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24 de março de 2025

O que vem depois da globalização neoliberal?

O mundo como o conhecemos é um produto da globalização — e esta era, ao que tudo indica, pode estar chegando ao fim.

Branko Milanovic

Jacobin




Ilustração de Ben Jones.

Donald Trump está de volta ao poder e, para dizer o mínimo, não é fã da globalização. O presidente publicamente “rejeitou o globalismo e abraçou o patriotismo” e disse que “isso deixou milhões e milhões de nossos trabalhadores com nada além de pobreza e sofrimento”. Para entender melhor a era atual da globalização que ele tenta encerrar e seu histórico, é útil compará-la com a globalização que ocorreu entre 1870 e a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Ambas as globalizações representam períodos cruciais — anos decisivos que moldaram o mundo atual. E ambas testemunharam as maiores expansões da produção econômica global até hoje.

No entanto, elas também eram muito diferentes em muitos aspectos. A primeira globalização foi associada ao colonialismo e ao domínio hegemônico da Grã-Bretanha. Ela levou a grandes aumentos na renda per capita no que mais tarde ficou conhecido como mundo desenvolvido. Ao mesmo tempo, produziu estagnação em todos os outros lugares e até mesmo declínios de renda na China e na África. Os números mais recentes do banco de dados de estatísticas históricas do Projeto Maddison mostram que o aumento acumulado do PIB per capita real (ajustado pela inflação) para o Reino Unido entre 1870 e 1910 foi de 35%, enquanto o PIB per capita dobrou nos Estados Unidos no mesmo período. (O crescimento médio real per capita dos EUA foi, portanto, de 1,7% ao ano, um número muito alto para aquela época.) O PIB per capita chinês, no entanto, caiu 4%, e o da Índia aumentou apenas ligeiramente, 16%. Esse tipo específico de desenvolvimento criou o que mais tarde ficou conhecido como Terceiro Mundo e reforçou as clivagens nas rendas médias entre o Ocidente e o resto.

Do ponto de vista da desigualdade global, que é em grande parte um reflexo desses fatos, a Globalização I produziu um aumento na desigualdade, pois as áreas já ricas cresceram mais rápido e as áreas mais pobres estagnaram ou até mesmo regrediram.


Além da crescente desigualdade entre as nações, a desigualdade também aumentou em muitas das economias ricas, incluindo os Estados Unidos, como visto em sua linha inclinada ascendente na figura 1, com os decis mais ricos crescendo mais. O Reino Unido foi uma exceção, pois o pico da desigualdade foi atingido pouco antes do início da Globalização I, durante as décadas de 1860 e 1870. Nas tabelas sociais britânicas, a principal fonte de informações sobre as distribuições de renda no passado, a produzida por Robert Dudley Baxter em 1867 (coincidentemente o ano da publicação de O Capital de Karl Marx) marca o ano da maior desigualdade no século XIX. A desigualdade britânica foi posteriormente reduzida graças a uma série de leis progressistas, que vão desde limitações na duração da jornada de trabalho até a proibição do trabalho infantil e a expansão dos direitos de sufrágio. Dados recentes mostram um aumento da desigualdade na Alemanha também, após sua unificação no final da década de 1860. François Bourguignon e Christian Morrisson, em cujos números a figura 1 se baseia, não dispunham de informações sobre as mudanças na desigualdade na Índia e na China, de modo que ambas são representadas por uma linha reta entre os decis de renda (o que implica que cresceram na mesma proporção). Os novos dados fiscais indianos, com foco no topo da distribuição, produzidos pelos economistas Facundo Alvaredo, Augustin Bergeron e Guilhem Cassan, também mostram uma desigualdade estável, embora muito alta. Assim, em geral, ambos os componentes da desigualdade global (entre nações e, na maioria dos casos, dentro das nações) aumentaram durante a Globalização I.

Como isso difere da globalização atual (Globalização II), convencionalmente datada da queda do Muro de Berlim em 1989 até a crise da COVID-19 em 2020? Observe que o ponto final exato da Globalização II pode ser controverso; pode-se marcá-lo na imposição de tarifas sobre as importações chinesas por Trump em 2017 ou mesmo, de forma simbólica, na segunda ascensão de Trump ao poder em janeiro de 2025. Mas a data escolhida não faz diferença em relação às características essenciais da Globalização II.

Durante esse período, os Estados Unidos, o Reino Unido e o restante do mundo rico experimentaram crescimento, mas a taxas que, quando comparadas às dos países asiáticos, foram bastante modestas. Entre 1990 e 2020, o PIB real per capita dos EUA cresceu a uma taxa média anual de 1,4% (portanto, mais lentamente do que durante a primeira globalização) e o PIB per capita britânico cresceu apenas 1% ao ano. Países populosos e relativamente pobres (pobres, pelo menos, no início da Globalização II) cresceram muito mais rápido: Tailândia, com 3,5% per capita, Índia, 4,2%, Vietnã, 5,5% e China, a uma taxa impressionante de 8,5%.

O contraste é mostrado entre as figuras 1 e 2. Na figura 1, que mostra os dados para o período de 1870 a 1910, todas as partes da distribuição de renda dos países ricos cresceram mais rápido do que todas as partes da distribuição de renda dos países pobres. Na figura 2, que mostra os dados para o período de 1988 a 2018, as taxas de crescimento de todas as partes da distribuição de renda chinesa e indiana excedem as de todas as partes da distribuição de renda dos EUA e do Reino Unido. Isso transformou completamente a economia e a geopolítica do mundo: a primeira, ao deslocar o centro de gravidade econômico para o Pacífico e ao afetar as posições relativas de renda das populações no Ocidente e na Ásia, e a segunda, ao tornar a China um desafiante confiável à hegemonia dos EUA.

É inegável que, nas últimas três décadas, as posições globais de renda de grandes faixas das classes média e trabalhadora ocidentais caíram. Isso foi particularmente drástico para os países ocidentais que não conseguiram crescer; por exemplo, o decil de renda mais baixo da Itália caiu do 73º para o 55º percentil global entre 1988 e 2018. Nos Estados Unidos, os dois decis inferiores caíram em suas posições globais, embora as quedas tenham sido menores (7 e 4 pontos percentuais, respectivamente) quando comparados aos da Itália. Além disso, as classes médias ocidentais perderam em comparação com seus próprios compatriotas no topo das respectivas distribuições de seus países. As classes médias do Ocidente foram, portanto, duplamente perdedoras: para as classes médias em rápida ascensão da Ásia e para seus compatriotas muito mais ricos em casa. Metaforicamente, pode-se vê-las sendo espremidas entre os dois.

Mas, ao contrário da Globalização I, a desigualdade global diminuiu durante a segunda iteração, impulsionada pelas altas taxas de crescimento nos grandes países asiáticos. Dentro das nações, no entanto, a desigualdade em geral aumentou. Isso foi mais evidente na China, onde o coeficiente de Gini, uma medida comum de desigualdade, quase dobrou após as reformas liberais. O mesmo ocorreu na Índia. A Figura 2 mostra o crescimento da renda dos indianos e chineses ricos superando o dos pobres de seus países. Mas a desigualdade também aumentou nos países desenvolvidos, primeiro sob as reformas de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, cujos efeitos continuaram até os governos de Tony Blair e Bill Clinton, apenas para finalmente se estabilizar na segunda década deste século.

Em resumo, a primeira globalização viu a ascensão do Ocidente, a segunda, a ascensão da Ásia; a primeira levou a um aumento das desigualdades entre países, a segunda, ao seu declínio. Ambas as globalizações tenderam a aumentar as desigualdades dentro das nações. A desigualdade das taxas de crescimento dos países durante a Globalização I instalou a maioria das populações ocidentais no topo da pirâmide de renda global. Raramente se reconhece o quão alto estavam até mesmo os decis mais pobres dos países ricos na distribuição de renda global. O economista Paul Collier, em seu Future of Capitalism [O Fututro do Capitalismo], escreve melancolicamente sobre a época em que os trabalhadores ingleses estavam no topo do mundo. Mas para que eles se sentissem bem, alguém mais tinha que se sentir mal.

