1 de fevereiro de 2000

Renovações

Enquanto a New Left Review entra em sua quinta década, um balanço da revista. De onde veio e para onde vai? Como avaliar o cenário político e cultural dos anos noventa? Um manifesto para a nova série de NLR que começa com esta edição.

Perry Anderson



Tradução / A duração de uma revista não é nenhuma garantia para seus êxitos. Um par de números, depois do qual uma repentina extinção pode significar mais na história de uma cultura do que um século de publicação contínua. Em seus três anos, a Athenaeum pôs em órbita o romantismo alemão. A explosão de ira da Revue Blanche, a primeira revista da vanguarda moderna, iluminou Paris durante apenas uma década. Em Moscou, a Lef fechou depois de sete números. Foram revistas na interseção da inovação estética com a filosofia e a política. As revistas de crítica freqüentemente sobreviveram mais tempo: The Criterion, em diferentes encarnações, durante a maior parte do período entre-guerras; Scrutiny, da década de 1930 à de 1950. As causas do fechamento podem ser externas, inclusive acidentais, mas por regra geral a vitalidade de uma revista está unida à daqueles que a criaram. Há casos heroicos, nos quais um só indivíduo pode desafiar o tempo compondo um monumento pessoal: Kraus escrevendo Die Fackel sozinho durante 25 anos; Croce igualando a façanha com A Crítica. Em geral, os ciclos vitais das revistas são adventícios e dispersos. Os editores lutam, mudam de opinião, se aborrecem ou se arruínam em sua maioria muito antes deles mesmos serem enterrados.

Uma revista política está tão sujeita a incidentes da mortalidade como qualquer outra. Em certo sentido, está mais ainda, na medida em que o político é sempre um Kampfplatz, um campo de divisões, que rompe vínculos e impõe conflitos. A este respeito, naufragar por causa de disputas ou divisões resulta mais freqüente do que qualquer outra causa. Além do mais, contudo, as revistas políticas têm uma razão de ser diferente que faz da renovação posterior em seu primeiro impulso uma prova de que é específica. Adere-se a determinados princípios objetivos, assim como à capacidade que estes têm de decifrar o curso do mundo. A este respeito, o emudecimento editorial significa uma derrota intelectual. Assim, as constrições materiais ou institucionais podem truncar uma publicação periódica no auge de sua vida. Mas, a não ser por tais circunstâncias, não resta outra opção às revistas políticas: para continuar sendo fiéis a si mesmas devem aspirar a prolongar sua vida real para além das condições ou gerações que lhes deram origem.

Esta revista, que agora entra em sua quinta década, chegou a este ponto. Quarenta anos pressupõem um importante período de atividade. Ainda que não extraordinário: Les Temps Modernes, da qual a New Left Review aprendeu muito em seus primeiros anos, se mantém há muito mais tempo. Mas é suficiente para se colocar uma revisão geral. Com este número damos início a uma nova série da revista, marcada por uma mudança de numeração, de acordo com a tradição radical, e por um novo layout da publicação, como sinal das modificações que acontecerão. Encarregado, no momento, da transição para outro estilo de revista, algo que não se consegue da noite para o dia, exponho a seguir minha própria visão da situação atual da NLR, assim como das orientações que seria conveniente que tomasse. Anunciado como um “editorial”, o resultado é, contudo, uma declaração pessoal e, portanto, provisória: exposta à contradição. Assim serão também os editoriais que acompanharão cada número, escritos por outros sobre temas de seu interesse, sem que tenha que se pressupor qualquer acordo automático.

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Toda consideração acerca do futuro da NLR deve partir de sua differentia specifica. O que fez dela uma revista característica da esquerda? Caberiam várias respostas a esta pergunta, mas a mais simples e sucinta é a seguinte: nenhuma outra revista deste tipo tentou atravessar os mesmos domínios, que abarcam desde a política, a economia, a estética, a filosofia, inclusive a sociologia, com as mesmas liberdades de extensão e detalhe exibidas em cada momento. Esta extensão nunca foi equânime ou regularmente explorada, por conseguinte, caso omisso das dificuldades para se mover entre registros da escritura tão completamente diferentes, a expensas inclusive dos leitores mais pacientes. Mas, de fato, foi aqui que se definiu o caráter da New Left Review. Esta é uma revista política com base em Londres que tentou tratar as ciências sociais e morais – a “teoria”, se se prefere – as artes e os costumes – a “cultura”, para sermos concisos – com o mesmo espírito histórico que corresponde ao político. O melhor modo de apreender a presente situação da revista consiste em voltar os olhos para o contexto no qual o formato da NLR foi concebido originalmente, tornando possível a combinação destes interesses. A conjuntura de princípios da década de 1960, quando a revista tomou forma nas mãos de um novo coletivo, apresentava os seguintes traços:

