17 de abril de 2020

A epidemia do filósofo

Marco D'Eramo


NLR 122 • MAR/APR 2020

“Não haverá recuperação. Haverá convulsão social. Teremos violência. Haverão consequências sociais e econômicas: desemprego dramático. Cidadãos sofrerão dramaticamente: alguns morrerão, outros se sentirão muito mal.” Não são palavras de um escatologista, mas de Jacob Wallenberg, descendente de uma das mais poderosas dinastias do capitalismo global, antevendo uma contração de 30% da economia mundial e altíssimos níveis de desemprego como resultados dos lockdowns decorrentes da crise do corona vírus. Enquanto filósofos temem que nossos governantes estejam explorando a epidemia para impor disciplina biopolítica, a classe dominante parece ter preocupações opostas: “Morro de medo das consequências para a sociedade... temos que medir os riscos do remédio afetar o paciente drasticamente”. Aqui o magnata sueco ecoa o prognóstico de Trump de que a terapia matará o paciente. Enquanto filósofos veem providências anti-contágio – toques de recolher, fechamentos de fronteira, restrições a reuniões públicas – como sinistras medidas de controle, os dominantes temem quem os lockdowns irão afrouxar seu controle.

Ao avaliarem o impacto da COVID-19, os filósofos em questão citaram as páginas extraordinárias páginas sobre a praga em Vigiar e Punir, nas quais Foucault descreve novas formas de vigilância e regulação ocasionadas pelo surto no final do século XVII. O pensador que tomou a posição mais nítida em relação à pandemia é Giorgio Agamben, que, em uma série de artigo combativos, começando com “A invenção de uma epidemia”, publicada pelo il manifesto no dia 26 de fevereiro de 2020. Nesse texto, Agamben descreve as medidas de emergências implementadas na Itália para impedir o espalhamento do vírus como “frenéticas, irracionais e completamente infundadas.” “O medo de uma epidemia da vazão ao pânico”, ele escreve, “e em nome da segurança nós aceitamos medidas que severamente limitam restringem nossa liberdade, justificando o estado de exceção”. Para Agamben, a resposta ao corona vírus demonstra a “tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo” – “É quase como se, com o terrorismo esgotado como causa para medidas excepcionais, a invenção de uma epidemia oferecesse um pretexto ideal para suporta-las para além de qualquer limitação”. Agamben reafirmou essas ideias em dois outros textos que apareceram no site da editora italiana Quodlibet em março.[3]

Agora, Agamben está correto e enganado ao mesmo tempo; ou melhor, drasticamente errado e um pouco correto. Ele está errado porque os fatos o contradizem. Até grandes pensadores podem morrer de contágio – Hegel faleceu de cólera em 1831 – e filósofos tem o dever de rever suas posições quando as circunstâncias o exigem: se o negacionismo do corona vírus era ligeiramente plausível em fevereiro, ele já não era mais razoável no final de março. Entretanto, Agamben está correto em dizer que nossos governantes usarão toda oportunidade para consolidar seu poder, especialmente em um período de crise. Não é nenhum segredo que o corona vírus está sendo explorado para fortalecer a infraestrutura de vigilância em massa. O governo sul-coreano monitorou a disseminação da infecção a partir do rastreamento da localização de seus cidadãos via seus celulares – uma política que causou alvoroço quando expôs uma série de casos extraconjugais. Em Israel, o Mossad irá logo implementar sua própria versão desse rastreador, enquanto o governo chinês dobra sua aposta em vigilância de vídeo e dispositivos de reconhecimento facial (não que as agências de inteligência estivessem esperando pela desculpa de uma epidemia para começar a nos monitorar digitalmente). Muitos governos europeus estão atualmente decidindo se irão imitar os programas chineses ou sul-coreanos, com o Gabinete do Comissário da Informação carimbando essa medida no fim de março. Agamben não é o primeiro a argumentar que um dos objetivos da dominação social é atomizar os dominados; Guy Debord escreveu na Sociedade do Espetáculo que o desenvolvimento de utopias capitalistas baseadas na mercadoria nos uniria em isolamento, em “perfeita separação”.

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By the end of this crisis, then, the surveillance powers of governments will have increased tenfold. But, contra Agamben, the contagion remains real, deadly and destructive despite this fact. That security services are likely to benefit from the pandemic does not justify a leap to paranoid conspiricism: the Bush Administration did not need to destroy the Twin Towers itself in order to pass the Patriot Act; Cheney and Rumsfeld could legitimize kidnapping and torture simply by seizing the opportunities that 9/11 presented.

