26 de novembro de 2019

Quem tem medo de Marx?

O presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, abala os medos de sua base alertando sobre a "ameaça comunista" representada pelo "marxismo cultural". Mas se você não vive da exploração dos trabalhadores, não há razão para ter medo de Karl Marx e seus amigos.

Lincoln Secco

Jacobin

Arte de Catarina Bessel.

Tradução / O texto a seguir foi publicado na primeira edição impressa da Jacobin Brasil. Atualmente, o Brasil é governado pela extrema direita após a bem-sucedida campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, repleta de notícias falsas, pânico moral e conversas sobre a "ameaça comunista".

A primeira edição de Jacobin Brasil discutiu as teorias da conspiração de extrema direita que o ajudaram a subir ao poder - e especialmente o fantasma do "marxismo cultural" e sua destruição dos valores tradicionais. Propõe que, se a direita brasileira mais se assusta com Marx e o movimento socialista, talvez seja esse precisamente o local de onde a esquerda deve extrair sua própria força.

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Um fantasma ronda o planeta. Contra ele se unem todas as potências numa sagrada aliança para esconjurá-lo: um “bispo” evangélico e o czar da economia, Bannon e Olavo, neoliberais e milicianos.

Para essa aliança, qualquer coisa que não se assemelha a um projeto conservador de direita deve ser marxismo. Desde 2013 não houve partido de oposição que não tivesse sido acusado pelo governo de “marxista”. Feministas e o movimento LGBTQ+, ecologistas e militantes de direitos humanos, curadorias de museus e performances artísticas, pesquisas acadêmicas e religiões afro-brasileiras aparecem como homogêneos aos olhos de sua oposição. O marxismo volta a ser reconhecido por todos os poderes como um poder, mas não qualquer poder: uma conspiração.

A história, porém, não é tão simples quanto uma paráfrase do Manifesto comunista. Os ideólogos da luta contra o “gramscismo” e o “marxismo cultural” atacam algo muito diferente daquilo que pertence ao arcabouço teórico de Marx e Engels.

Berço revolucionário

Karl Marx não se considerava marxiano ou marxista. Esses termos adentraram o vocabulário político por obra de seus adversários na Alemanha em torno de 1850, e na Associação Internacional dos Trabalhadores depois de 1864. Quando partidários de suas ideias adotaram o termo “marxismo” em 1882, Marx o recusou terminantemente. Mais tarde Engels admitiu o uso na Inglaterra desde que fosse impresso como “the so called marxism” ou “o tal marxismo”.

A palavra se fixou durante a vigência da Segunda Internacional, criada em 1889 como doutrina dos partidos sociais democratas e trabalhistas recém-fundados. Desde então, o termo foi reivindicado por pessoas que aderiram às mais diferentes correntes políticas. Mas haveria um núcleo comum ou um “mínimo marxista”?

Não se pode responder a isso fora da história. Karl Marx nasceu numa era de revoluções, como a chamou Eric Hobsbawm. O século 18 foi marcado pela Revolução Francesa, mas várias outras erupções se sucederam.

Uma onda revolucionária se iniciou dois anos depois do nascimento de Marx. A partir de 1820, as agitações atravessaram Portugal, Espanha, Grécia, Polônia, Bélgica e a América Latina. Depois dos intentos absolutistas de Carlos X, na França, também este país retomou o método revolucionário em julho de 1830, quando a Bélgica se estabeleceu como país independente.

Finalmente, uma nova onda chegou com a Primavera dos Povos (1848): Roma, Paris, Viena, Praga, Budapeste, Frankfurt e outras cidades foram sacudidas por uma combinação de estudantes, operários, artesãos e intelectuais socialistas.

Aquela era uma etapa de revoluções liberais e burguesas, mas que sacramentaram duas ideias centrais que seriam incorporadas ao arcabouço marxista: a revolução e a luta de classes. Aquelas revoluções foram burguesas pela sua direção política, por seus limites teóricos e por suas realizações. Ficaram circunscritas a uma igualdade simplesmente jurídica e a uma liberdade abstrata. Esqueceram também, e convenientemente, a fraternidade.