  • Politicamente, um terço do planeta havia rompido com o capitalismo. Poucos tinham dúvidas acerca dos despropósitos do domínio de Stálin, ou da falta de democracia em qualquer dos países que se declaravam socialistas. Mas o bloco comunista, inclusive em seu momento de divisão, continuava sendo uma realidade dinâmica: Isaac Deutscher, escrevendo na NLR, pôde ver no conflito chino-soviético um sinal de vitalidade.1 Krustchev, visto como um “revolucionário romântico” pelos atuais historiadores da Rússia, fez a promessa de reformas na União Soviética. O prestígio da China maoísta continuava praticamente intacto. A revolução cubana era um novo farol na América Latina. Os vietnamitas combatiam com êxito contra os Estados Unidos no Sudeste Asiático. O capitalismo, apesar de sua estabilidade e prosperidade em suas zonas centrais do Norte, estava ameaçado e sentia isso na maior parte do mundo circundante. Mesmo em casa, na Europa ocidental e no Japão, movimentos comunistas de massas continuavam posicionando-se contra a ordem estabelecida.
  • Intelectualmente, o descrédito da ortodoxia estalinista depois de 1956 e o ocaso do consenso doméstico do período da Guerra Fria depois de 1958 deram pé a um processo de descobrimento de tradições escamoteadas da esquerda e do marxismo que, nas condições de inanição britânicas, tomou ares de uma febre teórica. Começaram a circular veios alternativos de um marxismo revolucionário ligado à política de massas: luxemburguistas, trotskistas, maoístas, comunistas conselhistas. Simultaneamente, os diferentes legados do marxismo ocidental nascido da derrota da política de massas, desde a época de Lukács, Korsch e Gramsci em diante, se apresentavam suscetíveis de reativação. Na influência dessas tradições ocidentais foi crucial para sua continuidade até aquele momento: Sartre, Lefebvre, Adorno, Marcuse, Della Volpe, Colletti, Althusser eram autores contemporâneos que produziam novos textos enquanto entravam na gráfica os números da NLR. O isolamento britânico a respeito dos citados modelos continentais fez com que o contato com eles, repentino e concentrado, tivesse um efeito embriagador.
  • Culturalmente, a saída da atmosfera conformista da década de 1950 significava um fenômeno muito mais amplo e igualmente brusco. Os dois marcos dominantes do período são o surgimento da música rock enquanto onipresente onda sonora da revolta juvenil em oposição à produção, em regra geral melosa, do período anterior: uma onda popular que reclamava da mesma maneira uma ruptura estética, assim como uma efervescência social. Por sua vez, a Grã-Bretanha liderava essa transformação, cujos efeitos convulsivos estavam longe ainda de se tornarem rotina, como posteriormente haveria de ocorrer. O segundo deslocamento crítico foi o surgimento do cinema do autor como percepção e projeto. A este respeito tornou-se decisiva a influência dos Cahiers du Cinéma e da nouvelle vague que surgiu da revista. Nessa recepção, a posição outorgada aos diretores clássicos de Hollywood por parte dos cineastas franceses abriu um veio que em grande medida definiu o período. De fato, o novo predomínio do cinema e da música liberou uma dialética entre planos de referência “altos” e “baixos” na vida cultural da década de 1960, que, retrospectivamente, aparece como um traço distintivo. Brincalhona ou séria, a facilidade de circulação entre ambas sem grandes tensões era muito devida à corrente teórica mais importante do movimento, exceto o marxismo, que foi o estruturalismo. A importância do primeiro Barthes ou de Levi-Strauss (Mythotologie ou Tristes tropiques), que proporcionam um método comum para o estudo de cada uma delas, foi crucial para a mediação entre as formas altas e baixas. Recuperando o legado do formalismo russo, tratava-se de um estruturalismo cujas preocupações continuavam sendo perfeitamente coerentes com as da esquerda cultural.

