31 de maio de 2017

Rancière, democracias em marcha

Esperar a Grande Noite? Ou reorganizar aqui e agora outros mundos comuns e tornar visível as habilidades e a inteligência daqueles que o habitam? Isto pode ser, de acordo com o filósofo francês, o sentido inovador da emancipação. 

Robert Maggiori



Tradução / Henri Bergson não estava errado em dizer que todo grande filósofo não quis no fundo enunciar senão uma só coisa e que empregou toda sua vida para o fazer. Para os pensadores clássicos, nós chegamos a extrair essa ideia central, prenhe de inúmeras outras, que durante séculos fecundaram o pensamento. É mais arriscado praticar o mesmo exercício com os filósofos contemporâneos cujas obras estão em progresso e suscetíveis ainda de criar o novo. Se tratando de Jacques Rancière, não é no entanto insensato afirmar que essa “coisa” se trata da maneira pela qual ele pensou as relações entre estética e política, e ao sentido inovador que ele deu à “velha” ideia da emancipação.

Jacques Rancière publica, sob a forma de uma conversação (por escrito) com Eric Hazan, uma curta obra, En quel temps vivons-nous? (Em que tempo nós vivemos?), que, se inscrevendo inteiramente no quadro geral de seu pensamento, se revela ligada diretamente com, justamente, as questões de nosso tempo, aquelas que a atualidade política obriga a colocar, e que foram colocadas no curso da recente campanha para eleição presidencial (no momento em que a obra foi impressa, a vitória de Marine Le Pen não estava excluída): qual definição nós podemos dar ainda do “povo”? E sobre o sistema de “representação”? O que “representa” um eleito, quando ele não saiu do território, de uma história política enraizada na realidade local, mas escolhido entre as “pessoas” (da sociedade civil) para “se juntar” a um conjunto composto que se constitui durante o caminho (“em marcha”), ou “eleito” via uma plataforma informática e “formado” durante rápidos estágios de administração e comunicação?

Insurreição e revolução

Jacques Rancière é um dos filósofos franceses mais influentes de hoje, que nós poderíamos inscrever, a despeito de abissais diferenças, na mesma constelação que Alain Badiou, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau (a referência teórica do Podemos), Chantal Mouffe, Toni Negri ou Michael Hardt -, mas que está na verdade a frente de uma obra (uma quarentena de obras) dificilmente classificáveis, que suscitaram um número considerável de estudos críticos e comentários.

Nascido em 1940 na Argélia, professor emérito da universidade Paris – VIII, e professor de filosofia na European Graduate School de Saas-Fee (Suíça), Rancière fez seus estudos na Ecole Normale Supérieure, então governada ideologicamente por Louis Althusser. Com Althusser, Etienne Balibar, Roger Stablet e Pierre Macherey, ele participou da redação de Lire le Capital (1965) [Ler o Capital], mas a onda profunda de Maio de 68 o conduziu a posições distantes daquelas do gigante da rua Ulm, cujas próprias bases ele crítica – um marxismo erigido em ciência – em La Leçon d’Althusser, publicado em 1974, ano em que ele funda a revista Révoltes Logiques [Revoltas Lógicas]. Contra o “teoricismo” ambiente, Rancière considera que os trabalhadores são perfeitamente capazes de compreender sua própria opressão e de se emancipar eles mesmos sem a necessidade de uma elite intelectual que os guiem. É para demonstrar isso, e fundamentar o postulado de uma igualdade das inteligências, que ele empreende uma série de estudos sobre a emancipação dos trabalhadores no século XIX, de onde nasceram La Parole Ouvrière (com Arlette Farge, 1975) [A palavra trabalhadora], La Nuit des Prolétaires (1981) [A noite dos proletários], Le Philosophe et ses Pauvres (1983) [O filósofo e seus Pobres], Louis-Gabriel Gauny – Le philosophe plébéien (1985) [Louis-Gabriel Gauny – O filósofo plebeu], ou Le Maître Ignorant (1987) [O Mestre Ignorante]. Se interessando também pelo cinema, ele não cessará de se interrogar sobre as noções de povo, de insurreição, de revolução, de democracia, como também sobre as regras “que permitem a um sistema representativo se declarar democrático”. Em La Haine de la Démocratie (2005) [O ódio a democracia], ele havia sublinhado a oposição entre “a lógica democrática e a lógica representativa” e lembrado “um certo número de princípios” suscetíveis de injetar “mais democracia nas instituições”, por exemplo “o sorteio, os mandatos curtos, não cumulativos e não renováveis.”

E a este problema que ele retorna em En quel temps vivons-nous? [Em qual tempo nós vivemos?], onde ele avança que “a decomposição do sistema representativo” é na verdade “uma velha lua”, que “sustenta desde os anos 1880 as esperanças e as ilusões de uma esquerda “radical” sempre pronta para ver nas fracas taxas de participação a tal ou qual eleição parcial a prova de um desinvestimento massivo do sistema eleitoral.”Ter a representação por agonizante, é na realidade estimar que seu princípio é mesmo a democracia. Ora, precisa o filósofo, “a democracia não é a escolha dos representantes, ele é o poder daqueles que não são qualificados para exercer o poder.”A “doxa dominante” vê a representação como “movimento que parte debaixo”, na qual “o povo está como um corpo coletivo que escolhe para si os representantes”. Mas não é assim que funciona, segundo Rancière. “Um povo político, não é um dado preexistente, é um resultado. Não é povo que se representa mas a representação que produz um certo povo.”

Manifestação de Igualdade

No espírito da daqueles que inventaram o sistema representativo, existia a ideia, implícita, de que uma parte da sociedade é “naturalmente apta, pela sua posição, para representar os interesses gerais da sociedade.” Isso criou não somente a “ilusão democrática”, pela qual “as pessoas se submetem a um poder do qual elas imaginam serem a fonte”, mas faz com que a representação produza uma profissão exercida por uma classe de políticos que, “pelo essencial, se auto-reproduz e faz validar essa auto-reprodução pela forma específica de povo que ela produz, a saber, o corpo eleitoral.”Mas como desindexar o princípio democrático do princípio da representação? Ora, concebendo de outra forma a democracia: não como forma de governo mas como manifestação, imprevisível e conflitiva, da igualdade, da ação igualitária que quebra, mesmo que por um momento, o trabalho de governo (isso que Rancière chama de polícia, em oposição à política) ou a organização hierárquica, inegualitária, das posições, dos lugares, da divisão social e das funções, abrindo outros campos de possibilidades e de oportunidades de vida em comum. As oligarquias governamentais, as castas dos profissionais do poder e a “lógica hierárquica de reprodução dos representantes legítimos” não se impõe e não perduram de fato senão em razão da ausência, independentemente do sistema representativo, de “poderes democráticos autônomos e poderosos que construíssem um outro povo, um povo igualitário em movimento.” Tal é a tarefa que se impõe aos “tempos em que nós vivemos”: “construir outras formas de vida”, “outros olhares sobre os problemas que nos propõe a ordem dominante.” Tal é a tarefa estética da política.

Estética da política

Os terrenos onde a política e a estética se sobrepõem já foram cultivados, notadamente por Adorno ou Benjamin. Mas Rancière não situa as relações entre a arte e a política nem na estetização da política, ou sua transformação em espetáculo da gestão e da “comunicação” dos poderes, nem na politização da arte, mas naquilo que esses dois domínios “compartilham”, a saber, o status da visibilidade. Se a estética e a política necessariamente se abraçam, é que o mesmo “gesto” as definem, que é aquele de organizar o espaço da percepção de tal maneira que aquilo não era visível de repente o se torna. Nós concebemos para a obra de arte que, se ela é “grande”, inventa linguagens (musicais, pictóricas, literárias. ….) para as quais ainda não há dicionário, e “mostram” que existe ali alguma coisa que era ainda despercebida ou inédita. Mas isso serve também para a política, que compartilha o espaço coletivo, reorganiza o tempo da ação, cria outros mundos comuns e tornam “visíveis” as capacidades dos sujeitos que os habitam.

Os exemplos são numerosos. O movimento protestante de 2013 no Park Gezi de Istambul, as “primaveras arábes”, Ocuppy Wall Street, os Indignados de la Puerta del Sol em Madrid, os ajuntamentos na praça Syntagma em Atenas, Nuit Debout, etc., todos eles, a despeito daquilo que lhes distinguem do ponto de vista cultural, ideológico e histórico, revelam outras maneiras de estar em conjunto, de agir, de sentir, de compreender , de pensar a hierarquia e a representação, e mostrar como uma comunidade se torna política tomando posse de “um espaço e de um tempo próprios”,criando um “outro mundo em comum”. “Na arte como na política, escreve Rancière, o comum se dá hoje como qualquer coisa a ser construída com materiais e formas heterogêneas e não com a afirmação de recursos próprios em unidades constituídas, quer se trate de classes sociais, de organizações especializadas ou de artes definidas.”

Ganhos de Justiça e Liberdade

Certamente, à lógica “movimentista”, falta uma “força unitária”. As lutas nascidas de circunstâncias específicas – “uma forma de dominação, um tipo de injustiça” – e conduzidas para defender “os direitos dos pobres que eles querem caçar em suas terras ou dos camponeses que eles querem expulsar de suas terras”, se opor a um “projeto que ameaça o equilíbrio ecológico”, acolher “aqueles que tiveram de fugir de seu país”, oferecer os “meios de expressão aquele que não os tem”, permitem “a tal ou qual categoria de ser humano inferiorizado por essa ou aquela razão – de sexo, de origem, de capacidade física, etc. – impor uma regra de igualdade”, e se efetuam fora da “ideia de fusão orientada por uma visão de história e do futuro”. Elas não visam nenhuma “Grande Noite”, mas são como as manhãs do mundo, pois elas permitem a cada vez desenvolver as “formas de secessão relativamente aos modos de percepção, de pensamento, de vida e de comunidade propostas pela lógicas inegualitárias”. Nós certamente pensamos diferente, antigamente, a “revolução”. Mas o tempo em que nós vivemos – onde o capitalismo, “mais que um poder”, se tornou “um mundo” – não exclui em nada os ganhos de justiça e liberdade se, seguindo Jacques Rancière, nós concebemos a emancipação como “a invenção aqui e agora de formas do comum” e como “maneira de viver no mundo do inimigo na posição ambígua daquele ou daquela que combate a ordem dominante mas que também é capaz de nele construir lugares à parte onde ele escapa da sua lei.”

28 de maio de 2017

Brasil não soube assimilar entrada do povo na vida política, diz historiador

Historiador argumenta que, a partir de 1930, a vulnerabilidade de presidentes eleitos tornou-se o feijão com arroz da política nacional. A instabilidade decorre da incapacidade dos governantes de lidar com a ascensão do povo como ator relevante e portador de demandas novas num país marcado pela desigualdade.

José Murilo de Carvalho

Folha de S.Paulo

Manifestante observa protesto em frente ao Congresso na última quarta-feira (24). (Wallace Martins/Futura Press/Folhapress)

Mirar o passado para entender o presente é complicado, pois a história não se repete nem como tragédia, nem como farsa; assemelha-se mais ao rio de Heráclito, em que não se pode entrar duas vezes. No entanto, há sem dúvida continuidades que justificam o exercício.

A crise atual, em sua dimensão política, foi deslanchada pela substituição do chefe de Estado sem a intervenção de eleições. Não que se trate de novidade entre nós. Desde 1930, por dentro da Constituição ou à revelia dela, tem sido frequente esse tipo de substituição.

