelho-Verde continuou sua tendência de flanquear os sociais-democratas, que lideram o governo nacional. No município de Frederiksberg, adjacente à capital, o partido venceu os sociais-democratas de centro-esquerda em mais de 6 por cento.

E embora não tenha garantido uma margem grande o suficiente para ganhar o gabinete do prefeito de Copenhague , abriu novos caminhos ao se tornar o maior partido único da capital dinamarquesa, com 24,6 por cento dos votos. Surpreendentemente, esta foi a primeira vez em mais de um século que os social-democratas não chegaram ao topo da votação. Em ambas as regiões, os social-democratas se aliaram a outros partidos para tirar a esquerda do poder – mas seu controle foi seriamente enfraquecido.

“Isso significa que exercemos o poder de uma forma concreta”, diz o estrategista de Copenhague da Enhedslisten, Jakob Ruggaard. As vitórias de prefeito em nível de conselho e em menor escala colocaram Enhedslisten em posições de influência sobre briefs essenciais que cobrem habitação, clima e infraestrutura na cidade. E, de forma crítica, acrescenta Ruggaard, isso cria uma “maioria verde” no nível das políticas.

Cidade habitável

A moradia e o clima dominaram a batalha eleitoral urbana. Embora Copenhague não tenha a aguda crise imobiliária familiar a cidades como Londres ou Nova York, ela é afetada pelas mesmas tendências gerais – especuladores estrangeiros comprando propriedades, salários estagnados e aluguéis crescentes forçando algumas pessoas a sair e forçando outras a sempre. condições mais precárias e uma sensação crescente de perda de controle.

A Aliança Vermelho-Verde recebeu críticas da centro-esquerda por exigir mais moradias públicas, ao mesmo tempo em que se opõe aos planos de desenvolvimento existentes. Mas o partido de esquerda radical contesta veementemente essa acusação, por sua vez acusando os sociais-democratas de planos de habitação que nada farão para consertar a acessibilidade. Nessa eleição, houve dois pontos de fulgor: uma proposta de moradias caras em terrenos comuns na cidade e uma nova moradia igualmente inacessível em Lynetteholmen, uma ilha artificial planejada. A Enhedslisten definiu a agenda política, propondo um teto de aluguel e regulamentações de aluguel para novas construções, exigindo que 75 por cento das novas moradias sejam acessíveis e respondendo aos protestos em massa em torno dos empreendimentos.

Habitações públicas com aluguel controlado existem em Copenhague, mas em número insuficiente para conter o problema. Enquanto isso, muitas unidades com aluguel controlado foram destinadas à destruição e privatização. Os ativistas da Enhedslisten ainda não têm dados concretos para apoiar a visão de que isso desempenhou um papel significativo na eleição. Mas eles acreditam cautelosamente que uma coalizão de jovens de classe média com mobilidade descendente e abrigados de forma insegura, e urbanos da classe trabalhadora em moradias públicas ameaçadas, alimentou seu aumento nesta eleição.

“Os jovens eleitores estão apavorados”, diz Ruggaard. “Eles querem morar na capital, mas as listas de espera são impossíveis. E as pessoas em moradias com aluguel controlado com quem conversei se sentiram estigmatizadas e isoladas, estereotipadas como vivendo em lugares invadidos pelo crime, pobreza e migração. ”

Batalha de migração

Isso traz outra dimensão à lenta ascensão de Enhedslisten nas eleições parlamentares e locais. Sob sucessivos líderes, incluindo a atual primeira-ministra Mette Fredriksen , os social-democratas se dirigiram fortemente à direita em matéria de imigração e asilo . Mesmo entre os esquerdistas dinamarqueses que rejeitam essa posição por motivos morais, você às vezes ouvirá a visão relutante de que ela pode ter impedido a direita de assumir o poder no curto prazo, mesmo que a cessão do terreno cause mais danos do que benefícios eleitorais a longo prazo . E embora o Enhedslisten seja um partido pró-migrante, há divergências internas sobre se deve priorizar essa questão – e como – em um cenário hostil.

Mas a campanha de Copenhague foi dura com o assunto – atacando as políticas sociais-democratas que veem os refugiados sírios deportados de volta para um país ainda devastado pela guerra e pedindo que Copenhague os acomodasse, enquanto exigia melhores empregos e serviços para os migrantes e os pobres urbanos domésticos. “Não gostaria de ser muito concreto sobre isso nesta fase, mas parece que há uma reação contra os social-democratas por seus movimentos para a direita”, diz Ruggaard, “que tem sido visto como antagônico, como definir o trabalho e o meio -classificar as pessoas nas cidades e além umas contra as outras. ”

A questão dos refugiados sírios ganhou o apoio geral em todo o país, com o governo enfrentando desafios legais de grupos de direitos humanos e manifestações em todo o país. E, recentemente, um barco de patrulha dinamarquês recebeu aplausos por recusar ordens de “empurrar para trás” os refugiados resgatados durante uma operação da Frontex no Egeu. Enquanto isso, há uma batalha política acalorada sobre se os filhos dos dinamarqueses que se juntaram ao Estado Islâmico devem voltar para casa e agora definham em campos sírios.

Outra força radicalizante foi a greve das enfermeiras – um tema comum em toda a Europa e América do Norte, à medida que os trabalhadores da saúde enfrentavam perigo e morte seguidos de pacotes de pagamento lamentáveis ​​durante a pandemia. A inflexibilidade do governo dinamarquês precipitou recentemente uma longa greve de enfermeiras, depois que os resultados das negociações foram rejeitados por membros do sindicato.

Enhedslisten também se juntou a ativistas feministas para destacar a dimensão de igualdade de pagamento do acordo de pagamento e exigir pacotes de pagamento que tragam paridade com profissões médicas dominadas por homens. Os colportores do partido relatam anedoticamente que as enfermeiras e suas famílias que participam das greves selvagens são rotineiramente trocadores de socialdemocratas para Enhedslisten.

Reunindo novos apoiadores

A parte verde da Aliança Vermelha-Verde tem sido igualmente importante no fortalecimento da coalizão de Enhedslisten com ativistas climáticos mais jovens e socialmente conscientes que vêem cada vez mais o partido como a opção mais verde na política dinamarquesa. Para muitos, as batalhas por moradia mencionadas anteriormente eram tanto sobre o direito a um meio ambiente sustentável quanto o direito a moradia acessível. Esses diferentes constituintes dentro da Enhedslisten discordam rotineiramente uns dos outros, mas os estrategistas ficam impressionados com o quão unificadora a campanha foi dentro de um partido onde a dissidência e a crítica interna são comuns.

Até mesmo colocar os rostos dos candidatos em cartazes foi uma etapa polêmica nesta campanha. Mas a decisão foi ajudada pela presença de uma ampla coalizão de candidatos: uma enfermeira, professores, jovens ativistas pelo clima e feministas, no que também era em grande parte uma lista jovem. Line Barfod, o candidato Vermelho-Verde a prefeito, representou ambos os lados da coalizão, como um socialista de longa data profundamente enraizado no movimento trabalhista da Dinamarca, o ex-advogado da comuna autônoma de Copenhague, Christiania, e de 2001 a 2011 membro do Folketing ( parlamento nacional) votou no deputado mais sério entre as linhas partidárias.

Emma Sinclair, ativista da ala jovem do partido, também destaca o papel de mobilizar jovens e estudantes na campanha por meio de um programa de eventos que inclui esmolas matinais de porta em porta em instituições de ensino e noites de pizza em corredores universitários.

“O resultado da eleição é mais do que ousávamos esperar. A mobilização da juventude que construímos em torno desta campanha desempenhou um grande papel nisso e, nos próximos anos, à medida que o movimento se desenvolve, esperamos ser capazes de alcançar os mesmos resultados em toda a Dinamarca. Novos membros vão surgindo, os jovens querem lutar pelo que acreditam e agora, mais do que nunca, podem ver que é possível fazer a diferença ”, comentou.

Se a campanha de Enhedslisten foi positiva, a de seus oponentes foi o oposto. Os social-democratas fizeram uma campanha de terror, “essencialmente acusando Enhedslisten de querer transformar Copenhague na URSS”, de acordo com um ativista Vermelho-Verde. Muitos foram particularmente gratos por esses ataques, acreditando que eles jogaram mal, dado o trabalho existente do partido para construir sua reputação entre os eleitores – o que significa que tal negatividade parecia estar em desacordo com as preocupações dos eleitores e com a realidade política.

“Antigamente, o mainstream definia a agenda e nós a criticávamos”, disse Ruggaard. “Desta vez, definimos a agenda, propusemos um conjunto amplo e detalhado de políticas e eles criticaram nos bastidores”.

É muito cedo para dizer se os resultados de 16 de novembro são indicativos de uma tendência mais ampla, ou mais o resultado de fatores locais contingentes. Nacionalmente, o aumento de 12 por cento do Enhedslisten na participação de votos foi realizado em grande parte por Copenhagen e Frederiksberg. E, de qualquer forma, o partido ainda tem um longo caminho a percorrer antes de implementar grande parte de sua ambiciosa plataforma. Mas demonstra que o centro não pode simplesmente considerar todos que estão à sua esquerda como certos – e que uma política ousada de redistribuição de riqueza e poder pode reunir o apoio popular.