A segunda globalização expulsou algumas classes médias ocidentais desses patamares e produziu uma grande reorganização de renda, à medida que eram ultrapassadas por uma Ásia em ascensão. Esse declínio relativamente imperceptível ocorreu em paralelo com um declínio muito mais perceptível das classes médias ocidentais em relação às suas próprias elites nacionais. Causou insatisfação política que se refletiu na ascensão de líderes e partidos populistas.

Por fim, devemos observar que a convergência das rendas mundiais não se estendeu à África, que continuou em sua trajetória de declínio relativo. Se isso não mudar — e a probabilidade de tal mudança parece baixa — o declínio relativo da África, nas próximas décadas, reverterá as forças que atualmente empurram a desigualdade global para baixo e inaugurará uma nova era de crescente desigualdade global.

Uma improvável coligação de interesses

O que talvez não tenha sido percebido no início da Globalização II — apenas para se tornar cada vez mais evidente com seu desenrolar — foi a aliança de interesses entre os cantos mais ricos do mundo ocidental e as massas pobres do Sul Global. À primeira vista, esse vínculo parece bizarro, pois não há quase nada em comum entre os dois grupos, incluindo educação, origem e renda. Mas foi uma aliança tácita, não totalmente percebida por nenhum dos lados até que se tornou flagrantemente óbvia. A globalização empoderou os ricos nos países desenvolvidos por meio de mudanças em sua estrutura econômica interna: redução de impostos, desregulamentação e privatização, mas também a capacidade de transferir a produção local para lugares onde os salários eram muito mais baixos. A substituição da mão de obra nacional por mão de obra estrangeira barata tornou os donos do capital e os empreendedores do Norte Global muito mais ricos. Também possibilitou que os trabalhadores do Sul Global conseguissem empregos com salários mais altos e escapassem do subemprego crônico. Os perdedores em tudo isso foram os trabalhadores de nível médio, que foram substituídos pela força de trabalho muito mais barata do Sul Global. Portanto, não é surpresa que o Norte Global tenha se desindustrializado, não apenas como resultado da automação e da crescente importância dos serviços na produção nacional, mas também devido ao fato de que grande parte da atividade industrial foi transferida para locais onde poderia ser realizada a preços mais baixos. Não é de se admirar que o Leste Asiático tenha se tornado a nova oficina do mundo.

Essa coalizão particular de interesses foi negligenciada no pensamento original sobre a globalização. De fato, acreditava-se que a globalização seria ruim para as grandes massas trabalhadoras do Sul Global — que elas seriam exploradas ainda mais do que antes. Muitas pessoas talvez tenham cometido esse erro com base nos desenvolvimentos da Globalização I, que de fato levou à desindustrialização da Índia e ao empobrecimento das populações da China e da África. Durante essa era, a China era praticamente governada por comerciantes estrangeiros, e na África os agricultores perderam o controle sobre a terra — trabalhavam em comum desde tempos imemoriais. A falta de terra os tornou ainda mais pobres. Portanto, a primeira globalização de fato teve um efeito muito negativo na maior parte do Sul Global. Mas esse não foi o caso na Globalização II, quando os salários e o emprego em grande parte do Sul Global melhoraram.

Claro, também é verdade que a duração da jornada de trabalho e as condições de trabalho no Sul Global eram frequentemente muito difíceis e continuaram a ser muito piores do que para os trabalhadores do Norte. As reclamações dos trabalhadores sobre o horário 9-9-6 (trabalho das 9h às 21h, seis dias por semana) não são exclusivas dos chineses — é uma realidade em grande parte do mundo em desenvolvimento. Mas essas condições precárias representaram uma melhoria em relação ao que existia antes e foram aceitas como tal.

Mesmo que os críticos contemporâneos da Globalização II estivessem errados sobre o fato de que ela deterioraria a posição econômica de grandes massas do Sul Global — em vez disso, como vimos, ela prejudicou as classes médias do Norte Global — eles estavam certos sobre quem se beneficiaria mais com essas mudanças: os ricos do mundo.

Neoliberalismo doméstico vs. neoliberalismo internacional

Ao discutir o neoliberalismo, precisamos fazer uma importante distinção analítica entre, por um lado, as políticas domésticas do neoliberalismo e, por outro, as políticas neoliberais internacionais. O primeiro tipo inclui o pacote usual de redução de impostos, desregulamentação, privatização e uma reversão geral do Estado. O segundo tipo consiste na redução de tarifas e restrições quantitativas e, portanto, na promoção do livre comércio em geral, bem como de taxas de câmbio flexíveis e da circulação desimpedida de capital, tecnologia, bens e serviços. O trabalho sempre foi tratado de forma diferenciada — ou seja, sua circulação nunca foi tão livre quanto a do capital, embora sua mobilidade global fosse uma das aspirações do neoliberalismo.

Os perdedores em tudo isso foram os trabalhadores de nível médio, que foram substituídos pela força de trabalho muito mais barata do Sul Global.

Essa distinção analítica é particularmente importante para entender a China e para imaginar o que virá a seguir sob o segundo governo Trump. Ela deixa imediatamente claro que a China não seguiu os preceitos do neoliberalismo em suas políticas internas, enquanto os seguiu principalmente em suas relações econômicas internacionais. Isso distingue a China de muitos outros países desenvolvidos e em desenvolvimento que levaram muito a sério tanto a parte interna quanto a internacional da globalização. A partir da década de 1980, os Estados Unidos deram início à virada neoliberal, que não se limitou às políticas internas; abrangeu a redução de tarifas, a criação do NAFTA e o aumento da entrada e saída de investimentos estrangeiros. O mesmo ocorreu com a União Europeia. Isso também se aplica à Rússia e aos países anteriormente comunistas.

A única grande resistência foi a China. Ela sozinha manteve um papel importante para o Estado, que permaneceu como ator preponderante no setor financeiro e em indústrias-chave como aço, eletricidade, fabricação de automóveis e infraestrutura em geral. Ainda mais importante, o Estado permaneceu poderoso na formulação de políticas e manteve o que Vladimir Lenin chamou de “alto comando da economia”. Essas políticas chinesas, especialmente sob Xi Jinping, podem ser melhor entendidas como algo semelhante à Nova Política Econômica de Lenin. Sob as regras desses regimes, o Estado permite que o setor capitalista se expanda nos setores menos importantes. Mas mantém o controle sobre as partes mais importantes da economia e toma decisões-chave que têm a ver com o desenvolvimento tecnológico. O Estado chinês tem estado fortemente envolvido no desenvolvimento das tecnologias mais avançadas da atualidade, incluindo tecnologia verde, carros elétricos, exploração espacial e, mais recentemente, inteligência artificial e aviônica.

Esse envolvimento variou de simples incentivos, como impostos mais baixos, a pressões mais diretas, em que empresas privadas são informadas sobre o que fazer se quiserem manter boas relações com o governo. Um exemplo óbvio da diferença de poder entre o Estado e o setor privado ficou evidente quando, em 2020, o governo cancelou o que teria sido o maior IPO da história, do Ant Group, de Jack Ma, uma afiliada do Alibaba, o que lhe permitiria expandir-se para o setor de fintech, em grande parte desregulamentado.