Antes, houve a estabilidade imperial e a da Primeira República. Uma foi garantida pelo sistema monárquico-constitucional do Segundo Reinado (1840-1889), em que o chefe de Estado não era eleito; a outra, de 1889 a 1930, pelo arranjo oligárquico montado a partir de Campos Sales (1898-1902).

Uma simples estatística demonstra a mudança havida depois de 1930, ano a partir do qual a vulnerabilidade da Presidência em eleições diretas virou o feijão com arroz de nossa política.

Nesse período de 87 anos, somente cinco presidentes eleitos pelo voto popular, excluídos os vices, completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Juscelino Kubitschek (1956-1961), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014).

Quatro não completaram: Getúlio Vargas (1951-1954), Jânio Quadros (1961), Fernando Collor (1990-1992) e Dilma Rousseff (2015-2016).

Além disso, sete não foram eleitos pelo voto direto: Getúlio Vargas (1930-1945), Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979), João Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990).

Estabelecido o fato, o passo seguinte é buscar alguma explicação para ele. Um modo de fazê-lo é procurar o surgimento de outro fenômeno político da época.

O novo


O que mais chama a atenção, embutido na própria Revolução de 1930, é a entrada do povo na vida política, deixando de ser o bestializado de Aristides Lobo (em 1889, a respeito da Proclamação da República, o jornalista escreveu: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava").

A Primeira República não tinha povo. Nela, apenas 5% da população votava; a participação popular se dava à margem do sistema representativo, em revoltas urbanas, como a da Vacina, messiânicas, como as de Canudos e do Contestado, ou greves operárias nas grandes cidades.

Após 1930, sob inspiração do cenário internacional, surgiram a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Revoltas pipocaram pelo país, muitas delas chefiadas por oficiais militares de segundo escalão ou mesmo sargentos, como as de 1935 e 1938. Ao final da década, os trabalhadores, na defensiva até então, passaram a ser interpelados pelo governo e se transformaram em ator político intrassistêmico.

Com a democratização de 1945, a inclusão do povo passou a ser feita também por via eleitoral e se deu a passos largos. Se em 1930 votavam 5% da população (menos de 2 milhões de pessoas), em 1945 já foram 13% (6 milhões de pessoas), aí incluídas as mulheres, admitidas à cidadania política pelo Código Eleitoral de 1932.

Daí por diante, o crescimento foi constante. Em 1960, o número de votantes subiu a 18%. Em 1986, chegou a 47%. Em 2014, os habilitados a votar já eram 71% dos brasileiros, cerca de 140 milhões de pessoas. Foi um tsunami de povo no sistema representativo.

Acoplado a esse crescimento veio o instrumento capaz de tornar a participação politicamente eficaz: a gestação de um inédito partido dos trabalhadores.

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi criado em 1945 por inspiração de Getúlio Vargas, que, para tanto, credenciara-se pela legislação trabalhista de 1943 (CLT).

Gerado no bojo do queremismo, que pedia uma constituinte com Vargas, o partido se expandiu depressa: em 1946, elegeu 22 deputados; em 1962, dois anos antes do golpe de 1964, contava 116 representantes na Câmara.

Em contraste, os dois principais partidos conservadores, o PSD e a UDN, que tinham mais de 80% dos assentos na Câmara em 1945, caíram para 51% em 1962.

Ficou famosa, e contribuiu para sua queda, a frase dita por Vargas em discurso dirigido aos trabalhadores no Dia do Trabalho em 1954: "Hoje estais com o governo, amanhã sereis o governo". Era uma declaração impensável poucos anos antes e não foi repetida depois.

O combate ao PTB marcou duas crises. Em 1954, o pretexto foi a corrupção; em 1964, o comunismo.

A oposição a Getúlio e a João Goulart beneficiou-se amplamente do clima de guerra fria e da intervenção militar. A entrada do povo, vinho novo, tinha explodido o sistema, odre velho. O novo ator, via partido e sindicatos, trazia demandas que ameaçavam um país secularmente marcado por persistente desigualdade.

Pela primeira vez, entrou na agenda política, trazida pelo PTB, a cobrança de políticas distributivas encarnadas nas reformas de base propostas por Goulart. Embora ainda escorados no Estado, os portadores da nova agenda ensaiavam passos mais independentes –e foram defenestrados.

Golpe Militar


A fase seguinte, a da ditadura (1964-1985), apresentou aspectos contraditórios quanto à participação popular.

De um lado, em 21 anos, 53 milhões de brasileiros foram incorporados ao sistema político pelo direito ao voto, número igual à população total do país em 1950.

Do outro, extinguiram-se os partidos que desde 1945 vinham configurando um novo sistema representativo; eliminaram-se as eleições diretas para cargos executivos; cassaram-se deputados e fechava-se o Congresso sempre que a Casa se recusava a atender às exigências do Executivo.

Até a eleição de 1982, o partido oficial, a Arena, manteve maioria na Câmara, com base sobretudo nos votos das regiões mais pobres. O sucessor da Arena, o PDS, era chamado de partido do Nordeste.

Ao mesmo tempo, houve dramática mutação na estrutura ocupacional e na taxa de urbanização. Milhões migraram para as cidades, fugindo ao controle dos coronéis.

Na década de 1980, a oposição começou a ganhar eleições tanto para o governo dos Estados quanto para o Senado, forçando o retorno do multipartidarismo.

A história da representação após 1985 é conhecida. Foi marcada principalmente pelo surgimento do PT (em 1980), cuja proposta era retomar em novas bases a representação do povo/trabalhador com uma agenda voltada para a redução da desigualdade.

Como o PTB nos anos 1950, o partido teve crescimento rápido e, sem guerra fria e interferência militar, conseguiu chegar ao poder, embora pagando o alto preço de uma aliança conservadora com o PMDB.

Antes disso, a consistência ainda frágil das legendas redundou na eleição de Fernando Collor, um aventureiro sem base partidária que teve o destino que se sabe.

Com a sequência Fernando Henrique-Lula, que durou 16 anos, parecia que o país finalmente entrara em um ciclo virtuoso, no qual a democracia política (entrada de povo) parecia conjugar-se com a democracia social (igualdade) e a estabilidade política.

A entrada maciça de novos atores na política e a diversificação da sociedade pela urbanização e pelo crescimento econômico, acopladas à multiplicação de partidos (hoje são 35), teve como consequência a fragmentação da representação, inclusive a das camadas populares.

Povos


Hoje, não há um povo eleitoral, há vários povos.

Há o povão das políticas sociais, sobretudo do Bolsa Família, que não se manifesta enquanto essas políticas são mantidas. Há o povo muito aguerrido formado por operários e setores da classe média, organizado em sindicatos e associações. Há o povo que foi à rua em 2013, de comportamento errático, composto de setores da classe média. E há o povo das redes sociais, de impacto crescente na política, mas ainda de difícil avaliação.

A diversificação da sociedade, a democratização da política e a fragmentação dos partidos estão na base da crise atual.

O impeachment de Dilma Rousseff deveu-se –para além de seus erros elementares na política econômica que inviabilizaram a continuação de uma política distributiva– à corrosão de sua base parlamentar e à imensa corrupção gerada pela necessidade de comprar alianças de outras siglas.

Uma corrupção de que participou com destaque o próprio PT, que, com isso, perdeu boa parte de sua credibilidade política e de sua eficácia como defensor das mudanças sociais.

Passados 87 anos de 1930, ainda estamos lutando com o problema de construir uma democracia inclusiva, capaz de sustentar governos representativos que possam combinar estabilidade institucional com implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades da maioria dos representados.

A ser correta minha argumentação, seria plausível atribuir a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.

Sobre o autor


José Murilo de Carvalho, 77, cientista político e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, é autor de "Cidadania no Brasil, o Longo Caminho" (Civilização Brasileira).

24 de maio de 2017

As mulheres de 1917

As mulheres não eram apenas a centelha da revolução russa, mas o motor que a conduzia para frente.

Megan Trudell


Mulheres reivindicam o aumento das rações em uma manifestação ao longo da Nevskii Prospekt após o Dia Internacional da Mulher, 23 de fevereiro de 1917. Arquivo Central de Filmes, Fotos e Documentos Sonoros do Estado, São Petersburgo.

Tradução
/ No Dia Internacional das Mulheres em 1917, mulheres tecelãs no distrito de Vyborg, em Petrogrado, entraram em greve, saíram das fábricas e se dirigiram às centenas, de fábrica em fábrica, chamando operárias e operários para a greve e se envolvendo em violentos confrontos com a polícia e com os soldados.

Sem qualificação, com baixa remuneração, trabalhando de doze a treze horas por dias em condições de higiene precárias e insalubres, as mulheres exigiram solidariedade e ação por parte dos homens, especialmente daqueles que trabalhavam com engenharia qualificada e em fábricas metalúrgicas, que eram tidos como os politicamente mais conscientes e a força de trabalho socialmente mais poderosa da cidade. As mulheres jogaram paus, pedras e bolas de neve nas janelas das fábricas e forçavam sua entrada nos lugares de trabalho, pedindo pelo fim da guerra e pelo retorno de seus homens que estavam no front.

De acordo com muitos contemporâneos e historiadores, essas mulheres que se revoltaram pelo pão – usando métodos tradicionais e “primitivos” de protesto social para demandas puramente econômicas, agindo a partir da emoção ao invés da formação teórica – inadvertidamente deram início à tempestade que varreu o czarismo, antes de desaparecerem por de trás dos batalhões de trabalhadores e de seus partidos políticos dominados por homens.

Já no início das greves de fevereiro, foram tecidas palavras de ordem políticas contra a guerra em meio aos protestos. A audácia, determinação e os métodos das mulheres deixaram claro que elas compreendiam a raiz de seus problemas, assim como a necessidade de uma unidade entre os trabalhadores e de convencer os soldados que estavam longe, protegendo o Estado czarista, a apoiar a revolta. Mais tarde, Trotsky registrou:

“As mulheres trabalhadoras desempenham um importante papel na relação entre trabalhadores e soldados. Elas sobem até os cordões com mais coragem do que os homens, agarram os rifles, suplicam, praticamente ordenam: “Abaixem suas baionetas – juntem-se a nós”. Os soldados estão empolgados, envergonhados, trocam olhares ansiosos, vacilam; alguém se decide primeiro e as baionetas se levantam com ares de culpa por cima dos ombros da multidão que avança”.

No final de 23 de fevereiro, soldados que faziam guarda nos depósitos de bondes foram convencidos pelas trabalhadoras do setor a se juntarem a elas dentro do prédio, e os bondes foram virados para serem usados como barricadas contra a polícia. Conquistar os soldados não foi simplesmente um resultado do crescente fardo da guerra contra as tropas ou da infecciosa “espontaneidade” dos protestos. Desde 1914, tecelãs relacionavam-se com o grande número de soldados, principalmente os de origem camponesa em Petrogrado. Homens em quartéis e mulheres em fábricas, vindos das mesmas regiões para a cidade, conversavam e estreitavam relações, esmaecendo as divisões entre trabalhadora e soldado e fornecendo às trabalhadoras uma clara compreensão da necessidade de apoio armado.

As trabalhadoras estavam firmes na vanguarda da Revolução de Fevereiro, que culminou na destruição do czarismo. As mulheres não foram meramente uma “centelha”, mas a força motriz que a impulsionou – apesar da desconfiança inicial de muitos trabalhadores e revolucionários homens.