Sobre o autor

Nathan Akehurst is a writer and campaigner working in political communications and advocacy.

27 de novembro de 2021

A história secreta do socialismo marciano de Alexander Bogdanov

Muito antes de escritores como Kim Stanley Robinson usarem a ficção científica para explorar ideias socialistas, o marxista russo Alexander Bogdanov publicou um romance notável sobre o caminho marciano para o socialismo. A Estrela Vermelha de Bogdanov está finalmente recebendo a atenção que merece.

Fred Scharmen

Alexander Bogdanov usou a ficção científica para criar um espelho para nosso próprio mundo, retratando seres inteligentes em Marte e a sociedade socialista altamente avançada que eles criaram. (Getty Images)

Por muitos anos, o revolucionário russo Alexander Bogdanov foi lembrado, por aqueles que se lembravam dele, como uma figura menor na história da Revolução Russa que havia desafiado a liderança de Vladimir Lenin do Partido Bolchevique pré-revolucionário. Não foi até 1984 que seu romance de ficção científica pioneiro de 1908, Estrela Vermelha, foi traduzido para o inglês.

Muito antes do trabalho de Ursula K. Le Guin, Kim Stanley Robinson ou Iain Banks, Bogdanov usou a ficção científica para erguer um espelho para nosso próprio mundo, retratando seres inteligentes em Marte e a sociedade socialista altamente avançada que eles criaram.

Neste trecho de seu livro Space Forces, disponível agora na Verso Books, Fred Scharmen discute os temas extraordinários que Bogdanov explorou em Estrela Vermelha.

Uma cena inicial do romance Estrela Vermelha de Alexander Bogdanov descreve um encontro entre um personagem misterioso e um cientista revolucionário. O cientista é Lenni, um matemático, às vezes cirurgião e militante ativo na primeira das revoluções russas do século XX, em 1905. Lenni foi contatado por Metti, outro cientista, filósofo e crítico social.

O que começa como um aparente convite para se juntar a uma sociedade secreta terrena rapidamente se transforma em uma viagem para fora do planeta. Metti, aprendemos, veio de Marte para encontrar um embaixador humano adequado entre os dois planetas e as sociedades que eles hospedam. Os marcianos no livro reconhecem que o conflito sangrento no qual Lenni e a classe trabalhadora russa estão envolvidos ajudará a levar ao estabelecimento do socialismo.

Metti discute com Lenni a ideia de que os organismos, e de fato as sociedades, tendem a convergir em certas características à medida que evoluem junto com seus mundos. Os marcianos e os humanos terráqueos, ao que parece, não parecem tão diferentes um do outro.

As pessoas de Metti são mais altas e têm olhos maiores, pois se adaptaram à gravidade mais leve de seu planeta e à luz solar mais fraca. Mas, além disso, eles são reconhecíveis entre si como “tipos superiores”, ou seja, organismos que evoluíram para usar e moldar as condições apresentadas por seus mundos em maior grau do que qualquer outro, “aquele que domina o planeta. ”

Assim também acontece com as formas políticas e sociais. O curso da história em Marte, embora menos cheio de conflitos brutais como a revolução que deixaram para trás em São Petersburgo, tende inexoravelmente ao socialismo, assim como o curso da história na Terra.

Lenni, o narrador de Bogdanov, apresenta-se com uma imagem concreta desse isomorfismo – o olho do polvo. Os polvos, cefalópodes marinhos que representam os organismos mais elevados de todo um ramo da evolução, têm olhos invulgarmente semelhantes aos dos animais do nosso ramo, os vertebrados. No entanto, a origem e o desenvolvimento dos olhos dos vertebrados são completamente diferentes.

Conflito em Marte

Essa presunção permite que Bogdanov use seu romance para servir a uma das principais funções da ficção científica e da literatura utópica em geral. Seu Marte é uma oportunidade de criar um exterior a partir do qual examinar os dados que são dados como garantidos na Terra.

Marte está distante no espaço, e é somente graças ao recente desenvolvimento de sistemas avançados de propulsão para fazer a viagem que os marcianos descobriram que a Terra é habitada por criaturas “superiores” como eles. Mas Marte também está distante no tempo, mais adiante em um inevitável caminho teleológico que terminará em uma sociedade melhor e “superior”.

Lenni descobre, com Metti e os outros marcianos que ele conhece quando chegam ao planeta, que os marcianos já estiveram distantes uns dos outros — geograficamente, culturalmente, socialmente e economicamente. Como Metti lhe diz:

Certa vez — ele completou —, povos de diferentes países em Marte não conseguiam se entender. Há muito tempo, no entanto, muitos séculos antes da revolução socialista, todos os vários dialetos aproximaram-se uns dos outros e se fundiram em uma única língua comum. Isso ocorreu livre e espontaneamente.

No entanto, essa convergência de iguais foi seguida pela introdução da hierarquia de classes, que levou à exploração de recursos, seguida pela eventual resolução do conflito através da introdução do socialismo marciano global. A tectônica da história e da sociedade marciana é consequência das próprias relações desse planeta entre suas partes e todos geológicos. Marte, aprendemos, não tem grandes oceanos ou enormes cadeias de montanhas, pois não tem placas tectônicas.

Na Terra, por outro lado, a divisão de todo o planeta em partes componentes criou uma ignorância inicial bem-aventurada; culturas individuais poderiam viver sem preocupação umas com as outras. Mas, eventualmente, à medida que esses povos cresciam e migravam, eles se conheceram e, em vez da semelhança cultural, reforçada pela mesmice de suas terras, encontraram diferenças acentuadas. É essa diferença que levou ao conflito extremo e à guerra que define a história da Terra. Em Marte, em contraste, a unidade na geologia é uma peça com unidade política e social.

Na história que os marcianos do romance apresentam, essa unidade representa uma espécie de fechamento da fronteira marciana. A competição subsequente por recursos recentemente escassos cria novas divisões – desta vez não na paisagem horizontal, mas verticalmente, entre classes e níveis de renda. A crise chega ao auge quando a água começa a acabar e os marcianos iniciam a construção do que teria sido, na época da publicação do Estrela Vermelha, as características mais conhecidas de Marte, seus canais.

Vermelho em abundância

Sua aparente existência foi anunciada em 1877 pelo astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli, e muito se falou da tradução posterior de sua palavra para o que ele havia observado, canali — que poderia significar qualquer tipo de canal, natural ou não — em uma palavra em Inglês que conotava mais diretamente design inteligente: canais. A ideia de um projeto de engenharia que abrangesse um planeta inteiro era humilhante e assustadora para as culturas da Terra, numa época em que a construção de canais no Panamá e Suez já era incrivelmente ambiciosa e ainda mais chocantemente cara.

A suposição popular era de que qualquer cultura inteligente em Marte deveria ser muito mais antiga que a da Terra, a fim de ter alcançado tal coisa. Esta era a base do romance de HG Wells, de 1897, A Guerra dos Mundos, no qual os marcianos tecnologicamente mais avançados invadem a Terra, e da série Barsoom, de Edgar Rice Burroughs, iniciada em 1912, na qual a cultura marciana se tornou decadente e violentamente degradada a níveis quase medievais.

Bogdanov transforma habilmente esses tropos em Estrela Vermelha. Seus canais são outro ressurgimento de conexões horizontais, um novo sistema tectônico que originalmente pretendia recuperar as últimas gotas de um recurso falho, mas cuja construção e despesa difíceis, em vez disso, precipitaram um novo período de infraestrutura compartilhada e recursos compartilhados que levaram a uma era de ouro marciana pós-capitalista.

Na imaginação planetária marciana de Bogdanov, essa era de ouro é uma era regulada por números e estatísticas. Netti, outro dos camaradas marcianos de Lenni, sugere que o fracasso da humanidade até agora em embarcar nesse esforço representa um fracasso das partes em formar um todo:

Isso porque a causa comum da humanidade ainda não é realmente uma causa comum entre vocês. Tornou-se tão fragmentada nas ilusões geradas pela luta entre os homens que parece pertencer a pessoas individuais e não à humanidade como um todo.

Os marcianos aprenderam a usar a ciência da informação e a computação para regular essas relações tectônicas, de modo que cada esforço individual por parte de cada cidadão marciano contribua para o bem maior e para o avanço. A “computação exata do trabalho disponível” organiza todas as conexões possíveis entre o que uma pessoa é capaz e disposta a fazer e o que precisa ser feito, em um sistema não muito diferente dos sistemas de economia de “compartilhamento” e “gig” do início do século XXI, embora com três diferenças importantes.

Em primeiro lugar, não há lucro em Marte; em segundo lugar, todos os bens de consumo são gratuitos; e, finalmente, a participação nessa força de trabalho estatisticamente regulamentada é inteiramente voluntária: as tabelas destinam-se a afetar a distribuição do trabalho. Se quiserem fazer isso, todos devem ser capazes de ver onde há escassez de mão de obra e quão grande ela é.

