Roberto Schwarz
Leitura a quente do início da ditadura militar, o ensaio “Cultura e Política, 1964-1969 – Alguns Esquemas”, de Roberto Schwarz, completa 50 anos como texto obrigatório nas reflexões sobre a produção cultural e o autoritarismo no Brasil. À época de sua publicação na revista francesa Les Temps Modernes, em julho de 1970, o crítico literário vivia exilado em Paris.
Um ano depois do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968, o ensaio repassava as tentativas fracassadas de modernização do país no governo João Goulart, apresentava as forças sociais revolvidas pelo golpe de 1964 e observava as feições e contradições políticas dos movimentos culturais florescidos naquele período.
Escrito entre 1969 e 1970, sendo mais tarde incorporado ao volume “O Pai de Família e Outros Estudos” (Companhia das Letras), de 1978, o texto acendeu polêmica com os tropicalistas e motivou debates culturais na imprensa e nas universidades.
Aos 81 anos, em entrevista por escrito, Roberto Schwarz analisa a ascensão da extrema direita no Brasil e a permanência de questões formuladas no final da década de 1960.
O governo civil-militar “era pró-americano e antipopular, mas moderno”, escreveu Schwarz no ensaio. “Levava a cabo a integração econômica e militar com os Estados Unidos, a concentração e a racionalização do capital.” O moderno, entretanto, se combinava com o atraso, a “ideologia burguesa mais antiga —e obsoleta— centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas tradições”.
Os espetáculos teatrais do Arena e do Oficina entraram no quadro dialético do crítico. Schwarz equilibrava a análise social e a crítica cultural, sem faltar ao exame da experiência dos tropicalistas. “Arriscando um pouco”, ele avaliou, “talvez se possa dizer que o efeito básico do tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil”.
Mestre em literatura comparada pela Universidade de Yale e doutor pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne), considerado o crítico vivo mais influente do país, Schwarz é autor de dois estudos clássicos: “Ao Vencedor as Batatas”, de 1977, e “Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis”, de 1990.
No final de novembro, Schwarz lançará pela Editora 34 o livro “Seja como For: Entrevistas, Retratos e Documentos”, que percorre 50 anos de vida intelectual, reunindo 20 entrevistas inéditas em livro, documentos, ensaios e perfis de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Paul Singer e José Guilherme Merquior, entre outros. A obra incorpora um documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) sobre “Cultura e política”.Na entrevista a seguir, o professor aposentado da Unicamp reconhece semelhanças entre a virada de 1964 e o recente triunfo eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PSL), mas, nos 50 anos de “Cultura e Política”, ilumina as nuances e as diferenças entre os dois marcos históricos.
Os espetáculos teatrais do Arena e do Oficina entraram no quadro dialético do crítico. Schwarz equilibrava a análise social e a crítica cultural, sem faltar ao exame da experiência dos tropicalistas. “Arriscando um pouco”, ele avaliou, “talvez se possa dizer que o efeito básico do tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil”.
Mestre em literatura comparada pela Universidade de Yale e doutor pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne), considerado o crítico vivo mais influente do país, Schwarz é autor de dois estudos clássicos: “Ao Vencedor as Batatas”, de 1977, e “Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis”, de 1990.
No final de novembro, Schwarz lançará pela Editora 34 o livro “Seja como For: Entrevistas, Retratos e Documentos”, que percorre 50 anos de vida intelectual, reunindo 20 entrevistas inéditas em livro, documentos, ensaios e perfis de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Paul Singer e José Guilherme Merquior, entre outros. A obra incorpora um documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) sobre “Cultura e política”.Na entrevista a seguir, o professor aposentado da Unicamp reconhece semelhanças entre a virada de 1964 e o recente triunfo eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PSL), mas, nos 50 anos de “Cultura e Política”, ilumina as nuances e as diferenças entre os dois marcos históricos.
No ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, o senhor avalia que “o golpe [de 1964] apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado”. Numa eleição democrática, o atual presidente saiu vitorioso com um discurso de defesa da ditadura militar e hostil às políticas sociais e identitárias dos antecessores. Essa revanche histórica da extrema direita evidencia falhas políticas do PSDB e do PT, partidos centrais nas últimas duas décadas?
Caberia ao Estado incluir os excluídos, melhorar o salário mínimo vergonhoso e providenciar os serviços sociais indispensáveis, de modo a tornar decente e mais solidária a sociedade. Do ponto de vista eleitoral eram bandeiras imbatíveis, e estava na ordem das coisas que os dois partidos dominassem durante décadas. E não obstante...
Deixando de lado os erros que certamente os partidos cometeram, há uma hipótese mais pessimista para a virada à direita. A sequência de superações que durante algum tempo deu a sensação de que o país decolava rumo ao primeiro mundo pode ter chegado a seu limite, respeitadas as balizas da ordem atual. Esgotada a conjuntura internacional favorável, em especial a bonança das “commodities”, o dinheiro necessário a novos avanços desapareceu, interrompendo o processo de integração nacional e seu clima de otimismo.
A inversão da maré, ajudada por técnicas recém-inventadas de propaganda enganosa, transformou aprovação em rejeição num passe de mágica, aliás assustador. Na falta de organização política para aprofundar a democracia, ou melhor, a reflexão social coletiva, é possível imaginar que os novos insatisfeitos, os favorecidos pelas políticas esclarecidas anteriores, refaçam o seu cálculo e coloquem as fichas na aposta anti-ilustrada.