Geralmente, a Revolução de Fevereiro é descrita como “espontânea” e, em certo sentido, isso é verdade: ela não foi planejada e executada por revolucionários. Mas espontaneidade não era o mesmo que falta de consciência política. As experiências das mulheres que invadiram as fábricas em Petrogrado, tanto como trabalhadoras quanto como chefes de famílias forçadas a permanecerem por horas em filas para alimentar suas famílias, acabaram com a distinção entre a demanda “econômica” pelo pão e a pressão política para por fim à guerra. As circunstâncias materiais colocaram a culpa pela fome e a pobreza aonde ela pertencia: na guerra e nos políticos que a conduziam. Tais demandas não poderiam ser alcançadas sem mudanças políticas sísmicas.

Além disso, as mulheres bolcheviques eram fundamentais para a greve, tendo trabalhado arduamente para organizar as trabalhadoras sem qualificação ao longo dos anos, apesar da postura dos homens de seu próprio partido. Para eles, a organização das mulheres era, no mínimo, uma distração da luta contra o czarismo e, na pior das hipóteses, jogar o jogo das feministas da elite, que afastariam as mulheres para longe da luta de classes.

Muitos homens no movimento revolucionário sentiam que os protestos do Dia Internacional da Mulher eram prematuros e que as mulheres trabalhadoras deveriam ser freadas até que os trabalhadores qualificados estivessem prontos para agirem decisivamente. Foram as mulheres membras do partido, minoria dentro dele, que defenderam uma reunião no distrito de Vyborg, chamando as trabalhadoras para discutirem a guerra e a inflação e as mulheres ativistas, que chamaram por uma manifestação contra a guerra para o Dia Internacional da Mulher. Uma delas foi Anastasia Deviatkina, bolchevique e operária que organizou um sindicato para as esposas de soldados após a Revolução de Fevereiro.

Depois de fevereiro, as mulheres desaparecem da maioria dos relatos sobre o desenvolvimento da Revolução ao longo de 1917. As exceções são algumas mulheres revolucionárias bastante conhecidas, como Alexandra Kollontai, Nadezhda Krupskaia e Inessa Armand, muitas vezes discutidas tanto por sua vida privada como esposas e amantes, quanto por sua atividade prática e contribuições teóricas.

As mulheres estavam ausentes principalmente dos órgãos administrativos que emergiam das cinzas do czarismo. Poucas eram representantes nos conselhos das aldeias, delegadas na Assembléia Constituinte ou mesmo como delegadas do Soviete de Petrogrado. As eleições para os comitês de fábricas eram dominadas por homens, que eram eleitos delegados até em indústrias onde as mulheres trabalhadoras eram maioria. Havia duas razões para isso e elas se relacionavam: as mulheres ainda tinham a tarefa de alimentar suas famílias em circunstâncias precárias e, além disso, careciam de confiança e de educação, bem como de tempo, para se colocarem à frente nos altos níveis de atividade política, ou mesmo para se manter neles. As maneiras como as mulheres trabalhadoras viviam na Rússia durante séculos, a realidade material de sua opressão, limitaram sua capacidade em combinar o inquestionável aumento de sua consciência política com o seu engajamento político

A Rússia de antes de 1917 era uma sociedade predominantemente camponesa; a autoridade total do czar era consagrada e reforçada pela Igreja e se refletia na instituição da família. O casamento e o divórcio estavam sob controle religioso; as mulheres eram legalmente subordinadas, consideradas como propriedades e menos do que humanas. Provérbios russos comuns incluíam formulações como: “Pensei ter visto duas pessoas, mas era apenas um homem e sua esposa”.

O poder masculino sobre a unidade doméstica era total e esperava-se das mulheres que aceitassem condições brutais, passadas de pai para marido e que as fazia frequentemente alvo de violência sancionada. As mulheres camponesas e operárias enfrentavam um trabalho penoso e árduo nos campos e fábricas, com o considerável fardo adicional de cuidar das crianças e das responsabilidades domésticas, isso numa época em que o parto era difícil e perigoso, que a contracepção era inexistente e que a mortalidade infantil era elevada.

No entanto, o envolvimento político das mulheres em 1917 não veio do nada. A Rússia era uma contradição: ao lado da profunda pobreza, opressão e tirania sofrida pela maioria de seu povo, a economia russa crescera nas décadas anteriores a 1905. Enormes e modernas fábricas produziam armas e tecidos, ferrovias conectavam cidades que cresciam rapidamente e investimentos e técnicas vindas da Europa levaram a enormes aumentos da produção de ferro e de petróleo.

Essas dramáticas mudanças econômicas geraram uma imensa transformação social nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial: um crescimento no número de mulheres camponesas migrando para as fábricas urbanas, impelidas pela pobreza e encorajadas por patrões cuja intensa mecanização fabril gerava ainda mais empregos não qualificados. A preferência deles por trabalhadores “submissos” levou a um gigantesco crescimento no número de mulheres trabalhando na produção de linho, seda, algodão, lã, cerâmica e papel.

As mulheres haviam participado das greves nas fábricas têxteis em 1896, em protestos contra o recrutamento militar antes da guerra russo-japonesa e – de maneira decisiva – na Revolução de 1905, quando trabalhadoras não qualificadas de fábricas têxteis, de tabaco e de doces, juntaram-se às trabalhadoras domésticas e de lavanderia, entrando em greve e tentando formar seus próprios sindicatos como parte da revolta maciça que ocorria.

O impacto da Primeira Guerra Mundial foi decisivo para aumentar o peso econômico e político das mulheres. A guerra destruiu famílias e suspendeu a vida das mulheres. Milhões de homens estavam ausentes, lutando no front, ou mesmo feridos ou mortos. As mulheres, por sua vez, se viram forçadas a trabalhar a terra sozinhas, chefiar os lares e integrar a força de trabalho urbana. As mulheres eram 26,6% da força de trabalho em 1914; e quase metade (43,4%) em 1917. Mesmo em áreas que exigiam qualificação, a participação das mulheres aumentou significativamente. Em 1914, as mulheres somavam apenas 3% dos trabalhadores da metalurgia; em 1917, o número subiu para 18%.

Na situação da divisão de poder entre o governo provisório e o Soviete, após a Revolução de Fevereiro, os protestos das mulheres não desapareceram, mas passaram a fazer parte do processo que viu o apoio dos trabalhadores mudar do governo para o Soviete e, no interior do Soviete, da liderança socialista moderada da coalizão Mencheviques-Socialistas Revolucionários para os Bolcheviques em setembro.

As expectativas de trabalhadoras e trabalhadores de que suas vidas melhorariam com a queda do czar foram frustradas pelo governo e pela continuidade da guerra por parte da liderança do Soviete. Em maio, os protestos contra a guerra haviam forçado a dissolução do primeiro governo provisório e os líderes Mencheviques-SR haviam formado um governo de coalizão com os liberais – que ainda estavam dedicados à guerra. A desilusão dos trabalhadores levou a novas greves, novamente lideradas por mulheres. Cerca de quarenta mil trabalhadoras de serviços de lavanderia, membras de um sindicato liderado pela bolchevique Sofia Goncharskaia, entraram em greve por melhor pagamento, jornada de oito horas e melhorias nas condições de trabalho: melhores condições de higiene no trabalho, benefícios de maternidade (era comum que as trabalhadoras escondessem a gravidez até darem à luz no chão da fábrica) e fim ao assédio sexual. Como descrevem as historiadoras Jane McDermid e Anna Hillyer:

“Junto com outras militantes do sindicato, Goncharskaia ia de lavanderia em lavanderia persuadindo as mulheres a participarem da greve. Elas enchiam baldes com água fria para apagar os fornos. Em uma lavanderia, o proprietário atacou Goncharskaia com um pé-de-cabra; ela foi salva pelas lavadeiras que o agarraram pelas costas”.

Em agosto, diante das tentativas do general Kornilov de esmagar a revolução, as mulheres se uniram à defesa de Petrogrado, construindo barricadas e organizando a assistência médica. Em outubro, as mulheres do partido Bolchevique se envolveriam na prestação de assistência médica, nas comunicações cruciais entre as localidades, algumas inclusive tinham a responsabilidade de coordenar o levante em diferentes áreas de Petrogrado e havia também mulheres membras da Guarda Vermelha. McDermid e Hillyer descrevem o envolvimento de outra mulher bolchevique em outubro:

“A condutora de bonde, A.E. Rodionova, tinha escondido 42 rifles e outras armas em seu depósito quando o Governo Provisório tentou desarmar os trabalhadores após os dias de julho. Em outubro, ela foi responsável por garantir que dois bondes com metralhadoras partissem do depósito para o assalto ao Palácio de Inverno. Ela teve de garantir o funcionamento do serviço de bondes durante a noite de 25 para 26 de outubro para auxiliar na tomada do poder e verificar os postos da Guarda Vermelha por toda a cidade”.

A trajetória da revolução ampliou o fosso entre as trabalhadoras – para quem a guerra foi a causa de suas dificuldades e cujos apelos à paz cresceram mais com o passar do ano – e as feministas – que continuaram a apoiar o derramamento de sangue. Para a maioria das feministas liberais da elite, a igualdade perante a lei e na educação, assim como a reforma social, seriam conquistadas se permanecessem leais ao novo governo e ao esforço de guerra. Demonstrar patriotismo seria o caminho para ganhar um assento na mesa.

A Revolução de Fevereiro conduziu a uma renovada campanha feminista pelo sufrágio universal, um significativo passo à frente quando ele foi concedido, em julho de 1917. Para a maioria das mulheres, no entanto, o direito ao voto fazia pouca diferença em suas vidas, ainda dominadas pela escassez, pelas longas jornadas de trabalho e por batalhas para manterem suas famílias unidas. Como escreveu Kollontai em 1908:

“Apesar das demandas aparentemente radicais, não se deve perder de vista que as feministas não podem, devido a sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da estrutura econômica e social contemporânea da sociedade, sem a qual não pode haver libertação plena das mulheres”.

Para a maioria das mulheres operárias e camponesas, opressão e igualdade não eram questões abstratas, mas emergiam concretamente do processo de luta por melhorias em suas vidas e nas de seus homens e crianças. Aquelas que voltarem-se para a política e eram mais confiantes, muitas vezes membras do Partido Bolchevique, assim tornaram-se como resultado de sua própria ação coletiva contra a guerra e os políticos – ação centrada na oposição à fome, à guerra e à propriedade privada da terra. Robert Service argumenta que:

“O programa político Bolchevique mostrou-se cada vez mais atraente para a massa de operários, soldados e camponeses à medida que a turbulência social e a ruína econômica atingiram o clímax no final do outono. Mas o programa, por si só, não era suficiente para levar à Revolução de Outubro”.

Essas experiências foram vividas tanto pelas mulheres operárias, camponesas e esposas de soldados quanto suas contrapartes masculinas. Sem o apoio das trabalhadoras não qualificadas em Petrogrado, a insurreição de Outubro não teria ocorrido.

O apoio aos bolcheviques não era cego, mas sim o resultado, nas palavras de Trotsky, de “uma cautelosa e dolorosa tomada de consciência” por milhões de trabalhadoras e trabalhadores. Em outubro, tudo já havia sido tentado: o Governo Provisório e os Mencheviques os traíram, as manifestações trouxeram repressão ou ganhos limitados que já não satisfaziam as esperanças de uma vida melhor e, de maneira crucial, a tentativa de golpe de Estado de Kornilov deixou clara a ameaça: vá em frente ou seja esmagado. Um trabalhador colocou nos seguintes termos: “Os Bolcheviques sempre disseram: ‘Não somos nós que vamos persuadi-lo, mas a própria vida’. E agora os Bolcheviques triunfaram porque a vida provou que suas táticas são corretas”.