Supondo que um indivíduo tenha a mesma ou aproximadamente igual aptidão para duas vocações, ele pode então escolher aquela com maior carência. Quanto aos excedentes de mão de obra, os dados exatos sobre eles precisam ser indicados apenas onde tal excedente realmente existe, para que cada trabalhador desse ramo possa levar em consideração tanto o tamanho do excedente quanto sua própria inclinação para mudar de vocação.

Conflito planetário

O humano Lenni descobre que nem tudo é o parece na utopia marciana. Sua sociedade está à beira de uma crise malthusiana, pois os recursos disponíveis não estão crescendo rápido o suficiente para suprir sua crescente população. Mas ainda assim, eles aderem a uma lógica que valoriza a expansão acima de tudo. Como um marciano lhe disse:

Verificar a taxa de natalidade? Ora, isso seria equivalente a capitular aos elementos. Significaria negar o crescimento ilimitado da vida e, inevitavelmente, implicaria em interrompê-lo em um futuro muito próximo.

Os marcianos acreditam em um credo que iguala a existência de cada pequena parte e partícula com a existência da totalidade. “O sentido de cada vida individual”, diz alguém, “desaparecerá junto com essa fé, porque o todo vive em cada um de nós, em cada minúscula célula do grande organismo, e cada um de nós vive no todo. ”

Como observamos acima, Marte é um planeta sem placas tectônicas, e a visão de mundo marciana também é de uma vida social e política cujas costuras são suavizadas, sem falhas. Mas uma vez que os marcianos de Bogdanov descobrem um exterior para sua própria totalidade – a existência de outros planetas próximos com recursos, Vênus e Terra – a diferença reaparece no cenário. E uma vez que eles desenvolvem a capacidade de alcançar esses planetas, na forma da unidade espacial experimental que permitiu à expedição de Metti buscar Lenni, essa diferença inicial entre as partes planetárias leva a um conflito potencial e à ameaça de uma invasão marciana da Terra.

Em seu trabalho Cosmos, codesenvolvido como livro e série de TV, o astrônomo e cientista planetário Carl Sagan frequentemente invoca a imagem de um “oceano cósmico” para dar a suas ideias sobre exploração espacial um quadro metafórico concreto. Como ele comenta no primeiro episódio do programa:

A superfície da Terra é a costa do oceano cósmico. Nesta costa, aprendemos a maior parte do que sabemos. Recentemente, andamos um pouco para fora, talvez na altura do tornozelo, e a água parece convidativa. Alguma parte do nosso ser sabe que é de onde viemos. Desejamos voltar, e podemos, porque o cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de material de estrela. Somos uma forma de o cosmos se conhecer.

Existem outras formas de conhecer além da colonização e conquista? Vênus, em Estrela Vermelha, é retratado de uma maneira que seria tão familiar aos leitores da ficção científica do início do século XX quanto os famosos canais de Marte. É um mundo de selva quente, úmido e sufocante, transbordando de energia, recursos e uma vida próspera, hostil e “primitiva”. Quando um personagem palestrando sobre Vênus ouve propostas de dedicar a ciência e a engenharia marcianas para domar essa selva e torná-la produtiva para “formas superiores” de vida, ele as descarta como ingênuas.

O principal proponente marciano de uma invasão da Terra rejeita a ideia de que os marcianos possam ir à Terra e viver pacificamente com os humanos lá. Os terráqueos são violentos e degradados demais para isso, argumenta ele, devido à história de dificuldade e diferença em seu mundo; além disso, a distância entre os dois planetas — social e espacialmente — é muito grande e perigosa. Portanto, invasão e extermínio é a única opção:

Devemos entender essa necessidade e olhá-la diretamente nos olhos, por mais sombrio que possa parecer. Temos apenas duas alternativas: ou paramos o desenvolvimento de nossa civilização, ou destruímos a civilização alienígena na Terra. Não há terceira possibilidade. ... Devemos escolher, e eu digo que temos apenas uma escolha. Uma forma de vida superior não pode ser sacrificada por causa de uma inferior. Entre todas as pessoas na Terra não há nem mesmo alguns milhões que estão conscientemente lutando por um tipo de vida verdadeiramente humano. Por causa desses seres humanos embrionários, não podemos negar o nascimento e o desenvolvimento de dezenas, talvez centenas de milhões de nosso próprio povo, que são humanos em um sentido incomparavelmente mais completo da palavra. Não seremos culpados de crueldade, porque podemos destruí-los com muito menos sofrimento do que eles estão constantemente causando uns aos outros. Existe apenas uma Vida no Universo, e ela será enriquecida em vez de empobrecida se for o nosso socialismo e não a variante terrena distante e semi-bárbara que puder se desenvolver, pois graças à sua evolução ininterrupta e potencial ilimitado, nossa vida é infinitamente mais harmonioso.

Troca direta

Em um importante discurso, Netti, o interesse amoroso marciano do narrador, faz uma repreensão a esses paradigmas de total hierarquia e instrumentalidade. “Essas formas não são idênticas às nossas”, ela insiste. “A história de um ambiente natural diferente e de uma luta diferente se reflete neles; escondem um jogo diferente de forças espontâneas, outras contradições, outras possibilidades de desenvolvimento”.

Para Netti e para Bogdanov, essa diferença é precisamente o ponto:

Eles e sua civilização não são simplesmente inferiores e mais fracos do que a nossa — eles são diferentes. Se os eliminarmos, não os substituiremos no processo de evolução universal, mas apenas preencheremos mecanicamente o vácuo que criamos no mundo das formas de vida.

Há um precedente na sociedade marciana para esse esquema alternativo de valiosa diferença produtiva: para prolongar suas vidas, eles praticam transfusões de sangue mútuas. Estes são realizados não para curar os doentes, mas sim para suavizar as diferenças entre os indivíduos, para que eles possam compartilhar o que há de melhor em cada um, em “trocas regulares de camaradagem de vida”.

Os marcianos de Bogdanov precisam ser renovados pela interação com algo fora de si mesmos, através da transferência de informação, arte, ondas de rádio, padrões de pensamento ou essências corporais. Essas conexões dependem da diferença sem hierarquia, sinalizando um reconhecimento de que partes díspares podem formar um novo todo, mesmo que seja um híbrido, como um ciborgue. Assim, o “caminho para o cosmos conhecer a si mesmo” que Sagan desenvolveu tem tanto a ver com diferença, dificuldade e até acidente quanto com alguma marcha teleológica de progresso.

Bogdanov valorizava a troca direta como uma forma de se envolver com a espontaneidade e a contradição, colocando suas especulações em prática material e corporal: ele experimentou transfusões de sangue reais como médico. Tragicamente, ele foi derrubado por sua fé no poder da “troca de camaradagem”: ele morreu em 1928 depois que um experimento de transfusão o expôs à malária, tuberculose e um tipo sanguíneo incompatível.

Colaborador

Fred Scharmen leciona arquitetura e design urbano na Escola de Arquitetura e Planejamento da Morgan State University. Ele é cofundador do Grupo de Trabalho em Sistemas Adaptativos, uma consultoria de arte e design com sede em Baltimore, Maryland. Seu primeiro livro, Space Settlements, foi publicado em 2019.

26 de novembro de 2021

Greves e protestos na Black Friday visam a Amazon em 20 países

Na Black Friday, trabalhadores em todo o mundo estão visando a Amazon sob a bandeira de Make Amazon Pay. As ações abrangem a cadeia de suprimentos e ultrapassam fronteiras - assim como a própria Amazon.

Alex N. Press

Jacobin

Os funcionários trabalham atrás de telas de plástico em um centro de distribuição da Amazon em Swindon, Reino Unido, na terça-feira, 23 de novembro de 2021. (Chris Ratcliffe / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / Nesta Black Friday, uma coalizão de sindicatos, organizações não governamentais e grupos militantes unidos sob o nome de Make Amazon Pay está realizando um dia de greves e protestos contra a Amazon em 20 países, exigindo que a empresa pague um salário mínimo, impostos e compensação por seu impacto ambiental.

A ação ocorre no nível das operações da Amazon: o planeta. Embora a empresa de tecnologia e logística tenha sede nos Estados Unidos, ela opera globalmente, empregando cerca de 1,3 milhão de pessoas no mundo todo, um número que não inclui seus muitos trabalhadores que são contratados por subcontratados. Da mesma forma, a resistência às fronteiras da Amazon também deve ser ultrapassada.

A coalizão Make Amazon Pay foi lançada no ano passado com um dia de ação na Black Friday, mas neste ano o alcance da coalizão será mais amplo, com protestos e greves planejados em 20 países. A coalizão diz que o dia da ação vai variar de “refinarias de petróleo a fábricas, depósitos, centros de dados e escritórios corporativos”, destacando os braços de longo alcance e menos visíveis da Amazon.

Amazon Web Services (AWS), por exemplo, gera a maior parte dos lucros da empresa e trabalha tanto com a indústria de combustíveis fósseis quanto com as forças armadas, mas seus datacenters são muito menos visíveis do que suas operações de armazenamento e entrega. Com os protestos fora das refinarias de petróleo, a Make Amazon Pay espera começar a mudar isso. Como Kelly Nantel, diretora de relações com a mídia nacional da Amazon, disse ao Motherboard, que relatou pela primeira vez sobre as ações da Black Friday: “Esses grupos representam uma variedade de interesses”. Na verdade, esse é o ponto.

