Mostrando postagens com marcador José Murilo de Carvalho. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador José Murilo de Carvalho. Mostrar todas as postagens

1 de janeiro de 2022

200 anos de Independência do Brasil: pouco a celebrar, muito a questionar

Olhando para a frente, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza

José Murilo de Carvalho (*)

O Estado de S. Paulo


O Brasil não tem sorte com seus centenários. O primeiro, em 1922, teve de conviver com os restos da devastação causada pela gripe espanhola, chegada ao País em 1918. Calculam-se em cerca de 35 mil as mortes causadas no País, concentradas no Rio de Janeiro e São Paulo. Entre elas não estava, como se costuma afirmar, o presidente eleito, Rodrigues Alves, embora tenha morrido antes de assumir. O ano de 1922 foi ainda marcado pela primeira revolta tenentista e pela decretação do estado de sítio pelo presidente Epitácio Pessoa, destinada a garantir a posse do presidente eleito, Artur Bernardes. Nas celebrações, destacou-se a Exposição Internacional de que participaram 14 países. O segundo centenário, a ocorrer ano que vem, virá na cauda de outra pandemia, a da covid-19, chegada ao País em 2020 e que já matou cerca de 620 mil brasileiros, embora também sem matar presidente. Junto com a pandemia, temos hoje um país às voltas com um tumultuado mandato presidencial que gerou dúvidas sobre a solidez de nossa jovem democracia e, mais ainda, com o imenso drama social do desemprego, da desigualdade, da exclusão, da fome. Até agora, não há indicação de que haverá alguma importante celebração oficial, ficando os registros da efeméride a cargo da mídia, das instituições e do meio acadêmico.

Nesses registros, naturalmente, haverá retomadas de temas estritamente históricos, mas é importante que sejam também usados como oportunidade para uma avaliação dos 200 anos de nossa vida independente. Quero dizer com isto examinar a natureza do percurso feito, verificar onde acertamos, onde erramos e como chegamos à situação atual. Baseados neste exame podemos também perguntar sobre o que nos pode esperar no futuro próximo. Mao Tsé-tung dizia ser ainda cedo para avaliar adequadamente o impacto da Revolução Francesa. Para nós, no entanto, que sofremos de Alzheimer coletivo, dois séculos já são tempo suficiente para fazermos um balanço do que fizemos e perscrutarmos nosso futuro próximo.

As mudanças nesses 200 anos foram enormes. Passamos de um país de cerca de 5 milhões de habitantes, dos quais um milhão de escravos e 800 mil indígenas, para outro de 214 milhões; de um país com cerca de 10% de população urbana em 1822 para outro de 85% hoje; de um país de economia totalmente agrícola em 1822 para outro com larga participação industrial hoje; de uma população formada exclusivamente por indígenas, africanos e lusos para outra muito mais diversificada pela entrada de italianos, espanhóis, alemães, sírios, libaneses, japoneses; de uma população concentrada na região costeira para outra que cobre todo o território nacional. No entanto, todos os analistas que se encarregaram do tema de nossa trajetória, como Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Nestor Duarte, Raimundo Faoro, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, entre outros, reconhecem que há mais continuidades do que rupturas. Somos um país sem revoluções. O que chamamos de revolução, como a de 1930, não passou de ajustes entre grupos dirigentes. O povo só entrou no sistema político a partir da segunda metade do século 20, tendo sido logo contido por uma ditadura.

Quando falo do drama social que desautoriza celebrações me refiro, naturalmente, ao problema da desigualdade, que é de todos conhecido, mas sobre o qual, a meu ver, mais se fala do que se faz. Lembro alguns dados de amplo conhecimento. Segundo dados do IBGE, o auxílio emergencial criado para atender os mais necessitados, adicionado aos recursos do agora extinto Bolsa Família, abrangeu cerca de cem milhões de pessoas, quase a metade da população. Somos o oitavo país mais desigual do mundo e ocupamos a 84.ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Em 2010, o 1% mais rico da população detinha 44% da riqueza nacional. Ao mesmo tempo, há três décadas, estamos crescendo a taxas medíocres incapazes de gerar os empregos necessários e viabilizar políticas sociais mais substanciais. No entanto, apesar de termos uma das mais altas franquias eleitorais do mundo ocidental (16 anos), temos sido incapazes de aprovar no Congresso medidas redistributivas de renda, como o aumento do imposto sobre heranças, a taxação de dividendos, a alteração nas faixas do Imposto de Renda. Distribuímos, mas não redistribuímos.

Nossa faixa mais alta de Imposto de Renda é de 27,5%. Nos Estados Unidos, ela é de 37%, no Chile, é de 40%, em Portugal, de 48%, no Japão, de 56%. Estamos acumulando uma enorme massa de desempregados, subempregados e não empregáveis sem perspectiva realista de solucionar o problema. Olhando agora para a frente, mesmo que em prazos mais curtos do que os dos chineses, digamos uns 30 anos, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza.