Num quadro de crescimento frustrado, procuram garantir a qualquer preço os ganhos já alcançados, e passam, quanto ao futuro, para o “salve-se quem puder”. Com sorte, a opção é reversível.
Em 1969/1970, seu ensaio observava “a combinação, em momentos de crise, do moderno e do mais antigo”. Há uma permanência disso no convívio entre as pautas moralizantes e militaristas do grupo de Bolsonaro e o apelo à modernização através de reformas liberais apoiadas por empresários e pelo mercado financeiro?
Há bastante em comum entre a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 2018, e o golpe de 1964. Nos dois casos, um programa francamente pró-capital mobilizou, para viabilizar-se, o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os rumos liberais da civilização. Ao dar protagonismo político, a título de compensação, aos sentimentos antimodernos de parte da população, os mentores do capital fizeram um cálculo cínico e arriscado, que não é novo.
O exemplo clássico foi a viravolta obscurantista na Alemanha dos anos 1930. Aceitando e estimulando o nazismo, a grande burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do qual já não se sabia quem devorava quem. Não custa rever, a propósito, o filme “Os Deuses Malditos”, de Luchino Visconti. Pode ser que Bolsonaro não chegue lá, mas não terá sido por falta de vontade.
Em 1964 houve um golpe de força; em 2018, uma eleição. É duro admitir que a defesa da ditadura e o ataque a políticas sociais bem-sucedidas possam ganhar no voto —mas podem. Onde foi que PSDB e PT erraram, a ponto de abrir caminho para a extrema direita? Não faltam explicações, nas quais os adversários se culpam mutuamente.
O exemplo clássico foi a viravolta obscurantista na Alemanha dos anos 1930. Aceitando e estimulando o nazismo, a grande burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do qual já não se sabia quem devorava quem. Não custa rever, a propósito, o filme “Os Deuses Malditos”, de Luchino Visconti. Pode ser que Bolsonaro não chegue lá, mas não terá sido por falta de vontade.
Em 1964 houve um golpe de força; em 2018, uma eleição. É duro admitir que a defesa da ditadura e o ataque a políticas sociais bem-sucedidas possam ganhar no voto —mas podem. Onde foi que PSDB e PT erraram, a ponto de abrir caminho para a extrema direita? Não faltam explicações, nas quais os adversários se culpam mutuamente.
Já o bolsonarismo considera a ambos farinha do mesmo saco: são exemplos temíveis de estatismo e marxismo cultural, ou seja, de comunismo. Obviamente a acusação é paranoica, mas ainda assim ela talvez ajude a entender alguma coisa. PSDB (então MDB) e PT cresceram no movimento histórico da redemocratização e tinham na reparação da “dívida social” da ditadura o seu programa.
Caberia ao Estado incluir os excluídos, melhorar o salário mínimo vergonhoso e providenciar os serviços sociais indispensáveis, de modo a tornar decente e mais solidária a sociedade. Do ponto de vista eleitoral eram bandeiras imbatíveis, e estava na ordem das coisas que os dois partidos dominassem durante décadas. E não obstante...
Deixando de lado os erros que certamente os partidos cometeram, há uma hipótese mais pessimista para a virada à direita. A sequência de superações que durante algum tempo deu a sensação de que o país decolava rumo ao primeiro mundo pode ter chegado a seu limite, respeitadas as balizas da ordem atual. Esgotada a conjuntura internacional favorável, em especial a bonança das “commodities”, o dinheiro necessário a novos avanços desapareceu, interrompendo o processo de integração nacional e seu clima de otimismo.
A inversão da maré, ajudada por técnicas recém-inventadas de propaganda enganosa, transformou aprovação em rejeição num passe de mágica, aliás assustador. Na falta de organização política para aprofundar a democracia, ou melhor, a reflexão social coletiva, é possível imaginar que os novos insatisfeitos, os favorecidos pelas políticas esclarecidas anteriores, refaçam o seu cálculo e coloquem as fichas na aposta anti-ilustrada.
Num quadro de crescimento frustrado, procuram garantir a qualquer preço os ganhos já alcançados, e passam, quanto ao futuro, para o “salve-se quem puder”. Com sorte, a opção é reversível.
Em 1969/1970, seu ensaio observava “a combinação, em momentos de crise, do moderno e do mais antigo”. Há uma permanência disso no convívio entre as pautas moralizantes e militaristas do grupo de Bolsonaro e o apelo à modernização através de reformas liberais apoiadas por empresários e pelo mercado financeiro?
As situações se repetem, mas não são iguais. Nos anos 1960, no contexto da teoria da dependência, falava-se muito em “reposição do atraso”, para designar uma constante de nossa história.
Nos momentos de crise aguda de modernização, quando parecia que o país, para adequar-se ao presente, iria superar a desigualdade abissal em suas relações de classe, aparecia uma solução modernista-passadista, que permitia ao capitalismo atualizar-se e à sociedade continuar gozando da sua desigualdade de sempre. Aí estava a nossa incapacidade (ou inapetência) para a autorreforma, a chamada “reposição do atraso”, ou “modernização conservadora”, muito bem captada pelo tropicalismo na época.
