4 de abril de 2020

A formação da classe dominante soviética

O retrato da elite soviética sob Stalin feito por Yuri Slezkine é uma obra-prima excêntrica. Mas seu retrato dos bolcheviques como uma seita religiosa é uma caricatura da história.

Kevin Murphy

Jacobin

Joseph Stalin, novembro de 1933. Wikimedia Commons

Resenha de Yuri Slezkine, The House of Government: A Saga of the Russian Revolution (Princeton University Press, 2017)

Tradução / A Casa do Governo, de Yuri Slezkine, é certamente uma das obras mais ambiciosas sobre a história soviética que apareceu em muitos anos. Um livro extenso e excêntrico com claras aspirações literárias, conta a história da elite comunista soviética e seu destino sob Stalin, através do prisma do vasto complexo de apartamentos na Rua Serafimovicha de Moscou - a “Casa no Aterro” - onde muitos deles viviam (e de onde tantos foram arrancados pela polícia secreta de Stalin para terminar seus dias em prisões e campos de trabalho).

Em 1935, a Casa do Governo de Moscou tinha 2.655 inquilinos - a maioria famílias de funcionários do Estado e do partido: "Era o quintal da vanguarda; uma fortaleza protegida por portões de metal e guardas armados; um dormitório onde os funcionários do Estado viviam como maridos, esposas, pais vizinhos; um lugar onde os revolucionários voltavam para casa e a revolução ia para morrer."

Seria razoável esperar que uma saga da Revolução Russa, de mil páginas, escrita por um dos mais talentosos e provocativos historiadores russos instigaria o interesse dos socialistas ao redor do mundo. Contudo, dada a influência da universidade norte-americana e sua capacidade de produzir uma quantidade infinita de trabalhos anticomunistas sobre a Revolução Russa - a reviravolta social mais importante da história mundial - a falta de engajamento sério da esquerda com estes estudos é até compreensível.

Conheci Yuri Slezkine em 2000, no Arquivo do Partido Comunista em Moscou, onde ele graciosamente comparou seu estudo a respeito da Casa do Governo, conjunto habitacional construída no final dos anos 1920 onde residiu a elite soviética, ao meu trabalho sobre a fábrica Foice e Martelo - com a diferença crucial que o seu trabalho era de história social da elite e não dos trabalhadores (cf. Murphy, 2005). Slezkine sabia das dificuldades que enfrentava: é sabido que as coleções arquivistas soviéticas foram organizadas por espaço de trabalho e não por comunidade. Será que seu ambicioso projeto seria sequer factível?

Quando o premiado livro de Slezkine, The Jewish Century, foi publicado em 2004, eu achava que a resposta era não e que o projeto anterior havia sido abandonado. Contudo, The House of Government: A Saga of the Russian Revolution (Slezkine, 2017) foi finalmente publicado, no centenário da Revolução Russa. Uma leitura rápida em suas copiosas notas "nais realizadas a partir de dezessete arquivos revela a solução que Slezkine encontrou para seu desa"o metodológico: ela representa o ponto culminante de vinte anos de uma pesquisa espetacular, incluindo dezenas de longas entrevistas realizadas nos anos 1990 com residentes do conjunto habitacional ainda vivos. A publicação deste livro reúne meia vida de trabalho acadêmico e em arquivo, e merece atenção específica dos historiadores críticos.

Duas das três “tensões” temáticas do livro de Slezkine são verdadeiramente instigantes. A primeira são as histórias familiares de muitos residentes, conhecidos e desconhecidos. A capacidade de reunir o relato emocionante - frequentemente trágico - de tantas vidas dos residentes é o centro do trabalho. Além disso, existe a exploração que o autor realiza dos fundamentos literários da visão de mundo bolchevique. "Para os velhos bolcheviques, ler os 'tesouros da literatura mundial' era uma parte crucial da conversão de experiências, dos rituais amorosos, das "universidades" da prisão e da domesticidade da Casa de Governo".

Esta terceira tensão analítica é problemática, a identificação que Slezkine faz dos bolcheviques como milenaristas sectários. Esta não é uma proposição nova, esteve presente na literatura da Guerra Fria e mesmo antes. Durante as Jornadas de Julho, em 1917, Nikolai Berdiaev sugeriu em seu Religious Foundations of Bolchevism que os bolcheviques desejavam “transformar pedras em pão, mergulhar de cabeça no abismo revolucionário na esperança de um milagre revolucionário e fundar um reino eterno na terra, substituindo o reino de Deus”.