É verdade que mobilizaram o “Terceiro Estado” (em sua maioria, o povo) e difundiram uma mensagem universal. Seus limites, no entanto, fizeram-nas refluir ao espaço nacional e a regimes sem participação popular.

Como notou o historiador francês Albert Soboul, a multidão parisiense que fazia aquelas revoluções não constituía uma classe. Eram artesãos, pequenos comerciantes, ambulantes, desempregados e, excepcionalmente, operários. Enfim, eram sans culottes, ou seja, não vestiam o calção e as meias da aristocrata, e sim calça, camisa e uma jaqueta curta, a carmanhola. Sua linguagem era radical, contra
os grandes (nobres eram todos os ricos). Mas não questionava a propriedade, não tinha um programa e usava uma violência nem sempre vertical, de baixo para cima. Às vezes seu ódio se movia para os lados.

Até o conservador François Furet arguiu que aquelas pessoas estavam unidas menos por uma forma comum de inserção na produção do que por uma mentalidade, no sentido mais amplo que os historiadores franceses deram à palavra. É a mentalidade do excluído que substitui a luta por reformas dentro da ordem, não pela revolução, mas pela vingança. O socialismo precisa da organização, do partido, do programa, enfim, da classe. E aqui, Karl Marx comparece à nossa história.

Crítica da crítica crítica

Ao contrário do que imaginam nossos “antimarxistas culturais”, a leitora e o leitor já perceberam que as ideias herdadas pelos socialistas se originaram do mesmo contexto que mobilizava os revolucionários liberais e os nacionalistas (nem sempre unidos): a luta de uma classe trabalhadora, a conquista do poder de Estado e não a conquista de consciências ou de pequenos poderes dispersos e, a partir do século 20, tudo isso dentro de Estados Nacionais.

O cerne da crítica de Marx não dizia respeito à cultura, mas à economia política. Embora se preocupasse com as diversas formas de dominação, seu pressuposto fundamental foi a ação prática pela derrubada da ordem burguesa.

Marx iniciou sua obra combatendo filósofos metafísicos que separavam o sujeito e o objeto, assim como a teoria e a prática. Ele criticou os chamados socialistas utópicos que, embora erguessem doutrinas e fantasias igualitárias e generosas, restringiam-se à organização de experimentos coletivistas sem a devida atenção à necessidade de derrubar toda a estrutura de dominação da burguesia.

Contra os socialistas utópicos, Marx se aproximou de uma outra linhagem socialista que procurava meios práticos de derrubar a ordem existente, mesmo que fosse pela conspiração e por tentativas revolucionárias vanguardistas. Marx não gostava do anarquista Pierre-Joseph Proudhon, preferia o “comunista” prático Louis-Auguste Blanqui. Este era muito mais um herdeiro do jacobinismo, embora na França o termo communisme tenha aparecido por volta de 1840.

Para avançar em sua perspectiva, era necessário conhecer os fundadores da economia política. Assim, Marx iniciou seus estudos com os clássicos Adam Smith e David Ricardo e apreendeu a teoria do valor trabalho. Também deveu muito ao fisiocrata francês François Quesnay, que elaborou o tableau économique, um esquema de reprodução da economia; ou seja, um modelo de fluxos de riqueza entre as classes sociais. O desenvolvimento do marxismo passa então, necessariamente, pela compreensão e pela crítica ao pensamento liberal do seu tempo.

Karl Kautsky e Vladimir Lenin escreveram que o marxismo teria três fontes: a economia política inglesa, a filosofia clássica alemã e o socialismo utópico francês. No entanto, Marx também foi conhecedor dos fisiocratas franceses, como François Quesnay e Vincent de Gournay, o propositor do lema laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même [deixai fazer, deixai passar; o mundo vai por si mesmo].

O esquema, ao navegar na história, precisa ser complementado. Entre aquelas fontes, destacam-se: 1) ao lado da filosofia clássica alemã, um modelo de Revolução e a ideia de luta de classes que Marx retirou de historiadores liberais como Guizot, Mignet e a notável Madame de Staël; 2) ao lado da economia política inglesa, a contribuição dos fisiocratas que permitiu tratar das classes como temas também econômicos; e 3) além do socialismo utópico, que Marx e Engels criticam no Manifesto comunista, a ação prática do comunismo francês de “Blanqui e seus camaradas” foi essencial para a solidificação do marxismo.

