25 de novembro de 2019

Aos 83 anos, Ken Loach ainda é perigoso

Após anos de abandono, primeiro com o thatcherismo, depois com o Novo Trabalhismo, tanto a esquerda quanto o diretor britânico Ken Loach estão chegando ao auge.

Dawn Foster


O diretor de cinema britânico Ken Loach gesticula durante uma sessão de fotos para o filme "Sorry We Missed You" na 72ª edição do Festival de Cinema de Cannes, em Cannes, sul da França, em 17 de maio de 2019. (Foto de LOIC VENANCE / AFP via Getty Images)

Ken Loach está sentado ao meu lado em Brighton, em um canto escuro de um pub tranquilo com paredes de madeira, tomando um suco de laranja. Ele parece bastante triste quando me diz o quanto está decepcionado com a mídia. “As distrações e as difamações contra os trabalhistas são um grande problema”, diz ele. “O Guardian está na linha de frente desses ataques. E é o mais perigoso porque é lido por pessoas da esquerda.”

O colunista desse jornal, Jonathan Freedland, atacou Loach por ter defendido Corbyn de falsas acusações de antissemitismo, acusando-o de “emprestar uma legitimidade espúria à negação do Holocausto”. Depois que Loach solicitou um direito de resposta, o Guardian não o concedeu e depois alegou que era tarde demais para publicá-lo. Mas quando pergunto a Loach como ele se sente em relação ao próprio Partido Trabalhista, renascido sob a liderança de Corbyn, a história é completamente diferente. “Esperançoso”, diz ele, com um sorriso tranquilo.

Depois de décadas no desconhecimento, e apesar das nuvens no horizonte, parece que Loach – assim como o próprio Corbyn – está finalmente aproveitando seu momento ao sol.

Em 2016, uma das obras mais célebres do diretor britânico, a série de TV Cathy Come Home, completou 50 anos. Uma série de eventos, incluindo palestras, painéis de discussão e peças teatrais, foi encomendada para marcar o aniversário, mas também para considerar como seus temas – falta de moradia, miséria, abandono do Estado – continuam sendo problemas na sociedade contemporânea. A falta de moradia, havia aumentado sob o regime de austeridade instituído pela coalizão conservadora-liberal-democrata, e o desempenho lento do Partido Trabalhista na construção de casas, combinado com sua atitude relaxada em relação àqueles que lucram com o mercado imobiliário, que só ajudou a crise a crescer.

“Tínhamos a sensação de que havia algo realmente chocante acontecendo, e isso aumentou quando saímos com Jeremy [Corbyn] e descobrimos as condições em que os sem-teto estavam vivendo”, disse Loach. “As acomodações eram realmente terríveis. Quartos que eram divididos por papelão, nos quais uma família inteira ficava alojada. Tivemos a sensação de pobreza profunda. Quando nos demos conta disso, percebemos que tínhamos uma história para contar.”

Mas se o público ficaria igualmente chocado foi respondido pelo próprio trabalho de Loach – seu filme de 2016 sobre um carpinteiro recém-desempregado forçado a usar bancos de alimentos em Eu, Daniel Blake, que dividiu opiniões. Muitos concordaram que o filme era contundente, difícil de engolir e uma descrição precisa da vida na ponta afiada das sanções aos benefícios fruto da política de austeridade conservadora. Mas a direita, a mais fiel torcida do governo, criticou o filme, considerando-o piegas e inacreditável.

“Tínhamos a sensação de que estávamos no caminho certo porque se tratava de uma história que não era de conhecimento público”, conta Loach, fazendo uma breve pausa. “E, no entanto, centenas de milhares de pessoas conheciam. E ninguém poderia deixar de ser tocado por ele. Como conseguimos nos conectar com as pessoas por meio do cinema, que é uma mídia realmente poderosa, tivemos a sensação de que estávamos no caminho certo.”

Camilla Long, uma crítica de cinema de origem aristocrática, disse que o filme nunca pareceu verdadeiro. Toby Young, o jornalista renegado e filho do falecido membro da Câmara dos Lordes, Michael Young, concordou que era “difícil de acreditar”. As críticas foram apoiadas por Iain Duncan Smith, ex-secretário de Trabalho e Previdência, responsável por algumas das dificuldades retratadas em Eu, Daniel Blake.