Foram os bolcheviques que tomaram a questão da mulher com tanta seriedade. Embora, do ponto de vista de hoje, as mulheres estivessem bastante sub-representadas, foi feito um esforço rigoroso para desenvolver e organizar as mulheres trabalhadoras. Mas o fato dos Bolcheviques terem feito mais do que outros partidos socialistas, no que dizia respeito às trabalhadoras, não foi necessariamente por terem um maior compromisso com os direitos das mulheres.

Tanto Mencheviques quanto Bolcheviques entendiam a necessidade de se comprometer com as mulheres como parte da classe operária, mas os Bolcheviques podiam vincular a luta pela igualdade entre homens e mulheres a uma estratégia de classe contra o governo e a guerra, enquanto os partidos envolvidos com a continuidade do conflito e com as negociatas com os privilegiados e os patrões poderiam fazer pouco mais do que informar sobre as greves das mulheres e falar sobre direitos políticos, sem apresentar soluções concretas para as pressões materiais das vidas das mulheres.

Os Bolcheviques assumiam cada vez mais a organização e a politização das mulheres – em parte, aprendendo com os começos explosivos de fevereiro; mas também, devido à tenacidade das próprias mulheres do partido.

Lideranças dentre as Bolcheviques, tais como Kollontai, Krupskaia, Armand, Konkordiia Samoilova e Vera Slutskaia, entre outras, argumentavam há muito que o partido deveria fazer esforços especiais para organizar as trabalhadoras e desenvolver sua formação política. Elas lutaram para convencer seus camaradas homens de que as mulheres trabalhadoras não qualificadas eram de importância central à revolução, e não um obstáculo passivo, conservador e “atrasado”. O jornal bolchevique Rabotnitsa (A Mulher Trabalhadora), publicado pela primeira vez em 1914 e relançado em maio de 1917, trazia artigos sobre a importância de creches, berçários e legislação protetiva para o trabalho das mulheres, e destacou repetidamente a necessidade de igualdade e da “questão feminina” ser assumida por todos os trabalhadores.

O papel das mulheres trabalhadoras na Revolução de Fevereiro e sua contínua importância como parte da classe operária de Petrogrado ajudaram a mudar a visão de muitos homens Bolcheviques, que acreditavam que focar nas “questões femininas” era ceder ao feminismo e que a revolução seria liderada pelos trabalhadores (homens) mais qualificados e politicamente conscientes. No entanto, essa era uma batalha ingrata; quando Kollontai propôs um núcleo de mulheres no partido em abril, ela estava quase isolada, embora tivesse o apoio de Lenin, cujas Teses de Abril não foram recebidas com muito entusiasmo pela liderança Bolchevique – da mesma forma, Kollontai era a única apoiadora de Lenin no comitê central.

Nos meses seguintes, no entanto, ficou claro que tanto o argumento de Lenin sobre dar continuidade à revolução por meio dos sovietes, quanto a convicção de Kollontai sobre a importância das mulheres trabalhadoras que brotava da dinâmica da revolução, poderiam impulsioná-la adiante. Os jornais Bolcheviques, além do Rabotnitsa, passaram a argumentar que atitudes sexistas arraigadas ameaçavam a unidade de classe e o partido trabalhava para que as mulheres fossem representadas em comitês de fábricas, desafiando as atitudes dos homens que consideravam as trabalhadoras como uma ameaça, buscando convencer os trabalhadores homens a votar em mulheres – especialmente em indústrias onde elas eram maioria – e a tratá-las com respeito enquanto colegas de trabalho, representantes e camaradas.

Seis semanas após a Revolução de Outubro, o casamento foi substituído pelo registro civil e o divórcio tornou-se disponível a pedido de qualquer uma das partes. Essas medidas foram elaboradas um ano mais tarde no Código da Família, que tornou as mulheres iguais perante a lei. O controle religioso foi abolido, removendo de um só golpe séculos de opressão institucionalizada; o divórcio poderia ser obtido por qualquer uma das partes sem necessidade de qualquer razão; as mulheres tinham direito ao seu próprio dinheiro e nenhum dos parceiros tinha direitos sobre os bens do outro. O conceito de ilegitimidade foi erradicado – se uma mulher não sabia quem era o pai, todos os seus parceiros sexuais anteriores recebiam a responsabilidade coletiva pela criança. Em 1920, a Rússia tornou-se o primeiro país a legalizar o aborto mediante solicitação.

A Revolução de 1917 foi iniciada e moldada pelas mulheres e, ao longo do ano, muitas concepções antigas que tratavam as mulheres como inferiores, como propriedade, como passivas, atrasadas, conservadoras, inseguras e fracas foram desafiadas, talvez até mesmo obliteradas, pela ação das mulheres e por seu comprometimento político.

Mas a Revolução Russa não aboliu a dominação masculina nem libertou as mulheres – as privações catastróficas da Guerra Civil e as subseqüentes distorções do governo soviético tornaram isso uma impossibilidade. As desigualdades permaneciam. Poucas mulheres ocuparam posições de autoridade, poucas eram eleitas para órgãos administrativos e as idéias sexistas não podiam simplesmente desaparecer na adversidade extrema que se seguiu a outubro.

Durante a revolução, as mulheres não participaram de maneira igual aos homens nem contribuíram de forma significativa nos níveis mais elevados do processo político, mas, de acordo com as possibilidades de suas vidas, desafiaram as expectativas e moldaram o curso da revolução. Como McDermid e Hillyer afirmam:

“É verdade que a divisão do trabalho entre homens e mulheres permaneceu, mas em vez de concluir que as mulheres falharam em desafiar a dominação masculina, consideremos como elas agiram dentro de sua esfera tradicional e o que isso significou para o processo revolucionário”.

As mulheres foram parte integrante da Revolução de 1917, fazendo história ao lado dos homens – não como espectadoras passivas ou cifras apolíticas, mas como participantes corajosas, cujo engajamento foi ainda mais significativo se considerarmos a opressão arraigada que essas mulheres rejeitaram. Ver a revolução através dos seus olhos dá uma leitura mais rica daquele que permanece sendo o momento histórico mais transformador para a vida das mulheres.

23 de maio de 2017

As greves gerais

Marcelo Badaró Mattos

A história das greves gerais no Brasil mostra por que a do mês passado - a maior do país até agora - foi tão vital.

Jacobin

Multidão em São Paulo, Brasil, em 28 de abril de 2017. Créditos: Pedro Maia Veiga

Em 28 de abril, as imagens transmitidas pelas mídias sociais brasileiras de pneus queimados em dezenas de estradas - bloqueadas em todo o país antes do amanhecer por grupos de trabalhadores organizados - de garagens de ônibus, estações de transporte fluvial, acesso ao aeroporto, todos fechados por grupos carregando cartazes e bandeiras vermelhas, afirmando o poder das pessoas que vivem da sua força de trabalho: greve geral! Imagens que ilustravam as notícias de fábricas fechadas, lojas e serviços. Houve uma paralisia total do transporte urbano na maioria das capitais e em muitas pequenas cidades do norte e nordeste do Brasil, bem como nas capitais do sul.

A principal metrópole do Brasil, São Paulo, estava totalmente paralisada; o Rio de Janeiro e outras capitais ficaram parcialmente paralisadas. Podemos dizer, sem maiores investigações, que o Brasil foi amplamente afetado pela greve de 28 de abril. Os protestos maciços no final do dia só reforçaram esta observação.

Entre a nova geração de militantes - responsáveis pelo dilúvio de imagens e postagens relacionadas à greve em toda a mídia social - que não testemunharam a última greve geral bem sucedida, em 1989 (ou mesmo as duas tentativas limitadas nos anos 90), a alegria de compartilhar essas imagens e notícias evocava os melhores sentimentos da luta socialista. Os mesmos sentimentos que se sentiram cem anos atrás, durante a Revolução Russa, onde a greve geral desempenhou um papel importante.

Em 23 de fevereiro de 1917, as trabalhadoras das fábricas de tecidos, contra o conselho de líderes socialistas, lançaram uma greve que se espalhou por Petrogrado e outras cidades industrializadas, levando milhares de trabalhadores a abandonar seus locais de trabalho. Este confronto entre os grevistas e as forças repressivas do czar foi o primeiro momento da revolução. A greve geral não representava todo o processo revolucionário; o povo russo ainda teria de passar por outros momentos de disputa de poder, no Governo Provisório e nos sovietes. Ainda assim, teve um papel importante no processo revolucionário.

Nem todas as greves gerais lideram o caminho da revolução, embora tenham sempre um impacto sólido sobre o equilíbrio de forças num determinado período. Os exemplos na história do Brasil são significativos.

Em agosto de 1903, trabalhadores de uma fábrica de confecções do Rio de Janeiro pararam o trabalho, exigindo uma jornada de oito horas e um aumento salarial de 40%. Ao longo de vinte e seis dias, a greve espalhou-se pelas fábricas de vestuário e em outros setores, reunindo cerca de quarenta mil trabalhadores (vinte e cinco mil da indústria de tecidos). Suas reivindicações foram apenas parcialmente satisfeitas e a repressão foi brutal. Centenas de grevistas foram despedidos e as federações dos trabalhadores foram fechadas. Apesar disso, a ação dos trabalhadores produziu um resultado positivo com a criação de vários sindicatos durante e após a greve.

Logo depois, foi criada uma federação sindical, que mais tarde se tornaria a Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (1905), uma organização que promoveu o Congresso Brasileiro dos Trabalhadores em 1906. Este congresso fundou a Confederação Brasileira de Trabalhadores (COB), o embrião da primeira federação sindical do país. Em 1906, outra greve geral paralisaria Porto Alegre, na época relativamente industrializada. Em 1917 ocorreu a maior greve do período; iniciada nas fábricas de confecção e espalhada para vários setores, paralisou cerca de setenta mil trabalhadores em São Paulo (naquela época já a maior cidade industrial do país) por vários dias. As autoridades e os empregadores foram obrigados a negociar uma agenda apresentada por uma comissão de representação dos trabalhadores (formada através da greve), aceitando algumas das reivindicações dos trabalhadores em troca da suspensão da greve.

Uma onda de greves continuou nos próximos anos; o Estado aumentou a repressão, mas também iniciou uma discussão sobre a necessidade de leis que reconhecessem as demandas dos trabalhadores. Após quase cinquenta anos, ocorreu no Brasil a primeira greve geral com características verdadeiramente nacionais. Foi em 1962, e sua maior demanda foi o "décimo terceiro salário" [como os trabalhadores brasileiros são pagos mensalmente, o "décimo terceiro salário" iria garantir um salário extra no final do ano].

A greve exigiu também um gabinete ministerial nacionalista (após a renúncia de Jânio Quadros, o então vice-presidente João Goulart assumiu a presidência, graças à pressão da esquerda e da classe trabalhadora. No entanto, os partidos governantes limitaram seus poderes e adotaram o sistema parlamentar). O corpo de coordenação da greve posteriormente evoluiu para o Comando Geral dos Trabalhadores, um novo embrião da federação sindical que liderou outras greves antes do golpe militar em 1964.