“A coalizão Make Amazon Pay é um grupo muito diverso de trabalhadores e seus aliados estão em muitos lugares e têm grupos ativistas diferentes”, diz Casper Gelderblom, coordenador da Make Amazon Pay para o Progressive International, uma organização transnacional de ativistas de esquerda que está ajudando a coordenar o dia de ação junto com UNI Global Union, uma federação trabalhista que é filiada a cerca de 150 sindicatos e que representam 20 milhões de trabalhadores. “A forma como a campanha nasceu foi reconhecendo que a Amazon é uma entidade transnacional e transversal. Se você quiser se posicionar contra uma grande entidade como a Amazon, precisa espelhar sua própria estrutura.”

“Em dias de ação global como a Black Friday, estamos vendo como o movimento que pressiona para mudar as regras de nossa economia e desafiar o poder corporativo está ficando mais ousado e forte”, disse Christy Hoffman, secretário-geral da UNI Global Union. “Cada vez mais pessoas estão fazendo mais perguntas sobre o comportamento brutal anti-sindical da Amazon, práticas anti-sociais de evasão fiscal e obsessão por controle.”

As ações abrangem a cadeia de abastecimento da Amazon, que vai desde trabalhadores do setor de confecções em Bangladesh e Camboja a motoristas de entrega na Itália até o local de desenvolvimento do River Club na Cidade do Cabo, África do Sul, onde a Amazon espera construir a sede da África Amazon. Além das ações dos trabalhadores, Make Amazon Pay está destacando 8 locais “para representar a profundidade do abuso da Amazon e a escala e unidade de resistência à empresa”. Trata-se de uma refinaria de petróleo na América Latina, uma fábrica na Ásia, um navio porta-contêineres na América Latina, um depósito na América do Norte, um depósito de caminhões na Europa, um escritório regional na África e um ministério de finanças na Europa.

Em Bangladesh e Camboja acontecem o tratamento inadequado dos trabalhadores por empresas que produzem roupas para as linhas de consumo da Amazon – embora a Amazon seja um mercado para vendedores terceirizados, ela também produz alguns de seus próprios produtos de marca própria. Trabalhadores do setor de vestuário nas cidades de Dhaka e Chittagong farão manifestações contra a quebra de sindicatos pela Global Garments e, no Camboja, os trabalhadores da fábrica Hulu Garment continuarão sua campanha exigindo que a Amazon, e outras empresas que a fábrica fornece, lhes paguem os US$ 3,6 milhões que são devidos em indenização.

"Houve campanhas contra os sindicatos em Bangladesh às quais a Amazon, pelo menos, fez vista grossa. Sua forma são uma reminiscência das lutas que vemos em, por exemplo, Bessemer, Alabama”, diz Gelderblom. “Os destinos da classe trabalhadora estão conectados – em geral, mas também especificamente nesta luta.”

Os trabalhadores da Amazon na Itália provaram ser alguns dos membros mais organizados da força de trabalho da empresa: no mês passado, os trabalhadores do depósito se envolveram em uma greve de um dia que levou a empresa a concordar com algum nível de reconhecimento dos sindicatos de trabalhadores sobre as questões de vagas e treinamentos. Nesta Black Friday, milhares de motoristas de entrega se engajarão em sua própria greve de um dia, exigindo cargas de trabalho menores e um ritmo mais sustentável. Embora esses motoristas não trabalhem diretamente para a Amazon – como nos Estados Unidos, eles funcionam para contratados terceirizados – eles são, no entanto, um componente-chave das operações da empresa.

O dia da ação aconteceu enquanto a organização trabalhista contra a Amazon continua nos Estados Unidos, onde a empresa está a caminho de se tornar em breve a maior empregadora do país. Os grupos baseados nos Estados Unidos envolvidos nos protestos da Black Friday incluem a Coalizão Athena, a Oxfam e o Movimento Sunrise. Embora o caminho para controlar a empresa seja repleto de obstáculos, há sinais de esperança. No início deste mês, na Califórnia, a Amazon foi multada em US$ 500.000 por esconder casos de COVID-19 de seus funcionários no depósito. Os esforços de organização do independente como Amazon Labour Union continuam em Staten Island (assim como a quebra do sindicato da empresa, tanto em Nova York quanto em Bessemer, Alabama, onde uma repetição da recente eleição do sindicato se aproxima).

O mais interessante disso: uma chapa acabou de ganhar a eleição de liderança dos Teamsters em uma campanha para organizar os trabalhadores da Amazon e assumir a United Parcel Service (UPS), uma das maiores empresas de logística do mundo, enquanto o contrato do sindicato, que cobre cerca de um quarto de milhão de trabalhadores, está sendo negociado. Os dois princípios estão relacionados: vai ser preciso lutar na UPS, articulando uma greve que seria a maior paralisação do setor privado que já vi, para ganhar um contrato melhor do que o atual em que a liderança dos Teamsters empurrou em 2018 de forma antidemocrática, e é fortalecendo a posição dos trabalhadores da UPS que os Teamsters podem enfrentar a Amazon também.

“Este movimento está tendo cada vez mais sucesso em se tornar internacional em sua perspectiva”, diz Gelderblom:

Muitas questões decisivas de nosso tempo, sejam elas sobre desigualdade de renda ou destruição do clima, são intrinsecamente internacionais por natureza. Se você quiser desafiar o poder em um nível fundamental, você precisa encontrar um ao outro, coordenar-se e efetuar uma mudança transformadora ampla nesse nível transnacional. Precisamos enfrentar o capital em seu nível global.

Se o patrão é o melhor organizador, como às vezes dizemos no movimento trabalhista, Jeff Bezos pode acabar sendo responsável historicamente pela reconstrução do movimento sindical internacional.

Sobre o autor

Alex N. Press é redatora da equipe da Jacobin. Seus textos são publicados no Washington Post, Vox, the Nation, n + 1, entre outros lugares.

25 de novembro de 2021

Taxa de juro histórica

Nossa história de juro real elevado começou nos anos 1990

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Gabriel Cabral/Folhapress

Na última semana, apresentei as principais definições de juro natural: 1) a taxa de juro real que não causa excesso ou insuficiência de demanda em relação ao potencial de produção da economia ou 2) o juro real internacional somado ao prêmio de risco do país e da moeda em questão.

Como prêmio de risco depende do grau de incerteza na economia, o juro natural tem um componente claramente subjetivo, sujeito a expectativas autorrealizáveis. Devido a esse "problema", vários economistas preferem analisar a tendência do juro real da economia em termos históricos (o que aconteceu) em vez de naturais (o que o agente racional faria). Vejamos uma aplicação dessa abordagem ao Brasil.

Considerando a taxa Selic menos a inflação acumulada em 12 meses, nossa história de juro real elevado começou nos anos 1990, quando o perigo recorrente de hiperinflação forçou o governo Collor-Franco a promover uma abertura financeira e adotar uma âncora cambial (o Plano Real) para reduzir a inflação.

Traduzindo do economês, para controlar o câmbio, era preciso atrair recursos em dólar, que, por sua vez, só entrariam no Brasil se houvesse garantia de que poderiam sair livremente do país. A estratégia era arriscada, pois, na alta incerteza política e econômica do início dos anos 1990, a abertura financeira poderia gerar uma corrida ao dólar. Como evitar isso? Pagando um juro real estratosférico. Foi isso que aconteceu, entre 1991 e 1992, quando o juro médio real foi elevado de 10% para 35% ao ano.

A próxima fase veio após a renegociação de nossa dívida externa e no início da âncora cambial do Plano Real (que começou com a URV, em 1993). A inflação retrocedeu, a incerteza econômica e política diminuiu e, em 1993- 99, o juro real médio caiu para 22% ao ano.

A terceira fase de juro real "elevado" começou em 1999, com abandono da âncora cambial e adoção de metas de inflação e de resultado primário. Houve volatilidade monetária na transição de regime de política econômica, mas, considerando o período de 1999-2005 como um todo, a inflação permaneceu sob controle e a taxa de juro real caiu novamente, para 11% anuais.

A partir de 2006, entramos em nova fase, com acumulação de reservas internacionais e política fiscal mais ativa para estimular o crescimento, o que de fato aconteceu, sem comprometer o controle da inflação. O cenário internacional ajudou, com elevação do preço e demanda por commodities e colapso do juro real nos países avançados. No Brasil, nosso juro real caiu para 6% ao ano em 2006-11.

A partir de 2012, entramos em outro período de instabilidade política e econômica, com lento crescimento e alta volatilidade da inflação, que dura até hoje. Apesar desses percalços, o juro real continuou a cair, chegando à média de 4% em 2012-19, antes da Covid. Será esse o novo patamar de juro real do Brasil? É cedo para saber.

A adoção do teto de gastos levou vários analistas a prever outra queda estrutural do juro real, mas por enquanto isso não aconteceu. No triênio 2017-19, o juro real foi de 4% ao ano, igual ao verificado em 2006-11, só que com crescimento bem mais lento da economia. A partir de 2020, a pandemia derrubou nosso juro real para território negativo, mas ninguém espera que isso persista.