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Nesse tipo de contexto, a NLR desenvolveu uma série de programas que naquele momento resultou inovadora para o mundo de fala inglesa. Politicamente, a revista orientou sua bússola para os movimentos antiimperialistas do Terceiro Mundo, e, ainda que os reflexos denunciadores da estreiteza de olhares continuavam tendo força na esquerda britânica, reuniu uma equipe cujos interesses abarcaram com o tempo boa parte do planeta: América Latina, África Negra, Oriente Médio, Ásia Oriental e Sul-Oriental, todas e cada uma dessas áreas estavam representadas. Em casa desenvolvia uma série de argumentos característicos acerca do Reino Unido, que chegou a ter uma certa influência. Daí que, quando se deu a explosão de finais da década de 1960 no Ocidente, desencadeada pela Guerra do Vietnã – a revolta estudantil, em primeiro lugar, e, mais tarde, a irrupção dos trabalhadores –, a NLR ocupava uma posição favorável para desempenhar um certo papel no posterior alvoroço, conseguindo atrair assim um público internacional de leitores em meados da década de 1970.

Intelectualmente, a revista dedicou boa parte de suas energias para a introdução e a recepção crítica das diferentes escolas do pensamento marxista ocidental, uma empresa suficientemente avultada para ocupá-la por quase uma década. O estruturalismo, o formalismo e a psicanálise também estiveram presentes, e textos canônicos ou material de referência, que quase sempre eram publicados pela primeira vez, sulcaram suas páginas. Nessas frentes, a NLR estava bastante à frente da cultura circundante, assentando as bases de um horizonte de referência mais cosmopolita e radical daquilo que resultava facilmente exeqüível em qualquer outro ponto do mundo de fala inglesa.

Da mesma maneira, culturalmente, a revista desenvolveu novos estilos de intervenção, unindo o interesse pelas artes tradicionais ao compromisso com as formas de vanguarda e a intervenções sobre o cinema e a música populares. A famosa série de artigos de Peter Wollen sobre diretores de cinema, ou, citemos por acaso, a Dialectic of Fear, de Franco Moretti, são exemplos dessa liberdade de movimentos entre terrenos “altos” e “baixos”. As iniciativas a que deu lugar essa ebulição resistem a qualquer classificação estreita. Era um período criativo.

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Quatro décadas mais tarde, o ambiente em que tomou forma a NLR praticamente se dissipou. O bloco soviético desapareceu. O socialismo deixou de ser um ideal difundido. O marxismo já não predomina na cultura da esquerda. Até mesmo o trabalhismo se dissolveu em sua grande parte. Dizer que essas mudanças são enormes seria insuficiente. Não se pode dizer que fizeram calar a revista. Cada um a seu modo, diferentes escritores ligados à revista responderam energicamente à conjuntura. Em registros distintos, caberia incluir o “Fin-de-Siécle: Socialism after the Crash”, de Robin Blackburn; “Our Post-Communism: the Legacy of Karl Kautsky”, de Peter Wollen; The Golden Age is Within Us, de Alexander Cockburn; “The Ends of Cold War”, de Fred Halliday; Faces of Nationalism, de Tom Naim; “Radicalism after Communism”, de Benedict Anderson; Fear of Mirrors, de Tariq Alí, e a lista poderia continuar.2 Seria interessante explorar a variedade dessas reações, assim como de outras contribuições publicadas pela revista. Cabe avaliar a hora de apreciá-las. Mas, em seu conjunto, a tradição da revista manteve-se sem desdouro.

Contudo, dez anos depois do colapso do comunismo o mundo mudou, e uma das condições para o relançamento da revista consiste numa aproximação específica e sistemática de seu estado atual. Qual é o aspecto principal da década passada? Em poucas palavras, pode se definir como a consolidação praticamente irrefutável, unida à sua difusão universal, do neoliberalismo. O que não estava de todo dentro do previsto. Por mais que os anos 1989-1991 contemplassem a destruição do comunismo do bloco soviético, não se podia dar por certo, inclusive para seus defensores, que um capitalismo de livre mercado sem limites ganharia todos os prêmios tanto no Ocidente como no Oriente. Muitos dissidentes do Leste, progressistas euro-ocidentais e conservadores estadunidenses previram um certo “reequilíbrio” da paisagem global; a esquerda talvez recobraria um certo alento vital, uma vez liberada do incômodo legado moral do estalinismo, enquanto os corporativismos japonês ou renano demonstrariam sua superioridade em relação a Wall Street ou à City, tanto no plano da igualdade social como da eficiência econômica. Estas não eram opiniões isoladas, eram referendas por prestigiosos especialistas. Ainda em 1998, Eric Hobsbawm e os antigos redatores de Marxism Today continuavam anunciando esperançosos o fim do neoliberalismo.[3]

