9 de abril de 2020

A economia normal nunca vai voltar

Os últimos dados dos Estados Unidos provam que o mundo está na sua queda livre mais acentuada - e as antigas cartilhas econômicas e políticas não se aplicam.

Por Adam Tooze, colunista da Foreign Policy e diretor do Instituto Europeu da Universidade de Columbia.

Foreign Policy

Um homem em um telhado observa as chamas se aproximando enquanto um incêndio florestal continua crescendo perto de Camarillo, Califórnia, em 3 de maio de 2013. David Mcnew/Getty Images

Conforme o lockdown do coronavírus começava, o primeiro impulso foi o de procurar pelas analogias históricas - 1914, 1929, 1941? Conforme as semanas passam, o que vem cada vez mais à tona é a novidade histórica do choque pelo qual estamos passando. Como um dos resultados da pandemia do coronavírus, é esperado que a economia americana encolha até um quarto. Isso é tanto quanto na Grande Depressão. Mas enquanto a contração após 1929 se estendeu por um período de quatro anos, a implosão do coronavírus vai acontecer nos próximos três meses. Nunca houve um pouso forçado como esse antes. Há algo de novo sob o sol. E é terrível.

Ainda há cinco semanas, no início de março, o desemprego nos Estados Unidos estava em um nível recorde. No final de março, subiu para algo em torno de 13 por cento. Este é o número mais alto desde a Segunda Guerra. Nós não sabemos a imagem exata porque nosso sistema de registro de desemprego não foi construído para rastrear um aumento nessa velocidade. Em sucessivas quintas-feiras, o número daqueles preenchendo registros iniciais para seguro desemprego cresceu primeiro para 3.3 milhões, depois para 6.6 milhões e, agora, para mais 6.6 milhões. Na taxa atual, conforme apontou o economista Justin Wolfers no New York Times, o desemprego nos Estados Unidos está crescendo perto de 0.5 por cento ao dia. Não é mais impossível imaginar que a taxa total de desemprego pode alcançar 30 por cento no verão.

As notícias da quinta-feira confirmam que as economias do ocidente encaram um choque econômico muito mais selvagem do que jamais haviam experimentado antes. Ciclos regulares de negócios começam normalmente com os setores mais voláteis da economia – imóveis e construção, por exemplo, ou engenharia pesada que depende de investimentos –, ou setores que são sujeitos a competição global, como a indústria de motores para carros. No total, esses setores empregam menos do que um quarto da força de trabalho. A desaceleração concentrada nesses setores é transmitida para o resto da economia como um choque abafado.

O lockdown do coronavírus afeta diretamente os serviços – varejo, imóveis, educação, entretenimento, restaurantes –, onde 80 por cento dos americanos trabalham hoje. Assim, o resultado é imediato e catastrófico. Em setores como o varejo, que esteve recentemente sob feroz pressão da competição online, o lockdown temporário pode se provar terminal. Em muitos casos, as lojas que fecharam no início de março não irão reabrir. Os trabalhos estarão permanentemente perdidos. Milhões de americanos e suas famílias estão enfrentando a catástrofe.

O choque não está restrito aos Estado Unidos. Muitas economias europeias amortecem os efeitos da desaceleração subsidiando trabalho de curta duração. Isso irá moderar o crescimento no desemprego. Mas o colapso na atividade econômica não pode ser disfarçado. O norte da Itália não é apenas um destino turístico luxuoso. Ele é responsável por 50 por cento do PIB italiano. O PIB alemão está previsto para cair mais do que o do Estados Unidos, arrastado para baixo pela sua dependência das exportações. O último conjunto de previsões da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento é catastrófico em todos os sentidos. O golpe mais duro de todos pode ser no Japão, apesar de o vírus ter tido um impacto moderado lá.

Em países ricos, nós podemos ao menos fazer estimativas do dano. A China foi a primeira a iniciar os fechamentos, em 23 de janeiro. Os últimos diagramas mostram o desemprego da China a 6.5 por cento, o número mais alto desde que os registros começaram nos anos 90, quando o Partido Comunista Chinês admitiu relutantemente que o desemprego não era um problema restrito apenas ao mundo capitalista. Mas essa imagem é claramente uma atenuação grosseira da crise na China. Não oficialmente, talvez tantos quanto 205 milhões de trabalhadores migrantes receberam licença, mais do que um quarto da força de trabalho chinês. Como se calcula o dano causado à economia indiana por causa do abrupto fechamento de 21 dias ordenado pelo primeiro-ministro Narendra Modi é um palpite para qualquer pessoa. Da força de trabalho de 471 milhões da Índia, apenas 19 por cento estão cobertos pela seguridade social, dois-terços não têm nenhum contrato de emprego formal, e ao menos 100 milhões são trabalhadores migrantes. Muitos deles estão sendo enviados de volta para seus vilarejos em voos imediatos. Não houve nada parecido com isso desde a divisão da Índia em 1947.