Portanto, essas greves gerais, embora não conduzissem à revolução, afetaram a correlação de forças na luta de classes em três níveis cruciais. Obtiveram direitos (como o décimo terceiro salário, ganhado em 1962); avançaram vigorosamente para a organização da classe (como se viu indiretamente na greve do Rio de Janeiro em 1903 e diretamente em 1962), e impactaram a política em escala nacional. Cada greve tem um conteúdo político, uma vez que confronta o capital, mas em greves gerais, esse conteúdo é explícito e pode forçar uma mudança de postura pelas autoridades, como foi o caso da greve de 1917.

A greve geral de 1989, mencionada anteriormente, foi a maior greve da história do Brasil, paralisando mais de 70% da população ao longo de quarenta e oito horas e combinando de maneira única os três elementos mencionados acima. A década de 1980 devolveu a greve geral ao reino do possível - quatro delas ocorreram naquela década, em intensidades variadas - devido a uma onda de luta social que culminou com uma reorganização da classe trabalhadora. A ascensão da Central Unica de Trabalhadores (CUT) em 1983 foi a maior conquista desse processo.

A agenda de greve de 1989 incluía, como a maioria das greves na época, o reposição dos salários perdidos devido à inflação e a garantia de salários atrelados à inflação. Além disso, seu conteúdo político era claro. As lutas sindicais desde o final da década de 1970 constituíram o maior desafio ao padrão de transição política, conduzido de cima para baixo, que acabou com a ditadura. A resistência dos trabalhadores também se manifestou no sistema partidário. Através da criação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, erigiu um poder capaz de atrair e orientar um amplo grupo de movimentos em torno de um programa vagamente socialista numa disputa institucional que culminou em 1989 com o candidato do PT Luís Inácio Lula da Silva ido para o segundo turno nas eleições presidenciais.

Enquanto escrevo, ainda afetado pelas belas imagens da greve de abril e pelos registros da brutal repressão policial que se seguiu, as federações sindicais anunciaram que 28 de abril, em números absolutos, foi a maior greve geral da história do Brasil, superando os trinta e cinco milhões de trabalhadores que atingiu em 1989. Não é possível prever as consequências desta greve. Mas haverá conseqüências. Nos três níveis mencionados anteriormente, a mudança é inevitável e, embora uma greve geral como a do mês passado tende a provocar retaliações no curto prazo, é em última análise positiva para a classe trabalhadora.

No nível de reivindicações imediatas, a greve geral foi bem-sucedida ao despertar a consciência das terríveis medidas que o Congresso brasileiro aprovou. A reforma trabalhista (aprovada vinte e quatro horas antes da greve), que complementa a lei de terceirização, revoga muitos direitos trabalhistas e quebra os instrumentos de negociação que limitam a exploração de capital dos trabalhadores. Há também a reforma das pensões, cujo objetivo é transformar a aposentadoria (apoiada por fundos públicos) em um privilégio para aqueles que podem sobreviver ao longo de quatro décadas de exploração intensiva. Esta é uma questão de vida ou morte para nossa geração e para a próxima, pois destrói profundamente e rapidamente os direitos da classe trabalhadora.

É por isso que a greve geral foi essencial. Houve muitas dificuldades em organizá-lo, mas as mais significativas vieram das maiores federações sindicais. Depois de transformações graduais que levaram a um sindicalismo de conciliação social na década de 1990, a CUT - para falar sobre a mais importante delas - na década seguinte tornou-se um simples ramo sindical do governo do PT, servindo de amortecedor de conflito em vez de um mobilizador de massas. Mesmo agora, com o PT fora do governo, a CUT hesita em chamar sua base à luta, sempre subordinando essas mobilizações aos objetivos eleitorais de Lula e do PT. Se a greve geral encorajasse a oposição dentro dos maiores sindicatos e impulsionasse os pólos mais combativos do movimento sindical (CSP-Conlutas, Intersindical e outros grupos), isso poderia se tornar um novo marco no processo de reorganização dos sindicatos classe operária.

Quanto aos conflitos com o Estado, esperava-se a violência geral e a repressão policial, pois estamos lutando contra um governo que assumiu o poder por meio de um golpe parlamentar e judicial, que preserva a aparência da democracia institucional apenas para se proteger das reivindicações populares. No Rio de Janeiro, mais de cem mil pessoas tomaram as ruas, apesar da intensa repressão da polícia militar - que, a partir de 2013, continua, apesar de seu atraso de salários, a gastar milhões de reais em bombas e balas de borracha para cada protesto. O governo do Rio de Janeiro é tão corrupto que seu ex-governador e metade de seus secretários estão presos e o ex-vice-governador, agora na presidência, está continuamente associado aos atos criminosos da antiga administração.

O objetivo dessa revolução autocrática e contra-revolucionária do governo brasileiro é precisamente garantir essas contra-reformas, criando as condições para a intensificação da exploração dos trabalhadores, contrabalançando o declínio da taxa de lucro do capital. Além disso, a greve geral desempenha um papel crucial na reconfiguração da organização da classe trabalhadora e na elevação da luta dos "Fora Temer" para outro nível.

A reentrada dos trabalhadores de maneira organizada e combativa na política através da greve geral introduz desafios para os quais a esquerda socialista deve ser preparada: devemos antecipar a expansão das lutas; mover para parar e reverter as contra-reformas, acelerar e reorganizar os movimentos sociais e operários, e superar esse governo ilegítimo. Não é fácil, mas esperamos que as imagens e os acontecimentos de 28 de abril despertem os melhores instintos e sentimentos dos socialistas, para que possamos avançar essas lutas urgentes, das quais a greve geral poderia ser apenas o ponto de partida.

22 de maio de 2017

Negócios inacabados

A revolução bolivariana foi longe demais para o capitalismo, mas não suficientemente longe para o socialismo.

Daniel Finn

Ilustração de Daniël Roozendaal

Não há dúvida de que a Venezuela atravessa uma profunda crise. Um grupo de socialistas no país que defende o legado de Hugo Chávez pinta um quadro sombrio da vida cotidiana de lá:

"Quase dezenove salários mínimos são necessários para cobrir a cesta de necessidades básicas. Podemos acrescentar a isso a inflação, considerada a mais alta do mundo, as filas intermináveis ​​por causa de escassez causada pelo açambarcamento, revenda especulativa e baixa produção agro-industrial; juntamente com o abuso por parte da polícia e do pessoal militar, o drama dos doentes que não conseguem encontrar os seus medicamentos, a corrupção que permanece impune, a crise da eletricidade e o crime organizado. Tudo isso está criando uma situação de caos social, político e econômico sem precedentes na Venezuela."

O fracasso do governo de Nicolás Maduro em manter o padrão de vida popular permitiu que a oposição de direita tomasse o controle da Assembléia Nacional da Venezuela, resultando em um amargo confronto entre o executivo e o legislativo que ainda não foi resolvido de uma forma ou de outra.

Os detalhes da crise venezuelana foram bem relatados em outros lugares. Mas o que se tem abordado menos é o significado dessa crise para a esquerda internacional, que uma vez investiu grandes esperanças na Revolução Bolivariana.

Entrando no foco

Não pode haver um balanço honesto de onde as coisas deram errado na Venezuela que não comece por reconhecer o que o chavismo tem razão.

O experimento lançado por Hugo Chávez depois que ele se tornou presidente em 1999 com um modesto programa de reforma social voltou-se gradualmente para a esquerda internacional. Richard Gott fez uma tentativa inicial de abordar o fenômeno em sua biografia do líder venezuelano. Seu livro teve uma resenha publicada no The Guardian de um editor do Buenos Aires Herald, que sugeriu que a América Latina precisava de "menos Messias e mais homens e mulheres comuns com boas credenciais de gestão econômica". Essa era a visão predominante no início do século XXI, apesar dos melhores esforços dos manifestantes antiglobalização: todas as questões fundamentais sobre como dirigir uma economia já tinham sido resolvidas pelo Consenso de Washington, de modo que as habilidades gerenciais competentes eram tudo que um bom líder precisava.

O golpe sem êxito contra Chávez em 2002 aumentou o interesse na Venezuela, assim como sua vitória no referendo de 2004. No momento em que foi reeleito em 2006, ficou claro para a maioria dos observadores que algo excitante estava acontecendo, com grandes implicações para a região, se não para o mundo.

Os acontecimentos em outros lugares da América Latina ajudaram a cristalizar essa percepção, desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) como presidente do Brasil em 2003 ao ciclo de protesto na Bolívia que levou Evo Morales e seu Movimento Socialista ao poder. Os jornalistas do mainstream começaram a se referir a uma maré-rosa que envolvia a região - havia muita conversa angustiada sobre um "continente esquecido" onde a economia sensata tinha dado lugar ao populismo desenfreado.

Para esses comentaristas, era muito desconcertante que qualquer pessoa na Venezuela achasse Hugo Chávez uma figura atraente; a ideia de que ele poderia ter um fã clube em expansão na Europa ou nos Estados Unidos pareceu a eles como uma loucura pura e simples. A única explicação que eles poderiam imaginar era um deleite sem graça nos discursos de Chávez contra o governo Bush - como sua atuação nas Nações Unidas em 2006, quando ele brandiu uma cópia da Hegemonia ou Sobrevivência de Noam Chomsky e em tom de brincadeira referiu-se ao presidente americano como o diabo.

Chavismo no poder

No entanto, se tiradas contra Bush e Cheney fossem suficientes para conquistar admiradores, Mahmoud Ahmadinejad teria se tornado um poster de calendário. Na realidade, o combate verbal a que Chávez se entregou desempenhou um papel insignificante na sua popularidade. O registro de seu governo no palco doméstico era o que realmente importava. Uma vez superada a tentativa inicial de sabotagem econômica da oposição de direita, o governo chavista presidiu drásticas reduções na pobreza e lançou grandes iniciativas em saúde e educação que melhoraram a vida de milhões de pessoas.

Os gastos sociais passaram de 8,2% do produto interno bruto em 1998 para 13,6% oito anos depois. A pobreza caiu de 55% em 2003 para pouco mais de 30% em 2006. Quando Chávez chegou ao poder, havia apenas 1.600 médicos de atenção primária para uma população de 23,4 milhões; no momento em que começou seu segundo mandato, havia quase 20.000 para uma população de 27 milhões. Mais de um milhão de pessoas se matricularam em programas de alfabetização de adultos. O aumento dos preços do petróleo facilitou esse trabalho, é claro - mas os críticos mais estridentes do chavismo simplesmente ignoraram esses sucessos.

Além dessas reformas econômicas, o governo Chávez transformou o sistema político venezuelano, tornando-o mais aberto e democrático. Chávez herdou uma cultura política marcada pela violência, a corrupção e o distanciamento quase total dos cidadãos venezuelanos de seus governantes. O momento decisivo do período que antecedeu a sua vitória foi o Caracazo de 1989. O presidente recém-eleito, Carlos Andrés Pérez, destruiu sua promessa de romper com o programa de austeridade que o Fundo Monetário Internacional determinou e impôs cortes profundos no gasto público, e depois enviou no exército para lidar com violentos protestos em Caracas e outras cidades.

O número exato de vítimas permanece desconhecido - muitos dos mortos foram enterrados em valas comuns -, mas o verdadeiro número pode ter chegado a 3.000. Este massacre foi deixado em silêncio por especialistas que afirmam que Chávez trouxe um novo tipo de amargura para a vida política do país e colocou seu povo uns contra os outros.