A hipótese pode soar apocalíptica, mas talvez estejamos a brincar, ou a brigar, na praia, alheios ao tsunami que se delineia no horizonte.

(*) Formado na UFMG, mestre e PH.D em Ciência Política e pós-doutor em História pela Universidade de Stanford

28 de maio de 2017

Brasil não soube assimilar entrada do povo na vida política, diz historiador

Historiador argumenta que, a partir de 1930, a vulnerabilidade de presidentes eleitos tornou-se o feijão com arroz da política nacional. A instabilidade decorre da incapacidade dos governantes de lidar com a ascensão do povo como ator relevante e portador de demandas novas num país marcado pela desigualdade.

José Murilo de Carvalho

Folha de S.Paulo

Manifestante observa protesto em frente ao Congresso na última quarta-feira (24). (Wallace Martins/Futura Press/Folhapress)

Mirar o passado para entender o presente é complicado, pois a história não se repete nem como tragédia, nem como farsa; assemelha-se mais ao rio de Heráclito, em que não se pode entrar duas vezes. No entanto, há sem dúvida continuidades que justificam o exercício.

A crise atual, em sua dimensão política, foi deslanchada pela substituição do chefe de Estado sem a intervenção de eleições. Não que se trate de novidade entre nós. Desde 1930, por dentro da Constituição ou à revelia dela, tem sido frequente esse tipo de substituição.

Antes, houve a estabilidade imperial e a da Primeira República. Uma foi garantida pelo sistema monárquico-constitucional do Segundo Reinado (1840-1889), em que o chefe de Estado não era eleito; a outra, de 1889 a 1930, pelo arranjo oligárquico montado a partir de Campos Sales (1898-1902).

Uma simples estatística demonstra a mudança havida depois de 1930, ano a partir do qual a vulnerabilidade da Presidência em eleições diretas virou o feijão com arroz de nossa política.

Nesse período de 87 anos, somente cinco presidentes eleitos pelo voto popular, excluídos os vices, completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Juscelino Kubitschek (1956-1961), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014).

Quatro não completaram: Getúlio Vargas (1951-1954), Jânio Quadros (1961), Fernando Collor (1990-1992) e Dilma Rousseff (2015-2016).

Além disso, sete não foram eleitos pelo voto direto: Getúlio Vargas (1930-1945), Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979), João Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990).

Estabelecido o fato, o passo seguinte é buscar alguma explicação para ele. Um modo de fazê-lo é procurar o surgimento de outro fenômeno político da época.

O novo


O que mais chama a atenção, embutido na própria Revolução de 1930, é a entrada do povo na vida política, deixando de ser o bestializado de Aristides Lobo (em 1889, a respeito da Proclamação da República, o jornalista escreveu: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava").

A Primeira República não tinha povo. Nela, apenas 5% da população votava; a participação popular se dava à margem do sistema representativo, em revoltas urbanas, como a da Vacina, messiânicas, como as de Canudos e do Contestado, ou greves operárias nas grandes cidades.

Após 1930, sob inspiração do cenário internacional, surgiram a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Revoltas pipocaram pelo país, muitas delas chefiadas por oficiais militares de segundo escalão ou mesmo sargentos, como as de 1935 e 1938. Ao final da década, os trabalhadores, na defensiva até então, passaram a ser interpelados pelo governo e se transformaram em ator político intrassistêmico.

Com a democratização de 1945, a inclusão do povo passou a ser feita também por via eleitoral e se deu a passos largos. Se em 1930 votavam 5% da população (menos de 2 milhões de pessoas), em 1945 já foram 13% (6 milhões de pessoas), aí incluídas as mulheres, admitidas à cidadania política pelo Código Eleitoral de 1932.

Daí por diante, o crescimento foi constante. Em 1960, o número de votantes subiu a 18%. Em 1986, chegou a 47%. Em 2014, os habilitados a votar já eram 71% dos brasileiros, cerca de 140 milhões de pessoas. Foi um tsunami de povo no sistema representativo.

Acoplado a esse crescimento veio o instrumento capaz de tornar a participação politicamente eficaz: a gestação de um inédito partido dos trabalhadores.

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi criado em 1945 por inspiração de Getúlio Vargas, que, para tanto, credenciara-se pela legislação trabalhista de 1943 (CLT).

Gerado no bojo do queremismo, que pedia uma constituinte com Vargas, o partido se expandiu depressa: em 1946, elegeu 22 deputados; em 1962, dois anos antes do golpe de 1964, contava 116 representantes na Câmara.