Pois bem, parece claro que hoje vivemos um novo capítulo dessa história, com o casamento de conveniência, além de esdrúxulo, entre a nova reforma liberal da economia e as pautas arcaizantes do bolsonarismo. Dito isso, os tempos são outros. Mal ou bem, em 1964 esquerda e direita prometiam a superação do subdesenvolvimento, horizonte com que hoje ninguém mais sonha.
Nos momentos de crise aguda de modernização, quando parecia que o país, para adequar-se ao presente, iria superar a desigualdade abissal em suas relações de classe, aparecia uma solução modernista-passadista, que permitia ao capitalismo atualizar-se e à sociedade continuar gozando da sua desigualdade de sempre. Aí estava a nossa incapacidade (ou inapetência) para a autorreforma, a chamada “reposição do atraso”, ou “modernização conservadora”, muito bem captada pelo tropicalismo na época.
Pois bem, parece claro que hoje vivemos um novo capítulo dessa história, com o casamento de conveniência, além de esdrúxulo, entre a nova reforma liberal da economia e as pautas arcaizantes do bolsonarismo. Dito isso, os tempos são outros. Mal ou bem, em 1964 esquerda e direita prometiam a superação do subdesenvolvimento, horizonte com que hoje ninguém mais sonha.
Também quanto ao refluxo do atraso estamos pior. Cinquenta anos atrás, quem marchava com Deus, pela família e a propriedade, eram os preteridos pela modernização, representativos do Brasil antigo, que lutava para não desaparecer, mesmo sendo vencedor. É como se a vitória da direita, com seu baú de ideias obsoletas, não bastasse para desmentir a tendência favorável da história. Apesar da derrota do campo adiantado, continuava possível —assim parecia— apostar no trabalho do tempo e na existência do progresso e do futuro.
Ao passo que o neoatraso do bolsonarismo, igualmente escandaloso, é de outro tipo e está longe de ser dessueto. A deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio aos trabalhadores organizados etc. não são velharias nem são de outro tempo.
São antissociais, mas nasceram no terreno da sociedade contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado. É bem possível que estejam em nosso futuro, caso em que os ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos. Sem esquecer que os faróis da modernidade mundial perderam muito de sua luz.
Ao passo que o neoatraso do bolsonarismo, igualmente escandaloso, é de outro tipo e está longe de ser dessueto. A deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio aos trabalhadores organizados etc. não são velharias nem são de outro tempo.
São antissociais, mas nasceram no terreno da sociedade contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado. É bem possível que estejam em nosso futuro, caso em que os ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos. Sem esquecer que os faróis da modernidade mundial perderam muito de sua luz.
Como o senhor avalia o retorno de casos de censura estatal a peças, exposições, livros e filmes, sob motivação religiosa ou mera retaliação política?
Até onde sei, no período Fernando Henrique, Lula e Dilma não se ouvia falar de censura, pela primeira vez em nossa história. Sob esse aspecto fazíamos parte do mundo civilizado.
Numa fração pequena, a cultura era governada segundo seus próprios critérios, auxiliada pelo Estado, ao passo que na parte dominante ela era comandada pelo mercado. Do ponto de vista da própria cultura, a proporção entre estas faixas era insatisfatória, mas, ainda assim, muito melhor que a intervenção autoritária e religiosa que se prepara agora.
Constatada a desgraça, não custa notar que nossa liberdade cultural sempre teve um caráter gritante de prerrogativa de classe. Salvo os grandes momentos de exceção, o seu foco estava mais na atualização com a moda dos países dominantes que no ajuste de contas com os abismos de classe em que vivemos.
Para enxergar um lado produtivo no retrocesso presente, digamos que o confronto forçado com as novas religiões, o novo autoritarismo, a nova meia-cultura não deixa de ser ocasião histórica para sair de nossa modernidade às vezes rasa e alcançar uma atualidade substantiva. Seria o momento, por exemplo, para que nosso agnosticismo saia do armário e conquiste seu direito de cidade.
Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, o Brasil é o país democrático com a maior concentração de renda no 1% do topo da pirâmide. Entretanto, fortaleceu-se eleitoralmente uma maré conservadora em que o combate à desigualdade social não está no centro da agenda pública. Como explicar esse paradoxo?
Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, o Brasil é o país democrático com a maior concentração de renda no 1% do topo da pirâmide. Entretanto, fortaleceu-se eleitoralmente uma maré conservadora em que o combate à desigualdade social não está no centro da agenda pública. Como explicar esse paradoxo?
Vou responder indiretamente, com a citação de um trecho de Luiz Felipe de Alencastro, que dá dimensão histórica e social ao problema. “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde” (1996). Para colocação mais ampla, leitura obrigatória, veja-se outra passagem do mesmo Alencastro, em “Encontros” (Azougue Editorial, pág. 37).