Portanto, quando falamos sobre o sucesso da globalização na redução da pobreza e no aumento do crescimento em muitos países asiáticos, especialmente na China, devemos ter em mente a distinção entre políticas domésticas e internacionais. Pode-se argumentar que o sucesso da China se deveu precisamente à sua capacidade de combinar essas duas partes de maneira única, que deixou o poder do governo praticamente intacto internamente, ao mesmo tempo em que permitiu que a plena demonstração das vantagens do comércio se manifestasse em seus pontos fortes. Essa estratégia específica poderia funcionar bem para outros países grandes, como a Índia ou a Indonésia. Mas ela tem limitações claras com países pequenos, uma vez que eles não têm economias de escala e, talvez mais importante, não têm o tipo de poder de barganha em relação ao capital estrangeiro que permitiu à China se beneficiar de transferências tecnológicas substanciais dos países mais desenvolvidos.

Trump como o dobre a finados da globalização II

A onda internacional de globalização que começou há mais de trinta anos está chegando ao fim. Nos últimos anos, assistimos ao aumento de tarifas dos Estados Unidos e da União Europeia; à criação de blocos comerciais; a fortes limites à transferência de tecnologia para a China, Rússia, Irã e outros países “hostis”; ao uso de coerção econômica, incluindo proibições de importação e sanções financeiras; severas restrições à imigração; e, finalmente, políticas industriais com o subsídio implícito aos produtores nacionais. Se tais desvios do regime comercial neoliberal ortodoxo forem feitos pelos principais atores — ou seja, os Estados Unidos e a União Europeia — organizações transnacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial não poderão continuar pregando os preceitos políticos habituais de Washington para o resto do mundo. Estamos, portanto, entrando em um novo mundo de políticas comerciais e econômicas externas específicas para cada nação e região, afastando-nos do universalismo e do internacionalismo e entrando no neomercantilismo.

Trump se encaixa nesse molde quase perfeitamente. Ele adora o mercantilismo e vê a política econômica externa como uma ferramenta para extrair todo tipo de concessões, às vezes sem qualquer relação com a economia propriamente dita, como sua ameaça de impor tarifas à Dinamarca caso o país se recuse a ceder a Groenlândia. Talvez seja tudo apenas fanfarronice. No entanto, isso demonstra a visão de Trump de que ameaças econômicas e coerção devem ser usadas como ferramentas políticas. Tais políticas dividirão ainda mais o espaço econômico global. O objetivo de Washington é desacelerar a ascensão da China e reduzir a capacidade do Estado chinês de desenvolver novas tecnologias que possam ser usadas não apenas para fins econômicos, mas também militares.

No entanto, por outro lado, a parte doméstica do pacote neoliberal padrão, no mínimo, só será reforçada sob Trump. Isso já é evidente em suas esperanças de reduzir o imposto de renda de pessoa física, desregulamentar praticamente tudo, permitir uma exploração muito maior dos recursos naturais e impulsionar ainda mais a privatização de funções governamentais, essencialmente reforçando todos os preceitos domésticos do neoliberalismo. Teríamos, portanto, algo contraditório apenas na aparência: aumento do mercantilismo internacional com aumento do neoliberalismo interno — em outras palavras, a combinação exatamente oposta das políticas da China.

Alguns economistas, citando exemplos históricos, acreditam que políticas mercantilistas devem necessariamente ser acompanhadas por políticas de maior controle e regulamentação estatal interna. Mas esse certamente não é o caso do atual governo estadunidense. A nova combinação que Trump promove — imigração rigorosamente controlada aliada ao neoliberalismo interno extremo e ao mercantilismo no exterior — provavelmente atrairia muitos também na França, Itália e Alemanha.

O mundo está, portanto, entrando em uma nova era, na qual os países ricos seguirão uma política dupla incomum. Tendo abandonado a globalização neoliberal, agora avançarão com ainda mais firmeza com um projeto de neoliberalismo doméstico.

Colaborador

Branko Milanovic é economista e professor presidencial visitante no Graduate Center da CUNY.

11 de setembro de 2024

Como a corrupção alimenta a desigualdade na China

Corrupção em uma escala impressionante distorce a economia do país

Branko Milanovic, Jianli Yang

Foreing Affairs

Um quadro eletrônico mostrando índices de ações em Xangai, China, março de 2023 Aly Song / Reuters

Depois que o presidente chinês Xi Jinping chegou ao poder em 2012, seu governo lançou uma ampla campanha anticorrupção que atraiu a atenção mundial por seu escopo e determinação. Figuras poderosas, há muito consideradas intocáveis, foram consideradas culpadas de suborno ou uso indevido de fundos e presas. Essas punições inicialmente encorajaram a impressão entre alguns comentaristas de que Xi poderia estar usando a iniciativa para marginalizar ou perseguir seus oponentes políticos. Mas o esforço para erradicar a corrupção foi muito além da política de poder pessoal. Conduzida pela Comissão Central de Inspeção Disciplinar, um órgão do Partido Comunista Chinês, foi a maior campanha anticorrupção da história em qualquer lugar do mundo. Em maio de 2021, quase dez anos após o início da campanha, a CCID investigou um total de mais de quatro milhões de pessoas dentro do governo e do aparato do PCC, considerando 3,7 milhões delas culpadas.

A investigação pública e o processo de corrupção em tal escala ocorreram em um cenário de crescente desigualdade na China. Esta não foi uma mera correlação coincidente. A desigualdade na China, especialmente dentro das cidades, aumentou após as reformas da década de 1980 e depois aumentou ainda mais após a privatização e reestruturação de muitas empresas estatais no início da década de 1990. Maior produtividade e salários em setores de alta tecnologia e a crescente parcela da renda do capital alimentaram a desigualdade urbana de cima; na base da escala de renda urbana, o influxo de trabalhadores do campo — muitos dos quais não têm autorização de residência urbana e aceitarão salários baixos — alimentou a desigualdade de baixo.

Com mais riqueza circulando pela economia chinesa, a corrupção tem aumentado nas últimas décadas. Mas até agora, ninguém estudou empiricamente as características das pessoas que o CCID considerou culpadas de corrupção ou tentou estabelecer empiricamente até que ponto a corrupção contribuiu para a desigualdade. Como se vê, uma análise detalhada dos dados do CCID revela um padrão: não apenas a corrupção entre as pessoas no topo da hierarquia burocrática e tecnocrática do Partido Comunista era muito alta (em termos de somas médias de dinheiro desviado); também contribuiu significativamente para a desigualdade, entrincheirando os já ricos em uma classe alta ainda mais inexpugnável.

TIGER DON

Graças à natureza centralizada da campanha anticorrupção e à publicação e sistematização de dados relevantes pelo governo chinês, os acadêmicos agora podem avaliar a dinâmica. Usando os dados compilados de casos de condenação individuais, construímos um banco de dados de altos funcionários chineses considerados culpados de corrupção entre 2012 e 2021. O conjunto de dados inclui informações detalhadas de 828 casos criminais de corrupção e 686 indivíduos condenados (alguns indivíduos foram acusados ​​e condenados por mais de um crime). Eles são todos membros do PCC, altos escalões do governo ou da hierarquia do partido ou gerentes em empresas estatais; na linguagem da campanha anticorrupção, eles são os "tigres" culpados dos crimes mais significativos, em oposição à multidão de "moscas" (funcionários de baixo escalão) que também foram pegos nas investigações. Até o advento da campanha de Xi, muitas dessas figuras eram consideradas intocáveis.

O CCDI categorizou os condenados em ordem de importância como quadros gerenciados centralmente, quadros gerenciados provincialmente e quadros de nível central. Os quadros gerenciados centralmente são os oficiais mais graduados, como os ministros provinciais. Eles são nomeados ou removidos pelo Comitê Central do PCC. Os quadros gerenciados provincialmente são gerenciados pelos ramos provinciais do PCC; suas fileiras incluem prefeitos e secretários de cidades. O terceiro grupo inclui oficiais um pouco menos importantes, como gerentes de empresas estatais. Para simplificar, nos referiremos a esses oficiais respectivamente como nomenklatura nacional, provincial e local.