Em contraste, os dois principais partidos conservadores, o PSD e a UDN, que tinham mais de 80% dos assentos na Câmara em 1945, caíram para 51% em 1962.

Ficou famosa, e contribuiu para sua queda, a frase dita por Vargas em discurso dirigido aos trabalhadores no Dia do Trabalho em 1954: "Hoje estais com o governo, amanhã sereis o governo". Era uma declaração impensável poucos anos antes e não foi repetida depois.

O combate ao PTB marcou duas crises. Em 1954, o pretexto foi a corrupção; em 1964, o comunismo.

A oposição a Getúlio e a João Goulart beneficiou-se amplamente do clima de guerra fria e da intervenção militar. A entrada do povo, vinho novo, tinha explodido o sistema, odre velho. O novo ator, via partido e sindicatos, trazia demandas que ameaçavam um país secularmente marcado por persistente desigualdade.

Pela primeira vez, entrou na agenda política, trazida pelo PTB, a cobrança de políticas distributivas encarnadas nas reformas de base propostas por Goulart. Embora ainda escorados no Estado, os portadores da nova agenda ensaiavam passos mais independentes –e foram defenestrados.

Golpe Militar


A fase seguinte, a da ditadura (1964-1985), apresentou aspectos contraditórios quanto à participação popular.

De um lado, em 21 anos, 53 milhões de brasileiros foram incorporados ao sistema político pelo direito ao voto, número igual à população total do país em 1950.

Do outro, extinguiram-se os partidos que desde 1945 vinham configurando um novo sistema representativo; eliminaram-se as eleições diretas para cargos executivos; cassaram-se deputados e fechava-se o Congresso sempre que a Casa se recusava a atender às exigências do Executivo.

Até a eleição de 1982, o partido oficial, a Arena, manteve maioria na Câmara, com base sobretudo nos votos das regiões mais pobres. O sucessor da Arena, o PDS, era chamado de partido do Nordeste.

Ao mesmo tempo, houve dramática mutação na estrutura ocupacional e na taxa de urbanização. Milhões migraram para as cidades, fugindo ao controle dos coronéis.

Na década de 1980, a oposição começou a ganhar eleições tanto para o governo dos Estados quanto para o Senado, forçando o retorno do multipartidarismo.

A história da representação após 1985 é conhecida. Foi marcada principalmente pelo surgimento do PT (em 1980), cuja proposta era retomar em novas bases a representação do povo/trabalhador com uma agenda voltada para a redução da desigualdade.

Como o PTB nos anos 1950, o partido teve crescimento rápido e, sem guerra fria e interferência militar, conseguiu chegar ao poder, embora pagando o alto preço de uma aliança conservadora com o PMDB.

Antes disso, a consistência ainda frágil das legendas redundou na eleição de Fernando Collor, um aventureiro sem base partidária que teve o destino que se sabe.

Com a sequência Fernando Henrique-Lula, que durou 16 anos, parecia que o país finalmente entrara em um ciclo virtuoso, no qual a democracia política (entrada de povo) parecia conjugar-se com a democracia social (igualdade) e a estabilidade política.

A entrada maciça de novos atores na política e a diversificação da sociedade pela urbanização e pelo crescimento econômico, acopladas à multiplicação de partidos (hoje são 35), teve como consequência a fragmentação da representação, inclusive a das camadas populares.

Povos


Hoje, não há um povo eleitoral, há vários povos.

Há o povão das políticas sociais, sobretudo do Bolsa Família, que não se manifesta enquanto essas políticas são mantidas. Há o povo muito aguerrido formado por operários e setores da classe média, organizado em sindicatos e associações. Há o povo que foi à rua em 2013, de comportamento errático, composto de setores da classe média. E há o povo das redes sociais, de impacto crescente na política, mas ainda de difícil avaliação.

A diversificação da sociedade, a democratização da política e a fragmentação dos partidos estão na base da crise atual.

O impeachment de Dilma Rousseff deveu-se –para além de seus erros elementares na política econômica que inviabilizaram a continuação de uma política distributiva– à corrosão de sua base parlamentar e à imensa corrupção gerada pela necessidade de comprar alianças de outras siglas.

Uma corrupção de que participou com destaque o próprio PT, que, com isso, perdeu boa parte de sua credibilidade política e de sua eficácia como defensor das mudanças sociais.

Passados 87 anos de 1930, ainda estamos lutando com o problema de construir uma democracia inclusiva, capaz de sustentar governos representativos que possam combinar estabilidade institucional com implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades da maioria dos representados.

A ser correta minha argumentação, seria plausível atribuir a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.

Sobre o autor


José Murilo de Carvalho, 77, cientista político e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, é autor de "Cidadania no Brasil, o Longo Caminho" (Civilização Brasileira).

O guia essencial da Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...