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Ao longo de seu trabalho como crítico literário, Roberto Schwarz investigou as literaturas e culturas do Brasil sempre em diálogo com o contexto político e socioeconômico do país, bem como, ao mesmo tempo, tentando compreender a realidade local como parte do sistema desigual das relações internacionais impostas pela modernidade capitalista ocidental. A combinação do materialismo marxista com a leitura detalhada do New Criticisim e da Teoria Crítica levou-o a desenvolver uma prática analítica original, iluminando particularmente o contexto pós-colonial brasileiro. Em seu diagnóstico panorâmico das manifestações artísticas, uma preocupação recorrente esteve ligada às transformações do campo cultural brasileiro a partir das recomposições político-econômicas introduzidas sistematicamente na região na década de 1950 – restruturações inauguradas por uma série de regimes ditatoriais que geraram um colapso de alguns paradigmas da luta política e um salto para uma sensibilidade pós-nacional com a instalação do mercado como eixo articulador das lógicas estatais e sociais. O novo programa para o Brasil e para América Latina é agora ditado pelo neoliberalismo. E ainda que as Américas lusófona e hispanófona tenham percorrido vias paralelas nas últimas décadas, as reflexões conjuntas sobre essas transformações ainda são escassas, tomando como base a teoria produzida na própria região. Em este contexto, quisemos dialogar com Roberto Schwarz e com seu trabalho sobre as mudanças experimentadas no Brasil e nas Américas, apontando para avaliações críticas e interpretativas de nossos passados recentes e nossos possíveis futuros.
Bruna Della Torre (BDT) y Mónica González García (MGG): Como crítico literário, um dos autores que você estudou com mais detalhe e originalidade é o romancista Machado de Assis. Sobre ele você diz que às vezes surgem certas obras que conseguem caracterizar e sintetizar a história de um país que ainda não tem uma história cultural consistente e própria, e que então se nutre de modelos estrangeiros como os que provém da Europa. Esse foi o caso do Brasil durante um período extenso após a Independência, mas também o caso das repúblicas latino-americanas que, depois de se livrar da Espanha, continuaram a olhar para a Europa em busca de modelos de arte, cultura e pensamento. Neste sentido, você acha que podemos ler a literatura de Machado não só como uma “alegoria do Brasil” mas também das aspirações das elites latino-americanas, aspirações sempre questionadas por um entorno dependente, subdesenvolvido, periférico, neocolonial – para usar só alguns dos conceitos que nas últimas décadas procuraram descrever e explorar os paradoxos regionais?
Roberto Schwarz (RS): A obra de Machado de Assis sempre foi um problema para a nossa crítica. Durante muito tempo ela foi vista como um corpo estranho na literatura brasileira. Fugindo à voga do romantismo patriótico e pitoresco, posterior à Independência, ela pareceu pouco nacional a muitos leitores, para não dizer estrangeirada e sem sangue nas veias. Também o seu gosto pela análise, em prejuízo da aventura, apontava nessa direção. Já aos contemporâneos naturalistas, fixados nas fatalidades de raça e clima, ela parecia alheia ao novo espírito científico. Para eles, um romance brasileiro não seria moderno sem os ingredientes apimentados da mestiçagem e do trópico. Ainda assim, por razões difíceis de explicar, Machado era reconhecido como o maior escritor do país e o único com estatura universal. Uma síntese desse paradoxo se encontra num ensaio injusto e agudo de Mário de Andrade, que não incluía nenhum de seus romances entre os dez melhores de nossa ficção (!), embora se orgulhasse do compatriota genial, que o mundo ainda iria reconhecer como um dos grandes. Hoje há certo consenso quanto à extraordinária acuidade social e nacional de seus contos e romances, sem falar em seu alcance crítico e modernidade estética.
A viravolta se deu devagar e passo a passo. Em 1935 Augusto Meyer publicou um conjunto de pequenos artigos que mudavam o quadro. Em lugar do mestre da língua e do decoro, um tanto engravatado e insosso, que merecia o aplauso do establishment, entrava um Machado perverso, um moderníssimo “monstro cerebral”, próximo de Dostoievski, Nietzsche e Proust. O prosador arqui-correto, amigo dos clássicos, a quem nunca faltava uma citação de Aristóteles, Santo Agostinho, Erasmo, Pascal, Schopenhauer etc. etc., na verdade escondia um escritor de ponta, dos mais irreverentes. Meyer arrancava Machado à companhia dos literatos oficiais e convencionais e o aproximava dos grandes espíritos do tempo, o que ajudava muito a perceber a sua genialidade, mas tornava mais difícil ainda entender a sua relação com o acanhamento da cultura nacional.
O problema seria solucionado por Antonio Candido, num capítulo de síntese sobre a nossa ficção romântica. A tese do Machado universalista, influenciado pelos grandes da literatura ocidental, mas indiferente às letras e realidades locais, era posta em xeque. Ao contrário da voz corrente, Candido observava que o romancista havia estudado e aproveitado em detalhe a obra de seus predecessores brasileiros, figuras secundárias, muito menores do que ele, mas cuja contribuição foi substantiva (436-437). Este ponto é central.
