O Livro negro do comunismo foi extremamente influente e vendeu milhões de cópias desde sua publicação em 1997. No entanto, algumas das dramáticas afirmações feitas por seu editor, Stéphane Courtois, foram refutadas até por seus próprios colaboradores quando o livro foi lançado.
Stefan Gužvica
![]() |
O historiador francês Stéphane Courtois no Sighet Memorial Museum em Sighetu Marmatiei, Romênia, em 14 de julho de 2013. (Daniel Mihailescu/AFP via Getty Images) |
Sempre que a história do comunismo no século XX é discutida, não demora muito para que, com absoluta certeza, uma figura específica seja citada. Escrevendo para o Wall Street Journal no centenário da Revolução de Outubro, David Satter afirmou a seus leitores que o comunismo foi “a maior catástrofe da história humana”, tendo sido responsável por cem milhões de mortes.
O político conservador britânico Daniel Hannan tinha uma mensagem semelhante enquanto se preparava para “o mais monstruoso dos centenários”. De acordo com Hannan, o comunismo foi muito pior do que a escravidão ou o nazismo: “O tráfico de escravos do Atlântico matou talvez 10 milhões de pessoas, os nazistas 17 milhões — mas os comunistas mataram 100 milhões”. A Victims of Communism Memorial Foundation, que administra um museu em Washington, expõe a seguinte mensagem em seu site: “O comunismo matou mais de 100 milhões: contamos suas histórias”.
Essas alegações, em última análise, repousam sobre uma coleção altamente influente de ensaios intitulada O Livro negro do comunismo, que foi reunida sob a direção do acadêmico francês Stéphane Courtois. Originalmente publicado em francês, o Livro negro foi traduzido para vários idiomas. No entanto, longe de representar o consenso estabelecido entre historiadores, as alegações que Courtois fez na introdução do livro não foram aceitas nem mesmo por todos os seus próprios colaboradores, alguns dos quais foram duramente críticos de seu editor após verem o produto final.
Apesar das críticas dirigidas ao Livro negro por muitos historiadores, a obra ainda é frequentemente apresentada como um relato definitivo da experiência do comunismo, e seus argumentos também influenciaram muitas pessoas indiretamente, mesmo que elas nunca tenham ouvido falar de Courtois ou de seu livro. Um olhar mais atento à maneira como o Livro negro foi produzido e às falhas que os acadêmicos identificaram em sua abordagem da história do século XX é muito necessário.
As Origens do Livro negro
Em meados da década de 1990, o editor francês Charles Ronsac começou a reunir ao seu redor um grupo de intelectuais politicamente engajados para seu novo projeto. Ronsac, que era politicamente ativo no movimento trotskista da década de 1930 sob o nome de Charles Rosen, era amigo próximo de Boris Souvarine, um fundador do Partido Comunista Francês (PCF) que foi expulso da organização por suas simpatias com a Oposição de Esquerda de Leon Trotsky.
As pessoas reunidas para este projeto também tinham experiência em várias correntes do movimento comunista. O futuro editor-chefe do livro, Courtois, tinha sido maoísta no final dos anos 1960, enquanto Jean-Louis Margolin tinha sido trotskista. Karel Bartošek era membro do Partido Comunista da Tchecoslováquia e um de seus jovens historiadores mais sérios, mas após a invasão soviética em 1968 ele foi preso, perseguido e eventualmente forçado a deixar o país.
Jean-Louis Panné pertenceu a vários movimentos sociais da Nova Esquerda na década de 1970 e lidou com o pensamento de Rosa Luxemburgo. Pierre Rigoulot, outro maoísta, visitou a China na época do governo de Mao Zedong como membro de uma delegação francesa e trabalhou com a revista Les Tempes modernes, que era dirigida por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Levando em conta tais biografias, a equipe poderia facilmente ter sido montada em outra época, para a filmagem de um filme da Nouvelle Vague francesa ou um documentário sobre maio de 1968 na França. No entanto, isso foi nos anos 90, não nos 60, e todos os envolvidos já eram ex-comunistas. Alguns ainda se consideravam de esquerda, enquanto outros não.