Uma análise do conjunto de dados do CCDI revela a escala da corrupção por posto de oficial. Quando colocado ao lado de pesquisas domiciliares urbanas chinesas (tigres tendem a viver em áreas urbanas), o conjunto de dados nos permitiu estimar a renda legal dos condenados por corrupção e sua posição na distribuição de renda urbana, revelando o quão importantes eles eram na vida econômica e política comum e onde exatamente sua corrupção ocorreu. Ao contrastar a renda legal estimada dos réus com os valores que eles foram acusados ​​de desviar, calculamos o quanto a corrupção aumentou sua renda, o quanto isso os permitiu subir na hierarquia da distribuição de renda chinesa e como essa corrupção afetou os níveis de desigualdade nas cidades chinesas.


Sem surpresa, os dados mostraram que quanto mais sênior a figura condenada, mais significativa a escala das atividades corruptas do funcionário. Membros da nomenklatura nacional foram condenados por desviar mais de quatro vezes e meia mais dinheiro por caso do que membros da nomenklatura provincial e mais de três vezes mais do que aqueles da nomenklatura local. Os funcionários mais graduados listados no conjunto de dados foram acusados, em média, de desviar US$ 14,1 milhões, a nomenklatura provincial de desviar US$ 2,8 milhões e a nomenklatura local de desviar US$ 4,3 milhões. (Os números locais são maiores que os números provinciais porque incluem muitos gerentes de empresas estatais para quem a corrupção parece ser particularmente lucrativa.) Membros da nomenklatura provincial são acusados ​​da maior parte dos casos de corrupção (dois terços), mas como o desvio de fundos por caso de funcionários da nomenklatura nacional é muito maior, dois terços da corrupção total medida em termos monetários estão relacionados a eles.

Os oficiais condenados vêm quase inteiramente das partes mais altas da distribuição de renda urbana chinesa. Mais da metade deles estariam no topo dos cinco por cento da distribuição de renda urbana apenas com suas rendas legais; cerca de seis por cento estariam no topo de um por cento, com rendas anuais maiores que cerca de US$ 30.000 por pessoa (ou US$ 120.000 por domicílio se o domicílio consistir em quatro membros).

Por meio da corrupção, no entanto, o réu mediano ganhava de quatro a seis vezes mais do que seus ganhos legais. Os réus, portanto, subiram ao topo da distribuição de renda urbana da China. Considerando sua renda ilegal, 82 por cento dos culpados de corrupção estavam entre o topo de um por cento dos moradores da cidade, e quase todos estavam no topo de cinco por cento.

A corrupção em si estava fortemente concentrada nos escalões superiores, com os dez por cento dos casos sendo responsáveis ​​por 58 por cento da soma total desviada. Em contraste, os dez por cento dos maiores ganhadores na China urbana ganham 33 por cento da renda total. A natureza concentrada da corrupção — e o fato de que ela beneficiou pessoas que já estavam entre as mais ricas da China — mostra que a corrupção, em sua parte revelada, é um importante contribuinte para a desigualdade urbana chinesa.

A BUSCA PÚBLICA DE GANHOS PRIVADOS

Esses resultados demonstram a enorme extensão da corrupção no topo da distribuição de renda urbana da China. Mesmo pessoas com rendas legais altas podem multiplicar suas rendas, em média, por um fator de quatro a seis — e algumas, obviamente, por ainda mais. Os resultados implicam que a desigualdade de renda real no país é muito maior do que os níveis registrados de desigualdade. Rendas corruptas, afinal, não são relatadas às autoridades fiscais e é improvável que sejam relatadas em pesquisas domiciliares. No entanto, o consumo conspícuo de membros da elite e seu modo de vida tornam a corrupção evidente para os observadores. A campanha de Xi, qualquer que seja sua motivação política, provavelmente está reduzindo a desigualdade de renda e, talvez mais importante do ponto de vista das autoridades, coibindo rendas excessivamente altas e a ostentação simultânea de tal riqueza.

Esse resultado pode explicar a popularidade da campanha. Campanhas anticorrupção, especialmente se não hesitarem em perseguir os muito ricos e poderosos, podem ser úteis para regimes autocráticos para impulsionar suas credenciais populistas. O recente expurgo de generais corruptos do presidente russo Vladimir Putin no meio de uma guerra foi incomum, mas segue movimentos anticorrupção pouco conhecidos que começaram simultaneamente com a invasão da Ucrânia. O caso do governo angolano contra a empresária e ex-filho político Isabel dos Santos também se mostrou muito popular. O Vietnã recentemente se envolveu em uma campanha de "limpeza" semelhante no topo de seu Partido Comunista.

Observadores descobriram que a campanha anticorrupção de Xi é implacável e muitas vezes vingativa em seu direcionamento a potenciais rivais. Mas a desigualdade geral na China, medida pelo coeficiente de Gini — que vai de zero, um caso hipotético de igualdade total em que cada pessoa ganharia a mesma quantia, a 100, outro caso hipotético em que um único indivíduo ganharia toda a renda — caiu na última década de um pico de 43,7 em 2010 para 37,1 em 2020, de acordo com dados do Banco Mundial. Quaisquer que sejam seus pecados, a campanha anticorrupção buscou atacar simbolicamente e em termos reais a desigualdade galopante no país.

BRANKO MILANOVIC é um acadêmico sênior no Stone Center on Socio-Economic Inequality no CUNY Graduate Center e autor de Visions of Inequality: From the French Revolution to the End the Cold War.

LI YANG é pesquisador no Leibniz Centre for European Economic Research.

21 de março de 2022

A guerra da Rússia mostra o caos na ordem mundial

O economista Branko Milanovic viu em primeira mão a crescente desigualdade da transição da Rússia para o capitalismo nos anos 1990. Ele falou com a Jacobin sobre como a guerra de Vladimir Putin mergulhou o país de volta à crise - e colocou uma bomba sob a ordem globalizada.

Branko Milanovic


Edifícios danificados em Kharkiv, Ucrânia. (Wolfgang Schwan / Agência Anadolu via Getty Images)

Na década de 1990, quando as ex-repúblicas soviéticas se voltaram para o evangelho do liberalismo de mercado, foi amplamente afirmado que a Rússia poderia ocupar seu lugar em uma ordem capitalista globalizada e liderada pelo Ocidente. No entanto, enquanto Boris Yeltsin levou a Rússia ao G8, o experimento trouxe desemprego em massa e taxas de mortalidade crescentes em casa - alimentando um clima de instabilidade que ajudou na ascensão de Vladimir Putin. Agora, a invasão da Ucrânia pela Rússia e as sanções ocidentais em resposta estão trazendo novas dificuldades para os russos comuns - e certamente terão grandes efeitos na economia global .

Branko Milanovic é um ex-economista do Banco Mundial conhecido por seu trabalho sobre a desigualdade global. Ele conversou com Pablo Pryluka e Kate Reed sobre o lugar da Rússia na ordem capitalista globalizada, as consequências da guerra doméstica e os efeitos que a invasão pode ter em suas relações com a China.

Kate Reed

Vamos começar falando sobre as desigualdades internas da Rússia. Como o colapso da União Soviética afetou a desigualdade de renda e riqueza na Rússia? A chegada de Putin como presidente em 2000 mudou isso?

Branko Milanović

A desigualdade na Rússia aumentou tremendamente na década de 1990. Isso já havia começado por volta de 1987, depois houve um choque macroeconômico devido às reformas em 1992, e depois privatizações, com o famoso esquema de “empréstimos por ações” em 1996 que levou à privatização de grandes empresas, praticamente ao roubo de ativos.