Sob o signo da cor local e de sua magia, a ficção romântica havia cumprido um programa de incorporação literária das regiões, dos costumes e das realidades sociais do país, recentemente emancipado. Tratava-se de um programa patriótico e quase sociográfico, o qual em pouco tempo produziu uma pequena tradição de romances mais ou menos estimáveis, que satisfaziam o gosto de um público pouco exigente embora sequioso de identidade nacional (Candido 432-434). Pois bem, com memorável tino crítico Machado soube enxergar nesses livros provincianos um substrato de outra ordem, com possibilidades diferentes, de grande literatura, o qual iria explorar. Algo como um negativo da modernidade, à qual eles aludiam por contraste e, bem pesadas as palavras, por ingenuidade e pelo que deixavam a desejar, projetando um avesso insuspeitado. Por inesperado que isso fosse, a trivialidade amável do localismo romântico trazia latente um fundo poderoso, o complexo tão brasileiro do liberal-escravismo clientelista, com seu labirinto próprio, sem nada de ameno. Este fazia ver – desde que os óculos fossem machadianos – uma inserção diferenciada no presente do mundo. Em suma, as relações sociais não burguesas da ex-colônia (escravidão, dependência pessoal direta, pseudo ordem burguesa), bem como a sua elaboração pela prosa romântica, forneceram a Machado uma argamassa histórica densa, de imprevista repercussão contemporânea, que lhe permitiu a aventura de sua obra moderníssima. Difícil e profundamente dialética, essa conexão é um dos segredos da literatura machadiana. O prosador erudito, impregnado de clássicos e cosmopolitismo elegante, que havia monopolizado até então as atenções da crítica, não desaparecia, mas era sobredeterminado, com infinita ironia, pelo conjunto das relações sociais locais em que banhava, que eram tudo menos requintadas. Nesta dissonância surpreendente, a estreiteza provinciana adquiria um relevo e uma profundidade notáveis, que eram uma qualidade nova, de alto humorismo, além de exata socialmente. Encasacado em seu repertório culto e europeizante, evoluindo numa situação retardatária, marcadamente de segunda classe, a que não faltava o elemento bárbaro, o narrador machadiano transformava-se em personagem emblemática e problemática, na verdade um grande achado realista. Reconfigurado pelo contexto, encenava uma comédia ideológica original, característica da vida na periferia da ordem burguesa, ou melhor, nas sociedades em processo de descolonização.
Assim, voltando a suas perguntas, Machado não começava do zero. Quando escreveu as Memórias Póstumas de Brás Cubas, seu primeiro grande livro, em 1880, ele dava continuidade a quarenta anos de tentativas ficcionais anteriores – resta ver, é claro, que tipo de continuidade. Com mais e menos talento, os seus antecessores haviam escolhido e fixado um acervo de paisagens, situações características, tipos sociais interessantes, conflitos de classe, timbres de prosa e humor, pontos de vista narrativos, modelos estrangeiros etc. Tomadas em si mesmas, essas opções iam do desastrado ao divertido, do banal ao curioso, do conformista ao irreverente, mal ou bem colocando em perspectiva e formalizando algum aspecto da realidade local. O conjunto é modesto e representa o esforço de auto-conhecimento e auto-figuração de uma sociedade nacional incipiente, que procurava a si mesma por meio da imaginação romanesca. Talvez não seja injusto dizer que a atenção que esses livros ainda hoje merecem do leitor exigente se deve a seu papel na preparação da obra machadiana – preparação naturalmente involuntária.
Com efeito, Machado não só levou em conta esses romances medianos, como enfiou neles a “faca do raciocínio” – expressão sua –, para lhes testar a substância, tanto social como artística, e tirar as consequências do caso, como escritor que não aceitava ser iludido. Com perspicácia absolutamente fora do comum, que até hoje deixa boquiaberto, ele pôs à prova da realidade e da consistência interna o trabalho literário de seus confrades, o qual retificava. Entusiasmo patriótico, santidade das famílias, ordem social, normalidade psíquica, soluções de linguagem e forma, importação de modas literárias, ideias correntes, certezas do progresso, tudo foi examinado criticamente, estabelecendo um patamar de consciência inédito no país (embora não reconhecido) e raro em qualquer parte. Digamos então que a continuidade refletida com uma tradição de segunda linha lhe permitiu dar um passo extraordinário, uma superação crítica em grande estilo, paradoxalmente moderna, que talvez seja a sua maior lição como artista pós-colonial.
Ainda em relação à sua pergunta, o salto qualitativo de que falamos tem vários ensinamentos contra-intuitivos. 1) A força negadora e superadora da grande literatura pode ter uma dívida importante com as limitações do universo artístico a que ela se opõe. 2) Em países periféricos, a invenção formal não nasce da recusa dos modelos metropolitanos, mas de sua verificação crítica pela experiência local, a qual se transcende e universaliza através desse confronto. 3) Talvez seja verdade que a produção artística de países na periferia tenda a adquirir uma dimensão suplementar de alegoria nacional, já que a experiência de incompletude e inferioridade relativa é um fato ubíquo da vida nesses países, experiência inescapável, que tinge os seus esforços de superação e neste sentido os alegoriza. Entretanto, em romances de tipo mais ou menos realista, a substância do trabalho artístico está na incorporação e transfiguração de relações reais, que lhes dão o peso representativo, que só secundariamente participa do convencionalismo da abstração alegórica. 4) De fato, o narrador machadiano passeia o seu refinamento cosmopolita pelo ambiente pitoresco da ex-colônia, entre relações atrasadas e bisonhas, sem proporção com a envergadura e a complexidade dele próprio, o que pode ser visto como um emblema das elites latino-americanas, que nalguma medida compartilham essa situação. Mas por quê “alegoria”? Ele não é a figura convencionada de uma entidade abstrata – suponhamos a Justiça, a Indústria, a Finança, o Brasil – e sim a síntese de uma condição histórica real, apreendida num lance de gênio. Dito isso, esta apreensão é apenas a metade da proeza. A outra metade, maliciosa ao extremo, está na transformação desse narrador – uma personagem decididamente criticável – em princípio formal, em gerador da invenção literária e em organizador da ficção.