As expectativas mais recentes de mercado indicam que, após um aumento temporário para controlar a recente aceleração de preços, a Selic cairá para 7% a partir de 2024. Com meta de inflação de 3%, isso significa juro real de 4%, igual ao verificado em 2012-19. Volto a esse cenário de juro na próxima semana.

23 de novembro de 2021

Como a Revolução Mexicana transformou John Reed em um vermelho

Os emocionantes despachos de John Reed das linhas de frente da Revolução Mexicana poderiam tê-lo tornado uma celebridade da cultura pop. Em vez disso, a experiência o tornou um socialista comprometido.

Meagan Day

Jacobin

Journalist John Reed, author of Insurgent Mexico and Ten Days That Shook the World, in 1914. (Getty Images)

Em 1913, o jornalista americano John Reed foi incorporado a um bando de soldados revolucionários no México. Poucos deles possuíam uniforme completo. Alguns calçavam apenas sandálias de couro de vaca. Eles estavam acampados no norte de Durango, dormindo no chão de ladrilhos de uma hacienda cujo rico proprietário havia sido expulso pelas forças revolucionárias.

Mas agora os colorados contra-revolucionários vinham para matá-los a todos.

Reed, conhecido por seus amigos em casa como Jack e seus amigos aqui no México como Juan, tinha vinte e seis anos, era infantil e espirituoso, perspicaz e geralmente controlado, embora neste momento ele estivesse morrendo de medo . As balas já estavam voando, enviando mulas e homens para o deserto de Chihuahuan. Os camponeses da hacienda abrigaram-se em seus modestos adobes e rezaram. Um soldado, com o rosto enegrecido pela pólvora, passou galopando chorando que toda esperança estava perdida.

Reed escapou a pé com um pequeno destacamento. Eles fugiram por um caminho estreito através do chaparral, os colorados logo atrás deles. O lutador de quatorze anos ao seu lado foi pisoteado e baleado. Reed tropeçou em um galho de algaroba e caiu em um arroio, onde ficou ouvindo enquanto os colorados discutiam sobre o caminho que ele havia tomado. Ele permaneceu imóvel enquanto suas vozes enfraqueciam e, eventualmente, perdia a consciência. Quando acordou, ainda ouvia tiros perto da Casa Grande – o som, ele soube mais tarde, dos colorados atirando em cadáveres, como garantia.

Ele desceu o arroio para longe da ação, mas logo foi surpreendido por um estranho em seu caminho. O estranho tinha um lenço ensanguentado enrolado na cabeça e carregava um poncho verde no braço. Suas pernas estavam endurecidas com o sangue das espadas , os cactos espinhosos que cobriam o solo do deserto. Reed não sabia dizer de que lado da luta ele estava. O homem acenou, e Reed não viu escolha a não ser segui-lo.

Eles chegaram ao topo de uma colina e o estranho gesticulou para um cavalo morto, suas pernas rígidas projetando-se no ar. Perto estava o corpo de seu cavaleiro, estripado. Reed se virou para olhar para o homem com o poncho verde e viu que ele estava segurando uma adaga. O morto era um colorado. Juntos, eles o enterraram, cobrindo a cova rasa com pedras e prendendo uma cruz com galhos de algaroba. Quando terminaram, o homem com o poncho verde apontou Reed para um lugar seguro.

No ano anterior, Reed estivera em Portland, Oregon, vagando pelas ruas sozinho à noite, perdido em pensamentos infelizes. Ele voltou para casa para o funeral de seu pai e para resolver os assuntos financeiros de sua família. Reed descendia de uma grande riqueza, mas a fortuna havia praticamente desaparecido. Também se foi a alegria dos dias de Reed em Harvard e a novidade da vida do escritor boêmio em Nova York. Reed estava à deriva, incerto de que tipo de vida ele viveria, que tipo de homem ele se tornaria.

Menos de uma década depois, Reed morreu na Rússia, um bolchevique, um traidor de seu país e de sua classe. Seus restos mortais estão agora na Necrópole do Muro do Kremlin em Moscou. Sua biografia é imortalizada no aclamado filme épico de 1981, Reds, de Warren Beatty . E embora o filme representasse vividamente muitos dos episódios importantes de sua vida colorida e histórica, com exceção de uma breve tomada de Beatty lutando pelo deserto de Chihuahuan, deixou passar um importante: o tempo de John Reed entre os combatentes, incluindo o próprio Pancho Villa , durante a Revolução Mexicana.

Foi no México que Reed não apenas satisfez seu gosto pela ação e aventura, mas também testemunhou os pontos baixos da pobreza degradante, o ápice da esperança revolucionária e até onde a classe capitalista internacional iria para impedir a transformação social igualitária.

Na noite anterior ao cerco à hacienda, uma proclamação do governador de Durango foi lida em voz alta para os soldados em seus aposentos. Dizia:

Considerando... que as classes rurais não têm meios de subsistência no presente, nem esperança de futuro, a não ser servir de peões nas fazendas dos grandes latifundiários, que monopolizaram o solo do Estado. .... 
Considerando... que as cidades rurais foram reduzidas à mais profunda miséria, porque as terras comuns que antes possuíam foram para aumentar a propriedade da hacienda, especialmente sob a ditadura do [presidente Porfirio] Díaz, com a qual os habitantes do estado perderam suas a independência econômica, política e social passou então da categoria de cidadãos à de escravos, sem que o governo pudesse elevar o nível moral por meio da educação, porque a fazenda onde viviam é propriedade privada. ... 
Portanto, o governo do estado de Durango declara ser uma necessidade pública que os habitantes das cidades e vilas sejam proprietários de terras agrícolas.

“Isso”, disse um soldado a Reed, “é a Revolução Mexicana”. No dia seguinte, ao invés de fugir, o soldado ficou na Casa Grande, onde morreu tentando em vão afastar os colorados.

O nascimento do “Storm Boy”

John Reed nasceu em 1887 em Portland, no Oregon, então dominado pelos pioneiros capitalistas vindos de leste. Enquanto os barões da madeira passeavam em elegantes carruagens, os trabalhadores da cidade atravessavam avenidas lamacentas, perigosamente cheias com cepos e troncos cortados da floresta abatida, para realizar trabalhos manuais exaustivos ou para beber e jogar nos lugares de vício da cidade.

A aparente lassidão moral da classe trabalhadora de Portland era uma grande preocupação para os membros do Arlington Club, uma instituição exclusiva, fundada vinte anos antes entre as elites locais para promover a solidariedade social e profissional. Um dos fundadores deste clube era Henry Green, o avô materno de John Reed que tinha chegado de Nova Iorque para estabelecer uma bem sucedida empresa comercial. Henry e a sua mulher, Charlotte, tornaram-se pilares da alta sociedade de Portland.

A sua filha, Margaret Green, casou com C. J. Reed, um outro ambicioso jovem negociante que tinha vindo de Nova Iorque, e iniciaram a sua vida familiar na propriedade dos Green. John Reed descreveu mais tarde a casa como “uma mansão senhorial cinzenta” cercada de uma densa floresta de abetos. Os seus avós viviam com “sumptuosidade russa”, a sua residência estava decorada com têxteis elaborados e artefactos exóticos comprados durante as suas viagens pelo mundo. Apesar de aninhada no esmeralda vale Willamette, a mundos de distância do deserto Chihuahuan, a opulenta propriedade tinha muito em comum com as haciendas cuja expropriação era o principal objetivo da Revolução Mexicana.

John Reed não foi uma criança especialmente feliz. Uma doença renal mantinha-o frequentemente fechado dentro de casa. Primeiro, confinado na propriedade dos Green, onde era cuidado pelos empregados chineses que o regalavam com histórias incríveis da sua pátria distante. Depois, quando a família saiu da propriedade, ficou em companhia dos livros. Era tímido com as outras crianças e até chegou a pagar ao bully do bairro para não lhe bater.

O negócio de J. Reed’s nunca chegou a ser tão bem sucedido quanto o de Henry Green e quando Charlotte Green gastou o resto da fortuna do seu falecido marido, os pais de John nunca conseguiram repor o gasto. Estavam longe de ser pobres mas também não conseguiam manter o seu estilo de vida anterior. Ainda assim, C.J. pôs de lado dinheiro para enviar o seu filho para um colégio em Morristown, Nova Jérsia, com a intenção expressa de o fazer entrar em Harvard.

Em Morristown, John Reed desabrochou. Estava finalmente bem de saúde e descobriu que uma certa reputação como habitante do Oeste o tinha precedido. Os outros rapazes, todos de sangue azul do nordeste, estavam à espera de um selvagem vindo da fronteira acidentada. Tendo consumido muitas novelas de aventuras durante a sua infância isolada, estava desejoso e apto a desempenhar esse papel. Da noite para o dia, a criança amuada tornou-se o jovem popular com um talento para desafiar a autoridade de forma divertida. Algures nesse caminho, ganhou a alcunha “Storm Boy” [rapaz-tempestade], evocando uma vitalidade malandra e a inclinação para se portar mal que esteve latente durante toda a sua infância subjugada e protegida.