A prática que interessou a Marx não foi a de comunidades alternativas. Ele não deixou um modelo de planificação econômica que pudesse orientar sociedades socialistas, embora tivesse escrito alguns excertos a respeito tanto em O capital como em sua Crítica do programa de gotha (1875). Este último é o que chega mais perto de uma ideia de sociedade emancipada do capital dentro da obra marxiana.

A crítica sobre o programa do Partido Social-Democrata da Alemanha realizado em Gotha era de 1875. Ali, Marx distinguiu uma “primeira fase da sociedade comunista, tal como brota da sociedade capitalista depois de um longo e doloroso parto”, e uma fase superior, quando “a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo a sua necessidade”. A frase foi muito usada pelos anarquistas e tinha uma origem cristã (Atos 4:35). Marx o sabia muito bem.

Um Marx já maduro rendia homenagens àqueles que primeiro difundiram ideais socialistas nos anos 1830 e 1840, entre eles, Louis Blanc e Étienne Cabet, que usaram aquela frase antes. Ressoava numa organização de revolucionários emigrados alemães: alfaiates, relojoeiros e artesãos que militaram com Friedrich Engels na Liga dos Justos. Quando Marx ingressou naquela organização, concorreu para a troca do lema “todos os homens são irmãos” para “proletários de todos os países, uni-vos”; e do nome, passaria a ser Liga dos Comunistas.

Os esboços que Marx escreveu antes da redação de O capital e que ficaram conhecidos como Grundrisse, entre os alemães, e Borrador, na América Latina, foram finalizados no início de 1858. Neles, o autor atacava com ironia as ideias de bancos cooperativos e de troca de produtos pela quantidade de horas de trabalho envolvidas em sua produção sem que houvesse planos para abolir as relações de produção capitalistas. Não se tratava de retornar a um mundo de produtores isolados que fariam um intercâmbio simples de mercadorias, sem a presença do dinheiro como mediador. A abolição do dinheiro só poderia ser realmente efetivada com a abolição do sistema de produção capitalista.

Como Marx demonstrou, a mais valia não é extraída de trabalhadores porque os empresários pagam a eles menos do que seria “justo”. Muitas vezes pagam abaixo do valor por decorrência das lutas entre as classes. Mas não é isso que importa aqui. A troca entre o capital e o trabalho está baseada no valor que realmente a mercadoria força de trabalho tem, ou seja, o conjunto dos meios de subsistência que permite a sobrevivência do trabalhador. A exploração ocorre no interior da produção e nada tem a ver com o momento da troca. Além disso, os valores das mercadorias raramente condizem com os seus preços de mercado porque só no longo prazo e no conjunto da produção os preços e os valores se equilibrariam.

Ainda assim, Marx e Engels tiveram muito respeito por alguns dos socialistas utópicos. O mais eminente deles foi o galês Robert Owen, proprietário de indústrias na Escócia. Owen tentou diminuir a jornada de trabalho, criou jardins de infância, uma comunidade socialista nos Estados Unidos (Nova Harmonia) e inventou o bônus por hora de trabalho para substituir o dinheiro. Através dele, o socialismo ganhava ares de uma nova proposta de organização econômica. Owen era o grande crítico do malthusianismo. Ele mesmo constatou, em 1818, que, ao contrário do que Thomas Malthus pregava, não havia um crescimento geométrico da população contra um crescimento aritmético dos alimentos. O que havia de fato era a superprodução, pois a população aumentara 20% e a produção 1.500%.