A diferença na recepção entre os dois filmes foi gritante: quando Cathy vem pra casa foi lançado em 1966, o público e os políticos ficaram comovidos com o fato de um cineasta dar um rosto humano a uma situação social conhecida. O despejo de Cathy e o sofrimento de seus filhos convenceram muitos da necessidade de ação.

Já a recepção de Eu, Daniel Blake, no entanto, mostrou que os detentores do poder eram agora extremistas que não se importavam com o sofrimento causado por suas políticas. Depois que o filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Loach e a produtora Rebecca O’Brien disseram que poderiam facilmente ter escolhido uma narrativa mais angustiante, e havia muitas disponíveis, mas depois de passar dias em bancos de alimentos ouvindo histórias, eles optaram por se concentrar em uma situação que poderia acontecer com qualquer pessoa.

Enquanto o despejo de Cathy é centro do filme, Daniel Blake fica preso em um pesadelo burocrático ao tentar obter benefícios. Paul Laverty, parceiro de longa data de Loach nos roteiros, me disse: “Todos ignoraram o filme até ele ganhar a Palma de Ouro, e então houve toda uma série de ataques, muitos contra Loach, alegando que esse homem não ama seu próprio país. Eles criticaram o filme, mas não puderam dizer que estávamos incorretos de forma alguma.”

Você não estava aqui, recente filme de Loach, lançado no outono de 2019, concentra-se em um casal, ambos com empregos precarizados – a esposa como cuidadora de idosos e o marido como entregador – e em como pequenos contratempos os levam da quase sobrevivência à ruína financeira. “Ele mostra o fim da privatização definitiva”, diz Laverty. “Quando as pessoas estão isoladas, fragmentadas e quando estão sozinhas, as pessoas engolem isso. É uma grande ilusão, sabe, porque transfere toda a responsabilidade social para o indivíduo.”

O filme optou deliberadamente por analisar o mundo do trabalho e, especialmente, a economia de bicos. Depois do sucesso de Eu, Daniel Blake, que mostrou como a pobreza e a desigualdade continuam sendo problemas para as pessoas que trabalham nesse setor, Você não estava aqui mostra como a tecnologia está tornando o trabalho mais difícil e menos seguro e, ao mesmo tempo, economizando dinheiro para as empresas. A linguagem usada pela empresa de entregas no estilo da Amazon, como “onboarding” e “owner-driver-franchisee”, bem como a nova tecnologia de vigilância, desumaniza os personagens. E há pouco espaço para doenças, contratempos, emergências familiares ou até mesmo para se recuperar após ser vítima de um crime violento quando se está envolvido nesse ambiente precarizado de trabalho.

Atualmente, Loach se concentra sobretudo em longas-metragens, mas seus 61 anos de carreira também abrangem televisão e documentários. Apesar de ter estudado direito na Universidade de Oxford, ele teve sua chance de trabalhar na série The Wednesday Play, da BBC, ao lado de Tony Garnett, outro colaborador que nasceu, como Loach, em 1936. “Não éramos micro-gerenciados”, conta Loach, ”mas trabalhávamos para um iconoclasta, Jimmy MacTaggart, que gostava de provocar o establishment. Mas nos deram um trampo na rádio, em um horário de pico, em uma quarta-feira, após o noticiário das nove horas. Queríamos que as pessoas usassem o mesmo olhar crítico que usam para as notícias. Esse foi um ponto de virada e o que tenho feito desde então.”

O trabalho de Garnett e Loach em The Wednesday Play e Play for Today continuou ao longo dos anos 1960, com a dupla trabalhando em várias dramatizações de romances do falecido autor Barry Hines, com foco nas lutas sociais e econômicas da vida no norte da Inglaterra. Desses filmes, Kes (1969) continua sendo o mais duradouro, apelando para o isolamento de muitas crianças mais velhas e adolescentes e, ao mesmo tempo, sendo abertamente político e sem pudor sobre o desperdício humano e a crueldade que a desolação econômica inflige a uma área.

Kes é a história de um garoto da classe trabalhadora que foge do trabalho enfadonho praticando falcoaria com um pequeno pássaro que encontra em um ninho. À medida que ele treina o pássaro e o relacionamento entre eles cresce, o garoto começa a sair de sua concha. A gentileza do espírito, seu relacionamento com o pássaro e a tragédia do final ainda ressoam nos espectadores décadas depois.