Em todo caso, a ideia de Ronsac era escrever um “livro negro do comunismo”, um compêndio massivo de crimes e mortes cometidos em nome do comunismo e sob regimes autointitulados comunistas no século XX. A escolha do título não foi acidental: ele se referia conscientemente ao o Livro negro dos Judeus Soviéticos, dos escritores soviéticos Ilya Ehrenburg e Vasily Grossman no final da Segunda Guerra Mundial para documentar o Holocausto.
Guerreiros frios
Para entender o contexto da criação do Livro negro do comunismo, devemos levar em conta outro denominador comum de seus autores. Além do fato de que a maioria eram ex-comunistas, eles também eram, majoritariamente, colaboradores do Instituto de História Social (Institut d’histoire sociale) sediado em Paris.
O fundador desse instituto, em 1935, foi Souvarine, e ele serviu como um arquivo de Trotsky e do movimento trotskista. Em 1940, após a ocupação da França, os nazistas destruíram o arquivo, e Souvarine foi preso. Após a guerra, Souvarine abandonou suas visões comunistas heterodoxas e se tornou um anticomunista ativo.
O novo posicionamento político deu nova vida ao seu instituto. Em 1954, o renovado Instituto de História Social e Sovietologia foi criado com apoio financeiro de Georges Albertini, um ex-socialista que se tornou colaborador nazista e antissemita durante a Segunda Guerra Mundial e recrutou voluntários franceses para lutar contra a URSS na frente oriental.
Desde o início, o instituto se tornou um posto avançado de propaganda da Guerra Fria, parte da guerra cultural entre os dois blocos. Ainda sob a liderança de Souvarine, ele forjou ligações com a organização neofascista Occident e o sindicato anticomunista financiado pela CIA Force Ouvrière, e se tornou um local de emprego para ex-ativistas de extrema direita.
Depois que Souvarine se aposentou em 1976, o instituto foi assumido por figuras anteriormente associadas ao grupo neofascista Ordre Nouveau. Durante a década de 1980, depois que o instituto caiu em dificuldades financeiras, ele foi resgatado por Jacques Chirac, então prefeito de Paris, já que as autoridades locais na França são geralmente responsáveis pela manutenção financeira dos institutos de pesquisa. A partir de 1984, o instituto foi auxiliado pelo recém-fundado National Endowment for Democracy, uma organização sem fins lucrativos encarregada de promover os interesses da política externa dos EUA.
A maioria dos futuros colaboradores do Livro negro do comunismo foi formada intelectualmente neste meio. O pesquisador Roger FS Kaplan afirmou explicitamente o envolvimento do instituto na criação do livro. Pierre Rigoulet era um associado do instituto e editor de seu periódico Les Cahiers d’histoire sociale. Jean-Louis Panné trabalhou como seu bibliotecário e assistente pessoal do aposentado Souvarine de 1979 a 1984.
O iniciador de todo o projeto, Ronsac, nunca foi formalmente ligado ao instituto, mas ele conhecia seus colaboradores através de Souvarine. Portanto, ele os conectou com Courtois, cujos livros havia publicado anteriormente. Courtois incluiu, com ele no projeto, a equipe editorial de seu periódico científico Communisme, que contava com Nicolas Werth, Sylvain Boulouque e Bartošek.
Equivalência moral
Este ambicioso livro de 850 páginas estava programado ser publicado em 7 de novembro de 1997, o octogésimo aniversário da Revolução de Outubro. O prefácio seria escrito por François Furet, outro famoso ex-comunista, conhecido por suas críticas à política revolucionária em seus livros sobre a Revolução Francesa. No entanto, Furet morreu repentinamente em 12 de julho e não conseguiu concluir o manuscrito do texto introdutório.
