24 de abril de 2020

O falso consenso entre os economistas

Não há acordo sobre financiamento de gastos e os impactos no futuro

Ana Luíza Matos de Oliveira
Guilherme Mello
Grazielle David
Pedro Rossi

Folha de S.Paulo

O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, em Brasília. Pedro Ladeira/Folhapress

A crise do coronavírus tem produzido um aparente consenso sobre a necessidade de aumento dos gastos públicos. Vários economistas que se mantinham firmes na defesa da austeridade fiscal hoje defendem o “keynesianismo de guerra” diante da ameaça sanitária e recessiva. Em poucas semanas o gasto público passou do grande problema do Brasil para a principal solução. Mas, por detrás das aparências, há divergências que precisam ser explicitadas para o bem do debate público.

A maioria dos economistas está de acordo com a necessidade de implementação de medidas urgentes para enfrentar a crise, como a adoção de uma renda básica emergencial, maiores gastos com saúde, o apoio do Estado às empresas e trabalhadores, assim como a expansão do crédito. Mas o consenso para por aí.

Enquanto alguns procuram fontes orçamentárias ou patrimoniais imediatas para financiar essas políticas, outros recomendam o financiamento dos novos gastos por meio de emissão monetária ou ampliação da dívida pública, como acontece em outros países, e posterior busca de medidas fiscais progressivas. Ou seja, não há acordo sobre como esses gastos devem ser financiados e os impactos das diferentes alternativas no futuro.

As divergências se aprofundam quando se discute o papel do Estado em médio e longo prazos. Muitos dos que defendem a adoção de um “orçamento de guerra” não escondem a preocupação com a retomada imediata da agenda da austeridade, com aprofundamento dos cortes de gastos e das reformas de redução do Estado, passada a fase aguda da pandemia. Prosseguir nesta agenda que já se mostrou fracassada é irrealista e potencialmente trágico.

A “guerra” contra o vírus deixará marcas e trará a necessidade de reconstrução. Famílias e empresas devem sair da crise mais endividadas e com menos renda, reduzindo a capacidade do setor privado de alavancar o crescimento. Passada a crise sanitária, o Estado precisará ter um papel ativo na retomada, coordenação e indução dos investimentos.

A crise também criará novas demandas de proteção social e serviços públicos. O programa de “renda básica emergencial” pode se prolongar muito além do período de isolamento social, já que a recuperação da renda e da produção não serão imediatas. As demandas da saúde pública também devem aumentar em relação ao passado recente, dada a necessidade de atendimento continuado aos atingidos pela Covid-19, de manutenção da nova infraestrutura e equipamentos e de preparação para uma próxima ameaça sanitária.

Diante desse novo quadro, o dogma da austeridade e a chamada “agenda das reformas” (que nunca foram consensuais) perdem completamente o sentido, assim como o atual teto de gastos. Ficou evidenciado como a retórica do “acabou o dinheiro” e “não há alternativa” é falsa e hipócrita. Da mesma forma que o Estado pode mobilizar recursos para vencer uma guerra sanitária, poderá também fazê-lo para garantir os direitos da população e vencer problemas sociais em tempos de “paz”.

Sobre os autores

Ana Luíza Matos de Oliveira é professora visitante da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)

Guilherme Mello é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Grazielle David é doutoranda do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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