Mas, embora Loach tenha começado a trabalhar na BBC e se lembre com carinho da era de MacTaggart, ele não tem ilusões sobre o estado atual da instituição: “É um braço do Estado, que dirige o local como a polícia, como o monarca. E, de vez em quando, a máscara da BBC cai. Vimos isso na greve dos mineiros, vimos isso novamente no Panorama [documentário] contra Corbyn sobre antissemitismo, que era claramente uma ferramenta de desinformação, e era tão desequilibrado que quebrou o Estatuto da BBC”.

A militância política de Loach começou ao mesmo tempo em que sua carreira na BBC: “Entrei para o Partido Trabalhista em 1964 para apoiar o governo de Harold Wilson, distribuí panfletos em Hammersmith [no oeste de Londres], e demorou cerca de um ano para que eu começasse a enxergar o que ele tinha a dizer, então eu e todos os meus amigos nos juntamos à esquerda anti-establishment.” Mas Loach diz que alguns períodos são mais esperançosos e cheios de crise, ao mesmo tempo em que incentivam mais protestos e produções criativas do que outros, citando o auge do thatcherismo, a década de 1960 e os dias de hoje como esses períodos: “Acho que, em momentos de crise, as pessoas se sentem motivadas a escrever, a criar, a compor músicas. A greve dos mineiros foi um exemplo clássico disso. Havia grupos de escrita criativa criados nas vilas das minas, algo que não víamos há décadas. Mas há uma reconexão com a juventude, uma necessidade de expressar sua raiva ou seu desespero. E acho que há um movimento crescente nesse sentido. Existe um senso de indignação real. É claro que o grande truque que o establishment sempre usa é encontrar alguma atividade de deslocamento. Quero dizer, o grande horror com isso foi na década de 1930, mas na década de 2010, a atividade de deslocamento transfere sua raiva em relação à sua própria situação da causa real da situação para os migrantes e quaisquer pessoas diferentes. De alguma forma, o establishment canaliza seu ressentimento para eles”. Loach está bastante animado com relação a esse assunto, agitando os braços para enfatizar seus argumentos.

Mais do que qualquer outra coisa, Loach confia em seu público. Ele nunca subestima seu público, acreditando que os espectadores acharão interessantes as condições dos trabalhadores londrinos, as lutas sindicais ou as motivações políticas dos voluntários britânicos em uma batalha estrangeira contra o fascismo: em parte porque essas experiências raramente são mostradas, mas também porque a empatia humana é mais profunda do que muitos produtores e administradores conseguem admitir.

Em Terra e Liberdade, seu filme de 1995 sobre a Guerra Civil Espanhola, ele se aprofunda nas lutas sectárias internas que assolaram muitos grupos que lutavam contra as forças de Franco. Seu documentário de 1981, A Question of Leadership, entrevistou membros da Iron and Steel Trades Confederation sobre a greve de 14 semanas, e muitos de seus filmes, incluindo Riff-Raff (1991), tratam explicitamente de direitos trabalhistas. “Houve duas décadas que foram particularmente difíceis para o cinema. Na década de 1970, foram feitos pouquíssimos filmes no Reino Unido. A pior década foi a de 1980, uma década de ascensão da extrema direita”, disse Loach a Derek Malcolm em uma entrevista. “Eu realmente não fiz um filme de cinema, porque as pessoas não estavam procurando meus filmes no cinema. Muitos filmes de TV sobre relações industriais foram encomendados, programados e depois retirados por motivos políticos, porque mostravam a polícia batendo nas pessoas, por exemplo. Quando a classe dominante se sente ameaçada, as barreiras caem.”

Embora Loach e seus colegas de esquerda pudessem escrever de forma bastante livre para a BBC na década de 1960, o thatcherismo mudou as coisas. Um dos documentários de Loach sobre a greve dos mineiros de 1984, “Which Side Are You On?” [De que lado você está?], foi descartado pela ITV por ser muito tendencioso politicamente, antes de finalmente ser transmitido pelo Channel 4 após ganhar um prêmio italiano de artes. Na época, Loach observou ironicamente: “Está claro que somente algumas pessoas selecionadas podem fazer comentários sobre uma luta tão decisiva quanto a dos mineiros.”

Loach dirigiu mais longas-metragens – a maioria bem conceituada – durante os anos 1990, dominado por políticos como John Major e Tony Blair, mas teve dificuldades para obter financiamento e um público popular.

Tudo isso mudou com a conquista de sua primeira Palma de Ouro, em 2006, por The Wind That Shakes the Barley [O Vento que sacode a cevada], uma releitura dramática da Guerra da Independência da Irlanda e da Guerra Civil. Esse foi um dos poucos filmes importantes que retratou a guerra.