Em Harvard, Reed desenvolveu uma nova consciência e uma aversão aguda pela riqueza excessiva. Ficou horrorizado ao saber que alguns dos seus novos colegas recebiam 15.000 dólares por ano dos pais, o que andaria perto dos 400.000 dólares por ano hoje em dia. O desejo de ser amado foi ultrapassado pelo seu irreprimível desprezo pela cultura e hábitos de Harvard. “Quanto mais conheço”, escreveu mais tarde acerca dos seus pares de Harvard, “mais a sua estupidez fria e cruel me repelia”. Comecei a sentir pena deles por causa da sua falta de imaginação e pela estreiteza das suas vidas cintilantes: clubes, atletismo, sociedade”.

Reed satirizava Harvard em qualquer oportunidade que tivesse, pregando frequentemente partidas que chamaram a atenção das autoridades académicas. A universidade até reestabeleceu uma forma arcaica de punição só para Reed, um tipo de confinamento obrigatório. O escritor e intelectual Walter Lippmann, que frequentou Harvard ao mesmo tempo, escreveu que ele “veio do Oregon, mostrou os seus sentimentos em público e disse o que pensava ao clube de homens que não o gostava de ouvir. Até quanto era estudante de licenciatura, ele traiu o que muitas pessoas acreditavam ser a paixão central de sua vida, um desejo exagerado de ser preso”.

Apesar de ter estado presente em algumas reuniões do Clube Socialista, a campanha de Reed para minar a seriedade de Harvard era animada mais pelo seu ódio pela convenção aristocrática do que por qualquer visão de uma sociedade sem classes. Isto mudou depois de terminar a licenciatura e mudar-se para Nova Iorque para tentar a sorte na escrita, ao início com pouco sucesso.

À procura de um tema adequado e de passar bons bocados, passou as suas noites em estabelecimentos de má fama, do tipo que o Arlington Club do seu avô criticava, conversando com clientes e indo com eles para a cidade para descobrir onde e como viviam. Uma história que surgiu deste processo foi o retrato sincero e humanizante de uma prostituta que Reed conheceu na cidade. Os editores da cidade concordaram que era excelente mas todos acharam que eram demasiado ambíguo moralmente para ser publicado.

Quando Reed voltou a Portland, enquanto fazia o luto pela morte do seu pai e cismava com a estagnação da sua vida em Nova Iorque, recebeu a notícia de que a revista socialista The Masses tinha aceitado publicar a sua história. Depois disso, escreveu para o The Masses e os seus interesses e perspetiva começaram a alinhar-se com a missão da publicação.

Numa festa dada pela artista de vanguarda e figura da alta sociedade Mabel Dodge Luhan, Reed conheceu “Big Bill” Haywood, que tinha ido em busca de conseguir apoios dos progressistas urbanos para o greve dos trabalhadores do setor têxtil em Paterson, Nova Jersey. Reed foi com Haywood para Paterson e entrou numa nova fase da sua vida.

A experiência de Reed em Nova Jérsia transformou-o em duas coisas ao mesmo tempo: um jornalista e um socialista. Não apenas cobriu a greve de Paterson de 1913 para o The Masses mas ficou conhecido por ter sido preso com os grevistas, uma experiência que ele contou de forma colorida e tocante nos seus artigos. Não muito depois disso aderiu ao International Workers of the World e passou a ajudar a organizar os movimentos de solidariedade com as greves.

Ao mesmo tempo, Reed demonstrou ser um escritor cativante e um repórter de coragem invulgar, desejoso de estar bem no meio dos acontecimentos em vez de andar a bisbilhotar à volta. Quando os editores do Metropolitan o contrataram para fazer reportagens sobre a Revolução Mexicana, fizeram-no porque já suspeitavam que ele encontraria forma de chegar ao centro da ação como uma mariposa é atraída pelas chamas. E estavam certos.

Terra e liberdade

Havia 15 milhões de pessoas a viver no México no início da revolução. Durante o conflito, calcula-se que um milhão foram mortos e aproximadamente dois milhões migraram para os Estados Unidos, fugindo da violência.

John Reed poderia facilmente ter perdido a vida ao viajar com exércitos beligerantes no pico dos acontecimentos em 1913 e 1914. Ao invés, sobreviveu e publicou um fascinante livro de reportagem, México Insurgente, que serviu de protótipo para os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, o seu famoso relato da Revolução Russa. A experiência cimentou o seu estatuto como um dos principais jornalistas americanos a fazer cobertura de conflitos armados, domésticos ou internacionais. Também o fez conhecer novos níveis de privação e exploração e sentir a necessidade de um socialismo internacional.

A história da Revolução Mexicana começa com Porfirio Díaz que, em meados do século XIX, tinha sido o líder da fação liberal do país, proponente da democracia e de um capitalismo de mercado livre, em oposição aos conservadores que preferiam um acordo social hierárquico mais tradicional guiado por um monarca e pela Igreja Católica. Díaz tornou-se presidente em 1876 e, com o passar do tempo, deitou para o lixo o seu apoio liberal à democracia política. A viragem do século chegou e passou e ele continuava no poder.

Enquanto ditador, Díaz exerceu um controlo apertado sobre a política mexicana ao mesmo tempo que o seu exército doméstico de federales e a sua força policial de rurales mantinha o povo mexicano na linha. Só que, apesar de renegar as suas promessas políticas, Díaz mantinha firmemente o seu compromisso com o capitalismo. O regime porfiriano curvou-se para satisfazer os proprietários de terras mexicanos ricos, os hacendados, bem como para abrir o país a investidores estrangeiros, especialmente americanos, mas também britânicos e franceses, que cavaram minas e poços de petróleo e se apropriaram de vastas plantações.

Com o apoio de Díaz, a elite dos negócios domésticos e estrangeiros lucravam lindamente ao passo que os pequenos proprietários e o campesinato de sobrevivência eram desapropriados das suas modestas posses individuais e coletivas. Os camponeses do México estavam presos de uma forma semi-feudal às haciendas rurais ou eram obrigados a trabalhar em condições perigosas nos campos e minas por baixos salários, muitas vezes como trabalhadores precários à jorna. Alguns povos indígenas eram até vendidos como escravos.

Um primeiro desafio à ditadura de Díaz, liderado pelos irmãos Flores Magón, foi esmagado em 1906. Mas deixou uma impressão duradoura, ligando duas exigências que estavam nas mentes do povo mexicano: a democracia política por um lado e, por outro, a reforma agrária, especificamente o fim do sistema repressivo da hacienda e a redistribuição da terra a quem a trabalhava. A revolução por vir iria sumariar estas duas reivindicações com o lema tierra y libertad.

A revolução chegou finalmente quando Francisco Madero, o filho liberal de uma família rica que era proprietária não apenas de terra mas também de minas e de fábricas, apresentou uma candidatura à presidência, uma traição pela qual Díaz o mandou prender. Ao princípio, o conflito era entre as elites: Madero representava um segmento empreendedor da classe capitalista, mais moderno do que os hacendados da velha guarda. Mas os apelos de Madero a uma democracia tinha uma atração mais alargada. Exércitos improvisados de camponeses e trabalhadores desesperados por mudanças juntaram-se à sua causa, liderados por uma nova geração de líderes que parecia ter saído dos buracos.

Num ano, o regime de Díaz estava acabado e Madero estava no poder. Mas a revolução estava longe de ter acabado. Madero assumiu a presidência mas mudou muito pouco, mantendo a maior parte das estruturas administrativas e até do pessoal que nelas subsistia. As suas tentativas para apaziguar os porfiristas insatisfeitos não foram bem sucedidas porque, de qualquer forma, aconteceram revoltas de direita. Entretanto, a esquerda que tinha levado Madero ao poder estava desiludida pelo seu aparente desinteresse em implementar qualquer tipo de agenda reformista ambiciosa.

Emiliano Zapata, o comandante de um exército de camponeses no sul do México e o mais ideológico e radical de todos os novos líderes, declarou que a revolução continuava enquanto não se resolvesse a questão da reforma agrária e que não se aliviasse a pobreza. “La tierra es para el que la trabaja,” dizia o slogan zapatista.

No norte, o exército de Pascual Orozco, composto por mineiros, trabalhadores ferroviários e das quintas, também se virou contra Madero, ecoando não apenas os apelos para a justa expropriação das haciendas mas também melhores condições de trabalho e proteções para os sindicatos.

Mexican revolutionary leader Pancho Villa poses with fellow soldiers in the 1910s. (Bettmann Collection via Getty Images)

A aparente fraqueza do governo de Madero face a estas rebeliões de camponeses e trabalhadores de esquerda assustara as elites doméstica e internacional dos negócios e os seus aliados no governo. Para resolver este problema, Henry Lane Wilson, o embaixador no México do presidente norte-americano William Howard Taft, desempenhou um papel principal ao orquestrar um golpe no qual Madero foi assassinado e o general traidor, Victoriano Huerta, assumiu a presidência. Foi um manual que os Estados Unidos iriam refinar ao ponto da quase perfeição ao longo do século seguinte.