Se a afirmação dos bolcheviques como milenaristas sectários pode ganhar aplausos do público anticomunista, ela tem o risco de afastar os leitores mais críticos, o que seria um desperdício já que o livro é muito mais do que isso. É difícil compreender por que nenhum pesquisador experiente entre as dúzias que leram o manuscrito não considerou prudente alertar Slezkine a respeito de escorregadas óbvias no enquadramento conceitual do trabalho. Sua decisão bizarra de adotar o paradigma da historiografia do Escritório de Serviços Estratégicos (OSS) no momento em que o pós-modernismo perde força nos estudos soviéticos revela a extensão da pasmaceira intelectual que ainda afeta o campo.

Vidas revolucionárias

Muitos dos nomes proeminentes entre os residentes da Casa são familiares aos estudiosos da Revolução Russa: Nikita Khrushchev, Primeiro Secretário do Comitê do Partido em Moscou e, posteriormente, Primeiro Secretário do Partido Comunista; Aleksandr Voronsky, escritor de ficção, membro da Oposição Uni"cada e editor do jornal literário Red Virgin Soil; Valerian Osinsky, líder da Oposição Democrática Centralista e presidente do Conselho Supremo da Economia Nacional; Maria Shaburova, dirigente da Seção das Mulheres, editora do Rabotnitsa (Trabalhadora) e Comissária do Povo para o Bem-Estar Social da República Russa; Karl Radek, presidente do Comintern; da Oposição de Esquerda e Oposição Unificada; Nikolai Podvoisky, presidente do Comitê Militar Revolucionário, que comandou o assalto ao Palácio de Inverno; Ivar Smilga, Comissário Revolucionário do Front Ocidental, Líder de bancada do Comitê Estatal de Planificação, da Oposição de Esquerda e Oposição Unificada.

Alguma das histórias de família são de pessoas que “não reconhecemos”, mas suas vidas são tão interessantes que o leitor começa a achar que cada uma mereceria um livro. Slezkine é mestre em contar histórias, em uma narrativa na qual, em determinados momentos, abruptamente somos lembrados da época perigosa em que os residentes da Casa viviam. Tal é o caso de Fedor Fedotov, Roza Marcus e de seu filho Lyova, “cronista, escritor, músico” e artista.

Fedotov nasceu em uma família camponesa em 1887, juntou-se a um círculo socialista ainda jovem e passou um tempo na prisão por distribuir panfletos. Por volta de 1914, emigrou aos Estados Unidos onde conheceu sua futura esposa, Rosa Markus, e ingressou na seção Bolchevique de Nova Iorque. Entre 1915-1916, tornou-se presidente do sindicato dos estivadores e organizador do Partido Comunista; foi preso um pouco depois – durante as diligências para prender ativistas de esquerda coordenadas pelo procurador A. Mitchell Palmer, que deu nome à operação – e sentenciado a dez anos de prisão.

Em sua cela, de acordo com Roza, “havia apenas um tênue "o de luz de sol vindo de cima. Ele costumava seguir o "o com o livro nas mãos para ler.” Fedotov escapou da Prisão Trenton um ano depois, e voltou com Roza para a Rússia. Nos anos 1920 e 1930, ele serviu nos partidos comunistas em Alma-Ata, Tashkent na República do Quirguistão, e escreveu livros de ficção e infantis.

Depois de sua morte devido a um acidente de caça, Roza se mudou para a Casa do Governo e sua "ampla, próxima, móvel e ascendente” família judaica proveu Lyova “de professores e amigos, bem como de um elo vital entre o Apt. 262 e a história mundial, a descoberta e o socialismo". Roza trabalhou como "gurinista no Teatro da Juventude de Moscou, mas o orgulho de sua vida foi seu "lho Lyova: "Eu nunca o vi apenas sentado fazendo nada. Quando se sentava, Lyova lia. Seu pai era assim também. Você não poderia dizer que se tratava de uma escrivaninha de criança. Era a mesa de... um tipo de professor."