Gostaria de salientar que um aumento da desigualdade em condições de grande declínio da renda real é totalmente diferente de ter o mesmo aumento da desigualdade em condições de crescimento. Basta comparar a China com a Rússia. A China também teve um tremendo aumento na desigualdade, mas, ao mesmo tempo, sua renda aumentou – dependendo do ano que você deseja usar como base – cinco, seis ou doze vezes. Entre 1987 e 1993, o PIB russo, pelo contrário, caiu cerca de 40%. Compare isso com a Grande Depressão dos EUA, que teve um declínio de cerca de 30%, do pico ao vale. Se você estivesse na parte mais baixa da distribuição de renda russa, não apenas perderia 40% de sua renda, mas porque a desigualdade fosse contra você, perderia 60 ou 70%.

Acho que é útil começar com esse tremendo declínio. É fácil falar de declínio em termos percentuais, mas por trás dele há pessoas que perderam seus empregos, enfrentaram enormes atrasos de salários e pensões (alguns salários não seriam pagos seis meses) e tiveram que se requalificar e encontrar novos empregos. Você tinha médicos e engenheiros que tinham que dirigir táxis ou vender bugigangas na rua.

Outro ponto é o aumento das taxas de mortalidade. A expectativa de vida na Rússia diminuiu no ritmo mais rápido já registrado na história em tempos de paz. Junte tudo isso e você terá um colapso total da sociedade – isso não pode ser enfatizado demais.

Trabalhei na Rússia no início dos anos 90. Para os estrangeiros lá - eu estava lá com o Banco Mundial - foi ótimo: por US$ 10, US$ 20 ou US$ 50, você tinha tudo. Para as pessoas que vivem lá, foi horrível. Embora eu seja fã de János Kornai, o termo que ele inventou - chamando-o de “ recessão de transição ” - é enganoso no caso russo, ou mais amplamente, soviético (incluindo, é claro, a Ucrânia e outras ex-repúblicas soviéticas).

Quando você vê quão profunda foi aquela depressão, como ela afetou as pessoas, como a base industrial foi destruída, chamá-la de recessão de transição parece inadequado porque implica um evento único e inevitável, reconhecido como tal pelas pessoas que sofrem. Acho que a “inevitabilidade” muitas vezes distinguia os observadores da população. Se você declara que algo é inevitável, então as perdas que ocorrem parecem ser justificadas; mas se você mesmo é o receptor, é difícil assumir uma atitude tão desapegada.

As coisas finalmente melhoraram na Rússia. Mas levou algum tempo, incluindo outro colapso menor em 1998 - neste caso por causa da crise financeira asiática. Os anos 1990 foram anos desastrosos, e Putin teve muita sorte de ter chegado ao poder em 2000, de modo que não estava associado diretamente a essa década. Nos anos 2000, a situação melhorou por muitas razões, incluindo a estabilização do rublo, aumento dos preços do petróleo, maior produção agrícola e a própria contribuição de Putin no sentido de que ele se livrou de muitos dos oligarcas que lutavam entre si e arrastavam o poder país próximo da guerra civil.

Há um livro, O Poderoso Chefão do Kremlin , que me impressionou bastante — revisei — de Paul Klebnikov, o editor da Forbes morto a tiros em Moscou em 2004. A razão pela qual li o livro é que estava interessado nas reformas agrárias russas sob [Pyotr] Stolypin, e Klebnikov fez uma enorme e excelente dissertação de doutorado sobre o tema. Então foi assim que eu o “descobri”. Então li o livro dele, que é uma história do oligarca Boris Berezovsky. Vale muito a pena ler, porque Klebnikov descreve a tecnologia da destruição, como os oligarcas não apenas roubaram o dinheiro, mas enquanto roubavam o dinheiro, destruíam a economia.

Isso é algo que muitos economistas, inclusive eu, não entendiam completamente. Consistia em assumir uma empresa, seja subornar ou ameaçar a direção (por isso era útil ter uma máfia), depois tirar tudo da empresa e fazê-la falir, mas mesmo que vá à falência ainda produz renda e você recolhe todo o dinheiro até que cesse a produção. Os funcionários são todos mandados para casa e você passa para a próxima empresa. O que é importante entender aqui é que esses oligarcas politicamente conectados não apenas se enriqueceram, mas se enriqueceram destruindo os meios de subsistência de milhares.

Pablo Pryluka

Você descreveu a Rússia como uma “economia capitalista oligárquica” e o governo russo como “tecnocrático e neoliberal”. Você poderia expandir o que é o modelo econômico russo, sob Putin?

Branko Milanović

Putin sempre foi muito neoliberal na esfera econômica: a favor da iniciativa privada e dos empresários. Esse neoliberalismo deriva, no caso dele, do anticomunismo e, como vemos agora, do imperialismo russo (que ele pode ter adquirido ao longo do caminho). Seus heróis são heróis anticomunistas da Guerra Civil. Então essa era a sua ideologia, que é óbvia hoje em dia quando no primeiro dia após a invasão da Ucrânia, ele convocou a reunião com o grande capital e disse essencialmente: agora é a oportunidade de mostrar o que você pode fazer; vamos nos livrar de todas as restrições, você contrata quantas pessoas quiser, paga o que quiser. Basicamente, liberdade total para eles. Ele falou sobre cortar ainda mais a tributação, reduzir a regulamentação etc.

Já ouvi pessoas do governo russo falarem em várias ocasiões. Eles são neoliberais, muito tecnocráticos, como obviamente o famoso grupo tecnocrático do Banco Nacional da Rússia. Seu poder sobre as principais decisões políticas é inexistente. Alguém recentemente descreveu apropriadamente como Putin toma essas grandes decisões geopolíticas, e então os tecnocratas precisam encontrar uma maneira de suavizar de alguma forma a repercussão econômica de tais grandes decisões. Putin não parece se interessar em como eles fariam isso: ele basicamente trata o governo como algumas pessoas tratam as pessoas que limpam suas casas: limpam a bagunça que eu fiz. Eu não acho que ele os teria informado da decisão de invadir a Ucrânia. Todos ficaram, suponho, chocados com a extensão das sanções. Acho que são pessoas qualificadas e competentes,

Pablo Pryluka

Vamos voltar ao pano de fundo da atual invasão da Ucrânia. Você acha que, após a queda da URSS, a Rússia poderia ter se envolvido em um processo do tipo “casa europeia comum” como Mikhail Gorbachev esperava, e o conflito atual – se não provocado pelo Ocidente – ainda assim de alguma forma as consequências do conflito? descompasso entre o otimismo da virada da década de 1990 sobre o lugar da Rússia em um mundo liberalizado e globalizado e a realidade?

Branko Milanović

Eu penso que sim. Posso ser tendencioso porque conhecia a Rússia razoavelmente bem na década de 1990. Sempre achei esse período extremamente importante. E entendo que muitos jovens não conheçam o período, ou que seja irrelevante para eles. Mas moldou fundamentalmente a visão de mundo da geração que agora está no poder na Rússia. Se você olhar para Putin e as pessoas ao seu redor, todos eles têm entre 65 e 70 anos, então eles tinham 30 ou 35 anos na época e eles mesmos – incluindo Putin – experimentaram esse declínio. Havia, portanto, uma enorme discrepância entre suas expectativas enquanto cresciam na casa dos vinte e o que aconteceu então.

Então, eu sempre pensei que realmente é preciso voltar a esse período para entender o que está acontecendo hoje. Agora, para responder diretamente à sua pergunta, não tenho certeza se a Rússia poderia ter sido totalmente integrada à ordem ocidental e ser outra Itália, que depois de ser o inimigo durante a Segunda Guerra Mundial se tornou um aliado inquestionável dos EUA. Mas acho que se muitos erros não tivessem sido cometidos, não estaríamos hoje nesta situação: a Rússia poderia ter sido integrada num sentido normal, ou seja, não se tornando uma potência revisionista, e não teríamos que enfrentar uma guerra e certamente não ter que enfrentar alguém decidindo possivelmente usar armas nucleares. Assim, o resultado de hoje é uma clara denúncia das políticas seguidas após o fim da primeira Guerra Fria.