Até mesmo a cinematografia – os campos de esmeralda ondulantes e as colinas enevoadas da Irlanda – era mais expressionista e robusta do que nos trabalhos anteriores de Loach, de aparência mais rude.

Inicialmente, havia pouco interesse em exibir o filme na Inglaterra, com apenas trinta cópias encomendadas para exibição, em comparação com trezentas para a França, mas a publicidade da vitória da Palma de Ouro – e a indignação da direita – ajudaram a despertar o interesse. De maneira semelhante ao seu filme de 1990 sobre o conluio do Estado nos conflitos da Irlanda do Norte (Hidden Agenda), os críticos o denunciaram como anti-britânico, embora o crítico Simon Heffer tenha sido amplamente ridicularizado por admitir: “Não, eu não o assisti, assim como não preciso ler Mein Kampf para saber que Hitler era um desgramado”. As comparações com Hitler feitas por jornalistas histriônicos pouco contribuíram para diminuir o sucesso do filme, assim como a aversão da direita em torno de Eu, Daniel Blake mais tarde só ajudou a aumentar a atenção para o filme.

Em 2013, o documentário de Loach, The Spirit of ’45 [O espírito de 45], costurado com videoclipes minimalistas de imagens de arquivo e extensas histórias orais, despertou grande interesse. Ele explorou a construção do estado de bem-estar social e do Serviço Nacional de Saúde (NHS), e como os governos do pós-guerra construíram milhões de casas e limparam as favelas das cidades. Algumas pessoas reclamaram que o filme se aproximava do melancólico e hipernostálgico, mas o naturalismo e o toque leve do trabalho de câmera evitaram esse destino.

“Havia um clima especial na Grã-Bretanha após o horror da guerra. Quando a guerra terminou, o clima era: ‘Não vamos voltar à década de 1930, como vamos resolver isso?” Loach disse ao Guardian na época do lançamento do filme. “As casas foram construídas com bons padrões para pessoas comuns e havia a sensação de que trabalharíamos juntos. Não é diferente do clima atual: não há grandes lutas industriais há muito tempo, mas as pessoas ainda estão sofrendo.”

O documentário captou um clima especial entre os jovens desesperados por alternativas, semelhante ao que muitos jovens americanos se inspiraram nos apelos de Bernie Sanders para um retorno à política do New Deal. Na época, Loach era membro do Respect Party, depois do projeto Left Unity, e fime The Spirit of ’45 captou esse zeitgeist. Quando o filme Eu, Daniel Blake foi lançado, Corbyn havia conquistado a liderança do Partido Trabalhista, e o diretor voltou ao partido.

Seus últimos filmes foram muito bem recebidos, atraíram uma enorme atenção da crítica e da mídia e parecem perfeitamente sintonizados com o cenário político em que o Reino Unido opera atualmente. Mas Loach ainda está preocupado com os rumos que o país pode tomar, especialmente depois do referendo de 2016 e de como, segundo ele, parece estar sugando todo o oxigênio político da sala. “Esse é o grande perigo agora, o perigo da extrema direita. Todos os problemas que temos agora – com essa classe trabalhadora precária, a pobreza, a desigualdade, regiões negligenciadas como o Nordeste, o colapso do serviço de saúde, a privatização de muitas das funções do NHS, a crise dos sem-teto… As pessoas estão irritadas, agitadas e preocupadas com isso.”

Apesar de toda a crueldade dos conservadores e da extrema direita, Loach, seu trabalho e a esquerda do Partido Trabalhista estão encontrando um público cada vez mais receptivo e crescente. As pessoas estão atacando tanto ele quanto Corbyn puramente por causa do medo, argumenta Loach. “O Partido Trabalhista, dominado pela ala direita, tem sido cúmplice em tudo. E agora temos uma liderança de esquerda conseguindo disputar o Partido Trabalhista. Corbyn e John McDonnell, que devem ser vistos como uma parceria, se conseguirem realizar seu programa e ampliá-lo, poderemos começar a transformar a sociedade e representar os interesses dos trabalhadores novamente, o que os trabalhistas não fazem há tempos”, ele me diz, com a voz mais alta à medida que se torna mais apaixonado.

“Esse é um acontecimento sísmico. E acho que é por isso que a elite está nos atacando tão ferozmente.”

Colaborador

Dawn Foster é escritora da equipe jacobina, colunista do The Guardian e autora do livro "Lean Out".

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