As consequências econômicas desses imensos dramas humanos desafiam qualquer cálculo. Ficamos com a monótona, mas não menos notável estatística de que esse ano, pela primeira vez desde que registros razoavelmente confiáveis do PIB começaram a ser computados depois da Segunda Guerra, as economias de mercado emergentes irão se contrair. Todo um modelo de desenvolvimento global foi interrompido.

Esse colapso não é o resultado da crise econômica. Não é nem o resultado direto da pandemia. O colapso é o resultado de uma escolha política deliberada, o que é em si uma novidade radical. Acontece que é mais fácil parar uma economia do que estimulá-la. Mas os esforços que estão sendo feitos para amortecer os efeitos são eles mesmos historicamente sem precedentes. Nos Estados Unidos, o pacote de estimulo do Congresso, acordado nos dias do fechamento é, de longe, o maior na história dos tempos de paz. Ao redor do mundo, tem havido um movimento para abrir a carteira. A Alemanha fisicamente conservadora declarou emergência e removeu seus limites na dívida pública. De modo geral, nós estamos testemunhando o maior esforço fiscal combinado empreendido desde a Segunda Guerra. Seus efeitos se farão sentidos nas semanas e meses por vir. Já está claro que o primeiro round pode não ser o suficiente.

Uma tarefa ainda mais urgente é prevenir que a desaceleração se torne uma imensa crise financeira. Frequentemente é dito que o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos (FED) [1] sob o comando do seu Presidente Jerome Powell está seguindo a cartilha de 2008. Isso é verdade. Dia após dia, ele cria novos programas para ajudar cada esquina do mercado financeiro. Mas o que é diferente é a escala das intervenções do FED. Para contra-atacar o choque épico dos fechamentos de fábricas, ele mobilizou uma imensa onda de liquidez. No final de março, o FED estava comprando ativos a uma taxa de $90 bilhões de dólares por dia. Isso, por dia, é mais do que o FED sobre o comando de Bem Bernanke comprou na maioria dos meses. A cada segundo, o FED estava trocando quase um milhão de dólares em títulos do Tesouro e títulos lastreados em hipotecas por dinheiro. Na manhã de 9 de abril, no mesmo momento em que o último terrível número de desemprego era liberado, o FED anunciava que estava lançando um adicional de $2.3 trilhões em compras de ativos.

Essa ação de compensação enorme e imediata tem até agora prevenido um derretimento financeiro global imediato, mas nós agora enfrentamos um período prolongado em que o consumo e o investimento em queda levará a mais contração. Setenta e três por cento das famílias americanas reportaram terem sofrido uma perda na renda em março. Para muitos, essa perda é catastrófica, inclinando-os à necessidade aguda, à negligência e à falência. Inadimplência no débito do consumidor irão sem dúvida surgir, levando ao dano continuado para o sistema financeiro. Despesas discricionárias serão proteladas. O consumo do petróleo na Europa caiu 88 por cento. O mercado de carros está morto. Fabricantes de automóveis ao longo da Europa e Ásia estão sentados em gigantescas quantidades de veículos não vendidos.

Quanto mais tempo nós sustentamos o lockdown, mais profundas as cicatrizes para a economia e mais lenta a recuperação. Na China, a atividade econômica normal está voltando lentamente. Mas devido ao risco de um surto de segunda e terceira onda, ninguém tem nenhuma ideia o quão longe e rápido o ressurgimento da vida normal pode continuar de modo seguro. Parece provável, com exceção de um avanço médico dramático, que a restrição dos movimentos terá que ser mantida para administrar a irregularidade da contenção. Uma recuperação prolongada e hesitante da economia parece muito mais provável nesse momento do que uma vigorosa recuperação em forma de V.

E mesmo uma vez que a produção atual e o emprego tenham reiniciado, nós iremos lidar com uma ressaca financeira ainda por anos. O argumento sobre política fiscal é raramente envolvido no calor do momento. Em uma crise, é fácil concordar em gastar dinheiro. Mas a luta está chegando. Nós estamos envolvidos na maior onda de débito público dos tempos de paz. Nesse momento, nós estamos estacionando esse débito no balancete dos bancos centrais. Esses bancos centrais podem também manter a taxa de juros baixa, o que significa que a dívida de serviço não será exorbitante. Mas isso adia a questão de o que se fazer com eles. Para a mente convencional, o débito deve ser eventualmente pago através de excedentes gerados pelo aumento de impostos e corte nos gastos.

