27 de abril de 2020

A reabertura da economia nos levará ao inferno

As pessoas precisam desesperadamente voltar ao trabalho e salvar o que podem de suas vidas. Mas Mike Davis argumenta que uma rápida reabertura da economia resultaria em tragédia indescritível para milhões de pessoas.

Mike Davis


Trabalhadores da saúde se preparam com equipamento de proteção individual (EPI) antes de entrar em um prédio residencial em 27 de abril de 2020 em um bairro do bairro do Brooklyn, em Nova York. Spencer Platt / Getty

Tradução / Conforme entramos no quinto mês do surto da COVID-19, milhões de famílias trabalhadoras sentem que foram sequestradas e enviadas ao inferno.

Ao passo que o desemprego (segundo dados oficiais) ultrapassa 30% ou mais, estima-se que 20 milhões de pessoas a mais irá, incontornavelmente, cair abaixo da linha de pobreza. Em uma pesquisa recente do Pew Research, 60% dos latino americanos informaram que perderam seus empregos ou salários, assim como mais da metade de todos os trabalhadores abaixo dos 30 anos. Além dos empregos, milhões perderão tudo que passaram a vida inteira trabalhando para conseguir: casas, pensões, cobertura médica e poupanças.

Muitos de nós já atravessamos uma prévia brutal de colapso econômico: a “Grande Recessão” de 2008-09. Em um período de 18 meses, a maioria das famílias afro e latino-americanas perderam todo seu patrimônio líquido e universitários recém-formados de origem não privilegiada encontraram-se encalhados, talvez para a vida toda, em posições de baixa remuneração na economia de serviços. É por isso que milhões se juntaram para empunhar a bandeira do New Deal de Bernie Sanders. Porém, a ameaça que se apresenta é a de pauperização econômica e fome em uma escala não vista desde 1933.

As pessoas precisam desesperadamente voltar aos seus empregos e salvar o que puderem em suas vidas. Mas dar ouvidos ao canto da sereia dos manifestantes da MAGA [abreviação de Make America Great Again – Faça a América Grandiosa Novamente], marionetes manipuladas por fundos de risco e donos de cassinos bilionários, para “reabrir a economia” resultaria apenas em um resultado: tragédia. Considere esses pontos:

  • Pôr milhões de pessoas de volta ao trabalho sem proteção ou testes seria uma sentença de morte para muitos. Trinta e quatro milhões de trabalhadores possuem mais de 55 anos; dez milhões deles, mais de 65 anos. Adicionalmente, milhões sofrem de diabetes, problemas respiratórios crônicos, entre outras doenças. Irão direto de casa para a UTI e então para a cova.
  • Milhões dos nossos “trabalhadores essenciais” encaram perigos intoleráveis por causa da escassez de equipamento de proteção. Levará semanas, no melhor dos cenários, até que trabalhadores da saúde contem com suprimento adequado. Trabalhadores em armazéns, feiras e fast food não têm garantia sequer de receber máscaras, a não ser que a legislação obrigue. Se isso é uma guerra, a recusa de Donald Trump em usar leis existentes para federalizar a manufatura de máscara e ventiladores é um crime de guerra.
  • A proposta de realizar testes de sangue e emitir certificados de permissão de volta ao trabalho a quem possuir os anticorpos certos é, no momento, mera fantasia. Washington permitiu que mais de uma centena de empresas vendesse kits sorológicos não testados em humanos ou sem certificação da FDA [Food and Drugs Administration – agência norte-americana equivalente à ANVISA]. Os resultados que dão são desorganizadíssimos, uma bagunça. Pode levar semanas ou mais até que trabalhadores da saúde pública contem com diagnósticos confiáveis para usar. Ainda assim, levaria meses para testar toda a força de trabalho e é questionável que um número suficiente de pessoas teria os anticorpos para abastecer de funcionários, com segurança, todas as empresas fechadas.
  • A hipótese mais heróica é que uma vacina esteja disponível na primavera de 2021, embora ninguém saiba por quanto tempo ela é capaz de conferir imunidade. Enquanto isso, centenas de termos de pesquisa e pequenas companhias de biotecnologia estão trabalhando para desenvolver medicamentos que reduzam o risco de falha respiratória e danos sérios ao coração e aos rins. Porém, essa difusão de experimentos científicos não conta com a coordenação nem o financiamento de Washington.

Lockdown indefinido

Em certo sentido, nós estamos vivendo um lockdown indefinido, tendo de lidar com um governo que dá mais prioridade à destruição do Serviço Postal Americano do que à organização de um programa de choque que produza testes, equipamentos de segurança e antivirais que permitirão aos estados norte-americanos retornarem ao trabalho.