Seu amigo de infância, Yuri Trifonov, descreveu Lyova:

"Desde pequeno ele se esforçava apaixonadamente e ansiosamente para ser melhor de todas as maneiras possíveis, devorando rapidamente todas as ciências, artes, livros, música e todo o mundo - como se tivesse medo de não ter tempo suficiente. Aos doze anos, ele parecia viver com o sentimento de ter pouco tempo e muita coisa para realizar. Ele se interessava por muitas ciências, especialmente mineralogia, paleontologia e oceanografia; desenhava muito bem – suas aquarelas eram exibidas em exposições de arte e publicadas na revista Jovem Pioneiro; amava música clássica e escrevia romances em cadernos grossos, encadernados com tecido."

A guerra de Stálin contra os camponeses – com a coletivização forçada e a fome daí resultante – é descrita no Cazaquistão do ponto de vista do tour de inspeção feito por Sergei Mironov na região junto de sua companheira, Agnessa Argiropulo. Eles continuaram a viver um estilo de vida luxuoso entre as autoridades, embora Argiropoulo tenha notado que “por alguma razão, Mirosha está se tornando mais sombrio e mais retraído a cada dia, e eu nem sempre consigo tirá-lo dessa condição”. Na visita à cidade fantasma de Karanga, Mironov havia se deparado com canibalismo, uma criança órfã que comera seu irmão de dois anos - “cortando pedaços para comer e alimentando sua irmã até não sobrar mais nada”.

Moronov estava “muito irritado”, notou Argiropoulo, mas “tentava não pensar nessas coisas e afastá-las de si. Ele sempre acreditou que tudo o que o partido fazia era correto, era muito leal.” Em Petropavlovsk, participou de um banquete para comer um porco suculento junto aos burocratas partidários locais no qual “vários criados, lacaios e lambe-botas serviam todos os tipos imagináveis de comidas - até mesmo laranjas. Nem sequer remeto aos diferentes tipos de sorvetes e uvas”.

Pobreza e privilégio

Mesmo na relativamente privilegiada Moscou, a forma alcançou a Casa do Governo, e muitos residentes convidavam familiares para viver consigo. A maior parte dos residentes chegados de áreas rurais possuía parentes que haviam passado fome, e muitas das faxineiras da Casa eram refugiadas dos processos de coletivização. Em 1933, próximo à Grande Ponte de Pedra, mendigos eram “adultos e crianças que pareciam pequenos esqueletos com suas mãos esticadas”. Apesar da segurança da Casa do Governo ser restritiva, ainda em 1935 era possível ver “crianças esquálidas perto dos edifícios, passando por entre as grades de metal e cercas, escondidas entre as colunas, mendigando por comida”.

Crianças da classe trabalhadora que viviam perto dos dormitórios, quartéis e cortiços "cavam “impressionadas com a riqueza com a qual se deparavam” na Casa do Governo. Ocasionalmente as garotas da casa visitavam seus colegas fora da comunidade protegida, “chocavam com a miséria que encontravam e não desejavam não voltar mais ali”, enquanto os garotos “corriam o risco de serem pegos de surpresa e apanhar” quando voltavam da escola para a casa.

Durante a construção, entre 1928 e 1931, trabalhadores temporários das regiões rurais que trabalhavam na edificação da Casa do Governo viviam em tendas sem aquecimento e saneamento compartilhadas entre várias pessoas, trabalhavam dez horas por dia e comiam “comida estragada com vermes”. Já em 1928, o a direção local do partido notou que o principal desconforto político entre os trabalhadores era um “igualitarismo vulgar no que diz respeito às relações entre cidade e campo”, ao mesmo tempo em que centenas de trabalhadores abandonavam a construção sem trabalhar um dia sequer.

Durante a fome, os residentes da casa passavam férias na Riviera Branca onde “a qualquer hora do dia ou da noite um empregado poderia ser enviado para conseguir comida quente”. Em 1933, os convidados da nomenklatura provaram caviar, peixe defumado, presunto, salsicha, carne, pão branco, pão preto, entre outras iguarias. Na Casa do Governo, os residentes compravam em lojas alimentícias exclusivas, tinham empregadas, babás e motoristas. A maior parte das mulheres, de acordo com a sobrinha de Stálin, Kira, vestiam roupas feitas por encomenda – “não apenas vestidos e ternos, como também sobretudos e casacos de pele”.