Pablo Pryluka

Também vimos tentativas de explicar a agressão russa em termos de uma suposta cultura nacional milenar...

Branko Milanović

Não gosto dessas explicações na economia e não gosto delas na ciência política. Eles estão sempre errados porque são basicamente uma destilação do que é comum em um determinado momento. Assim, eles sempre parecem corretos em um determinado momento, mas estão sempre errados quando você os olha ex post. Assim, você tinha explicações essencialistas para o comportamento do Japão, para o comportamento da Alemanha, para o comportamento da Itália etc., mas quando esses países mudam, então de alguma forma você corre para ter uma explicação essencialista diferente.

O mesmo acontece na economia. Tínhamos livros escritos sobre como o Leste Asiático nunca poderia se desenvolver por causa do respeito desordenado pelos idosos e do conservadorismo implícito na ideologia confucionista. Então, cinquenta anos depois, lemos que precisamente porque eles são confucionistas e se preocupam com a educação, eles se desenvolveram. Você também teve o famoso contraste de católicos versus protestantes de Max Weber, mas então, nas décadas de 1960 e 1970, você tinha todos os países católicos da Europa crescendo mais rápido do que os países predominantemente protestantes. Então, como isso funciona?

As pessoas também gostam de oferecer tais explicações porque são lucrativas. Você publica seu livro e, quando as pessoas o lêem, precisamente porque essas histórias são uma compilação de lugares-comuns, elas dizem: “Uau, isso é realmente fenomenal; encaixa lindamente com o que eu pensava.” Mas se encaixa lindamente porque dá a fatia de hoje interpretada como um resultado inevitável. Mas as coisas mudam. Então você pega outra fatia da história e afirma que outra explicação essencialista realmente importa.

Kate Reed

Nos últimos dez anos, a economia russa esteve estagnada, com queda do PIB per capita (pelo menos na maioria dos anos) e aumento da inflação. O manejo da crise do COVID foi outra fonte de potencial descontentamento. Quais são os laços, se houver, entre a situação econômica na Rússia e a decisão de invadir a Ucrânia?

Branko Milanović

É difícil dizer. Acho que Putin foi impulsionado principalmente pelos fatores geopolíticos que são muito claros em seus discursos. Mas certamente, a situação econômica na Rússia nos últimos dez anos não tem sido boa.

Primeiro, praticamente não houve crescimento. Houve alguns anos em que os rendimentos aumentaram, depois alguns anos em que caíram. Então aconteceu a crise do COVID. A Rússia não foi exceção: quase todos os países do mundo tiveram taxas de crescimento negativas, e a Rússia não foi, nesse sentido, pior do que os outros. Mas seu controle do COVID era muito ruim, talvez não tanto em comparação com os EUA, mas certamente em comparação com a China. Acho que isso reflete a ineficiência institucional do sistema de saúde na Rússia.

Então, essa crise – desculpe a expressão, porque é uma guerra atroz – é como a cereja do bolo. Houve uma falta de crescimento, um sentimento de estagnação, a crise do COVID e depois uma guerra. É uma história circular da Rússia: você melhora a situação por dez ou vinte anos e então você tem um declínio calamitoso. Aconteceu várias vezes nos últimos cem anos e está acontecendo agora novamente.

Pablo Pryluka

O Ocidente impôs enormes sanções econômicas à Rússia desde o início da invasão. Queríamos perguntar o que você pensa sobre o que Nicholas Mulder chamou recentemente de "a arma econômica": quão eficazes são as sanções econômicas em relação ao envolvimento militar mais direto, não apenas neste caso, mas em geral? E quais são os custos humanitários das sanções econômicas?

Branko Milanović

O livro de Mulder acaba de ser publicado. Não foi uma resposta à crise atual; e acho que isso o torna ainda mais útil porque muitas vezes tendemos a projetar o presente no passado, enquanto esse provavelmente não é o caso do livro dele.

Olhando para os efeitos na Rússia, as sanções são obviamente abrangentes. Eles são incomparáveis ​​em extensão e, em particular, as sanções financeiras são algo bastante novo. Acho que nunca vimos uma apreensão de ativos do banco central. Então, isso é um grande passo. E nos jornais russos você pode ler sobre os efeitos das sanções, por exemplo, no transporte aéreo: em breve, as pessoas podem não conseguir voar de Moscou para Vladivostok. Se os aviões que as companhias aéreas russas estão alugando atualmente - que agora planejam não devolver - não puderem ser atendidos e consertados pela Boeing e Airbus, eles não terão substitutos russos adequados. Você não pode desenvolver uma indústria aeronáutica em alguns anos.

Além disso, a construção de máquinas e as indústrias de gás e petróleo dependem inteiramente da tecnologia ocidental. Escrevi sobre isso em meu blog: a industrialização soviética na década de 1930 também foi amplamente baseada na tecnologia ocidental.

Agora, as empresas de automóveis na Rússia já enviaram milhares de funcionários em licença de vinte dias. Muitos carros como Toyota, Nissan e outros são produzidos na Rússia, mas com peças que vêm de todo o mundo. Quando essas peças pararem de chegar, o que os trabalhadores vão fazer? Na década de 1990, alguns poderiam ter dito, OK, vamos tentar fazer a substituição de importações. Pode não ter sido uma grande política, mas foi viável porque a base industrial estava lá. Mas pelas razões que discutimos antes, essa base industrial foi destruída ou totalmente alterada. Então, você não pode fazer a substituição de importações agora sem tecnologia estrangeira, sem alguma base industrial essencial e sem um aumento na força de trabalho (já que a Rússia tem uma população em declínio).

Kate Reed

Você mencionou a questão do tempo e das sanções, lembrando que os Estados Unidos, por exemplo, impuseram sanções a Cuba por mais de sessenta anos. Como a longevidade das sanções - e o fato de que aparentemente há menos demanda popular para removê-las do que, digamos, acabar com a presença de envolvimento ativo de tropas - afetará os próximos anos e décadas? Existem ramificações além da Rússia?

Branko Milanović

Acho que as sanções seriam muito difíceis de levantar. Quando você olha para outros casos, como o Irã, recentemente algumas sanções foram suspensas, mas a maioria ainda está em vigor. O desenvolvimento tecnológico do Irã e sua capacidade de vender petróleo foram bastante prejudicados. O fato de as sanções terem sido postas em prática pelo Congresso torna ainda mais difícil revogá-las. Veja a emenda Jackson-Vanik, as sanções à URSS por causa dos limites à emigração judaica. Eles foram mantidos nos livros por vinte anos depois que toda a razão para eles desapareceu. Todos os anos, o governo tinha que notificar o Congresso de que as sanções não deveriam ser aplicadas porque não havia motivo para elas, mas ainda estavam nos livros.

É por isso que eu acho que este é um evento tão importante. Mesmo que a guerra parasse amanhã, a disposição de remover as sanções seria muito baixa e implicaria uma lista de concessões tão grande que qualquer governo russo que viesse depois de Putin acharia politicamente difícil de aceitar. Seria necessário outro Brest-Litovsk. De uma forma ou de outra, devemos esperar que as sanções permaneçam por muito tempo, mesmo que talvez nem todas sejam igualmente vinculativas.

Pablo Pryluka

E quais são as consequências dessas mudanças? Você escreveu recentemente: “O problema não é que o governo esteja fazendo escolhas políticas erradas; o problema é que, na situação atual, quase não há boas escolhas políticas a serem feitas.” Politicamente, você acha que isso pode influenciar a estabilidade das instituições russas como elas funcionam agora?

Branko Milanović

Eu acho que o governo está basicamente fazendo uma operação de limpeza porque é apresentado a um fato consumado. Não há boas decisões: elas são praticamente espremidas, dado que o domínio da tomada de decisões é tão estreitado pelas decisões políticas de Putin e pela resposta do Ocidente.