Courtois, como editor, pediu à editora que adiasse a publicação por seis meses para que ele pudesse encontrar um novo autor. A editora recusou, então Courtois teve que escrever a introdução ele mesmo. Sua hipótese central era simples: o comunismo foi responsável pelas mortes de cem milhões de pessoas no século XX, era eticamente equivalente ao nazismo e tinha sido a ideologia “mais mortal” da história humana.
Alguns dos coautores do livro ficaram enfurecidos com o prefácio que Courtois compôs. Werth, que escreveu independentemente quase um terço do livro, e Margolin, autor de mais de 160 páginas sobre o comunismo no Leste Asiático, tentaram se retratar completamente de suas contribuições. Eles desistiram apenas porque seus advogados disseram que era impossível. No entanto, eles imediatamente se distanciaram publicamente tanto de Courtois quanto do livro.
Primeiro, eles acusaram o editor de estar obcecado em chegar a um número redondo de cem milhões de mortos que era factualmente incorreto. Apontaram que Courtois inventou arbitrariamente os números de vinte milhões de mortos na URSS e um milhão de mortos no Vietnã por conta própria, que nenhum deles havia citado em seus próprios capítulos do livro. Werth foi categórico em sua condenação da tentativa de seu editor de igualar comunismo e nazismo: “Não existiam campos de extermínio na União Soviética”.
Bartošek logo se manifestou, e também se distanciou das conclusões de Courtois. Tanto Bartošek quanto Werth renunciaram ao corpo editorial do Communisme. Assim, três dos quatro principais autores do Livro negro do comunismo, que juntos escreveram mais da metade do livro, se distanciaram publicamente da versão final antes mesmo dela sair.
Uma acusação falha
Depois que o livro foi publicado, as críticas apenas se intensificaram e se multiplicaram. Elas variaram de objeções metodológicas ao apontamento de erros ridículos e amadores. Pascal Fontaine, autor da seção sobre “totalitarismo” em Cuba, insinuou que Che Guevara era cubano, quando na verdade ele era argentino. Werth, embora criticasse Courtois e sua equiparação entre comunismo e nazismo, ainda assim justificou o comportamento dos russos que colaboraram com os nazistas alegando que eles o fizeram em prol da “libertação do bolchevismo”.
Como o historiador Ronald Aronson apontou, mesmo que Margolin não tenha citado o número de um milhão de vítimas do comunismo vietnamita inventado por Courtois na introdução, em nenhum momento de seu capítulo sobre o comunismo na Ásia ele mencionou que a intervenção dos EUA no Vietnã custou, de acordo com algumas estimativas, até três milhões de vidas. Ronald G. Suny enfatizou ainda que numerar as vítimas do nazismo em vinte e cinco milhões, como Courtois havia feito, acaba absolvendo indiretamente Hitler e o nazismo da responsabilidade pela Segunda Guerra Mundial, que por si só ceifou entre quarenta e sessenta milhões de vidas.
O historiador J. Arch Getty, um dos maiores pesquisadores dos expurgos de Joseph Stalin, insistiu que as mortes por fome não poderiam ser contadas como “crimes do comunismo” da mesma forma que as execuções em massa, como Courtois tentou fazer:
O político conservador britânico Daniel Hannan tinha uma mensagem semelhante enquanto se preparava para “o mais monstruoso dos centenários”. De acordo com Hannan, o comunismo foi muito pior do que a escravidão ou o nazismo: “O tráfico de escravos do Atlântico matou talvez 10 milhões de pessoas, os nazistas 17 milhões — mas os comunistas mataram 100 milhões”. A Victims of Communism Memorial Foundation, que administra um museu em Washington, expõe a seguinte mensagem em seu site: “O comunismo matou mais de 100 milhões: contamos suas histórias”.