A chegada do terror

O estilo de vida extravagante de alguns dos moradores da Casa do Governo não parecia tão chocante como sua propensão à violência que, de acordo com Skezkine, está presente de maneira proeminente no marxismo como “movimento apocalíptico”. “Violência geralmente produz uma boa orientação teórica. Todos os bolcheviques a viam como parte da Revolução, e ninguém poderia negá-la por princípio.” Slezkine não consegue explicar por que os eventos de outubro foram tão violentos em Moscou e quase sem sangue em Petrogrado ou por que durante “os anos 1920 a intensidade da violência diminuiu.”

Mas Slezkine dificilmente é o único nesta apresentação seletiva da violência. Um quarto de século depois de David Floglesong (1995) detalhar o financiamento massivo e secreto dos Estados Unidos de alguns dos sujeitos mais violentos e antissemitas do século XXI, os socialistas ainda podem esperar o dia em que um desses grandes especialistas falarão das intenções dos Estados Unidos em estabelecer “ditaduras militares” favoráveis aos seus interesses.

Slezkine reúne uma base sólida de informações a respeito da violência sob o Terror, mas sua maior contribuição é a história intrincadamente tecida de histórias humanas destruídas. Por mais estranho que possa parecer hoje, há poucas décadas os argumentos dos “revisionistas” – apologistas de Stálin – eram levados a sério. Enquanto os guerreiros ocidentais da Guerra Fria adicionavam dígitos aos números de mortes, os revisionistas respondiam por meio de tentativas de minimizar a escala da repressão e o papel de Stálin nos assassinatos em massa.

Ao todo, entre 1936 e 1939, por volta de 800 residentes da Casa do Governo foram presos e 344 executados. Slezkine complementa o que já é bastante conhecido a respeito do escopo e natureza do Terror com numerosas histórias pessoais das vítimas, executores e, às vezes, ambos ao mesmo tempo. A polícia secreta (NKVD) realizava prisões a priori para preencher cotas e organizava listas de acusados, incluindo 335 listas pessoalmente assinadas por Stálin. Privação do sono, interrogatórios que duravam dias inteiros e espancamentos eram usados para forçar “confissões”, muitas das quais editadas por Stálin.

Seus agentes utilizaram privação de sono, interrogatórios 24 horas por dia e espancamentos severos para extrair “confissões” forçadas que eram frequentemente editadas por Stalin. Em agosto de 1937, o chefe da NKVD, Ezhov, expediu a Ordem n. 00486 que ordenada a busca e prisão das “esposas dos traidores da pátria mãe” e “seus "lhos maiores de quinze anos socialmente perigosos e capazes de engajamento em atividades antissoviéticas”.

Slezkine oferece uma explicação convincente para a dinâmica cada vez mais extensa do Terror. Quando Bukharin respondeu às acusações apontando as inconsistências de seus acusadores, foi comunicado de que seu “comportamento advocatício” era irrelevante. Seus juízes disseram que sua culpa estava dada e que seu único trabalho era confessar e se arrepender, não argumentar.

O que importava, comenta Slezkine, não era se os traidores "zessem determinadas coisas ou não; o que importava era que eles haviam traído o Partido e poderiam fazê-lo novamente. Todos, com exceção de Stálin, haviam pecado contra o Partido em algum momento, por meio de pensamentos ou ações, e deveriam ser responsabilizados por atividade terrorista criminosa. Slezkine mostra que muitos dos envolvidos nestas terríveis operações acreditavam em sua retórica, achavam que estavam realmente “desmascarando os inimigos do povo”. Em seu pensamento, diz Slezkine, não havia espaço para erros, acidentes, desastres naturais – todo fracasso era resultado de sabotagem deliberada.

Contudo, ele está errado ao sugerir que o combate aos sabotadores, espiões e vândalos tenha começado a ganhar força apenas em abril de 1937. Na fábrica Foice e Martelo, engenheiros, opositores e os supostos “kulaks” já existiam desde o primeiro plano quinquenal. A repressão atinge seu apogeu em 1937, mas os processos que se valiam dos bodes expiatórios que Slezkine descreve estavam intrinsecamente relacionados ao processo de industrialização rápida e às tentativas brutais de remediar os problemas estruturais inerentes a ele.