Foi vivendo entre socialistas reformadores como Fourier, Cabbet e Lammenais, que Marx pôde aprimorar sua própria teoria. Em alguns pontos, eles eram mais avançados que Marx. Fourier, por exemplo, criticava o casamento monogâmico. Proudhon nutriu uma saudável descrença em relação ao Estado. Acrescente-se a eles o nome de Sismondi, na Suíça, e teremos outros autores que contribuíram muito para a crítica do capitalismo. Marx até mesmo admitiu, mais tarde, o papel das cooperativas como uma tentativa de abolição das relações de produção capitalistas no interior do próprio capitalismo. Mas parou por aí. Ele não era um seguidor daqueles socialistas. Jamais acreditou que o comunismo fosse uma ideia a ser proposta por pessoas generosas e nem que consciências seriam disputadas por estudantes ou professores de marxismo.

O comunismo é um movimento prático que, em sua autoatividade, em sua prática autônoma, explica a si mesmo o seu papel na história. Os fatos precisam ser apropriados não pelo pensamento isolado, e sim pela ação. Sua teoria é da práxis, uma ação mediada pelo conhecimento coletivo.

A própria teoria que Marx e Engels desenvolveram foi uma expressão do momento histórico em que estavam inseridos, já que não é a consciência que determina a vida, mas esta que determina a consciência.

O materialismo histórico é a concepção através da qual se compreende a história e as ações humanas a partir da organização do modo de produção da vida material. Para viver é preciso alimentar-se, vestir-se e morar, e essa produção é inseparável de todo o resto que os seres humanos fazem.

Numa carta de 1846 Marx escreveu que “os seres humanos, ao produzirem as forças produtivas, as relações sociais, produzem também as ideias, as categorias, isto é, a expressão abstrata, ideal, precisamente dessas relações sociais”. Marx não reduz a ideia à matéria. Elas são opostas, mas existem dentro de uma unidade.

Por conta disso, não há nenhum ideal “marxista” a ser combatido, mas práticas reais e muito concretas. O que separa Marx de todos os demais socialistas é que o socialismo não seria produto do pensamento ou de uma mera mudança cultural, e sim da prática.

O socialismo precisa ser o resultado historicamente necessário da própria sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, de uma revolução social. O proletário seria um “parteiro” da nova sociedade ou o “coveiro” da burguesia. Não há uma utopia deslocada no socialismo marxista, mas uma utopia concreta que parte da transformação material. Não por acaso, Engels insistia na ênfase desse socialismo como científico.

Aqueles que se sucederam

O republicano socialista francês Louis-Auguste Blanqui viveu muito para um homem do século 19 que passou 35 anos na prisão. Foi eleito in absentia (pois estava preso fora da capital) como o presidente de honra da Comuna de Paris e terminou sua trajetória sendo o revolucionário modelo do século 19. Lenin seria o da primeira metade do século 20.

Uma maioria proletária iria se formar em decorrência de leis econômicas irrefreáveis e alguns propunham que o socialismo poderia ser resultado de reformas graduais no interior do capitalismo. Recorrendo ora a Kant, ora a Darwin ou Spencer, os socialistas da Segunda Internacional reduziam o marxismo a um imperativo ético ou ao seu oposto complementar, uma inevitabilidade mecânica da evolução econômica.

Contra esse fatalismo, se opuseram Rosa Luxemburgo, Vladimir Lenin, Antonio Gramsci e muitos outros. Era uma nova geração que provinha de áreas economicamente marginais da Europa continental. Enquanto o líder operário da Social-Democracia alemã, August Bebel, nasceu em 1840, Eduard Bernstein, contra quem Rosa Luxemburgo debateria na polêmica sobre “Reforma ou revolução”, nasceu em 1850. O herdeiro ortodoxo dos escritos de Marx e Engels, Karl Kautsky, nasceu seis anos depois. Lenin veio ao mundo em 1870, e Rosa no ano seguinte. Gramsci vinte anos depois. Josef Stalin e Leon Trotsky nasceram em 1878 e 1879, respectivamente.

Trotsky, Lenin e Stalin eram da Social-Democracia russa, Rosa começara sua militância na Polônia e Gramsci era da Sardenha. Eles foram a primeira geração de marxistas do século 20.