Essas alegações, em última análise, repousam sobre uma coleção altamente influente de ensaios intitulada O Livro negro do comunismo, que foi reunida sob a direção do acadêmico francês Stéphane Courtois. Originalmente publicado em francês, o Livro negro foi traduzido para vários idiomas. No entanto, longe de representar o consenso estabelecido entre historiadores, as alegações que Courtois fez na introdução do livro não foram aceitas nem mesmo por todos os seus próprios colaboradores, alguns dos quais foram duramente críticos de seu editor após verem o produto final.
Apesar das críticas dirigidas ao Livro negro por muitos historiadores, a obra ainda é frequentemente apresentada como um relato definitivo da experiência do comunismo, e seus argumentos também influenciaram muitas pessoas indiretamente, mesmo que elas nunca tenham ouvido falar de Courtois ou de seu livro. Um olhar mais atento à maneira como o Livro negro foi produzido e às falhas que os acadêmicos identificaram em sua abordagem da história do século XX é muito necessário.
As Origens do Livro negro
Em meados da década de 1990, o editor francês Charles Ronsac começou a reunir ao seu redor um grupo de intelectuais politicamente engajados para seu novo projeto. Ronsac, que era politicamente ativo no movimento trotskista da década de 1930 sob o nome de Charles Rosen, era amigo próximo de Boris Souvarine, um fundador do Partido Comunista Francês (PCF) que foi expulso da organização por suas simpatias com a Oposição de Esquerda de Leon Trotsky.
As pessoas reunidas para este projeto também tinham experiência em várias correntes do movimento comunista. O futuro editor-chefe do livro, Courtois, tinha sido maoísta no final dos anos 1960, enquanto Jean-Louis Margolin tinha sido trotskista. Karel Bartošek era membro do Partido Comunista da Tchecoslováquia e um de seus jovens historiadores mais sérios, mas após a invasão soviética em 1968 ele foi preso, perseguido e eventualmente forçado a deixar o país.
Jean-Louis Panné pertenceu a vários movimentos sociais da Nova Esquerda na década de 1970 e lidou com o pensamento de Rosa Luxemburgo. Pierre Rigoulot, outro maoísta, visitou a China na época do governo de Mao Zedong como membro de uma delegação francesa e trabalhou com a revista Les Tempes modernes, que era dirigida por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Levando em conta tais biografias, a equipe poderia facilmente ter sido montada em outra época, para a filmagem de um filme da Nouvelle Vague francesa ou um documentário sobre maio de 1968 na França. No entanto, isso foi nos anos 90, não nos 60, e todos os envolvidos já eram ex-comunistas. Alguns ainda se consideravam de esquerda, enquanto outros não.
Em todo caso, a ideia de Ronsac era escrever um “livro negro do comunismo”, um compêndio massivo de crimes e mortes cometidos em nome do comunismo e sob regimes autointitulados comunistas no século XX. A escolha do título não foi acidental: ele se referia conscientemente ao o Livro negro dos Judeus Soviéticos, dos escritores soviéticos Ilya Ehrenburg e Vasily Grossman no final da Segunda Guerra Mundial para documentar o Holocausto.
Guerreiros frios
Para entender o contexto da criação do Livro negro do comunismo, devemos levar em conta outro denominador comum de seus autores. Além do fato de que a maioria eram ex-comunistas, eles também eram, majoritariamente, colaboradores do Instituto de História Social (Institut d’histoire sociale) sediado em Paris.
O fundador desse instituto, em 1935, foi Souvarine, e ele serviu como um arquivo de Trotsky e do movimento trotskista. Em 1940, após a ocupação da França, os nazistas destruíram o arquivo, e Souvarine foi preso. Após a guerra, Souvarine abandonou suas visões comunistas heterodoxas e se tornou um anticomunista ativo.
O novo posicionamento político deu nova vida ao seu instituto. Em 1954, o renovado Instituto de História Social e Sovietologia foi criado com apoio financeiro de Georges Albertini, um ex-socialista que se tornou colaborador nazista e antissemita durante a Segunda Guerra Mundial e recrutou voluntários franceses para lutar contra a URSS na frente oriental.