Vítimas e aniquiladores

Entre as muitas vítimas do Terror havia Tania Miakova e sua família. Miakova, então com vinte anos, se juntara aos bolcheviques na Ucrânia durante a Revolução de 1917; se formou na Universidade Comunista Sverdlov, em Moscou, casou-se com Michael Poloz - chefe do Planejamento Ucraniano – e teve uma filha, Rada, em 1924. Em 1927 passou a fazer parte da oposição e passou a década seguinte no exílio, prisão e campos de trabalho forçado, inclusive no infame Gulag de Kolyma na região nordeste da Sibéria.

Em Astrakhan, ela juntou dinheiro para muitos exilados desempregados, organizou reuniões da oposição e distribuiu pan!etos acusando a liderança do Partido de trair a classe trabalhadora. Como muitos trotskistas, Tania tornou-se obcecada pela industrialização, “geralmente tudo o que eu preciso são o plano de cinco anos e sandálias tamanho 37”. Depois do encontro com seu marido no Cazaquistão, Tania terminou por assinar uma carta de retratação – não se sabe se por medo pela segurança de sua família ou se pelo Partido não estar mais apaziguando o conflito com oficiais da NEP e kulaks.

Depois de sua soltura, Tania, Poloz e sua "lha se mudaram para a Casa do Governo, mas ela foi detida novamente em 1931 por encontrar-se com ex-oposicionistas e, de acordo com a polícia secreta, por expressar preocupações a respeito da coletivização do trabalho. Slezkine recupera longamente as emocionantes cartas que Tania escreveu para a "lha, marido e mãe nas quais procura se manter otimista, oferecer orientação para a educação da "lha à distância e provar sua lealdade ao regime - completamente ciente da vigilância sob a qual se encontrava.

Ao final, Tania é traída por sua companheira de quarto em Kolyma por ser uma “trotskista não reformada” e é executada por “manter contato regular com trotskistas convictos”. Poloz também é executado e uma das acusações é a de “manter correspondência com sua esposa, uma trotskista”. Rada trabalharia como enfermeira durante a II Guerra e seria presa durante o cerco de 1949 contra “familiares dos traidores da pátria mãe”.

Os responsáveis pelo combate aos sabotadores tiveram, por vezes, sua sanidade questionada. O chefe de E.m Shchadenko expressou suas preocupações de que “a qualquer momento” ele poderia “sucumbir sob um acesso de loucura delirante”. Enviado a Kiev em julho de 1937 para “liquidar os efeitos das sabotagens”, Shchadenko declarou a um camarada do período da Guerra Civil que “eu como sempre, sou impiedoso com o inimigo, atacando pela direita e pela esquerda, aniquilando-o e seus atos vis”.

Sua esposa, Maria Denisova (retratada no poema épico de Maiakovski, Nuvem de calças), fazia sua própria busca por inimigos do povo na Casa do Governo, usando apenas camisola e por vez carregando uma pistola ou faca para avançar sobre os vizinhos”, ameaçando-os “com palavras completamente sem sentido”.

Caricatura do bolchevismo

A incursão extensa e habilidosa de Slezkine na "cção contemporânea permite a textura de profundidade de cada época da casa. A literatura da NEP, diz Slezkine, “retém a memória e a esperança dos últimos dias, mas havia mais, mais do que tudo essa era a literatura do grande desapontamento”. Os bolcheviques contaram o tempo sagrado em anos e assumiram, como o profeta Paulo, “que o mundo em sua forma presente está acabando”. Citando favoravelmente o economista Lev Kritsman (apartamento 186) em seu !e Heroic Period of Russian Revolution (1924) a função da NEP era preparar para a “batalha mundial histórica que se aproxima entre capital e proletariado”, fomentar a revolução mundial fora da URSS e educar internamente os beneficiados por ela.

Ainda que muitos autores e alguns dos líderes partidários pensassem assim, ao menos entre os mais significativos no interior do Politburo, Slezkine aposta no sentido inverso. Depois de sete anos de guerra, guerra civil e revoluções europeias fracassadas, o socialismo em um só país de Stálin era assimilado pelas seções mais conservadoras do Partido em nome da estabilidade contra o aventureirismo de Trotsky, descrito como o Dom Quixote do comunismo. Já em 1924, durante a campanha maliciosa contra Trotsky, Stálin deletara sua própria referência anterior à revolução internacional como um pré-requisito para o socialismo em Foundations of Leninism.