BDT y MGG: Você afirma, no seu livro Martinha versus Lucrecia, que tanto o Tropicalismo quanto a Antropofagia de Oswald de Andrade eram programas estéticos do Terceiro Mundo. O que você quis dizer com isso? Poderia explicar melhor? Por outro lado, mas também nesse contexto, você não acha que é um pouco injusto com Oswald de Andrade ao aproximá-lo tanto do Tropicalismo? Afinal, a Antropofagia dele vestiu-se de vermelho e O rei da Vela, apesar do que se fez depois, era uma peça de crítica da burguesia e de sua aliança com o capital estrangeiro. Será que não há uma “performance de identidade” em grau muito mais elevado na estética tropicalista do que no modernismo de Oswald?
RS: A poesia antropófaga de Oswald de Andrade, que é piadista desde o título, tem uma fórmula simples e genial no seu minimalismo. Trata-se da contraposição a seco, em espírito de montagem vanguardista, de imagens representativas do Brasil moderno e arcaico, escolhidas a dedo pela vivacidade do contraste. Muito dissonante, com algo de blague e disparate, o resultado é visto como alegoria humorística do país, captado em seu afã comovente de superar o atraso. Como o procedimento artístico é de ponta, impregnado da irreverência da revolução literária europeia, o conjunto respira otimismo e leveza, e como que promete uma colaboração feliz, para não dizer utópica, de seus três tempos desencontrados – pré-moderno, moderno e revolucionário – que convivem dentro do poema.
Em 1967, quarenta anos depois, também o Tropicalismo acopla o ultrapassado e o ultramoderno, a data vencida e o dernier cri, ou melhor, justapõe imagens tomadas ao antigo Brasil patriarcal e técnicas do Pop internacional mais recente. O ar de família com a antropofagia oswaldiana é evidente, com uma diferença. Enquanto em Oswald o entrechoque dos tempos é a promessa de um futuro nacional alegre, em que passado e modernidade se integram sob o signo da invenção e da surpresa, no Tropicalismo ele é a encarnação do absurdo e do desconjuntamento nacionais, de nossa irremediável incapacidade de integração social, enfim, do fracasso histórico que seria a nossa essência. Como diz o próprio Caetano Veloso, a propósito de seu momento mais radical, nunca a canção popular no país havia chegado a tal grau de pessimismo. Em perspectiva histórica, tratava-se – a meu ver – de uma formalização poderosa e sarcástica da experiência social-política de 1964, quando a contrarrevolução conjugou a modernização capitalista à reiteração deliberada das iniquidades sociais de sempre, as quais reconfirmava. A imagem-tipo do Tropicalismo encapsulava a experiência tão desconcertante, e latino-americana, do progresso que repõe o atraso em lugar de superá-lo. Poesia em pílulas, como em Oswald, mas cuja substância era uma espécie de reincidência no erro, contemplado com repulsa e fascinação – o famoso Absurdo Brasil.
Assim, Antropofagia e Tropicalismo são programas estéticos do Terceiro Mundo, que respondem às questões da modernização retardatária. Oswald com certa euforia, no início do processo desenvolvimentista, e Caetano com desencanto estridente, quando as perspectivas do nacional-desenvolvimentismo parecem se fechar. A captação da energia histórica é vigorosa nos dois casos – vestida de vermelho ou não –, que por isso mesmo são momentos incontornáveis de nosso debate cultural. Como observa Enzensberger, é mais fácil transformar o subdesenvolvimento em arte do que superá-lo (196). A observação é interessante, mas, como notou Vinicius Dantas, também a crise do Primeiro Mundo é mais fácil de transformar em arte que de superar.
BDT y MGG: Talvez possamos utilizar a descrição da literatura de Machado de Assis como capaz de “caracterizar e sintetizar o momento histórico de um país”, para pensar o filme Terra em Transe estreado por Glauber Rocha em 1967. Muitos críticos literários e culturais da esquerda coincidem em qualificá-lo de profético quanto ao que viria a acontecer no Brasil após o AI-5, mas também na América Latina com o assassinato de Che Guevara no mesmo ano de 1967 e o início das ditaduras militares no Cone Sul – metafórica e sinistramente ‘irmanadas’ pelo voo do condor. O Glauber inspirou-se em Che Guevara para imaginar a personagem de Paulo Martins e inclusive teve a ideia de fazer outro filme sobre os últimos anos do guerrilheiro argentino em conjunto com Cuba.