Desde o início, o instituto se tornou um posto avançado de propaganda da Guerra Fria, parte da guerra cultural entre os dois blocos. Ainda sob a liderança de Souvarine, ele forjou ligações com a organização neofascista Occident e o sindicato anticomunista financiado pela CIA Force Ouvrière, e se tornou um local de emprego para ex-ativistas de extrema direita.
Depois que Souvarine se aposentou em 1976, o instituto foi assumido por figuras anteriormente associadas ao grupo neofascista Ordre Nouveau. Durante a década de 1980, depois que o instituto caiu em dificuldades financeiras, ele foi resgatado por Jacques Chirac, então prefeito de Paris, já que as autoridades locais na França são geralmente responsáveis pela manutenção financeira dos institutos de pesquisa. A partir de 1984, o instituto foi auxiliado pelo recém-fundado National Endowment for Democracy, uma organização sem fins lucrativos encarregada de promover os interesses da política externa dos EUA.
A maioria dos futuros colaboradores do Livro negro do comunismo foi formada intelectualmente neste meio. O pesquisador Roger FS Kaplan afirmou explicitamente o envolvimento do instituto na criação do livro. Pierre Rigoulet era um associado do instituto e editor de seu periódico Les Cahiers d’histoire sociale. Jean-Louis Panné trabalhou como seu bibliotecário e assistente pessoal do aposentado Souvarine de 1979 a 1984.
O iniciador de todo o projeto, Ronsac, nunca foi formalmente ligado ao instituto, mas ele conhecia seus colaboradores através de Souvarine. Portanto, ele os conectou com Courtois, cujos livros havia publicado anteriormente. Courtois incluiu, com ele no projeto, a equipe editorial de seu periódico científico Communisme, que contava com Nicolas Werth, Sylvain Boulouque e Bartošek.
Equivalência moral
Este ambicioso livro de 850 páginas estava programado ser publicado em 7 de novembro de 1997, o octogésimo aniversário da Revolução de Outubro. O prefácio seria escrito por François Furet, outro famoso ex-comunista, conhecido por suas críticas à política revolucionária em seus livros sobre a Revolução Francesa. No entanto, Furet morreu repentinamente em 12 de julho e não conseguiu concluir o manuscrito do texto introdutório.
Courtois, como editor, pediu à editora que adiasse a publicação por seis meses para que ele pudesse encontrar um novo autor. A editora recusou, então Courtois teve que escrever a introdução ele mesmo. Sua hipótese central era simples: o comunismo foi responsável pelas mortes de cem milhões de pessoas no século XX, era eticamente equivalente ao nazismo e tinha sido a ideologia “mais mortal” da história humana.
Alguns dos coautores do livro ficaram enfurecidos com o prefácio que Courtois compôs. Werth, que escreveu independentemente quase um terço do livro, e Margolin, autor de mais de 160 páginas sobre o comunismo no Leste Asiático, tentaram se retratar completamente de suas contribuições. Eles desistiram apenas porque seus advogados disseram que era impossível. No entanto, eles imediatamente se distanciaram publicamente tanto de Courtois quanto do livro.
Primeiro, eles acusaram o editor de estar obcecado em chegar a um número redondo de cem milhões de mortos que era factualmente incorreto. Apontaram que Courtois inventou arbitrariamente os números de vinte milhões de mortos na URSS e um milhão de mortos no Vietnã por conta própria, que nenhum deles havia citado em seus próprios capítulos do livro. Werth foi categórico em sua condenação da tentativa de seu editor de igualar comunismo e nazismo: “Não existiam campos de extermínio na União Soviética”.
Bartošek logo se manifestou, e também se distanciou das conclusões de Courtois. Tanto Bartošek quanto Werth renunciaram ao corpo editorial do Communisme. Assim, três dos quatro principais autores do Livro negro do comunismo, que juntos escreveram mais da metade do livro, se distanciaram publicamente da versão final antes mesmo dela sair.