I mention the World Trade Center attack because it reveals a second flaw in Agamben’s work, which explains all techniques of societal control using the model of state repression against an armed insurrectionary struggle. In the late 1970s and early 80s, several European countries imposed a state of exception allegedly to combat terrorism—a trend that directly affected Agamben’s generation and its offspring. But not all states of exception are the same. As Aristotle teaches, if all cats are mammals, not all mammals are cats. The state of exception imposed in the name of terrorism is similar to the policy designed to contain leprosy: that is, the division of society into two separate groups, with lepers/terrorists excluded from the community of healthy/law-abiding citizens. By contrast, the current state of exception reproduces, in principle, the one that Foucault theorizes for the plague, based on the control, immobilization and isolation of the entire population.footnote4 Unlike the leprosy model, this regime makes no distinction between good and bad citizens. Everyone is potentially bad; all of us must be monitored and supervised. The panopticon encompasses the whole of society, not just the prison or the clinic.

It is true that we are witnessing a gigantic and unprecedented experiment in social discipline, with three billion people currently ordered to remain at home, most of whom have accepted these restrictions on their freedom, with little active resistance. Forty years ago, this would have been unthinkable. In many cases this experiment proceeds blindly and haphazardly, as with India, where Modi has instructed the entire country to stay at home, despite the presence of 120 million floating migrant workers who are often forced to live on the streets. In much of the world, confinement to the home is only conceivable for the wealthiest stratum, while for most it leads directly to joblessness and hunger. India is an extreme case, but a class-inflected response to the epidemic is visible in every country. This is a ‘white-collar quarantine’, as the New York Times has it.footnote5 The privileged lock themselves in houses with fast internet and full fridges, while the rest continue to travel on crowded subways and work elbow-to-elbow in contaminated environments. The food industry, energy sector, transport services and telecommunications hubs must continue to operate, along with the production of vital medicine and hospital equipment. Physical separation is a luxury that many cannot afford, and rules for ‘social distancing’ are serving to widen the gulf between classes.

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O que nos traz ao ponto que Agamben não nota: a dominação não é uni-dimensional. Não é só controle e vigilância; também é exploração e extração. (Um pouco de Marx, junto com Schmitt, não lesaria sua análise.) O sério dano que essa epidemia ameaça infligir ao capital explica a relutância dos políticos de impor isolamento e quarentena: Boris Johnson (inicialmente) e Trump são os exemplos mais gritantes: eles resistiram anunciar uma quarentena pelo máximo de tempo que conseguiram, e querem acabar com ela quanto antes, mesmo que ao preço de centenas de milhares de mortes. Nesse momento, o lento andamento de políticas públicas de saúde deve ser contrastado com a velocidade da resposta financeira. Naturalmente, as “generosas” medidas orçamentárias refletem parcialmente os anseios de Wallenberg: elas visam evitar maior convulsão social ao fornecer subsistência a trabalhadores, por enquanto. Nenhum capitalista gostaria de ser forçado a essa posição keynesiana. Mas, como afirmou o chefe de gabinete de Obama, Rahm Emanuel, “você nunca pode deixar uma crise séria ser desperdiçada”. Então, enquanto escassas extensões são feitas ao pagamento estatuário de funcionários doentes, estados também fizeram esforços extraordinários para apoiar seus setores financeiros, ou “espumar a pista para os bancos”, nas palavras do ex-secretário do Tesouro Timothy Geithner. Por enquanto, governos da OCDE se comprometeram a fornecer mais de cinco trilhões, e esse número está fadado a crescer.

Os governantes também estão se aproveitando da pandemia para empurrarem medidas que causariam ultraje em tempos normais. Trump deu à indústria americana um passe livre para violar leis de poluição durante a emergência, enquanto Macron desmantelou um dos maiores feitos do movimento trabalhista, ao estender para sessenta o número máximo de horas de trabalho semanais. Porém, de certa forma, a mesquinhez desses truques legislativos – muito localizados e limitados a salvar uma fragilizada ordem neoliberal – mostra que a pandemia pegou as classes dominantes desprevenidas: elas ainda não captaram a gravidade da recessão que nos aguarda, e sua capacidade de derrubar ortodoxias econômicas. Assim como Agamben vê todas as emergências como anti-terroristas, nossos governantes veem essa crise sistêmica como meramente financeira: eles respondem à pandemia como se fosse um novo 2008, imitando Bernanke e prescrevendo expansão monetária friedmaniana. Prisioneiros do monetarismo ortodoxo, eles não entendem que nesse momento o choque de demanda vai causar mais que uma simples crise de liquidez.