Os cúmplices de Trump são monstros como a Amazon, que em duas semanas tornou Jeff Bezos US$ 25 bilhões mais rico, e o United Health Group, a maior companhia de seguros de saúde do mundo, cujo lucro aumentou em US$ 4,1 bilhões nos primeiros três esses da pandemia. Seguradoras médicas estão surfando em uma onda de sorte, pois, a maioria dos seus segurados estão atualmente impossibilitados de agendar operações ou obter tratamento vital.

Uma fúria vulcânica está emergindo rapidamente à superfície desse país e nós precisamos detê-la para defender e construir sindicatos, garantir assistência médica para todos e derrubar os patifes malditos dos seus tronos dourados.

Como chegamos até aqui

No último ano novo, enquanto estávamos brindando nossas taças, abraçados os companheiros e cantando alguns versos de alguma canção escrita há vário séculos por revolucionários escoceses, médicos chineses estavam notificando colegas ao redor do mundo que um rápido crescimento do número de casos de pneumonia aguda, situados ao redor da cidade de Wuhan, era resultado de uma infecção causada por um vírus até então desconhecido.

Dentro de uma semana, sua sequência genética já havia sido identificada e ele foi desvendado como sendo um “coronavírus”. Até 2003, pesquisas sobre essa família de vírus correspondiam principalmente às sérias doenças que causavam em vários animais, incluindo gado e aves. Sabia-se que apenas dois deles eram capazes de infectar humanos e, já que causavam apenas sintomas moderados de gripe, os pesquisadores consideraram insignificantes até então.

Então, em 2003, uma nova epidemia viral começou com um viajante em um hotel de um aeroporto chinês que transmitiu sua infecção para todos com quem interagiu. Dentro de 48 horas o vírus se espalhva para cinco outros países. A Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) – Síndrome Respiratória Aguda Severa – matou uma em cada dez vítimas.

O patógeno da SARS foi identificado como outro coronavírus, transmitido de morcegos para pequenos carnívoros conhecidos como civetas, há muito valorizados na gastronomia do sul da China. A SARS atingiu 30 países e causou intenso pânico internacional. Contudo, ele possuía um calcanhar de Aquiles: era contagioso apenas na fase em que pessoas infectadas apresentavam sintomas como tosse seca, febre e dores musculares. Por ser tão facilmente reconhecível, o vírus da SARS foi finalmente contido.

Um vírus similar, um tipo de maldição da múmia transmitida de ratos para camelos, emergiu em 2012 e matou mil pessoas, a maioria na península arábica. Porém, ele propagava-se sobretudo através do contato direto com camelos e por isso foi descartado como um candidato para engatilhar uma pandemia.

O vírus furtivo

Os pesquisadores tinham esperança que o assassino atual, um vírus conhecido por SARS-COV-2 que compartilha a maioria de seus genes com o SARS original, seria igualmente fácil de identificar através da correlação com os sintomas dos pacientes. Eles estavam terrivelmente enganados.

Após quatro meses de circulação no mundo humano, nós agora sabemos que o vírus, ao contrário dos predecessores, voa nas mesmas asas da influenza: é espalhado facilmente por pessoas sem sinais visíveis da doença. O patógeno atual revelou-se um “vírus furtivo” em uma escala que supera as influenzas e talvez como nada antes vistos nos anais da microbiologia. A marinha testou quase toda a tripulação do infestado porta-aviões Theodore Roosevelt e descobriu que 60% dos contagiados nunca mostraram algum sintoma visível.

Um amplo universo de casos não detectados pode ser considerado uma boa notícia se as infecções produzissem imunidade duradoura, mas não parece ser o caso. As dúzias de testes de sangue que detectam anticorpos atualmente em uso, todas sem certificado pela FDA, estão produzindo resultados confusos e contraditórios, tornando impossível, no momento, a ideia de emitir registros de permissão de volta ao trabalho com base na presença de anticorpos.

Contudo, pesquisas recentes (que podem ser analisadas no website do Instituto Nacional de Saúde, LitCovid) sugerem que a imunidade conferida após infecção é muito limitada e o coronavírus poderia se tornar tão perene quanto a influenza. Se não houver mutações dramáticas, segundas e terceiras reinfecções serão provavelmente menos perigosas aos sobreviventes, mas não existe evidências de que serão menos perigosas para pessoas não-infectadas em grupos de risco. Portanto, a COVID-19 será o monstro em nosso porão por muito tempo.

Eles sabiam que isso estava por vir

Entretanto, a doença não é uma erupção totalmente desconhecida, um asteroide biológico. Ainda que a transmissibilidade seja inesperada para um coronavírus, a pandemia corresponde em muito ao cenário descrito há muito para um surto de gripe aviária.