A repetida caracterização de Slezkine do bolchevismo como um “movimento de homens” é igualmente embaraçosa. Esta afirmação só pode ser feita se ignorarmos os 700.000 participantes do movimento de mulheres proletárias durante a NEP. A maioria das mulheres na fábrica Hammer and Sickle participava regularmente de reuniões que abordavam suas queixas sobre questões como assistência à infância, assédio gerencial e licença-maternidade. Slezkine também negligencia as opiniões de muitas mulheres bolcheviques, como Alexandra Kollontai, que contribuiu para amplas discussões sobre o código familiar de 1926, preferindo se concentrar em Yakov Brandenburgsky, a quem ele chama de “o principal especialista bolchevique no problema do casamento.

Slezkine apresenta um conhecimento supreendentemente desinformado a respeito das regras bolcheviques e sobre como foram mudando sob Stálin. Ele afirma que “era tradição do Partido ‘proibir a defesa de certas visões’; que a única maneira para um oposicionista permanecer no Partido seria ‘revendo as visões’ proibidas”. Na verdade, quando Zinoviev exigiu a retratação de Trotsky no 13º Congresso do Partido, em maio de 1924, essa foi a primeira vez que esse tipo de postura foi exigido e Krupskaya - que não apoiava a oposição - se opôs a essa “demanda psicologicamente impossível”.

Se, por um lado, Slezkine é capaz de identificar a profunda contradição entre os estilos de vida suntuosos, o poder e os privilégios dos residentes da Casa do Governo e a “construção do socialismo”, é uma pena que escolha enquadrar sua narrativa nos paradigmas antiquados e simplistas associados à equivalência entre stalinismo e socialismo.

Séquitos necessitam de líderes imbatíveis e “Lenin era tanto a criatura como a garantia da unidade dos que pensavam igual”. Durante a NEP, enquanto o “novo regime se conteve para esperar”, a sua mais importante tarefa era “disciplinar os fiéis”. E, como “Bukharin relembrou, o Partido em 1922, logo depois da introdução da NEP e do banimento das ‘facções’ internas, ‘unidade da vontade’ sempre foi a chave para o bolchevismo”. Já em 1924, “quando o partido adquiria força antes da batalha final, o desafio era primordial”.

A tentativa desajeitada de Slezkine de projetar o stalinismo como a continuação mais lógica de 1917 não é nova. Como Stephen Cohen (1985) argumentou, o bolchevismo era, na verdade, “um movimento político diferente – ideologicamente, programaticamente, em termos geracionais” e “muito mais amplo e diverso que Lenin era o próprio leninismo”. Apesar disso, o enquadramento da história soviética com “ausência de diferenças signi"cativas ou descontinuidades entre bolchevismo e stalinismo” tornou-se a missão acadêmica dominante, bem como o uso intercambiável entre esses dois termos e “leninismo” como se fossem “o mesmo, politicamente e ideologicamente”. A história bolchevique antes de 1929 é tratada como mera precursora ao inevitável, “antessala do stalinismo”. Os argumentos de Cohen contra a “tese da continuidade” da Guerra Fria são de 1984, mais de vinte anos antes de Slezkine começar a pesquisa do livro.

Em sua caricatura da história bolchevique, Slezkine falha em mencionar as diferenças por vezes profundas entre os bolcheviques em diversos assuntos importantes. Desconsiderar a análise das diferenças pode ajudar a evidenciar a uniformidade do partido, mas não deixa de ser uma operação descuidada e irresponsável. Os adversários bolcheviques de Lenin em abril de 1917 (e depois) são frequentemente omitidos, bem como suas posições. Os mencheviques estavam presentes na agressiva reunião de Krzesinska em 4 de abril. Três dias antes Stálin e Kamenev aceitaram a oferta de discussões unitárias feitas por Tsereteli com acordo a respeito do apoio ao Governo Provisório e a continuidade dos esforços de guerra. Três meses depois, Tsereteli assumiria pessoal a responsabilidade de solicitar o mandado de prisão contra Lenin. Em seu estudo seminal sobre o bolchevismo em 1917, Alexander Rabinowitch (1976) mostrou que “o caráter democrático, tolerante e descentralizado da estrutura partidária e do método de operação, bem como seu caráter aberto e massivo, em contraste com o modelo leninista tradicional”.