Depois da derrota das revoluções europeias na Alemanha, com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e a derrota na Finlândia, Itália, Hungria, Letônia e Polônia, a nova geração de marxistas mudou sua preocupação teórica. Esses se voltaram para os temas culturais, a filosofia e a arte. Afastaram-se da militância em partidos e refugiaram-se em instituições acadêmicas. Separaram-se do movimento operário; e, por fim, deixaram em segundo plano abordagens que caracterizaram a geração anterior.

Mas não é como se ali estivesse nascendo um “marxismo cultural”. Esse afastamento possuía raízes políticas que transbordaram para a teoria e não o reverso.

Não é que Marx e Engels não tivessem preocupações com a arte. Trotsky escreveu Literatura e revolução (1923) e Lenin deixou seus Cadernos filosóficos (1930). Mas o foco da geração deles era a transformação prática da sociedade através da conquista do poder político. A maioria foi leitora do oficial prussiano Clausewitz, como Rosa Luxemburgo, que tratava, ainda que de passagem, questões militares enquanto seus objetos de estudo eram abordados com recurso à economia e à história. Gramsci tinha como preocupação central a hegemonia como um fenômeno que nasce na fábrica, ou seja, nas relações de produção econômicas. Algo muito distante da distopia “gramscista” de seus críticos.

A nova geração de marxistas ocidentais não surgiu de preferências individuais por temas estéticos. Theodor Adorno não teorizaria sobre as mudanças musicais sem falar na produção em massa de rádios.
A crítica do progresso não teria sentido sem a ascensão do nazismo num país industrial como a Alemanha. Foi a fábrica fordista e a alienação do proletariado, também no lazer e na cultura de massa, que deslocaram a teoria marxista para a compreensão de uma vida fragmentada e da sua recomposição sob uma falsa unidade pelo espetáculo.

O desemprego, a terceirização e outras mudanças no mercado de trabalho levaram os marxistas à análise da degradação do trabalho (Braverman), assim como a Revolução Cubana, as lutas anticoloniais na África e na Ásia e a explosão de Maio de 1968 intensificaram os estudos de historiadores marxistas sobre os protestos espontâneos das multidões de marginalizados. Ninguém abandonou o apelo à classe operária para favorecer manipulações. Foi a importância material da superestrutura que produziu teorias marxistas da cultura. O marxismo jamais foi cultural, econômico ou político. Ele simplesmente responde ao movimento real da história.

Nas situações em que o marxismo não podia se ocupar apenas dos temas filosóficos, os revolucionários combinaram nação e classe, operariado e campesinato e, com isso, geraram uma abordagem nova que envolveu o estudo científico da guerra revolucionária (Mao Tsé-Tung e o general vietnamita Giap), interpretações inovadoras das classes sociais (Mao Tsé-Tung e o líder guineense Amílcar Cabral), da questão indígena (o peruano Mariátegui) e colonial (Caio Prado Júnior, no Brasil, e o trotskista argentino Milcíades Peña). Obviamente que se trata de predominâncias aqui. Mao Tsé-Tung legou obras filosóficas, por exemplo.

A partir dos anos 1960, depois que o stalinismo entrou em crise, o movimento comunista internacional se dividiu entre a China e a União Soviética, diversas filosofias se digladiaram na Europa Ocidental e até os leitores da Escola de Frankfurt ou de Georg Lukács se dedicaram a problemas bastante materiais.

Guy Debord, o teórico da sociedade do espetáculo, tinha em alta conta a obra de Clausewitz e se preocupava claramente com uma revolução social que abarcasse inclusive as artes e a vida cotidiana. O filósofo francês Louis Althusser era militante do Partido Comunista e se dedicou à interpretação de O capital e dos “aparelhos ideológicos de Estado”. Amílcar Cabral foi simultaneamente um líder guerrilheiro, estudioso do imperialismo e teórico da libertação do colonialismo. Fredric Jameson, ao escrever sobre a lógica cultural do pós-modernismo, baseou-se em experiências reais do mundo do trabalho intelectual na época do capitalismo tardio, numa explícita referência a Ernest Mandel, um dirigente trotskista que escreveu seu principal livro de economia logo depois de participar do Maio de 1968. O próprio historiador do “marxismo ocidental”, Perry Anderson, publicou nos anos 1970 o estudo marxista mais importante sobre o Estado Moderno, Linhagens do estado absolutista (1974).