Em breve, fortunas inteiras serão perdidas, quando capitalistas verem seus empreendimentos (linhas aéreas, empreiteiras, fábricas de carro, circuitos de turismo, produtoras cinematográficas) irem para o ralo. Mas, nesse contexto, o “dinheiro do helicóptero” de Friedman – a injeção de quantias astronômicas de liquidez na economia – vai iniciar uma destruição de capital em larga escala, já que a recém-emitida moeda não corresponderá a nenhum valor real. Na guerra, capital financeiro e material é demolido: infraestruturas, fábricas, pontes, portos, aeroportos, edifícios. Mas, quando a guerra termina, começa a reconstrução, e essa reconstrução engatilha uma retomada do crescimento econômico. No entanto, a atual epidemia parece mais uma bomba de nêutrons, que mata humanos e deixa prédios, estradas e fábricas intactas (ainda que vazias). Então, quando a epidemia terminar, não haverá nada a ser reconstruído – e nenhuma recuperação econômica em consequência.

Quando a quarentena for suspensa, as pessoas não irão simplesmente voltar a comprar carros e passagens de avião na escala pré-crise. Muitos perderão seus empregos, enquanto aqueles que os mantiveram enfrentarão dificuldades para encontrar clientes e consumidores em uma economia sem dinheiro. Enquanto isso, alguém terá que responder à imensa conta dos gastos relacionados ao vírus, especialmente considerando que uma dívida enorme mina a confiança do investidor, e, nesse momento, o temor de Wallenberg pode acabar sendo justificável: qualquer tratamento de choque que seja implementado depois da crise – quando, em nome da necessidade econômica, o povo tem que pagar pela dita “generosidade” – pode de fato levar pessoas à revolta. Essa epidemia trará o aumento do controle e vigilância dos de cima contra os “de baixo”; ela irá refazer a sociedade como um laboratório para técnicas de disciplinamento. Mas, nessa situação, o trabalho dos governantes será o de comandar um tigre: aqueles que querem nos supervisionar e controlar prefeririam fazê-lo por meios menos custosos. No fim, revogar a quarentena será fácil. Reiniciar a economia será mais problemático.

Roma, 4 de abril de 2020

Notas:

1. "Coronavirus 'medicine' could trigger social breakdown", Financial Times, 26 March 2020.

2. Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison, London 1995, pp. 195–228.

3. Agamben’s il manifesto article, and the following discussion in the Italian online journal antinomie—with contributions by Jean-Luc Nancy, Sergio Benvenuto and Roberto Esposito, among others—are collected on the website of the European Journal of Psychoanalysis. Further interventions include Alain Badiou, ‘On the Pandemic Situation’, MicroMega, 25 March 2020, and Paolo Flores d’Arcais, ‘Philosophy and the Virus: Giorgio Agamben’s Ravings’, MicroMega, 16 March 2020.

4. For a historical-reality check, however, it’s worth consulting Daniel Defoe’s Journal of a Plague Year [1722], which describes the innumerable ways plague-stricken Londoners found to dodge or bribe the watchmen and escape from the infected houses in which they’d been shut up—the agency missing from Foucault’s account.

5. Noam Scheiber, Nelson Schwartz, Tiffany Hsu, ‘“White-Collar Quarantine” Over Virus Spotlights Class Divide’, nyt, 27 March 2020; Jennifer Valentino-DeVries, Denise Lu, Gabriel Dance, ‘Location Data Says It All: Staying at Home During Coronavirus Is a Luxury’, nyt, 3 April 2020.

6. Oliver Milman and Emily Holden, ‘Trump Administration allows companies to break pollution laws during coronavirus pandemic’, The Guardian, 27 March 2020; Le Macronomètre, ‘Coronavirus: 60 heures de travail par semaine dans les secteurs essentiels, la bonne décision’, Le Figaro, 25 March 2020.

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