Há mais de um século, Roy Medvedev evidenciou que as facções bolcheviques, tais como os Comunistas de Esquerda, os Centralistas Democráticos e a Oposição dos Trabalhadores, elegeram delegados para os Congressos com plataformas programáticas próprias, que em 1921 o banimento das facções foi uma medida temporária durante a crise do início do ano. Apesar da falsificação dos resultados pelos representantes stalinistas, sabemos hoje que em 1923 a Oposição de Esquerda obteve a maioria entre os partidários de Moscou. Certamente Slezkine sabe de tudo isso, ou deveria.

Destruindo Marx e Trotsky

Slezkine evita enfrenta um problema muito mais amplo em sua tentativa simplista de conectar os pontos. Nada dos arquivos da antiga URSS revelados nas últimas décadas contribuiu para provar que Stálin dispusesse de um grande plano de coletivização e industrialização preparado para ser lançado quando “a espera” terminasse e o momento fosse favorável.

Stálin, na verdade, era um fervoroso defensor da NEP. Foi apenas durante a crise profunda da fase mais tardia da NEP, como mostra Michal Reiman, que o estrato dominante “segregou-se do povo e passou a atuar de maneira hostil a ele” com vistas a implementar “soluções extremistas”. Quando a ampla e violenta política de coletivização foi iniciada em 7 de novembro de 1929, Slezkine a"rma (sem comprovar) que estava já estava “prevista (contida) em Marx, Engels e Lenin”.

Aqui, contra Slezkine seria possível simplesmente retomar os elogios de Preobrazhensky para Stálin em 1934: “Você sabe que sequer Marx ou Engels, os quais escreveram muito sobre a questão do socialismo no campo, sabiam as especificidades que a transformação rural assumiria”.

Slezkine também recupera a análise de Trotsky a respeito do stalinismo, citando sua declaração de 1928 de que a ação de Stálin contra Bukharin era “indiscutivelmente, uma tentativa de alcançar nossa posição” e, em seguida, declara que Trotsky em seguida teria afirmado que o socialismo “finalmente está sendo construído”, mas “que não poderia juntar-se às suas "leiras”. Na verdade, a análise – problemática – de Trotsky era do stalinismo como “bonapartismo”, ou seja, oscilante desse entre os interesses da classe trabalhadora e aqueles da pequena burguesia, e seguiria sendo assim.

Por vezes os leitores podem começar a se perguntar se estão com o livro errado nas mãos. Nele, tanto bolcheviques como nazistas supostamente seguiram Marx, “mas Hitler não sabia (e os bolcheviques não sabiam de Hitler e não costumavam ler a Contribuição à crítica da Filosofia de Hegel ou a Questão Judaica de Marx.

Nascimento de uma classe dominante

Apesar destes problemas graves, como estudo prosopográfico da conversão de uma parte significativa do aparato do partido em uma nova classe dominante, The House of Government preenche um grande buraco na história do stalinismo, mesmo se seu autor não vê as coisas nestes termos. Infelizmente, o argumento elitista dos “bolcheviques como facção milenarista” obscurece ao invés de esclarecer esse processo. Ao longo dos anos 1920, uma seção significativa de seus membros assumiu a causa e condição da classe trabalhadora e camponesa de maneira séria e seus dirigentes expressaram isso e de muitas e amplas maneiras. Slezkine gostaria que pensássemos diferente a esse respeito.

Durante os anos 1920, residentes de muitos prédios das Casas do Sovietes assumiram estilos de vida privilegiados, mas também trabalhavam longas horas a ponto de exaustão. Em 1927, por volta de 65% os líderes soviéticos na Casa de Repouso Lenin reclamavam de algum tipo de complicação emocional. Quando eles começaram a se mudar para a Casa do Governo, em 1931, Slezkine leva em conta esse sentimento de dedicação e autoconsideração coletiva dos “chefes construtores do novo mundo”. O que é particularmente impressionante é o quão distantes esses novos governantes estavam de sua concepção anterior a respeito do papel emancipador da classe trabalhadora, substituído por sua própria atuação com força da mudança.

Ao celebrar a repressão nas regiões rurais no “Congresso dos Vencedores”, em 1934, Preobrazhensky reverenciou a “liderança do camarada Stálin” em alcançar “as maiores transformações da história do mundo”. Nos anos 1930, poucos residentes da Casa faziam referência à classe trabalhadora ou ao proletariado e, quando isso acontecia, era sempre de maneira retórica. Menos frequente ainda era a tentativa, mesmo privada, de compatibilizar o socialismo de caserna com o marxismo. Slezkine reconhece essa contradição, mas oferece agulhadas irônicas ao invés de se aprofundar na “industrialização que se apoiava no trabalho forçado tanto quanto em seus ‘genuínos entusiastas’”.