Materialidade da cultura

Estudar uma corrente de pensamento interessa mais se ela teve alguma efetividade mensurável na vida social. O número de edições do Manifesto comunista na Rússia antes de 1917 ou da Bíblia no período clássico do imperialismo são índices dessa importância, mas isoladamente não são números definidores de uma transformação cultural. Nesse caso, a tiragem deve estar a serviço da história.

Por outro lado, a cultura, para os marxistas, não se define apenas como um conjunto de valores, preferências, hábitos, sentimentos e ideias compartilhadas. Há uma organicidade e reciprocidade da economia e da cultura que as tornam inseparáveis, exceto para fins analíticos.

Um grupo social toma consciência da contradição entre as forças materiais da produção e as relações de produção no campo das superestruturas. Mas a forma não é a do conhecimento de uma imposição de uma esfera autônoma chamada economia. Ao contrário: é uma exigência de renovação cultural, se for realista e correspondente a um grupo social fundamental, que provoca aquela necessidade “econômica” como uma força consciente, organizada, institucional. Se a consciência for apenas a crítica de grupos que não representam nenhuma classe histórica, ela será arbitrária.

As instituições são inseparáveis das ideias que as constituem, e essa é a visão do marxismo acerca da materialidade das ideologias. Não há forma sem conteúdo e vice-versa. Por isso, a Sociedade Civil não é a sede das ideologias, como o social liberal italiano Norberto Bobbio afirmava. Estas nascem tanto na fábrica quanto nas cabeças de filósofos. O que as torna algo além de uma extravagância individual é o seu sentido cultural, sua penetração nas massas. Não se trata, portanto, de meros valores, mas da força material que emerge quando esses grupos se movimentam ao redor de ideias.

As classes sociais são organizadas ideologicamente, mas essa organização é material. Nos limites de uma dada estrutura social e econômica, os grupos sociais lutam pelo poder ou para conservá-lo. Assim, criam a concepção de mundo adequada aos seus interesses.

A vitória e a manutenção do poder dependem também da difusão da ideologia. E essa difusão, por sua vez, depende de instrumentos materiais (seja a tipografia, o rádio ou a informática). Dependem, em suma, de um suporte material no interior da superestrutura. Como analisar o processo de massificação cultural de um país nos anos 1970 sem citar o número de televisores, a estrutura da propriedade, o oligopólio das emissoras? Ou como estudar o século 21 sem observar o número de smartphones, os acessos a sites e blogs, os milhões de usuários de grupos de WhatsApp
ou o mundo subterrâneo da deep web?

De diferentes maneiras, os autores marxistas ofereceram os princípios para uma análise da cultura como fenômeno reprodutível em escala industrial. Isso não significa um abandono do materialismo histórico e da organização dos trabalhadores, mas a necessidade de compreender a relação cultural no interior da reprodução material das estruturas da sociedade capitalista. Ernst Mandel era leitor de romances policiais e, depois do reconhecimento que seu livro O capitalismo tardio (1972) teve, acabou por escrever uma verdadeira história social daquele gênero: Delícias do crime.

A natureza bem-sucedida do romance policial sob a sociedade capitalista, para Mandel, não está no reflexo dos interesses burgueses, mas na capacidade de criticá-los sem extrapolar os limites estruturais do capital. Poderíamos acrescentar que é uma literatura que exibe problemas sem verdadeiras saídas; em que os crimes não têm explicação nas contradições sociais, mas nos indivíduos. Assim, a solução dos crimes conduz quase sempre à reconciliação com o mundo burguês.

É por isso que toda crítica logo se transforma numa mercadoria e seus impulsos negativos se integram a uma rebeldia aceitável. A própria Revolução de 1968 pode ser incorporada pela produção de mercadorias, quando líderes foram iconizados e práticas horizontais e rebeldes foram incorporadas pela propaganda e, depois, interiorizadas nas empresas.
De maneira distorcida, é claro.