Haverá, certamente, aumento da taxa de inflação e, possivelmente, escassez, e então inflação combinada com escassez, além disso, muitos russos da classe trabalhadora perderão seus empregos. Pode ser difícil obter até mesmo os alimentos elementares e bens de sobrevivência, e então o governo será empurrado pelos eventos para o racionamento.

Eu disse antes, o governo é neoliberal. Mas se a alternativa é o tumulto das pessoas, o que também pode acontecer - e eu acho que as razões econômicas são razões muito boas para o tumulto porque ninguém pode acusá-lo de ser um inimigo ou traidor se você está se revoltando porque você não tem o suficiente para comer - o economia teria que mudar para algum tipo de pé de guerra. Não necessariamente porque o governo quer fazê-lo, mas porque seria conduzido nessa direção.

Já vejo os sinais de escassez acontecendo. Obviamente, eles não virão imediatamente: ainda haverá estoques e pessoas enchendo-os. Kornai tinha essa ideia muito boa de que o outro lado da escassez é o excesso, ou em outras palavras, o desperdício. Porque quando falta açúcar hoje, o que todo mundo vai fazer? Tente comprar dez, quinze quilos. Isso piora a escassez, o que torna as pessoas mais propensas a comprar cem quilos. Você acumula estoques em casa, parte é desperdiçada, mas eventualmente os estoques acabam.

Então, eu acho que as coisas vão ficar cada vez piores.

Kate Reed

Uma das outras consequências prováveis ​​que você sinalizou é o deslocamento em massa: a crise imediata enfrentada pelos refugiados ucranianos, mas também pelos emigrantes russos. Você sugere que a migração interna maciça pode ser uma resposta de médio a longo prazo na Rússia: como isso pode acontecer?

Branko Milanović

Estamos em plena guerra e não sabemos quantos migrantes haverá. No caso da Bósnia, era mais de 20% da população. Antes desta guerra começar, eu pensava que se houvesse uma guerra na Ucrânia, a migração poderia significar 5 milhões de pessoas deixando a Ucrânia. Agora, já são aproximadamente 3 milhões e, como está sendo dito, é a onda de migração mais rápida de todos os tempos, porque é relativamente fácil ir da Ucrânia para a Polônia.

Mas a longo prazo, acho que é impossível dizer quão grande seria a migração. E em segundo lugar, haverá um cessar-fogo em breve? Acho que se houver algum tipo de solução política, muitas dessas pessoas voltariam. Eles estão próximos e, se suas casas não foram destruídas, muitos deles podem preferir retornar a emigrar permanentemente. Mas quanto mais a guerra continuar, quanto mais você criar um novo ambiente para si mesmo no novo país, maior a probabilidade de conseguir um emprego, de encontrar um primo ou outra pessoa com quem ficar. No caso sírio, quando começou, as pessoas foram para a Turquia e países vizinhos. Mas enquanto a guerra continuava na Síria - agora por mais de uma década - as pessoas não voltaram.

Kate Reed

E quanto à migração dentro da Rússia?

Branko Milanović

Eu me referi, em um post recente no blog, à ligação entre as migrações internas e o atual regime de sanções. Há uma linha de pensamento na Rússia em relação à sua singularidade econômica e geopolítica: o eurasianismo. A Rússia é quase inteiramente, em termos de população, baseada na Europa, mas sob condições como as atuais, você pode imaginar - e é mais imaginação do que realidade - a Rússia tentando girar em direção à Ásia.

Se você mudasse as pessoas como se fosse um decreto, colocar mais pessoas no Leste Asiático faria sentido e teria certas vantagens. A Ásia Oriental é a parte mais dinâmica do mundo. A Europa está a diminuir tanto em população como em importância econômica. Estar perto da Coréia, Japão, China, negociar com eles e não estar necessariamente exposto às sanções e aos problemas que você teve com a Europa, teoricamente parece uma boa proposta.

O problema é, no entanto, que 80 por cento da população da Rússia vive na parte europeia da Rússia. As distâncias dentro da Rússia são enormes, a infraestrutura é inexistente ou muito inadequada, e os empregos no Leste são poucos e insuficientes. Vladivostok, por exemplo, que é a maior cidade da região do Pacífico, tem meio milhão de habitantes, enquanto Moscou é de 12 milhões. Então, estamos falando de um grande movimento de população, o que é difícil de prever.

Os soviéticos tentaram desenvolver as partes do norte do país. Eles queriam ter mais pessoas lá porque era onde estão os recursos. Eles os pagavam muito melhor e muitas pessoas foram para lá – não aos milhões, mas aos milhares. Mas a maioria dessas cidades de uma empresa desapareceu após a transição. Se você olhar para Norilsk, onde Roman Abramovich está ganhando dinheiro com níquel, não é particularmente atraente. Provavelmente há escuridão durante oito meses do ano. Mas isso fez dele uma das pessoas mais ricas do mundo. Mas você realmente espera que talvez 2, 3 ou 4 milhões de pessoas vão morar nessas cidades? Não acho realista.

Pablo Pryluka

Você vê um movimento geopolítico para o leste - e isso colocará a Rússia mais à mercê da China?

Branko Milanović

Eu faço. Um dos pontos em Capitalismo Sozinho e Desigualdade Global é que estamos na presença de uma mudança maciça. Esta é uma mudança equivalente em importância à Revolução Industrial. É um reequilíbrio do mundo, com a ascensão da Ásia: não me refiro apenas à China, mas também ao Vietnã, Índia e Indonésia – países obviamente grandes e populosos – com o centro de gravidade da atividade econômica mudando do Ocidente para o Oriente. Acho que está acontecendo e continuará acontecendo nas próximas duas gerações ou talvez mais.

Quando você olha para o mapa da Eurásia – de fato um continente – você pode acabar com uma situação como a dos anos 1400 e 1500, com partes bastante ricas tanto no Atlântico quanto no Pacífico, enquanto o interior é relativamente pobre. Há estudos que analisam, por exemplo, o nível de renda em 1400 ou 1500 na Inglaterra e na China, e os rendimentos de grãos na Holanda versus o vale do rio Yangtze. Basicamente, estamos falando do mesmo nível de desenvolvimento de mercado e nível de renda igual ou semelhante. Obviamente, essas eram rendas muito modestas em comparação com hoje, mas eram as duas partes finais do continente eurasiano, as duas partes marítimas, ambas relativamente semelhantes em renda, enquanto na Eurásia continental, onde a Rússia está agora, você tinha o Império Mongol que era muito mais pobre e em um nível mais baixo de desenvolvimento tecnológico. Essa seria a situação da Rússia amanhã também e a guerra com a Ucrânia torna esse resultado ainda mais provável, por todas as razões que mencionamos antes. Escrevi sobre isso na introdução da minha edição russa de Desigualdade Mundial.

Não estarei por perto para estudar as consequências a longo prazo, mas acho que podemos acabar vendo essa guerra como o evento realmente crucial que acelerou esse desenvolvimento. A falta de desenvolvimento econômico ou a pobreza relativa podem levantar outras questões também, incluindo quão sustentável é a atual configuração política de toda a área ou da Rússia. As regiões produtoras de petróleo podem perguntar por que precisam de Moscou; por que não criar outros Emirados Árabes Unidos? Não estou falando sério hoje, mas claramente isso abre muitas possibilidades.

Pablo Pryluka

Já estamos vendo a UE e os EUA se moverem para reduzir drasticamente as importações de petróleo russo. O aumento dos preços dos combustíveis está aumentando as preocupações preexistentes sobre a inflação e uma crise do custo de vida. Que impactos de curto a médio prazo você vê para a UE e os EUA, e como os encargos e benefícios serão distribuídos?