Há praticamente uma geração, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e boa parte dos governos tem se planejado para detectar e responder a tal pandemia. Sempre houve um entendimento internacional muito claro sobre a necessidade de detecção em estágios iniciais, grandes estoques de suprimentos médicos emergenciais e alta capacidade em leitos de UTI. Mais importante foi o consenso que os membros da OMS em coordenar suas respostas com base em orientações votadas democraticamente. A contenção inicial era crucial: ampla testagem, rastreio de contágios e o isolamento de casos suspeitos. Quarentenas de larga-escala, fechamento de cidades e de setores da economia – essas deveriam ser as últimas alternativas, tornadas desnecessárias dado o planejamento extensivo.

Nesse sentido, depois da chegada da gripe aviária em 2005, o governo norte-americano publicou uma ambiciosa “Estratégia Nacional para a Pandemia de Influenza” baseado na descoberta de que todos os níveis do sistema público de saúde dos Estados Unidos estavam completamente despreparados para um surto de larga-escala. Após o assombro da gripe suína em 2009, a estratégia foi atualizada e, em 2017, uma semana antes da posse de Trump, oficiais da transição do governo Obama e administradores da equipe de Trump conduziram em conjunto uma simulação ampla que testou a resposta das agências e hospitais federais a uma pandemia, a partir de três cenários: gripe aviária, Ebola e Zika vírus.

Na simulação, o sistema, claro, falhou em evitar o surto da doença ou, em decorrência disso, achatar a curva a tempo. Parte do problema foi a detecção e a coordenação. Outra foi o estoque inadequado e cadeias de suprimento com gargalos óbvios, tal como a profunda dependência de poucas fábricas estrangeiras para produzir equipamento de proteção vital. E, por detrás de tudo isso, está a falha em tomar vantagens agressivas de avanços revolucionários no desenvolvimento biológico ao longo da última década, o que resultaria em um arsenal de reserva de novos antivírus e vacinas.

Em outras palavras, os Estados Unidos não estavam prontos e o governo sabia disso.

Desastre em dominó

Por volta do fim de janeiro de 2020, três coisas aconteceram. Primeiro, a OMS rapidamente distribuiu centenas de milhares de kits de teste desenvolvidas por cientistas alemães que foram, contudo, subutilizados visto que cada nação trancou suas portas e ignorou consensos prévios de ajuda mútua.

Segundo, três nações da Ásia Oriental com arsenais médico bem preparados e com sistemas de saúde de pagador único – Coreia do Sul, Singapura e Taiwan – foram bem-sucedidas na contenção do surto com mínima mortalidade e moderados períodos de isolamento social. Após desastres iniciais que permitiram que o vírus escapasse em viagens aéreas e forçada a manter um lockdown em Wuhan, a China se mobilizou em uma escala sem precedente e rapidamente extinguiu todos os focos de COVID-19 fora de Wuhan.

Terceiro, nossos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) decidiram criar seus próprios kits de testes ao invés de usar aqueles distribuídos pela OMS. Porém, as linhas de produção dos CDC’s estavam contaminadas com o vírus e os kits foram inutilizados. Todo o mês de fevereiro, quando ainda era possível evitar um aumento exponencial da infecção através de testes e rastreio de contágio, foi desperdiçado.

Esse foi o primeiro desastre. O segundo foi em março, quando casos severos e críticos começaram a lotar os hospitais. Conforme as instituições começaram a ficar sem respiradores, máscaras N-95 e ventiladores suficientes, elas se voltaram aos seus Estados e então para a Estratégia Nacional de Estoque federal, que havia sido designada especificamente para uso durante um surto como o de COVID-19.

Mas os armários estavam quase vazios. Foram em grande parte se esgotando durante o pânico nacional provocado pela gripe suína em 2009 e várias outras emergências subsequentes. A administração de Trump foi alertada repetidas vezes sobre seu dever estatutário de reabastece-los, mas estava focada em outras prioridades tais como cortar o orçamento dos CDC’s e destruir a Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente [o Obamacare].

Como resultado, milhões de trabalhadores norte-americanos tem ido à luta em hospitais, asilos, trânsito público e depósitos da Amazon sem proteção essencial que custa apenas centavos para manufaturar. Nada é tão emblemático o abandono de deveres do governo Trump frente ao fato de que no mesmo dia em que o presidente se gabava da “superioridade tecnológica e científica sem igual” dos Estados Unidos, o New York Times dedicava uma página inteira a “Como Costurar uma Máscara em Casa”.

Sobre o autor

Republicado de Labor Notes.

Mike Davis é autor de vários livros, incluindo Planeta Favela e Cidade de Quartzo: Escavando o Futuro em Los Angeles.

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