Ainda assim marxistas se aventuraram na escrita de romances. Nos anos 1960, o comunista Per Wahlöo abandonou suas fracassadas tentativas de emplacar livros políticos depois que se associou a sua companheira Maj Sjöwall. Programaram e escreveram dez romances policiais. A estreia foi Roseanna (1965) com a temática da violência contra a mulher, temática usada também pelo escritor sueco Stieg Larsson.

Mas o próprio marxismo não poderia se tornar um objeto cultural mercantilizado? É claro que pode, e isso deve ser confrontado por vias marxistas. Decerto, muitas obras feitas para chocar a burguesia só abalam a moral vigente na primeira vez. Na segunda, são expostas em galerias de arte. Toda violação inofensiva da padronização da vida só é realizada por um produto padronizado. Daí que o significado do ataque a uma performance parece funcionar como uma velha técnica diversionista, ainda que atinja a liberdade de expressão. O fato de seus executores serem inconscientes é algo perfeitamente cabível numa guerra, já que os soldados jamais conhecem o lugar de seu pelotão na estratégia global.

No entanto, também se deve perguntar: por que o marxismo ainda incomoda? Veja-se o que dizia Mandel, em torno da tormenta de 1968 em seu livro Os estudantes, os intelectuais e as lutas de classes: “Poderíamos comentar o papel dos livros de bolso [...] na transformação da teoria revolucionária em objeto de consumo. Esta teoria adquire agora um valor de troca [...]. Mas o valor de uso desta mercadoria particular é difundir a teoria, [...] incentivar a paixão anticapitalista”.

Os chefes daqueles que combatem o suposto marxismo cultural não são desprovidos de ideologia e de projeto político e econômico. Não por acaso, think tanks e veículos midiáticos propagam o mesmo discurso de alerta à população. Eles sabem que a disputa pela hegemonia não se reduz a uma noite de autógrafos ou à inauguração de uma exposição de arte conceitual (de resto importantes por si mesmas, é óbvio). Não hesitam em se aliar a procuradores, juízes, militares e milicianos para exercer coerção sobre rebeldes e indesejados. Disputam e ganham governos, e, quando necessário para produzir pânico e garantir consentimento, perturbam artistas, acadêmicos e ativistas com teorias bizarras e contraperformances duvidosas.

Por que se teme tanto Marx? Ao descobrir o porquê, a leitora e o leitor podem identificar os sujeitos reais que o temem. Afinal, o medo só poderá ser produzido e mobilizado por aqueles que não querem que o marxismo seja instrumento da emancipação de uma outra classe de pessoas.

Cabe lembrar que a maioria dos focos da “guerra cultural” da nova direita não é propriamente o que Marx, Lenin ou Gramsci escreveram. Ficções como a de um suposto “Decálogo de Lenin” eram concebidas antes das fake news virarem moda. Tampouco miram as propostas reais que comunistas ou trabalhistas fazem. Essa função é terceirizada para os políticos profissionais, que frequentemente o fazem alegando a existência de uma conspiração. No entanto, a influência de sua propaganda antimarxista é enorme.

Quando algum incauto se aventura a redigir uma crítica ao suposto “gramscismo”, os resultados são pífios. No entanto, a influência é desproporcional.

Não existe “gramscismo” em Gramsci, é óbvio. Nem marxismo cultural elaborado por qualquer marxista, como já vimos aqui. Esses termos integram uma operação de marketing tanto quanto as notícias falsas que permitiram a eleição de Bolsonaro em 2018. O marxismo cultural é a autodescrição dos seus próprios criadores. A caricatura do pensamento do outro existe porque as teorias conspiratórias são basicamente fetichistas. Agarram-se a notícias falsas e a indivíduos que personificariam uma conspiração. Assim, uma mulher não é uma pessoa, e sim a encarnação da ideologia de gênero. Além dos poderosos meios de difusão do capitalismo informacional, não há novidade nenhuma aqui para quem conhece a difusão dos falsos “Protocolos dos Sábios de Sião” e a “denúncia” do complô judaico-bolchevique.