Quando Chávez iniciou seu segundo mandato, seu governo poderia reivindicar o crédito por uma reviravolta notável, como Julia Buxton descreveu:

"Segundo o Latinobarometro, a percentagem de venezuelanos satisfeitos com o seu sistema político aumentou de 32% em 1998 para mais de 57% e os venezuelanos são mais politicamente ativos do que os cidadãos de qualquer outro país pesquisado - 47% debatem política regularmente (contra uma média regional de 26%), enquanto 25% são ativos em um partido político (a média regional é de 9%). 56% acreditam que as eleições no país são "limpas" (média regional 41%) e junto com os uruguaios, os venezuelanos expressam o maior percentual de confiança nas eleições como o meio mais eficaz de promover a mudança no país (71% em relação a 57% para toda a América Latina)."

Uma nova Constituição outorgou aos cidadãos maior margem de manobra para responsabilizar seus governantes através de um direito de recall para todos os funcionários públicos (os partidos da oposição aproveitaram isso no referendo revogatório de 2004).

Isso foi conseguido apesar dos esforços constantes da oposição de direita para derrubar o governo eleito da Venezuela pela força e substituí-lo por uma ditadura de estilo Pinochet. Apesar de toda a cordialidade de seu relacionamento com Fidel Castro, Chávez não tentou imitar o sistema político cubano e mostrou muito mais clemência em relação aos golpistas do que se poderia esperar de qualquer governo da Europa Ocidental ou da América do Norte.

Não se trata de afirmar que o chavismo teve um registro perfeito quando se tratava de direitos democráticos: certamente havia motivos legítimos para criticar. Em particular, as condições lamentáveis nas prisões da Venezuela não foram, em grande parte, reformadas, e suas forças policiais tiveram uma relação frágil com os moradores dos bairros urbanos. Contudo, segundo os padrões aplicados a outros países das Américas, nada disso excluiria a Venezuela de ser considerada um Estado democrático.

Outras críticas simplesmente não levavam em conta a resistência violenta que Chávez enfrentara da oposição de direita desde que assumiu o poder. Mais uma vez, a amnésia histórica entrou em jogo: o perigo de uma contra-revolução violenta e a necessidade de tomar medidas decisivas para evitar esse perigo foram excluídos da análise mais liberal, como se não houvesse uma longa e horrível história de governos de esquerda democraticamente eleitos na América Latina sendo derrubados por golpes militares.

Como manter os lobos na porta, sem se tornar um lobo - isso sempre foi uma das questões fundamentais para os governos inclinados a uma mudança radical. Em vez de abordar frontalmente este dilema, a perspectiva liberal prescreve implicitamente a rendição perante a resistência implacável das forças conservadoras, mesmo que isso signifique deixar inquestionáveis graves injustiças. É uma abordagem que teria incapacitado Lincoln e Roosevelt tanto quanto Lenin ou Castro.

Chavismo crítico

O melhor contraponto à crítica padrão da Venezuela veio de entrevistas com ativistas de movimentos sociais, que contaram com militantes esclarecidos e experientes discutindo as forças e as deficiências da Revolução Bolivariana com brutal franqueza, desprezando a imagem de um líder carismático e populista distribuindo generosidade do Estado a uma massa de apoiadores crédulos. Essa era a voz do "chavismo crítico".

A esquerda venezuelana não tinha dúvidas de que o governo Chávez precisava de apoio nas suas batalhas contra a oposição de direita e o imperialismo norte-americano. De igual modo, não tinham dúvidas de que a experiência chavista continha sérias falhas que teriam de ser remediadas para sobreviver no longo prazo: a dependência exagerada da liderança de Chávez; práticas burocráticas no movimento chavista; corrupção generalizada entre os funcionários do Estado.

Mesmo assim, não havia dúvida de que o presidente da Venezuela desempenhou um papel decisivo na formação do processo. Grande parte do fascínio veio de tentar descobrir exatamente que ponto final Chávez tinha em mente. Ele tinha chegado ao poder vagamente apresentando-se como um líder da Terceira Via nos moldes de Clinton ou Blair. Foi somente quando as elites venezuelanas tradicionais responderam com total oposição que Chávez radicalizou sua agenda.

Como Mick McCaughan aponta em seu estudo sobre o início do chavismo, A Batalha da Venezuela, o momento decisivo veio em 2001, quando Chávez apresentou um pacote de 49 leis; embora as reformas fossem suaves em si mesmas, eles marcaram "o ponto em que o negócio, os meios de comunicação, o petróleo, a igreja e outros setores influentes colocaram a luva e exigiram que o governo cessasse ou enfrentasse a resistência total e contínua ao seu governo". A subversão exigia uma mobilização quase revolucionária em defesa do governo eleito.

Socialismo do século XXI

Foi somente na disputa para a eleição presidencial de 2006 que Chávez proclamou o socialismo como o objetivo de sua administração - "socialismo do século XXI", para ser preciso. Como o nome sugere, isso foi definido em oposição aos experimentos fracassados do século anterior; em um discurso tardio que buscou encapsular seu legado, o Golpe de Timón, Chávez exortou sua audiência a "lembrar a União Soviética, que se foi com o vento; na União Soviética, nunca houve democracia ... uma das coisas fundamentalmente novas sobre o nosso modelo é o seu caráter democrático".

Mas nunca ficou inteiramente claro como seria o socialismo do século XXI. Uma e outra vez, Chávez criticou o sistema capitalista e conclamou uma ruptura decisiva, mas a maior parte da economia venezuelana ainda permaneceu em mãos privadas. O setor estatal se expandiu e houve algumas experiências promissoras de autogestão dos trabalhadores, mas a velha classe dominante conservou grande parte de sua riqueza e uma nova elite - a chamada "Boliburguesía" - começou a consolidar sua posição.

Legado ambíguo

Quando ficou doente, Chávez deixou para trás três problemas-chave para seus sucessores. A primeira era a questão da liderança. Teria sido difícil encontrar um substituto para Chávez, um homem de raros talentos políticos com uma personalidade desmesurada. Mas a maneira como Chávez lidou com a questão, ao nomear Nicolás Maduro para ocupar seu lugar à frente do movimento, simplesmente reforçou os aspectos de sua abordagem de cima para baixo do chavismo.

Julia Buxton sugeriu que um processo de seleção primária permitindo que os apoiadores do governante Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) escolhessem entre concorrentes rivais teriam capacitado a base chavista e dado o PSUV um tiro muito necessário no braço. O registro de Maduro no escritório torna difícil discordar disso.

No campo econômico, Chávez deixou a Venezuela mais dependente do que nunca das exportações de petróleo. Nos primeiros anos de seu governo, houve muita discussão sobre diversificação da economia e construção de uma base industrial mais forte, mas esses planos caíram por terra, à medida que os preços do petróleo continuaram a subir. Teria sido uma conquista notável para qualquer governo superar a chamada "doença holandesa", numa época em que as flutuantes receitas petrolíferas sugavam importações baratas que colocavam o preço das indústrias venezuelanas fora do mercado interno. Mas os chavistas agravaram o problema com empréstimos pesados de Estados como a China, com base no pressuposto de que os preços não deveriam cair muito. Quando a parte inferior saiu do mercado, a Venezuela se viu exposta.

Acima de tudo, Maduro herdou um sistema de taxas de câmbio e controles de preços que foi originalmente criado para combater a sabotagem econômica da oposição no início dos anos 2000, mas há muito se tornou profundamente disfuncional. Apesar de sua complexidade desconcertante, os efeitos nocivos deste sistema foram (e são) bastante simples. Qualquer um que pudesse ter acesso a dólares à taxa oficial do governo seria capaz de vendê-los no mercado negro em uma marcação enorme. Os mesmos incentivos entraram em jogo com alimentos, remédios e outros bens básicos. Economistas simpáticos como Mark Weisbrot vêm destacando os efeitos nocivos deste sistema há anos - com uma crescente sensação de urgência à medida que a espiral descendente continua - e pedindo reformas drásticas, mas o problema foi simplesmente deixado de lado.

Guerra econômica?

Maduro culpou a oposição pela crise, acusando-a de travar uma "guerra econômica" contra seu governo. Mas não há necessidade de postular um motivo político direto: todos os vários atores tinham que seguir os incentivos do mercado e o resultado seria um acidente de carro econômico.

Se fala alguma coisa, a crise da Venezuela fala da ambiguidade do "socialismo do século XXI", que se viu preso na terra de ninguém. Ao impor controles de preços deixando a produção e distribuição de bens em grande parte em mãos privadas, o governo bolivariano foi longe demais para o capitalismo, mas não o suficiente para o socialismo. O colapso dos preços do petróleo teria causado graves dificuldades à Venezuela em qualquer circunstância, mas a incapacidade de reformar o sistema de controles é um erro grave e não forçado que pode muito bem ser fatal para todo o processo.

É tentador perguntar como Chávez teria respondido à crise se tivesse vivido alguns anos mais. Maduro tem sido notavelmente passivo desde que assumiu, sem aparente desejo de entender a urtiga da reforma. Muitos observadores acreditam que ele está relutante em desafiar interesses corruptos dentro da "Boliburguesía" que está tendo muito lucro com a configuração atual.

É fácil simplesmente contrastar as virtudes de Chávez com os vícios de seu sucessor: Maduro teve de enfrentar um contexto muito diferente, e seus problemas não surgiram da noite para o dia. Mas é difícil imaginar Chávez mostrando a mesma timidez diante do aparente desastre.

Os devaneios sobre um líder perdido não levarão os venezuelanos a lugar nenhum, é claro. É difícil ver como a crise de hoje pode ser resolvida de forma a preservar o legado construtivo do chavismo: sobretudo, os programas sociais que tanto fizeram para transformar a vida das classes populares e o profundo sentimento de empoderamento assumido entre setores tradicionalmente excluídos da população. Se a Venezuela tivesse uma oposição normal, um período de governo poderia ter dado ao movimento chavista a chance de recuperar seus rumos e refletir sobre o que deu errado.

Mas a oposição é tudo menos "normal": ainda dominada por vingativos oligarcas, não se pode confiar que o bloco de direita da Venezuela demonstre respeito pelos direitos democráticos se recuperar o poder. Quando isso acontecer,a liderança do PSUV pode já ter destruído as realizações mais marcantes da Revolução Bolivariana.

Boa esquerda, má esquerda

Era moda falar de uma "boa esquerda" e uma "má esquerda" quando a maré-de-rosa estava no auge. A boa esquerda - moderada, reformista, respeitável - foi supostamente exemplificada pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula no Brasil; a esquerda ruim foi exemplificada, claro, por Chávez. Em um sentido, esta era sempre uma dicotomia falsa e mentirosa. O próprio Lula nunca reconheceu sua validade: o presidente brasileiro manteve relações calorosas com Chávez e apoiou sua campanha de reeleição em 2012 (muito para o aborrecimento dos jornalistas que tentaram apresentar o candidato da oposição de direita como o "Lula da Venezuela") . Mas havia claramente uma diferença na abordagem do PT no cargo: mais cauteloso e consensual, menos inclinado a arriscar um confronto frontal com a oligarquia brasileira.

É, portanto, impressionante que ambos os experimentos tenham atingido os buffers quase exatamente ao mesmo tempo, com a direita brasileira derrubando Dilma Rousseff em um golpe parlamentar quando seu governo lutava para lidar com uma profunda recessão. A corrupção foi pouco mais do que um pretexto para o golpe de direita, mas ninguém podia duvidar que o PT se afastou muito de sua vocação original. As crises paralelas revelam o quanto os governos reformadores da América Latina deveram a um longo boom do preço das commodities que temporariamente deslocou o equilíbrio das forças econômicas globais a seu favor. A maior moderação no governo não protegeu a esquerda brasileira do fim desse boom.