Uma acusação falha
Depois que o livro foi publicado, as críticas apenas se intensificaram e se multiplicaram. Elas variaram de objeções metodológicas ao apontamento de erros ridículos e amadores. Pascal Fontaine, autor da seção sobre “totalitarismo” em Cuba, insinuou que Che Guevara era cubano, quando na verdade ele era argentino. Werth, embora criticasse Courtois e sua equiparação entre comunismo e nazismo, ainda assim justificou o comportamento dos russos que colaboraram com os nazistas alegando que eles o fizeram em prol da “libertação do bolchevismo”.
Como o historiador Ronald Aronson apontou, mesmo que Margolin não tenha citado o número de um milhão de vítimas do comunismo vietnamita inventado por Courtois na introdução, em nenhum momento de seu capítulo sobre o comunismo na Ásia ele mencionou que a intervenção dos EUA no Vietnã custou, de acordo com algumas estimativas, até três milhões de vidas. Ronald G. Suny enfatizou ainda que numerar as vítimas do nazismo em vinte e cinco milhões, como Courtois havia feito, acaba absolvendo indiretamente Hitler e o nazismo da responsabilidade pela Segunda Guerra Mundial, que por si só ceifou entre quarenta e sessenta milhões de vidas.
O historiador J. Arch Getty, um dos maiores pesquisadores dos expurgos de Joseph Stalin, insistiu que as mortes por fome não poderiam ser contadas como “crimes do comunismo” da mesma forma que as execuções em massa, como Courtois tentou fazer:
O peso esmagador da opinião entre os acadêmicos que trabalham nos novos arquivos (incluindo o coeditor de Courtois, Werth) é que a terrível fome da década de 1930 foi o resultado da incompetência e da rigidez stalinistas, e não de algum plano genocida. As mortes por fome causadas pela estupidez e incompetência do regime (tais mortes respondem por mais da metade dos 100 milhões de Courtois) devem ser equiparadas à execução deliberada de judeus nas câmaras de gás?
A aritmética de Courtois é muito simples. Um grande número de fatalidades atribuídas aqui a regimes comunistas se enquadram em uma espécie de categoria abrangente chamada “mortes em excesso”: mortes prematuras, acima da taxa de mortalidade esperada da população, que resultaram direta ou indiretamente da política governamental. Aqueles executados, exilados na Sibéria ou forçados a trabalhar nos Gulags, onde a nutrição e as condições de vida eram precárias, poderiam se enquadrar nessa categoria. Mas muitos outros também poderiam, e “mortes em excesso” não são o mesmo que mortes intencionais.
Um grupo de historiadores liderado por Claude Pennetier e Serge Wolikow criticou o fato de o livro simplificar um fenômeno complexo com muitas manifestações diferentes, deixando a impressão de que não havia diferença entre, digamos, o governo de János Kádár na Hungria e o de Pol Pot no Camboja, muito menos entre regimes comunistas muito mais próximos, mas ainda muito diferentes, como os da Iugoslávia e da Romênia.
Como Adam Shatz observou, apesar de todo o seu fervor moral, o Livro negro estava perfeitamente disposto a negar ou minimizar crimes se fossem cometidos em nome do anticomunismo:
O tratamento do livro sobre o comunismo na América Latina é tão unilateral que poderia muito bem ser retirado de um relatório do Departamento de Estado dos EUA. Recebemos a contagem total de vítimas de guerra na Nicarágua sandinista, mas não somos informados de que a maioria dessas mortes foi causada pelos contras financiados pelos EUA, aqui chamados de “resistência antisandinista”.
