19 de outubro de 2023

Hamas e Irã têm vitória tática ao encurralar países árabes na guerra

Conflito em Israel ressuscita a "rua árabe" e barra aproximação de moderados com Israel

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

"Rua árabe" é um termo pejorativo que sempre caiu como uma luva para a mídia e governos ocidentais definirem como uniforme sentimentos difusos de populações dos países do Oriente Médio e Norte da África, quando não em versões expandidas para todo o mundo muçulmano.

Desde a Primavera Árabe dos anos 2010, que misturou revoltas legítimas a outras orquestradas, até por sua conotação preconceituosa por sugerir algo como as turbas da Roma antiga, a definição caiu em desuso. Até agora.

Manifestantes pró-palestinos tentam atacar a Embaixada dos EUA em Beirute - Zohra Bensemra - 18.out.2023/Reuters

Os ataques terroristas do Hamas palestino foram gestados para criar uma reação enorme de Israel, o que invariavelmente causaria vítimas civis. Com isso, a tal "rua árabe" se inflamaria, impedindo governos mais moderados da região que se aproximaram de Tel Aviv de tomar uma posição que seja vista conto contrária aos palestinos.

A lógica do processo é inexorável, e constitui vitória tática no conflito até aqui para o Hamas e para seu fiador, o regime teocrático do Irã, que quer ver a Arábia Saudita, com quem retomou relações neste ano, longe do aperto de mãos com o Estado judeu. Não por acaso, a motivação vem sendo denunciada no discurso oficial de Israel sobre a crise, numa tentativa de angariar apoio.

Os críticos do governo de Israel sustentam, também com razão, que a situação chegou ao ponto de ruptura devido à fé de Binyamin Netanyahu numa solução exógena para a questão palestina. Grosso modo, ele faria paz com todos os árabes moderados, enfraquecendo o impopular governo da Cisjordânia ante a expansão de colônias judaicas e deixando o Hamas tocar sua vida no califado de Gaza.

A visão, apontam os críticos, ignorava as realidades de mais de 5,3 milhões de palestinos, 2,3 milhões deles nas condições desumanas de Gaza. Ao promover um ato de brutalidade inaudita no dia 7 de outubro, o Hamas jogou com a simpatia que a situação dos civis provoca no mundo árabe e passou a torcer por uma escalada regional.

É incerto que ela venha, apesar de toda fumaça que emana da fronteira entre Israel e o Líbano, onde age o aliado do Hamas Hizbullah, o principal preposto de Teerã no Oriente Médio, e do envolvimento direto dos EUA no papel de protetor militar de Israel.

Isso posto, por ora o conglomerado Hamas/Irã deu as cartas. O gatilho do ataque ao hospital de Gaza, que enfim fez eclodir a "rua árabe", é exemplar dessa dinâmica.

Independentemente de quem foi o responsável, a pressão política estourou no colo de Israel e dos EUA, que viu um atônito Joe Biden ser esnobado por um ditador (o egípcio Abdel Fattah al-Sisi), um monarca (Abdullah II, da Jordânia) e um espectro (o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas).

Como admitiram candidamente os jordanianos, que seriam os anfitriões do encontro, não havia mais nada a conversar, dado que nenhuma evidência apresentada por Israel de que não foi autor do ataque seria aceita na "rua".

O processo explicita a natureza frágil da organização política de uma região que viveu séculos sob domínio de potências conflitantes, de Roma ao acordo de Sykes-Picot, que em 1916 definiu fronteiras regionais dos espólios do Império Otomano a serem retalhados por britânicos e franceses após a Primeira Guerra Mundial (1914-18).

Longe de ser um modelo, a democracia israelense é de fato única na região, com a exceção da crescentemente autocrática Turquia —que, sem ser árabe, tem sua "rua" também. Já outros vizinhos são um misto de ditaduras seculares (Egito, Síria), monarquias absolutistas (os reinos do golfo Pérsico) e Estados mais ou menos falidos (Iraque, Líbano, Iêmen).

Os palestinos sempre estiveram no meio de interesses díspares. A OLP (Organização para a Libertação da Palestina), grupo dominado pela facção Fatah do líder Iasser Arafat (1929-2004), foi criada em 1964 como um instrumento da política pan-arabista do egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970).

O projeto deu errado após a derrota para Israel nas guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), que legaram a ocupação de Gaza, da Cisjordânia e das colinas sírias do Golã. A OLP passou ser combatida em locais como Egito e Jordânia, de onde milhares de palestinos foram expulsos no violento Setembro Negro de 1970-71.

A radicalização interna levou à imagem perenizada por Hollywood do terrorista árabe, cortesia de episódios como o massacre de atletas israelenses na Olimpíada de Munique (1972), perpetrada por uma facção saída da OLP, e diversas ações nos conturbados anos 1970.

O Irã entra no roteiro a partir da Revolução Islâmica de 1979, um ano após o Egito abrir o caminho da normalização com Israel com a paz de Camp David (EUA). Com as divisões entre os países árabes acerca de negociar com o Estado judeu, Teerã viu uma janela para expandir sua atuação regional.

O Hizbullah, por exemplo, surgiu em 1982, quando os israelenses invadiram o Líbano em guerra civil para caçar a OLP. Grupo xiita, divide identidade religiosa com o Irã, centro desse ramo minoritário do Islã no mundo. Mas logo os aiatolás chegaram à causa palestina, de resto população aderente ao majoritário sunismo, com as rixas internas acerca da relação com Israel.

O resto é história: o Hamas, bancado por Teerã, nunca aceitou a paz com Israel assinada pelo Fatah em 1993, de resto inconclusa. Em 2006, ganhou eleições parlamentares que foram glosadas e expulsou, "manu militari", os rivais de Gaza. Israel e Egito trataram de cercar o território em 2007.

A tática de Netanyahu se mostrou falha, e neste momento os governos árabes se veem obrigados, para não acirrar ânimos internos, a criticar Israel. O fazem com certa moderação, contudo, o que leva ao questionamento sobre se a vitória tática do terror pode se transmutar em trunfo estratégico. Como os EUA e outros aliados de Tel Aviv deixaram claro, muito disso passa pelos planos militares para Gaza.

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