Esse é o aspecto analítico mais frustrante do estudo de Slezkine. É possível perceber em diversos momentos, de relance, o caráter dos residentes da Casa como governantes, bem como a mudança de sua concepção a respeito do marxismo. Uma concepção que evolui do socialismo emancipatório de 1917 para uma versão mais distorcida e paternalista nos anos 1920 depois dos bolcheviques substituírem o governo da classe trabalhadora pelo seu próprio.

Nos anos 1930, o stalinismo representou uma ruptura completa em relação ao marxismo quando a produtividade se tornou um mantra onipresente, combinado com o silêncio e complacência de trabalhadores e camponeses. Ao invés de analisar essa mudança, Slezkine se sente compelido a afirmar a continuidade – mesmo sabendo que a história soviética, desde o início, é repleta de descontinuidades, em particular quando se trata da substituição promovida pelos “chefes construtores” ao assumir o lugar de “agência transformadora” da classe trabalhadora.

Mesmo que existam dúvidas, ambivalências e visões divergentes a respeito do que pensavam estes "chefes construtores", é inegável que o ethos produtivista do stalinismo atravessava sua visão de mundo. A maioria dos bolcheviques, “ortodoxos e não ortodoxos, acreditava que o socialismo estava sendo construído e que o final estava próximo”. Slezkine é convincente ao dar suporte a essa perspectiva de consenso entre os residentes da Casa ao descrever suas ações e comentários, ainda que ele não realize o mesmo quando se trata da classe trabalhadora nas fábricas. Por vezes, Slezkine parece esquecer o objeto do seu estudo - de fato, os historiadores revisionistas nunca conseguiram encontrar as abelhas operárias felizes stalinistas que supunham encontrar.

O compromisso dos residentes da Casa do Governo com o projeto stalinista e com sua própria função social foi decisivo no processo. Como o crítico literário Aleksandr Voronsky afirmou, “a determinação do que era bom para a construção do socialismo era tarefa da liderança do partido”. A industrialização acelerada foi determinada como boa e ninguém poderia se opor. O crucial, a"rmado por Stálin aos administradores industriais em 1931 e citado de maneira textual muitas vezes, era diminuir cinquenta ou mesmo cem anos de atraso econômico em relação aos países avançados em uma década, “ou seremos destruídos”.

O custo dessa industrialização frenética foi o “tributo” dos camponeses no interior, apontado por Slezkine, mas também dos trabalhadores das cidades, o que não é mencionado. A implementação dessas políticas exigiu uma ampla máquina estatal coercitiva e "el, comprometida com o processo draconiano de acumulação primitiva. “Classes são grupos”, argumentou Lenin, “os quais podem se apropriar do trabalho alheio devido à diferença de sua posição em um sistema econômico dado”. Sob esta perspectiva, A Casa do Governo é um estudo fascinante dos governantes stalinistas e de seu projeto.

Uma obra-prima falha

O livro é o mais contraditório estudo sobre a Revolução Russa já publicado. Brilhante, cativante, de dar aperto no coração. Sob muitos aspectos é história social da melhor qualidade. Muitos dos críticos acadêmicos de Slezkine autores de trabalhos empoeirados devem ser lembrados de que não existe nada comparável publicado nos últimos 50 anos e provavelmente não será superado tão cedo. Yuri Slezkine deve ser elogiado por ter dedicado tantos anos de sua vida para produção deste livro incontornável para todos os estudiosos sérios da Revolução Russa.

Isso não nos impede de sermos rigorosos com suas falhas. Conceitualmente, A Casa do Governo é uma completa confusão que torna esta grande obra épica uma história previsível, contada tantas vezes antes e que projeta um argumento de continuidade repleto de erros factuais e omissões. Leitores atentos, capazes de perceber as análises exasperantes e tratar o ruído indesejado de fundo, vão gostar da viagem.

Sobre o autor

Kevin Murphy teaches Russian history at the University of Massachusetts Boston. His Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory won the 2005 Deutscher Memorial Prize.

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