Um exercício político
Apesar de ter sido completamente desacreditado pelos acadêmicos — um ato do qual até mesmo alguns dos autores do livro participaram — O Livro negro do comunismo vendeu milhões de cópias e foi traduzido para, pelo menos, trinta idiomas. Em contraste, uma resposta polêmica intitulada Le siècle des communismes (O Século dos Comunismos), publicada em 2000, ainda não foi traduzida para o inglês, muito menos para outros idiomas. Isso apesar do fato de o livro listar entre seus colaboradores acadêmicos renomados como Michael Löwy, Lewis Siegelbaum e Brigitte Studer.
No contexto francês, a publicação do Livro negro foi, acima de tudo, um ataque ao PCF e seu legado. No outono de 1997, assim que o Livro negro era publicado, os comunistas franceses formaram um governo de coalizão com o Partido Socialista e os Verdes que tinha o líder socialista Lionel Jospin como primeiro-ministro. Uma semana após a publicação do livro, figuras da oposição parlamentar de direita o citaram enquanto atacavam os socialistas, perguntando como o partido de Jospin poderia se aliar a pessoas que defendiam “regimes assassinos”. O primeiro-ministro deu a seguinte resposta:
Embora não tenha se distanciado cedo o suficiente do stalinismo, o Partido Comunista aprendeu as lições da história, está representado no meu governo, e tenho orgulho disso. O Partido Comunista Francês fez parte da ala esquerda na Frente Popular, na Resistência, no Governo tripartite formado em 1945 e nunca tentou restringir a liberdade.
Tais argumentos foram considerados irrelevantes pelos críticos de Jospin, para quem o comunismo havia sido rotulado como uma ideologia criminosa por “especialistas” que haviam dado integridade científica ao seu ponto de vista.
Essa abordagem provou ser extremamente útil para as classes dominantes ao redor do mundo, que frequentemente ofereciam apoio financeiro e de mídia para promover o Livro negro do comunismo. As traduções alemã e estoniana, por exemplo, incluíam prefácios de Joachim Gauck e Lennart Meri, os presidentes da Alemanha e da Estônia na época. Na Rússia, após o surgimento da edição oficial com um prefácio do associado próximo de Mikhail Gorbachev, Aleksandr Yakovlev, também houve uma edição especial disponibilizada, em uma tiragem de cem mil cópias, pela União das Forças de Direita de Boris Nemtsov, Anatoly Chubais e Yegor Gaidar.
O livro foi distribuído gratuitamente em escolas e nas ruas. A União das Forças de Direita era essencialmente um partido político de milionários, dirigido pelos arquitetos do programa de privatização na Rússia sob Boris Yeltsin. De acordo com dados do Instituto Nacional de Saúde dos EUA, a “terapia de choque” de livre mercado ceifou entre dois milhões e meio e três milhões de vidas nos anos 90, mostrando que a privatização pode ser tão mortal quanto a coletivização da agricultura. O livro posteriormente ganhou força na Ucrânia, onde forneceu apoio ideológico para o processo de “descomunização”, do qual o próprio Courtois participou.
Seria injusto, no entanto, atribuir o sucesso do livro somente a uma campanha de propaganda concentrada por Estados e organizações políticas de direita. O Livro negro do comunismo forneceu um número fácil de lembrar (cem milhões), uma equação superficial (Nazismo = Comunismo) e uma aparência de rigor acadêmico e objetividade que era ideal para tudo, desde discussões de bar a ataques políticos em parlamentos.Repetir alguns postulados bombásticos básicos, sem entrar em detalhes do livro ou sua validade científica, é o suficiente para passar como um argumento. Embora em círculos acadêmicos você raramente encontre o Livro negro citado nas notas de rodapé, seu espectro tem assombrado políticos identificados com a esquerda pelos últimos vinte e cinco anos. Aí está a natureza da vitória do livro e a explicação para a sua popularidade duradoura.
Colaborador
Stefan Gužvica é professor assistente no Departamento de História da Escola Superior de Economia, São Petersburgo. Sua pesquisa histórica está disponível em www.stefanguzvica.su.
Nenhum comentário:
Postar um comentário