Se a Venezuela e o Brasil simbolizavam duas abordagens da reforma na era da globalização, o governo do Congresso Nacional Africano (ANC) na África do Sul representou um terceiro: o da rendição total ao neoliberalismo. Essa capitulação foi aclamada como o epítome do bom senso pela mesma ortodoxia que vilificou Chávez e patrocinou Lula. A abordagem do ANC deixou intactas as estruturas econômicas do apartheid, foi acompanhada por uma corrupção desenfreada nos círculos governamentais e exigiu uma grande dose de repressão para manter o protesto social sob controle. Ninguém poderia seriamente apresentar isso como um resultado mais feliz do que aqueles no Brasil ou na Venezuela.

As lições terão de ser aprendidas com o fim da Revolução Bolivariana. Mas essas lições não devem incluir uma maior vontade de virar as velas - ou desistir completamente - diante da pressão do capitalismo global.

20 de maio de 2017

Reavaliando Stephen Jay Gould

Quinze anos após a sua morte, as ideias de Stephen Jay Gould nunca foram tão vitais.

Matthew Lau


Stephen Jay Gould. Wikimedia Commons

Tradução / No dia seguinte à morte de Stephen Jay Gould, seu obituário apareceu na primeira página do New York Times, certificando sua posição como o cientista mais famoso dos Estados Unidos. Seu talento para sintetizar ideias e argumentos, sua ética de trabalho e, como ele teria sido o primeiro a notar, a sorte o tornaram famoso.

Ele não planejava escrever sua coluna mensal, "Esta Visão da Vida", para Natural History por vinte e cinco anos, mas, como seu herói de infância Joe DiMaggio, Gould tornou-se conhecido por essa veia literária, que deu nova vida à arte meio esquecida do ensaio científico popular, uma tradição que remonta a Galileu.

Como Galileu, Gould fez mais do que interpretar a ciência para leigos. Ele também foi um teórico evolucionista e um organizador político de causas de esquerda.

Junto com seu colega Niles Eldredge, Gould mudou a maneira como os biólogos analisam o registro fóssil. Seu conceito de equilíbrio pontuado argumentava que novas espécies emergem relativamente rapidamente e depois permanecem principalmente estáveis por milhões de anos. Para desgosto de seus colegas mais paroquiais, Gould creditou em parte a inspiração para “punc eq” ao fato de ele ter “aprendido seu marxismo, literalmente no joelho de seu pai”.

Embora ele tenha sido repreendido por este comentário, Gould e Eldredge estavam falando como pluralistas e historicistas e não dogmatistas. “Fazemos um apelo simples ao pluralismo nas filosofias orientadoras (...) para o reconhecimento básico de que tais filosofias... constranger todo o nosso pensamento”.

Contexto histórico também age como uma restrição para novas ideias. Darwin reconheceu a influência da economia política clássica de Smith e Malthus em sua teoria da evolução. Gould observou que sua criação de esquerda e participação na revolução do Movimento pelos Direitos Civis o capacitaram a reconhecer a importância dos padrões de mudança evolutiva súbita e descontínua de “punc eq”.

Gould também revitalizou o estudo do desenvolvimento evolutivo com sua influente pesquisa histórica sobre o assunto, Ontogenia e Filogenia, e deixou sua marca na antropologia ao insistir que a evolução humana se assemelhava mais a um arbusto ramificado com várias linhagens sobrepostas do que a uma escada de estágios previsíveis.

Criado em uma família de esquerda em Queens, Gould liderou o capítulo juvenil da NAACP local. Ele exibiu seu talento como escritor desde cedo, quando apresentou os Nove de Little Rock em sua turnê de vitória em Nova York. “Eles são atormentados por racistas no Sul e por pessoas que pedem autógrafos aqui”, observou com ironia. Ele temia que seus valentes colegas adolescentes não tivessem a oportunidade de desfrutar da cidade de Nova York e agradeceu a eles por enriquecer o currículo de sua escola secundária com os problemas mais urgentes do dia. “Nenhum evento em minha memória jamais despertou tanto interesse no adolescente de Queens”, disse Gould ao público. “Nenhum evento jamais despertou nele tanto ódio pela segregação e por tudo o que ela representa”.

Enquanto estudava no Antioch College, ele participou de esforços de dessegregação em Yellow Springs, Ohio, e nos arredores. Em 1964, uma barbearia solitária que resistiu à dessegregação por quatro anos em Xenia, nas proximidades, se tornou brevemente o ponto focal nacional do Movimento pelos Direitos Civis. Mesmo estudando no exterior na Universidade de Leeds, Gould lutou por causas progressistas, trabalhando para dessegregar salões de dança e se juntando à campanha pelo desarmamento nuclear.

Esses dois aspectos da vida de Gould se intersectaram regularmente. Em 1982, ele atuou como testemunha especialista contra a “ciência da criação” em McLean v. Arkansas. Um ano antes, ele havia publicado sua intervenção política mais famosa, sua crítica vencedora de prêmios ao determinismo biológico, O Equívoco da Medida do Homem.

No cerne do Equívoco está o argumento de que os testes de QI do século XX compartilham o desejo de justificar hierarquias raciais e de classe com as medidas cranianas mais primitivas do século XIX e as teorias de fisiognomia criminal. Em ambas as épocas, os pesquisadores racionalizaram o status quo com a premissa de inteligência imutável e hereditária e a falácia da reificação, que afirmava que a inteligência pode ser reduzida a um único número e que esses números podiam ser usados para classificar as pessoas em uma escala linear.

O Equívoco também aborda a questão do viés de confirmação — especialmente o viés racial — nas ciências. No livro e em um artigo na Science que o antecedeu, Gould analisou as duas séries de medições cranianas do cientista racial do século XIX Samuel Morton, uma de 1839 e outra de 1849, para demonstrar que Morton manipulou inconscientemente seus dados para provar que os caucasianos tinham maiores volumes cranianos do que outros grupos raciais.

Gould também lembrou aos seus leitores que a eugenia e outras consequências do determinismo biológico ainda estão conosco. Os Estados Unidos, nação de imigrantes, usaram erroneamente testes de QI para estabelecer cotas para judeus do sul e do leste europeu em 1924 e mantiveram essas cotas em vigor enquanto milhões tentavam fugir da Alemanha nazista. O estado da Virgínia achou prudente esterilizar “idiotas” e “morões” até tão recentemente quanto 1972.

O Equívoco foi lançado justamente quando a academia estava aceitando mais mulheres e pessoas de cor em seus quadros. Graças ao estilo polêmico e à posição ativista de Gould, o livro quase imediatamente se tornou canônico no currículo de graduação.

Refutação e vindicação

Ou melhor, era — até que Gould voltou às manchetes do Times em junho de 2011. “Estudo Derruba Alegação de Racismo de Stephen Jay Gould sobre os Crânios de Morton”, proclamou o artigo. Uma equipe de antropólogos físicos, liderada por Jason E. Lewis, havia refeito aproximadamente metade dos crânios de Morton e reanalisado tanto seus resultados quanto os de Gould. Eles concluíram que “[i]ronicamente, a própria análise de Morton por Gould é provavelmente o exemplo mais forte de influência de viés”, citando importantes casos em que o trabalho de Morton era mais preciso do que o de Gould. No erro mais evidente, Gould inflou a capacidade craniana média dos crânios de nativos americanos ao “arbitrariamente” deixar de fora vários crânios menores em sua reanálise.

As pessoas reagiram rapidamente à revelação do suposto viés de Gould em relação à “correção política”. Escrevendo em seu influente blog, o antropólogo John Hawks descreveu o trabalho de Gould como pérfido e afirmou que ele “lançou dúvidas sobre a validade da empresa científica”. Ralph Holloway, membro da equipe que reanalisou Morton e Gould, explicou que “simplesmente não confiava em Gould”. “Eu tinha a sensação de que a postura ideológica dele era suprema… e sentia que ele era um charlatão.”

“Realistas de raça” de extrema-direita, sem surpresa, propagaram a notícia de que as descobertas de Gould haviam sido “refutadas”. Mesmo entre críticos e defensores mais ponderados, uma narrativa começou a se formar: Gould havia provado seu ponto, mas “não era o exemplo que ele pretendia”. Morton começou a parecer mais “injustiçado do que pecador”.

Ao final de seu artigo, Lewis et al. escreveram: “Se Gould ainda estivesse vivo, esperamos que ele teria defendido sua análise de Morton.” Isso é virtualmente certo: Gould reconheceu abertamente seus erros ao longo de sua carreira e chamou a “correção factual… o evento mais sublime na vida intelectual”. Gould não pode se defender, mas, como Lewis et al. podem, é curioso que eles não tenham respondido a estudos mais recentes revisados por pares que refutam aspectos-chave de seu trabalho.

Embora o Times ainda não o tenha relatado, evidências mais recentes sugerem que a reanálise dos crânios de Morton comete erros computacionais que favorecem os caucasianos. E, como vários estudos agora mostram, os cientistas não contestaram a alegação principal de Gould de que as inconsistências entre as medições de Morton em 1839 e 1849 indicam um viés racial inconsciente. Além disso, as diferenças entre os valores médios para todas as raças, quando corrigidas, eram, como Gould argumentou originalmente, tão pequenas a ponto de serem estatisticamente insignificantes.

Por que o Times não relatou essas descobertas mais recentes? A resposta também ajuda a explicar por que eles e outros veículos noticiosos relataram com entusiasmo a crítica a Gould em primeiro lugar. Como ele teria reconhecido, é uma questão de política.

Interpretação histórica como ciência

Embora ninguém soubesse disso em 2011, Nicholas Wade, o repórter que cobriu a história para o Times, publicaria um livro amplamente condenado de “ciência da raça” em 2014, chamado “A Troubling Inheritance: Genes, Race, and Human History”. Uma suposta síntese de pesquisas recentes em genética populacional que explica as diferenças culturais entre as civilizações branca, asiática e africana, o livro de Wade inspirou uma carta aberta de condenação, assinada virtualmente por todos os especialistas no campo da genética populacional.

Além da ressurreição patética do “racismo científico”, a controvérsia Gould-Morton tem uma dimensão política mais profunda. A ausência de cobertura jornalística sobre a vindicação de O Equívoco da Medida do Homem mostra como a imprensa popular privilegia a “ciência dura” sobre as “ciências humanas” da interpretação histórica. Gould lutou incansavelmente contra esse viés, que caricaturava paleontologistas como ele como “colecionadores de selos”.

Gould escreveu seu livro de 1989, Maravilhosa Vida: O Xisto Burgess e a Natureza da História, em grande parte para combater o viés em favor da ciência experimental. O Xisto Burgess, na Colúmbia Britânica, inclui o maior repositório de fósseis da explosão do Cambriano, o início da vida multicelular. Como o livro de Gould observa, os cientistas que trabalham com esses fósseis mudaram radicalmente os conceitos centrais da paleontologia. Contrariamente aos estudos anteriores, muitos dos fósseis do xisto não têm descendentes conhecidos. Isso significa que a vida era, de maneiras cruciais, e mais diversificada no início do período multicelular do que desde então. As espécies atuais evoluíram apenas de algumas linhagens “sortudas” sobreviventes.