RS: Até onde vejo, o foco de Terra em transe está na crise de 1964, quando o vasto processo da democratização brasileira foi derrotado pela direita civil-militar, com apoio americano. O filme está vivo até hoje graças à coragem e à exaltação operística com que enfrenta os impasses da esquerda. O auto-exame se faz através da figura de Paulo Martins, um poeta-jornalista sequioso de absoluto, criado entre as benesses da oligarquia e convertido à causa popular e à estratégia do Partido Comunista. Deliberada e impiedosamente problemática, a personagem se debate entre os chamados do erotismo, da revolução, do privilégio, da disciplina partidária e da morte, a cujo encontro vai na cena final, de metralhadora na mão. Entre esperanças, lutas, discussões políticas violentas, contradições, traições e recuos, o conjunto encena um percurso intelectual em direção à luta armada. A caminhada com certeza é representativa daquele momento, mas o achado que torna profundo e enigmático o filme depende de mais outra dimensão. Desde o começo, há um baixo-contínuo popular que destoa da ação, composto por tambores, cantos e danças rituais, pela massa mestiça e miserável, subalterna, alheia à discussão política entre os brancos, vivendo outro tempo. É o aspecto tropicalista de Terra em transe, em que os procedimentos vanguardistas do filme, bem como a sua intriga moderna, se contrapõem com incongruência ostensiva ao substrato de relações coloniais que continua vivo no país. É um descompasso de alcance histórico-político incalculável, codificado na realidade brasileira e também continental, na estética tropicalista e, de outro modo, na ficção de Machado de Assis. Quanto à semelhança entre Paulo Martins e Guevara, posso estar enganado, mas não me convence.
BDT y MGG: Falando do crítico literário ou cultural como um “meta-pensador”, como você o definiu em uma oportunidade, a nossa região apresenta desafios e problemáticas diversas das examinadas por Antonio Candido em um texto como “Literatura e subdesenvolvimento” ou por você em “Cultura e política, 1964-1969”, mas são desafios e problemáticas herdados daquele intenso momento histórico que vocês analisam nessas reflexões. Você gostaria de comentar?
RS: “Literatura e subdesenvolvimento” faz pela literatura o que os outros clássicos da teoria do subdesenvolvimento fizeram para a economia e a sociologia. É um ensaio para ler e reler. É dessas raras reflexões que organizam a experiência cultural de um país e de um continente. No essencial estuda a superação da velha e acomodada “consciência amena do atraso”, que vinha da Independência e do Romantismo e para a qual o progresso era algo que chegaria naturalmente, mera questão de tempo. No polo oposto a esse otimismo provinciano e quase infantil, de ex-colônia, irá surgir a “consciência agônica” desse mesmo atraso, visto como catástrofe contra a qual é preciso lutar com urgência. Noutras palavras, o sentimento autocomplacente do “país novo”, cheio de promessas mas conservador no fundo, cede o passo à consciência realista do “país subdesenvolvido”, com adversários externos e internos e para o qual o futuro é um problema. A inflexão começa por volta de 1930 e se aprofunda nos anos de 1950. No Brasil a sua primeira manifestação foi o romance do Nordeste, que trouxe a miséria e o atraso da região ao debate nacional. No decênio de 50 o problema ganhou dimensão conceitual na teoria do subdesenvolvimento, com desdobramentos em todos os planos da vida, que de repente se descobria subdesenvolvida de A a Z. Como começava a ensinar Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa transitória, que precede o desenvolvimento pleno, mas um estágio e um modo de viver que tendem a se reproduzir ou agravar caso nada seja feito. Na esfera da cultura, por exemplo, o sonho dorminhoco e regressivo da originalidade nacional absoluta, que no limite exigia a “supressão de contatos e influências”, tem de ser substituído pela constatação sóbria mas polêmica da dependência e, no melhor dos casos, da interdependência generalizada, que leva ao questionamento estético-político em toda a linha. É claro que o abandono das ilusões iniciais de autarquia tem algo de progresso crítico, apontando para um horizonte menos iludido, ou mais relacional, em que a originalidade almejada resulta da influência recíproca e livre entre as nações. Por outro lado, é claro também que este horizonte é ilusório por sua vez, pois as realidades do Imperialismo e de nossas estruturas sociais inaceitáveis, postas em evidência pela teoria do subdesenvolvimento, fazem da reciprocidade universal um voto pio. No passo seguinte, o enfrentamento continuado com a iniquidade das estruturas e do Imperialismo tende a criar o intelectual revolucionário, cuja figura assinala um novo patamar.
Por sua vez, “Cultura e política, 1964-1969” recapitula a movimentação intelectual e artística do primeiro período da ditadura em seguida ao golpe da direita. Dentro de muita diversidade, a franja avançada das artes –arquitetura, cinema, teatro, canção, artistas plásticos – bem como do movimento estudantil e da própria discussão política havia reagido com valentia ao truncamento do processo democrático que apontava para o socialismo. Em todas estas esferas a interrupção antidemocrática foi recebida como um acinte, uma volta a formas de vida mesquinhas e superadas, que seria grotesco tolerar. A indignação correspondente esteve na base das posições artísticas do período, e também da passagem duma fração dos estudantes à luta armada, sem falar noutros setores dispostos a enfrentar algum grau de ilegalidade. Nesta linha, refletindo sobre as razões da derrota de 1964, uma parte da esquerda responsabilizou pelo desastre a política de conciliação de classes recomendada pelo Partido Comunista, que havia naufragado sem luta, a despeito da amplitude do movimento. Muito convincente até segunda ordem, a crítica de esquerda empurrava à radicalização em todos os campos, seja estéticos, seja políticos, desembocando na alternativa ainda não testada, a oposição pelas armas. A opção parecia uma vitória da consequência sobre a acomodação e prometia abrir horizontes históricos novos – que em seguida provariam ilusórios por seu turno, com a vitória brutal mas relativamente fácil da ditadura, que triunfava sobre a esquerda pela segunda vez. À derrota da conciliação seguia-se a derrota da radicalização, deixando por terra o socialismo e anunciando o que talvez seja o horizonte contemporâneo, de capitalismo sem alternativa à vista.