A história sugere, no entanto, que há também alternativas mais radicais. Uma seria uma explosão de inflação, embora não é óbvio como isso seria engendrado, dadas as condições econômicas dominantes. Outra alternativa seria um jubileu da dívida, um nome polido para inadimplência pública (que não seria tão drástico quanto soa se afetar os débitos mantidos nas contas do banco central). Alguns tem sugerido que seria mais simples para os bancos centrais cortarem a compra de dívida emitida pelo governo, e, ao invés, simplesmente creditar os governos com um gigantesco saldo de caixa.

E em 9 de abril, isso foi exatamente o que o Banco da Inglaterra anunciou que estaria fazendo. Para todos os efeitos, isso significa que o banco central está simplesmente imprimindo moeda. Que isso esteja sendo até mesmo considerado, e em um governo conservador, é uma medida de quão extrema é a situação. É também sintomático que, ao invés de gritos de indignação e venda de pânico imediata, a decisão do Banco da Inglaterra tenha até agora produzido um pouco mais do que um dar de ombros dos mercados financeiros. Eles estão com poucas ilusões sobre as acrobacias que todos os bancos centrais estão fazendo.

Essa atitude resignada pode ser útil do ponto de vista de uma luta contra a crise. Mas não espere que a calma dure. Quando a coisa toda passar, a política irá voltar, e, junto, os argumentos sobre “ônus da dívida” e “sustentabilidade”. E dada a escala dos passivos que já foram acumulados, nós devemos esperar que essa situação seja feia.

O que nós pensávamos que sabíamos sobre economia e finanças foi radicalmente perturbado. Desde o choque da crise financeira de 2008 tem havido muita conversa sobre a necessidade de contar com a incerteza radical – um tipo de risco a qual você não pode anexar uma probabilidade matemática. De fato, anexar uma probabilidade específica pode até mesmo encorajar complacência e falso sentido de omnisciência.

Após os choques do Brexit e da eleição do Donald Trump, houve muita conversa sobre a política imprevisível do populismo. A política de mercado agressiva de Trump, e a escalada para uma rivalidade geopolítica com a China chacoalhou as suposições convencionais sobre o futuro da globalização. Em 2019, essa incerteza aumentara ao ponto em que ela estava afetando investimentos e levando ao risco de uma recessão. Os Bancos Centrais, que pensavam estar em um caminho para a normalização e o desenrolar-se das intervenções dramáticas que seguiram desde 2008, foram forçados a reverter o curso e retomar uma política de taxas de juros super baixas. Isso, por seu lado, gerou gestos de desespero sobre uma nova era de dependência em bancos centrais. Voltaríamos algum dia aos tempos “normais”, com os mercados desfeitos de seu apego a estímulos monetários, e os negócios e comércios sem serem molestados por eleições imprevisíveis?

Após a epidemia do coronavírus, tal apelo só pode parecer estranho. Nós agora sabemos o que uma incerteza verdadeiramente radical parece. Uma grande parte da população mundial teve as funções básicas de suas vidas radicalmente interrompidas. Nenhum de nós pode predizer confiantemente quando nós poderemos retornar a nossas vidas pré-coronavírus. Nós podemos ter esperanças que as coisas vão “voltar ao normal”. Mas como diremos isso? Afinal de contas, as coisas pareciam normais em janeiro, apenas semanas antes do mundo parar. Se a incerteza radical era uma preocupação antes, será agora uma realidade sempre presente. Cada temporada de gripe será ansiosamente observada. Para misturar metáforas médicas, quanto tempo levará para que possamos declarar a nós mesmos em recuperação?

É possível que após o lockdown possa haver alguma recuperação no consumo. Mas é provável que seja sustentável? A reação mais provável a um choque como esse que estamos experimentando é retrair. Um dos desenvolvimentos mais impressionantes desde 2008 tem sido a desalavancagem nas famílias dos Estados Unidos. O consumidor americano, a maior fonte única de demanda no mundo da economia, se tornou manifestadamente mais sóbrio. Investimentos empresariais têm sido mais lentos, como tem sido o crescimento da produtividade. A desaceleração não limitou ao Ocidente. Os mercados emergentes também desaceleraram. Nós chamamos isso de estagnação secular.

Se a resposta das empresas e famílias para o choque sem precedentes do coronavírus é uma fuga para a segurança, irá se misturar com as forças da estagnação. Se a resposta pública para os débitos acumulados pela crise é austeridade, isso deixará as coisas piores. Faz sentido, ao invés, pedir um governo mais ativo e mais visionário para liderar a saída para fora da crise. Mas a questão, obviamente, é que forma isso tomará, e quais forças políticas irão controlá-la.

am Tooze é professor de história e diretor do Instituto Europeu na Universidade de Columbia. Seu último livro é Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, e ele está atualmente trabalhando em uma história da crise climática. Artigo publicado originalmente em foreignpolicy.com em 9 de abril de 2020.

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