Porque o trabalho envolvia apenas descrição “simples” e não trabalho experimental, as novas interpretações não ganharam manchetes. Gould contrasta isso com o outro grande desenvolvimento paleontológico do final do século XX, a “hipótese Alvarez”, que afirma que a extinção dos dinossauros resultou do impacto extraterrestre.

A teoria do impacto tinha tudo para o aplauso público — jalecos brancos, números, renome Nobel de [Alvarez] e a posição no topo da escala de status. As redescrições do xisto Burgess, por outro lado, pareciam uma série de coisas engraçadas uma após a outra — apenas descrições de alguns animais estranhos e não apreciados anteriormente do início da história da vida.

Ambas as descobertas contaram a mesma história envolvente; ambas “ilustraram… a extrema casualidade e contingência da história da vida”, mas apenas a “hipótese Alvarez” fez a capa da revista Time.

O mesmo privilegiamento da “ciência dura” explica por que os veículos de comunicação pegaram a crítica à análise de Gould, mas não sua subsequente vindicação. Essas reportagens enfatizaram que Lewis e outros haviam literalmente refeito centenas de crânios na coleção de Morton (presumivelmente usando jalecos brancos). No entanto, como uma crítica mais recente observou, “do ponto de vista da avaliação das alegações publicadas de Gould, a remedição foi completamente inútil”. “Gould nunca afirmou que as medições baseadas em tiros de Morton [posteriores], que é o que Lewis et al. compararam com suas novas medições, eram imprecisas”. Confirmando seu viés em relação aos métodos experimentais, “Lewis et al. estão… falsificando (suas palavras) uma alegação que Gould nunca fez”. Um problema conceitual tão evidente deveria nos levar, como teria levado Gould, a investigar o contexto histórico dessa suposta controvérsia.

O retorno da política de extrema-direita e do racismo era uma consequência depressivamente previsível da eleição do primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos. A administração Obama não ajudou, já que sua incapacidade de responder adequadamente à crise financeira de 2008 só radicalizou ainda mais alguns segmentos da população americana. Rebatizados como “alt-right” e “realistas de raça”, esse ressurgimento culminou na eleição de Trump e em sua nomeação de nacionalistas brancos para cargos de alto escalão.

Somente nesse clima Lewis et al. podem afirmar, sem ironia, que Samuel Morton era um pesquisador desinteressado e objetivo. Este mesmo Morton mediu crânios de nativos americanos “para determinar”, como seu apoiador George Combe colocou, se eles “pereceram” por causa de “uma diferença no cérebro entre a raça nativa americana e seus conquistadores invasores”. Este mesmo Morton buscou provar a tese poligenista, que sustenta que as raças humanas surgiram separadamente. Este mesmo Morton foi elogiado na principal revista médica do sul de sua época “por ajudar materialmente a dar ao negro sua verdadeira posição como uma raça inferior”.

As ideias de Gould permanecem vitais porque o racismo reacionário de hoje não é um desenvolvimento inteiramente novo. Em vez disso, estende a luta que Gould travou ao longo de sua carreira.

Em 1996, ele reeditou O Equívoco da Medida do Homem para incluir novo material que desmentiu A Curva de Bell o best-seller determinista biológico do início dos anos 1990. Nesta segunda edição, Gould situou a obra em seu contexto histórico, argumentando que a novidade não poderia explicar sua popularidade. Afinal, seus argumentos centrais já haviam sido desacreditados em numerosos aspectos. Em vez disso, Gould argumentou:

Seu sucesso inicial deve refletir o temperamento deprimente de nossa época – um momento histórico de falta de generosidade sem precedentes, quando um desejo de cortar programas sociais pode ser tão apoiado por um argumento de que os beneficiários não podem ser ajudados devido a limitações cognitivas inatas expressas como baixos escores de QI.

Ele teria ficado triste, embora talvez não surpreso, ao ver este momento histórico evoluir para uma reação completa. O registro cuidadoso de O Equívoco da Medida do Homem sobre como desde testes pseudocientíficos de inteligência até programas de esterilização forçada foram usados para manter hierarquias raciais e de classe dá aos leitores uma boa ideia do que significa tornar a América grande novamente.

Esperança difícil

Não é tarefa fácil resumir a diversidade dos trezentos ensaios de Gould para a Natural History. Do polegar do panda ao sorriso do flamingo; dos genitais da hiena aos mamilos do macho humano; das contingências pouco conhecidas da vida de Darwin à virtual impossibilidade de a vida inteligente estar sempre em evolução, os ensaios de Gould são tão instrutivos quanto surpreendentes e divertidos.

Mas, segundo Gould, temas básicos sustentavam tudo isso e a diversidade. Ele estava interessado no “significado do padrão na história da vida, na natureza da história, e no que significa dizer que a vida é o produto de um passado contingente, não o resultado inevitável de leis simples e atemporais da natureza”. Os críticos acham essa ênfase na imprevisibilidade deprimente. Equivale a algo mais do que dizer “as coisas acontecem”?

Gould, é claro, viu de forma diferente. A sorte de estar aqui deve nos tornar mais conscientes da fragilidade de nossa existência e nos forçar a reconhecer que não temos a quem buscar orientação além de nós mesmos.

Em Wonderful Life, Gould argumentou que a evolução da vida inteligente representa um resultado tão único e improvável que, se você começasse a vida no início da explosão do Cambriano, diferentes organismos primitivos teriam sobrevivido à dizimação do período, e nós nunca teríamos existido:

O senso de responsabilidade moral de Gould figura no outro projeto principal de sua coluna – o que os marxistas reconheceriam como sua crítica à ideologia e o que ele chamou de “implicações sociais do ataque científico aos vieses generalizados do pensamento ocidental”.

Gould listou quatro desses vieses: “progresso, determinismo, gradualismo e adaptacionismo”. Eles persistem porque servem como um grande conforto para muitos. O determinismo e o adaptacionismo nos dizem que somos feitos para estar aqui e somos bem adequados para a sobrevivência; O gradualismo e o progresso nos dizem que a mudança ocorre de maneiras previsíveis. Em suma, esses vieses nos ensinam que tudo acontece por uma razão.

Como Gould apontou, mesmo causas progressistas como o movimento ambientalista são vítimas da arrogância desses vieses. Os ativistas verdes assumem com demasiada frequência que a Terra é tão delicada que podemos destruí-la e que, portanto, assumimos a responsabilidade de salvá-la. Com um sarcasmo nova-iorquino, Gould respondeu: “Devemos ser tão poderosos!”

Ele insistiu que os humanos – não a Terra – são os que estão em perigo. Mas essa visão não torna as mudanças climáticas menos uma crise. Como ele mesmo disse:

Nosso planeta não é frágil em sua própria escala de tempo, e nós, lamentáveis retardatários no último microssegundo do ano planetário, somos guardiões de nada a longo prazo. No entanto, nenhum movimento político é mais vital e oportuno do que o ambientalismo moderno – porque devemos salvar a nós mesmos (e a nossa espécie vizinha) de nossa própria loucura imediata.

Com sua experiência de organização esquerdista e sua consciência das consequências do desenvolvimento humano em nossa própria sobrevivência, você poderia esperar que Gould teria dedicado inúmeras colunas à crise ecológica. Mas esperou, explicou, até poder contribuir com algo mais do que uma repetição dos “shibboleths do movimento”.

Em seu ensaio sobre a extinção do caracol terrestre Partula na ilha de Moorea, na Polinésia Francesa, Gould argumentou que deveríamos lamentar pelo cientista Henry Crampton, cuja vida de dedicação ao estudo de Partula em uma ilha remota em circunstâncias adversas foi apagada pelas consequências não intencionais da introdução de criaturas predadoras no ambiente. Embora Gould também fosse um especialista em caracóis terrestres, como ele explica, a questão é que precisamos de uma ecologia humanista também, “tanto pela razão prática de que as pessoas sempre tocarão as pessoas mais do que os caracóis fazem ou podem, quanto pela razão moral de que os humanos são legitimamente a medida de todas as questões éticas — pois essas são nossas questões e não da natureza”.

Então, o que Gould diria hoje, à medida que a dizimação ambiental se intensifica e o governo Trump começa a reverter as medidas quase inadequadas tomadas para lidar com as mudanças climáticas? Uma pista reside nos comentários de Gould após os ataques terroristas do 11/9.

Ele morava no SoHo na época, e ele e sua família se voluntariaram incansavelmente para apoiar socorristas e equipes de limpeza. Em meio a tanto sofrimento, poderíamos esperar que os escritos de Gould se tornassem desanimadores e pessimistas. Mas manteve-se otimista. Por que?

Gould apostou muitos de seus argumentos no conceito de frequência relativa, que sustenta que, quanto mais algo ocorre, mais importa. Essa ideia tornou o equilíbrio pontual significativo, porque a estase entre as linhagens no registro fóssil tinha alta frequência relativa, mas “anteriormente havia sido ignorada como não evidência de não evolução”. Gould notou a alta frequência relativa da decência humana básica nas semanas seguintes ao 9/11.

Depois de anos de guerras equivocadas e um estado policial expandido, é fácil esquecer que a interpretação do evento era uma questão em aberto naqueles dias perto do fim da vida de Gould. “O Marco Zero”, observou ele, “é um ponto focal para uma vasta rede de bondade fervilhante, canalizando incontáveis atos de bondade de um planeta inteiro”. O povo de Halifax, onde ele ficou quando seu avião foi desviado durante os ataques, recebeu ele e milhares de outros viajantes retidos.

Gould dedicou sua última coluna em História Natural a seu avô, Papa Joe, que chegou aos Estados Unidos, por uma estranha coincidência, em 11 de setembro de 1901. Como tantos imigrantes judeus na virada do século XX, seu avô encontrou trabalho no distrito de vestuário de Manhattan, lutou contra a pobreza, mas ainda assim conseguiu encontrar seu caminho. “Ele e minha avó criaram quatro filhos”, escreve Gould, “todos imbuídos dos valores comuns que enobrecem nossa espécie e nação: justiça, bondade, a necessidade de se elevar pelos próprios esforços”. Gould argumentou que as inúmeras histórias comuns como a de Papa Joe “ofuscarão, no brilho da esperança e da bondade, o ato louco de destruição espetacular que envenenou o centenário de sua vida”.

É tentador rotular essas observações como polianas, mas Gould não foi ingênuo. O filósofo nele falou da “Grande Assimetria”: um ato destrutivo pode desfazer anos de esforço cuidadoso, mas as pessoas decentes ainda superam largamente suas contrapartes. Ao mesmo tempo, o veterano organizador político em Gould sabia que tomaria medidas concertadas. Seu ensaio sobre Papa Joe encerra:

Venceremos agora porque a humanidade comum detém uma vantagem triunfante em milhões de pessoas boas sobre cada psicopata mau. Mas só prevaleceremos se conseguirmos mobilizar essa bondade latente em vigilância e ação permanentes.

O apelo à “vigilância e ação permanentes” sob a rubrica de “esperança dura” em resposta ao trabalho de extremistas reacionários que rejeitam a modernidade foi o tema final de Gould como intelectual público. Com a esquerda retornando ao seu dever de organização e lembrando suas raízes nos projetos do Iluminismo e da modernidade, devemos nos comprometer com o legado de Gould de "esperança dura".

Colaborador

Matthew Lau é professor assistente de inglês no Queensborough Community College, City University of New York. É autor do livro Sounds Like Helicopters: Classical Music in Modernist Cinema.

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