Tanto “Literatura e subdesenvolvimento” como “Cultura e política” tinham a possibilidade da revolução como uma de suas coordenadas. Os dois ensaios foram publicados em 1970, inicialmente no estrangeiro, pouco depois de decretado o AI-5, que conferiu à ditadura a sua feição mais tenebrosa. Na esfera política, talvez se possa dizer que a luta armada se bateu por um imenso campo popular, rural e urbano, desassistido e em boa parte analfabeto (50% à época), o qual contudo não tomou muito conhecimento do que se passava. A implantação rarefeita, para não dizer mínima, que tornava improvável o apoio social à luta, se traduziu também na qualidade intelectual de seus escritos ou panfletos, que lidos hoje dão uma impressão terrivelmente irreal. Não assim no âmbito da cultura, onde a despeito da derrota política os resultados foram excelentes e duradouros. Aqui, o mesmo desejo revolucionário de ruptura vanguardista e inclusão popular teve eco profundo, de outra densidade. A revolução consistia em forçar a estreiteza da cultura burguesa, em reinventar as formas culturais e artísticas com vista na massa dos excluídos e semi-excluídos, a saber, segundo a circunstância, os estudantes pobres, os trabalhadores urbanos e mesmo o povo rural. Esta aspiração convergia com o espírito meia-oito internacional, com tendências profundas do Modernismo brasileiro, que a seu modo havia visado algo parecido na década de 1920, além de responder à realidade social do país, à qual dava visibilidade, com resultado artístico muito bom. Sem prejuízo da derrota política, o movimento cultural do período, com as suas ousadias formais e temáticas, tornava presente o valor da radicalidade estética e extra-estética. A vitória da direita não impediu que as posições da esquerda daquele período alimentassem o melhor da cultura brasileira de então até hoje, cinquenta anos depois. Dito isso, é claro que o atual aprofundamento da mercantilização e o enquadramento consumista-miserabilista dos antigos excluídos são adversários quase invencíveis, que requerem respostas novas.
BDT y MGG: Agradecemos o diálogo e esperamos, com ele, estimular a reflexão crítica e conjunta sobre a nossa região.
Notas:
1. ‘Culture and Politics in Brazil, 1964–1969’, collected in Schwarz, Misplaced Ideas: Essays on Brazilian Culture, London and New York 1992, trans. John Gledson. The first part of the present text is translated from an interview given to Claudio Leal, ‘Neoatraso bolsonarista repete clima de 1964, diz Roberto Schwarz’, Folha de S. Paulo, 15 November 2019. The second part is drawn from an interview with Bruna Della Torre and Mónica González García, ‘Cultura e política, ontem e hoje’, Meridional: Revista Chilena de Estudios Latinoamericanos, no. 11, October 2018–March 2019. Both are reprinted with kind permission. Some of the questions have been shortened and, in the second section, re-ordered. Translation and notes by Max Stein.
2. Tropicalismo: a counter-cultural movement that emerged in Brazil under the 1964–85 dictatorship, above all in popular music, combining carnivalesque and bossa nova elements with borrowings from psychedelia and the Anglo-American pop industry; a collective album, Tropicália, or Bread and Circuses, featuring Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa and others appeared in 1968.
3. Luiz Felipe de Alencastro, Revista Veja, 15 May 1996.
4. See Schwarz, ‘Political Iridescence: The Changing Hues of Caetano Veloso’, nlr 75, May–June 2012, p. 110; the essay is a consideration of Caetano Veloso’s autobiography, Verdade Tropical (1997); in English, Tropical Truth (2002). A slightly longer version was published under the title ‘Verdade Tropical: Um percurso de nosso tempo’ in Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrétia: Ensaios e entrevistas, São Paulo 2012.
5. Oswald de Andrade (1890–1954): outstanding practitioner of the 1920s Brazilian avant-garde, whose Manifesto Antropófago (1928) exalts Brazil’s ‘cannibalization’ of other cultures, including that of its own colonizers. See also the discussion of the antropofagos in Schwarz, ‘Brazilian Culture: Nationalism by Elimination’, nlr i/167, Jan–Feb 1988, pp. 83–4.
6. Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908): author of some two hundred short stories and nine novels, including The Posthumous Memories of Brás Cubas (1880), sometimes translated as Epitaph of a Small Winner, Dom Casmurro (1900) and Esau and Jacob (1904).
7. Mário de Andrade, ‘Machado de Assis’ [1939], Aspectos da Literatura Brasileira, São Paulo 1943.
8. Augusto Meyer, ‘Machado de Assis’ [1935], Machado de Assis 1935–1958, Rio de Janeiro 1958.
9. Antonio Candido, ‘Temas e expressão’, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, 1750–1880, Rio de Janeiro 2017, pp. 436–7.
10. Antonio Candido, ‘Literature and Underdevelopment’ [1970] in Howard Becker, ed., Antonio Candido: On Literature and Society, Princeton 1995. See also Schwarz, ‘Antonio Candido, 1918–2017’, nlr 107, Sept–Oct 2017.
11. See Celso Furtado, A Pre-Revoluçao Brasileira, Rio de Janeiro 1962.