Muito do que é apontado como exemplar do marxismo cultural não possui a mínima relação com o pensamento marxista. Não estamos, sinto dizer, numa realidade pós-moderna, sujeitos a grupos de poder divididos de forma infinitesimal num mundo pós-industrial. Nem a autorreferencialidade da arte, a escrita intertextual, as sopas Campbell de Andy Warhol e o pastiche substituíram a luta pelo controle do Estado. Ao menos para um marxista, qualquer que seja sua corrente.

É certo que se tornou mais complexa a dominação através de uma miríade de relações de poder moleculares que se corporificam em instituições disciplinares. Mas a crítica de uma moral universalmente aceita sequer é típica de nosso tempo.

Também houve muitas mudanças, mas nenhuma ruptura com o modo de produção capitalista. A financeirização não aboliu a importância do valor no processo produtivo. Sim, a luta de classes não parece mais tão simples. Mas quando o foi?

Gramsci criou outra categoria ao lado do proletário para dar conta de novas formas de dominação. Para ele, o subalterno tem como locus da subordinação algo exterior ao processo produtivo, diferentemente do operariado. Mas, como marxista que era, ele não abandonou a natureza econômica da subalternidade, apenas ampliou sua dimensão cultural. As diferentes demandas dos subalternizados outrora marginalizadas pelos próprios marxistas têm forte relação com o recorte de classe. O que alguns sociólogos caracterizaram como as pautas de novos movimentos sociais, destinadas a superar em relevância a pauta de classe, se demonstram compatíveis com o desenvolvimento da análise e práxis marxista.

Não é de se espantar que muitas feministas se situaram no campo do marxismo ou persistiram no seu entorno. Angela Davis manteve-se vinculada ao Partido Comunista dos Estados Unidos; a teórica alemã do “valor dissociado” Roswitha Scholz participou da leitura iconoclasta do marxismo junto ao grupo Krisis; e Silvia Federici construiu uma análise econômica e social sobre um tema clássico de Marx: a acumulação primitiva, agora sob a perspectiva de suas vítimas, as bruxas e os povos escravizados.

Há sim quem busque outras vias para a emancipação ou ataque às “grandes narrativas opressoras”, dentre as quais o marxismo seria mais uma, intrinsecamente eurocêntrica, machista, racista ou algo semelhante. Mas assim como sempre houve lideranças operárias que encontraram subterfúgios para aderir ao capitalismo, por que pessoas submetidas a outras dimensões da opressão capitalista não teriam espaço para também fazê-lo?

Há dimensões inescapáveis da opressão que não podem ser atingidas por quem não as viveu. E há a necessária etapa da apreensão conceitual e generalizante sem a qual qualquer diálogo, qualquer organização e qualquer luta coletiva se tornam impossíveis. A maioria dos líderes bolcheviques ou socialistas revolucionários da Rússia nunca tinha trabalhado numa fazenda ou numa fábrica, mas liderou uma revolução social. Da mesma forma, jamais poderiam tê-lo feito sem integrar partidos
de ampla participação das classes oprimidas. Naquela fase de universalização das diversas lutas contra a classe dominante, não se encontrou uma força teórica e política melhor que o marxismo.

O marxismo põe a nu a barbárie de cada monumento de cultura e o ócio de classe que cada obra de arte pressupõe. Tudo o que se revela para nós segundo sua ótica não pode se apresentar senão mostrando atrás de si as origens sociais materiais de sua produção.

O “marxismo” não é uma teoria exterior ao mundo e que o contempla para expor os seus erros num catálogo universal. Não é produto de uma cabeça individual, mas o autoconhecimento que o movimento real elabora sobre si mesmo. O pensamento não espelha um mundo exterior, mas integra uma práxis revolucionária.

O marxismo se nega a si mesmo como mercadoria porque nos revela que tudo o que conhecemos, em breve estará transformado. Ou como o próprio Marx afirma em O capital, a dialética “é um incômodo para a burguesia porque não se deixa impressionar por nada”.

Razões não faltam para se temer tanto Karl Marx como sua turma.

Sobre o autor

Lincoln Secco é professor de história contemporânea na USP e autor de "A batalha dos livros" (2018).

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