Depois do assassinato de Madero em 1913, o inferno desceu à terra. Huerta ofereceu com sucesso algumas concessões sobre direitos dos trabalhadores a Orozco em troca do seu apoio. Mas Zapata, intransigente sobre a questão da reforma agrária, lançou-se contra ele. E também o fez Pancho Villa, o líder do maior exército revolucionário do país, a poderosa División del Norte. Apesar das simpatias pessoais de Villa se dirigirem aos pobres, pelo menos oficialmente trabalhava para outro general, Venustiano Carranza, um líder menos radical que tinha abraçado a causa maderista contra Huerta.

Foi nesta conjuntura caótica, quando o rol de nomes importantes tinha crescido demasiado, que John Reed passou a fronteira, passando da cidade texana de Presidio para a cidade mexicana de Ojinaga. Esta tinha sido cercada cinco vezes desde o início do conflito três anos antes. Sobre ela, escreveu:

“As ruas brancas, empoeiradas, da cidade, empilhadas de imundice e forragem, a antiga igreja sem janelas com os seus três enormes sinos espanhóis pendurados numa prateleira fora do edifício e uma nuvem de incenso azul a rastejar para fora da porta preta, onde as mulheres que seguiam o exército no seu acampamento rezavam pela vitória dia e noite, repousavam ao sol quente e ofegante… quase não havia uma casa com um telhado e todas as paredes tinham buracos de tiros de canhão."

Reed percebeu imediatamente que, apesar da proliferação e de exércitos e da constante mudança de alianças tornar o conflito difícil de seguir, era simples de compreender. “É comum falar da revolução de Orozco, da revolução de Zapata e da revolução de Carranza,” escreveu. “De facto, o que há e tem havido é apenas uma revolução no México. É principalmente uma luta pela terra.”

Abrir o punho fechado

Enquanto o país mergulhava na ditadura burguesa de Díaz, aos camponeses e trabalhadores mexicanos faltava um veículo político que tornasse coerente e fizesse avançar os seus interesses. O que mais próximo existia disso era o exército de Zapata no sul, que era claro acerca dos seus objetivos: não apenas democracia política e reforma agrária mas também escolas laicas públicas universais, o que o colocava em conflito com a Igreja Católica que controlava a educação, e a nacionalização dos recursos naturais do México, o que o colocava em conflito tanto com os capitalistas nacionais quanto com os internacionais.

Mas, a norte, não havia nenhum exército cujos objetivos políticos fossem assim tão explícitos. Pancho Villa era conhecido como o Robin Hood do México pela sua ânsia de redistribuir riqueza e terra, frequentemente obtidos através de ações brutais de expropriação e de astutas façanhas de banditismo. Mas agia em aliança com outros cujas inclinações eram notoriamente menos redistributivas e, para além disso, apesar das suas simpatias de classe, Villa era mais um líder militar do que líder político.

Assim, os trabalhadores e camponeses do norte enxertaram imperfeitamente as suas esperanças de transformação social radical na revolução embrulhada que já estava em andamento. Reed integrou-se muito cedo num batalhão revolucionário sob o comando do General Tomás Urbina, cujo círculo interno mostrava a variedade de perspetivas no topo da hierarquia militar revolucionária. Um major disse a Reed que a revolução “é uma luta dos pobres contra os ricos. Eu era pobre antes da revolução e agora sou muito rico.” Mas um capitão dizia: “quando ganharmos a Revolución haverá um governo dos homens – não dos ricos. Cavalgamos nas terras dos homens. Costumavam pertencer aos ricos. Mas agora pertencem a mim e aos meus compañeros.”

Mais tarde, Reed ficou bastante impressionado pelo General Toribio Ortega, “de longe o soldado mais simples e desinteressado do México”, que lhe contou:

“Temos visto os rurales e soldados de Porfirio Díaz abaterem os nossos irmão e pais e a justiça a ser-lhes negada. Temos visto os nossos pequenos campos serem-nos retirados e todos nós vendidos como escravos, eh? Temos almejado ter as nossas casas e escolas para nos ensinarem e eles têm-se rido de nós. Tudo o que sempre quisemos era que nos deixassem em paz para viver e trabalhar e engrandecer o nosso país e estamos cansados, cansados e fartos de sermos enganados.”

Por todo o norte do México, Reed encontrou-se tanto com soldados quanto com pacíficos – aqueles que permaneciam fora dos combates – que articulavam interpretações radicais dos objetivos da revolução. Na noite antes da batalha na hacienda, Reed testemunhou um soldado a compor uma balada que continha versos como “os ricos com todo o seu dinheiro, já tiveram as suas chicotadas… A ambição acabará por se arruinar e a justiça vencerá.” Reed deparou-se com um pacífico, um homem gentil cujo corpo estava gasto pela desnutrição, que lhe disse: “A Revolução é boa. Quando for concluída, nunca, nunca, nunca morreremos de fome, se servirmos a Deus.”

Num caminho, Reed encontrou dois criadores de cabras que partilhavam o fogo e lhe ofereceram abrigo, um deles um velho corcunda e enrugado e o outro um jovem alto de pele lisa. Ao falarem da revolução, a voz do jovem elevou-se apaixonadamente. “São os americanos ricos que nos querem roubar, tal como os mexicanos ricos nos querem roubar. São os ricos de todo o mundo que querem roubar os pobres.”

Trocaram-se mais algumas palavras e depois o jovem disse: “Durante os meus anos, os do meu pai e do meu avô, os ricos ficavam com o milho e seguravam-no com os punhos fechados ante as nossas bocas. Apenas o sangue os vai fazer abrir as mãos para os seus irmãos”.

Tocado por este encontro, Reed escreveu:

"À volta deles, o deserto estendia-se, contido apenas pelo nosso fogo, pronto para saltar sobre nós quando este morresse. Acima, as grandes estrelas não esmoreciam. Os coiotes uivaram algures para lá da fogueira como demónios com dores. De repente, percebi estes dois seres humanos como símbolos do México – corteses, amorosos, pacientes, pobres, escravos por tanto tempo, tão cheios de sonhos, tão próximos de serem livres."

O sonho de Pancho Villa

John Reed queria ter uma audiência com Emiliano Zapata, pelo qual tinha uma admiração completa, chamando-lhe, numa carta ao seu editor, “o grande homem da Revolução… um radical, absolutamente lógico e perfeitamente constante”. O encontro acabou por se revelar impossível mas o Metropolitan ficou igualmente agradado, senão mais, quando Reed conseguiu uma audiência com o infame Pancho Villa.

Claro que cavalgar com Villa significava tentar o destino porque o general estava envolvido em combates pesados e nunca longe da linha da frente. Mas Reed agarrou a oportunidade, colocando a sua vida em perigo, para tentar capturar a essência de Villa, e era precisamente por isso que o Metropolitan o contratara.

Villa tinha sido diabolizado intensamente na imprensa americana, mas Reed via as coisas de forma diferente, olhando para ele como um homem do povo e um amigo dos pobres. Prometia que, depois da revolução, não iria haver “mais palácios no México" e manifestava muitas vezes o seu amor pelo povo através de frases como “as tortillas dos pobres são melhores que os pães dos ricos”. Demonstrou a sua lealdade de classe muitas vezes, confiscando dinheiro e propriedades dos ricos sem qualquer remorso e dando-os diretamente aos pobres ou colocando-os ao serviço da causa revolucionária. Villa foi vilificado pela burguesia mexicana, ao passo que os camponeses compunham baladas sobre ele.

Mas Reed também observou que as forças de Villa não eram políticas. Tinha vivido como um fora-da-lei antes da revolução, foi analfabeto até uma estadia na prisão por ter apoiado Madero lhe dar a oportunidade de aprender a ler. Tinha alguma ideia, que expressou vagamente a Reed, de que depois da revolução o Estado deveria criar grandes empresas que iriam tanto empregar toda a gente quanto produzir todas as coisas de que o povo necessitaria. Mas Reed perguntou-lhe o que pensava do socialismo ao que responder: “Socialismo, o que é isso? Só o vejo nos livros e não leio muito.”

O grande talento de Villa era, ao invés, uma destreza militar instintiva. Reed comparou o seu estilo de combate ao de Napoleão, contando entre as suas vantagens, “o sigilo, a rapidez de movimento, a adaptação dos seus planos ao carácter do país e dos seus soldados, o valor das relações íntimas com as bases e a construção de uma tradição para o inimigo de que o seu exército é invencível e de que ele próprio vivia uma vida de sonho.” Reed viu Villa como um génio militar autodidata, capaz de olhar a partir de um lugar cimeiro e ver o conjunto da revolução em toda a sua complexidade e de tomar decisões rápidas baseadas nos seus instintos que mostravam ser consistentemente corretas.

Quando Reed lhe perguntou se queria ser presidente do México, Villa respondeu sinceramente, “sou um combatente, não um estadista.” Sabendo que o Metropolitan não ficaria satisfeito com a sinceridade da resposta, Reed sentiu-se obrigado a perguntar mais algumas vezes. Isto chateou Villa que lhe disse que se perguntasse isso outra vez “seria espancado e enviado para a fronteira” e andou vários dias depois disso a dizer a contar divertidamente a toda a gente sobre o chatito que não deixava o assunto em paz.