Branko Milanović

Parece-me, parece uma estagflação porque provavelmente teremos um declínio ou um crescimento nulo ou muito modesto. Isso é especialmente problemático após o declínio em 2020 e apenas uma recuperação em 2021. Na parte da inflação, houve uma grande expansão monetária devido aos gastos relacionados ao COVID para manter um padrão de vida adequado para muitas pessoas. E agora há problemas com preços mais altos de alimentos e gás.

No que diz respeito aos preços dos alimentos, estou mais preocupado com o impacto nos países mais pobres, onde os preços dos alimentos e os tumultos e as mudanças de governo muitas vezes andam juntos. O Egito é um exemplo particularmente bom: sempre que há um aumento nos preços dos alimentos, há tumultos. Isso não significa que o governo deva cair, mas é uma preocupação permanente. Alimentos e energia, incluindo custos de transporte, representam mais da metade dos gastos das famílias mais pobres e de classe média. Então, acho esses aumentos de preços bastante preocupantes e não tenho certeza se as organizações internacionais conseguirão lidar com isso. Instabilidade política pode seguir.

Isso é o que meu palpite é agora. Eu estava muito pessimista sobre os efeitos políticos do COVID, embora deva dizer que eles eram relativamente limitados e não tão ruins quanto eu pensava – isto é, assumindo que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia não está relacionada ao seu auto-isolamento do COVID. Mas nos países mais pobres, a COVID, altas taxas de morbidade e mortalidade, escassez de alimentos e o alto preço da energia criam uma combinação muito combustível.

Kate Reed

Você escreve sobre as medidas que a Rússia pode ter que tomar no curto prazo para controlar os preços ao consumidor e garantir que as necessidades básicas sejam atendidas, como o racionamento. Mesmo antes da guerra, economistas como Isabella Weber tinham (controversamente) lançado a ideia de reviver ferramentas como controles de preços em outros lugares. Você acha que o cenário político em relação a essas intervenções no Ocidente mudou ou vai mudar?

Branko Milanović

Acho que Isabella Weber foi interpretada erroneamente por ter defendido o controle de preços, ponto final. A opinião dela – do jeito que eu entendi, ela obviamente poderia dizer mais – é que existem certos preços, como os preços de energia ou alimentos que mencionamos (que você também poderia chamar de “bens salariais” em uma estrutura sraffiana ou ricardiana) que são, pela sua própria natureza, mais importantes do que outros preços. Isso porque eles são importantes para a subsistência de grandes grupos de pessoas.

Há uma bela declaração de David Ricardo quando diz que o que quer que aconteça com os artigos de luxo, quer o preço de importação suba ou desça, é totalmente irrelevante para os lucros, porque os lucros dependem inteiramente dos salários, e os salários dos custos dos bens de salário. Se o preço dos luxos sobe, isso realmente afeta apenas o consumo dos capitalistas, não a distribuição entre lucro e salários. Então, colocando o pensamento de Weber nessa estrutura clássica, acho que o que ela está dizendo é que há bens aos quais devemos prestar atenção especial. E isso me parece ser verdade, e não suficientemente apreciado.

Em seu livro sobre a China , Weber usa os exemplos históricos do que os governos chineses fizeram ao longo dos anos com os celeiros, usando-os como mecanismo para controlar a oferta e, portanto, o preço dos grãos. E, mais recentemente, fizeram o mesmo com a oferta de carne suína, obviamente um ingrediente importante no consumo da população chinesa. Quando houve a gripe suína, eles usaram essencialmente a oferta proveniente de fontes governamentais para amortecer o aumento de preços. Os EUA têm, por exemplo, um mecanismo semelhante em reservas estratégicas de petróleo. Repetindo: acho que Weber está certo no sentido de que existem certos bens – e como eu disse, você pode chamá-los de bens salariais – que são realmente importantes para a manutenção da vida normal de grande parte da população. Nós nos esquecemos disso.

Aliás, não se trata apenas de consumo: é preciso olhar para outros bens essenciais, para insumos cujos efeitos se espalham por toda a economia. Costumava ser aço, talvez hoje sejam microchips, que são realmente embutidos no preço de muitos produtos finais. Por exemplo, os preços dos carros usados ​​nos EUA subiram devido à falta de chips. A escassez de microchips levou a uma menor produção de carros novos, o que levou a um aumento no preço dos carros usados.

Então, é um argumento que os chips são muito importantes, de uma forma que, digamos, o perfume não é. Este é o meu entendimento dos pontos de Weber.

Pablo Pryluka

Você, juntamente com outros economistas que estudam as desigualdades globais de renda e riqueza, destacou a importância não apenas dos paraísos fiscais dos extremamente ricos, mas também de centros financeiros como Londres na lavagem de dinheiro. O Reino Unido passou recentemente a direcionar sanções muito especificamente a certos oligarcas russos com ativos no Reino Unido, como Abramovich. Primeiro, o que você acha dessas sanções direcionadas e, segundo, você acha que isso abre a possibilidade de que os governos comecem a desenvolver a vontade política para lidar com os problemas de contas offshore, paraísos fiscais, lavagem de dinheiro etc. de forma mais ampla?

Branko Milanović

Sobre os governos que abordam os problemas dos paraísos fiscais: sou totalmente a favor. Acho que a taxa mínima de imposto corporativo de 15% está correta e que a ação coordenada dos principais governos realmente poderia fazer uma enorme diferença na capacidade dos ricos de se esconderem de seus próprios países e da tributação em geral.

Mas estou um pouco ambivalente sobre o que aconteceu agora. Porque não estamos realmente mudando as regras do jogo. Estamos basicamente dando aos governos individuais o direito de confiscar bens por motivos inteiramente políticos. Mesmo as definições são muito obscuras. Quero dizer, quem é próximo de Putin? Quem não está perto dele? Como nós sabemos? Costumava haver o Almanach de Gotha detalhando a nobreza alemã, mas não temos isso para a elite russa hoje. Estamos em águas totalmente desconhecidas.

Esses governos, especialmente os britânicos, e as elites desses países, foram grandes beneficiários da transferência de riqueza, ou para ser franco, do roubo que aconteceu após a queda da União Soviética. As pessoas podem dizer que, se agora tirarmos esse dinheiro dos oligarcas, é bom para as desigualdades globais. Claro, aritmeticamente é: você teria menos bilionários. Mas a questão é: para quem vai esse dinheiro? Uma possibilidade, que acho razoável, seria usá-la para indenizar a Ucrânia.

Apreensões de bens politicamente motivadas abrem uma caixa de Pandora. Vamos supor que a China decida que a desigualdade de riqueza no Reino Unido é muito alta. Então, a China deve então confiscar os ativos dos oligarcas britânicos? Entendo que essas decisões são tomadas por razões políticas, mas não devemos tratá-las como se fossem baseadas em alguma preocupação com o bem comum e que de repente foram tomadas pelo desejo de reduzir a desigualdade de riqueza.

Se decisões semelhantes fossem tomadas de forma coordenada por vários governos, e com a participação da ONU ou de organizações internacionais, afetando bilionários de vários países, e com regras claras sobre o uso desses fundos, elas poderiam ser apoiadas. Mas o que vemos hoje é a tomada de decisões em tempo de guerra por governos individuais, o que pode ser bom para condições de guerra, mas não pode ser usado como um princípio geral e não deve ser camuflado como uma tentativa de exigir justiça. Não tem nada a ver com justiça ou igualdade. Então, eu sou mais ambivalente em relação a isso.

Colaboradores

Branko Milanovic é economista e professor visitante presidencial no Graduate Center, CUNY.

Pablo Pryluka é um candidato a PhD no departamento de história da Universidade de Princeton. Seus principais campos de interesse são história moderna latino-americana e global, com foco em história social e econômica.

Kate Reed é uma estudante de MPhil em história econômica e social na Universidade de Oxford, trabalhando em histórias sociais de trabalho e dívida no México e na América Central dos séculos XIX e XX.

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