Contudo, Villa gostava o suficiente de Reed para passar muito tempo com ele em privado e para lhe conceder um acesso total grátis aos caminhos de ferro e telefones em todo o estado de Chihuahua.

O Pancho Villa do México Insurgente é muito divertido. Nunca bebeu ou fumou mas gostava muito de dançar. Enviava os seus galos para a luta de galos todas as tardes às quatro. Se tivesse energia extra para gastar, via em algum matadouro perto se havia algum touro com o qual pudesse lutar. Era um matador mediano, “tão teimoso e desajeitado como o touro, lento dos pés, mas rápido como um animal com o corpo e braços”. Se o touro lhe acertasse com os cornos, Villa arremetia contra ele e começava a lutar, levando os seus homens a intervir.

“Os soldados comuns adoravam-nos pela sua bravura e pelo seu humor grosseiro e contundente”, escreveu Reed com admiração. “Vi-o muitas vezes relaxado na sua cama da pequena carruagem vermelha em que sempre viajava a contar piadas familiarmente com vinte soldados rasos esparramados no chão, nas cadeiras e nas mesas. ”

Four revolutionary soldiers, likely followers of Emiliano Zapata, pose on the cowcatcher of a train.

Esta era uma carruagem de comboio: quando Villa saqueou a cidade de Torreón pela primeira vez, assumiu o comando dos caminhos-de-ferro do norte do México e, a partir de então, o seu exército passou a viajar tanto a cavalo como de comboio. Para além desta sua carruagem, havia carruagens-hospital, carruagens de transporte de água, carruagens-canhão e até mesmo carruagens de reparação cujo objetivo era reparar motores e segmentos de via partidos, por vezes durante o calor da batalha.

Os exércitos revolucionários começaram ao acaso, sem comissários ou quaisquer outros meios formais para providenciar os cuidados diários dos soldados, desde a cozinha à enfermagem à lavagem passando pelo remendar roupa. Assim, desde o início, mulheres chamadas soldaderas tinham viajado com o exército de Villa, cuidando dos seus maridos e levando os seus filhos a reboque. Famílias inteiras cruzaram o deserto com Villa, primeiro a pé e depois de comboio. As soldaderas também pegaram em armas, embora a maioria passasse o seu tempo a cozinhar tortillas e grandes tigelas de chili e a pendurar roupa nas improvisadas cordas de roupa no cimo das carruagens de comboio. Sem elas, toda a operação teria desmoronado.

Reed escreveu algumas das mais empolgantes passagens do México Insurgente a propósito do seu tempo nos comboios com os soldados e soldaderas de Villa. O governo contra-revolucionário de Huerta era instável, os seus inimigos eram uma legião e o seu reinado estava a chegar ao fim. Reed estava com a División del Norte enquanto esta avançava pela segunda vez sobre Torreón, com os espetaculares comboios guerrilheiros a serpentear pelo deserto, carregando nas suas costas o sonho de uma nova nação.

"O amanhecer chegou com o som de todas as cornetas do mundo a soprar; e olhando para fora pela porta da carruagem vi o deserto durante quilómetros a ferver com homens armados a selar e a montar... Uma centena de fogueiras de pequeno-almoço fumegavam do topo das carruagens e as mulheres viravam os seus vestidos lentamente ao sol, a tagarelar e a contar piadas. Centenas de pequenos bebés nus dançavam à sua volta, enquanto as suas mães levantavam as suas pequenas roupas para o calor. Mil soldados alegres gritaram uns aos outros que a ofensiva estava a começar…"

Uma guerra sem fim

Apesar de John Reed estar encantado com Pancho Villa, também estava igualmente pouco impressionado com Venustiano Carranza. Reed sentiu que Carranza tinha contribuído pouco para a revolução, escondendo-se a ocidente no pique das campanhas militares contra as forças de Huerta. Encontrou-se com Carranza uma vez e achou-o ao mesmo tempo pomposo e vazio, desprovido do empenho ideológico de Zapata ou do dinamismo e sentimento caloroso de Villa para com o povo mexicano.

Na sua ausência, Carranza tinha deixado a Villa todas as decisões militares e negociava sozinho com os poderes estrangeiros. Villa, pensando caracteristicamente em termos militares em vez de pensar em termos políticos, aceitou ajuda dos americanos, que já se tinham afastado de Huerta, da mesma forma como se tinham afastado de Madero antes dele.

Depois de Huerta cair, os Estados Unidos viraram-se rapidamente contra Villa. Isto era previsível: afinal, a objeção primária destes a Huerta e a Madero era que não conseguiam controlar as fações camponesas lideradas por Villa no norte e Zapata no sul.

Com Huerta já fora da fotografia, tendo a segunda ofensiva de Villa sobre Torreón sido decisiva na sua queda, Carranza tratou de estabelecer um governo provisório. A sua primeira prioridade foi restaurar os chefes de negócios nacionais e estrangeiros. Começou assim uma nova fase da revolução: Zapata e Villa versus Carranza, um liberal moderado que nunca tinha tido particular interesse na expropriação e redistribuição. Villa sofreu uma derrota militar devastadora em 1915. Zapata foi assassinado em 1919. No final da década, as formações mais radicais da revolução estavam extintas.

Contudo, apesar dos poderosos exércitos proletários e camponeses da Revolução Mexicana terem sido esmagados pelos seus outrora aliados, a sua ideologia persistiu – inclusive no novo governo, apesar da oposição de Carranza. A pobreza e a exploração não foram eliminadas, mas ao longo das décadas seguintes, o sistema da hacienda foi abolido com sucesso, foram criadas escolas públicas por todo o México, as proteções para os trabalhadores e sindicatos foram reforçadas e a indústria do petróleo foi nacionalizada. A revolução ficou incompleta, mas não sem vitórias significativas.

De volta a casa, John Reed recebeu rasgados elogios pelos artigos que acabariam por se tornar a base do México Insurgente. Walter Lippmann escreveu numa carta a Reed que as suas reportagens mexicanas era “indubitavelmente as melhores algumas vez feitas. É algo embaraçoso dizer a um tipo que conhecemos que ele é um génio”. O seu editor do Metropolitan disse-lhe que “nada melhor poderia ter sido escrito” e a revista publicitava fotos enormes dele como se já fosse uma celebridade. As revistas mainstream clamavam por publicar o seu trabalho e os convites para palestras eram intermináveis. Reed poder-se-ia ter tornado no jornalista mais popular do país, se é que já não o era.

Em vez disso, quando voltou aos Estados Unidos, apenas conseguia pensar na injustiça. Escreveu artigos contra a intervenção dos EUA no México e criticando os seus colegas jornalistas pelas suas recitações acríticas da linha do Departamento de Estado. Seguiu o seu faro para o Colorado, onde relatou o massacre de Ludlow, no qual 25 pessoas foram mortas durante uma greve de mineiros de carvão, incluindo onze crianças. A sua reportagem de Ludlow demonstrava uma evolução na sua escrita, consistindo não apenas em observações evocativas, mas com análises detalhadas das circunstâncias que antecederam e seguiram o massacre, culpando os capitalistas e os seus aliados políticos.

Lenine e Trotsky nas comemorações do segundo aniversário da Revolução Russa, em 1919.
Centenário da Revolução Russa: O primeiro capítulo dos 10 dias que abalaram o mundo
Depois de Ludlow, o Metropolitan enviou Reed para a Europa para fazer reportagens sobre a Primeira Guerra Mundial. A revista tinha esperança de publicar mais histórias de aventuras mas as reportagens de Reed da Europa tinham um tom mais sombrio e contundente. O louco sentido de aventura e as tropelias do Storm Boy tinham sido substituídos pelo horror, a mágoa e a raiva aguda contra as elites internacionais que orquestraram esta guerra sem sentido. Enquanto esteve na Alemanha, Reed entrevistou o socialista revolucionário Karl Liebknecht sobre a sua oposição à guerra e acabou por concordar com as ideia dos socialistas radicais dos Estados Unidos e da Europa de que a própria guerra foi um crime cometido pela burguesia contra a classe trabalhadora internacional.

De volta aos Estados Unidos, recusou contratos mainstream para escrever, em vez disso, escreveu artigos anti-guerra para o The Masses. Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, os artigos de Reed foram censurados. Como resultado disso, The Masses perdeu o seu financiamento e deixou de ser impresso. Em vez de baixar a cabeça e trabalhar numa reconstrução da sua carreira de jornalista com reportagens mais politicamente anódinas, Reed navegou de volta pelo Atlântico para testemunhar e participar de facto na Revolução Russa. Voltou como comunista e o resto é história.

Essa história é bem conhecida, pelo menos das pessoas que gostam de filmes vencedores de Óscares. O que é menos conhecido é o papel da Revolução Mexicana na formação do socialista em que ele se tornou. O México Insurgente foi o seu bilhete para a fama mas também a sua ponte para o radicalismo. Quando os dois caminhos divergiram, seguiu o segundo. Porque quando John Reed foi para o México, foi para a guerra de classes. E nunca mais voltou.

Sobre a autora

Meagan Day is a staff writer at Jacobin. She is the coauthor of Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.

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