Na prática, a tendência da época se moveu na direção contrária. Cinco processos interconectados transformaram radicalmente o cenário:

  • O capitalismo estadunidense reafirmou estrondosamente seu predomínio em todos os campos – econômico, político, militar, cultural – com um boom sem precedentes que já dura oito anos. Por mais supervalorizados que estejam os ativos de Wall Street, sob o fardo da dívida privada familiar, e apesar dos atuais déficits da balança comercial, o indubitável é que a posição competitiva fundamental das empresas estadunidenses se reforçaram decisivamente.
  • A social-democracia européia, que se tornou governo em diferentes locais da Europa, reagiu às baixas taxas de crescimento econômico e ao elevado desemprego do continente com o giro geral em direção ao modelo estadunidense, com a aceleração da desregulamentação e da privatização, não só das indústrias, mas também dos serviços sociais, freqüentemente para além dos limites dos regimes conservadores anteriores. A Grã-Bretanha ocupa o primeiro lugar em desregulamentação, mas a Alemanha e a Itália lutam por se colocar à sua altura, enquanto a França fica para trás, mais pelas palavras do que pelos fatos.
  • O capitalismo japonês se precipitou numa profunda recessão, daí que, juntamente com o coreano, se veja cada vez mais pressionado a fim de que se dobre aos modelos da desregulamentação, com o conseguinte aumento de desemprego. Em outra parte da Ásia, a República Popular da China está ansiosa por ingressar na OMC praticamente a qualquer preço, confiando em que as pressões competitivas do capital estrangeiro acabarão com as indústrias estatais sem que seu governo tenha que assumir responsabilidade alguma por seu destino; entretanto, pela primeira vez, a Índia passou a depender das boas graças do FMI.
  • A nova economia russa, o elo mais débil do sistema do mercado global, não provocou nenhum tipo de resposta popular, apesar de uma regressão catastrófica em termos de volume de produção e esperança de vida. Confia agora na estabilização de sua oligarquia financeira sob uma liderança plebiscitária capaz de centralizar o poder e privatizar a terra. 

Estão se dando imponentes mudanças socioeconômicas que vão abrindo caminho em todo o planeta e que já foram canonizadas pelo entusiasta estudo de Daniel Yergin e Joseph Stanislaw, The Commanding Heights. Essas mudanças vieram acompanhadas de dois movimentos complementares, um político e outro militar.

  • Ideologicamente, o consenso neoliberal encontrou um novo ponto de estabilização na “terceira via” dos governos Clinton-Blair. Essa fórmula vitoriosa, que sela o triunfo do mercado, não pretende impugnar, mas conservar o placebo de uma autoridade pública compassiva, exaltando a compatibilidade da concorrência com a solidariedade. O núcleo duro das políticas governamentais consiste no prosseguimento do legado Reagan-Thatcher, em certas ocasiões com medidas que seus predecessores não se atreveram decretar: reforma da seguridade social nos Estados Unidos e das taxas acadêmicas no Reino Unido. Mas agora se rodeia cuidadosamente de concessões secundárias e de uma retórica mais branda. O resultado dessa combinação, que na atualidade se estende por toda a Europa, é a eliminação do potencial conflitivo dos regimes pioneiros da direita radical e o rigoroso extermínio da oposição à hegemonia neoliberal. Poderia se dizer que, por definição, o modelo Tina (There is no alternative) só assume toda a sua força quando um governo alternativo demonstra que não restam políticas alternativas críveis. Para dar o golpe de misericórdia na social-democracia européia ou acabar com a memória do New Deal eram indispensáveis os governos de centro-esquerda. Nesse sentido, e adaptando a máxima de Lênin que diz que a “república democrática é o arcabouço ideal do capitalismo”, poderíamos dizer que a “terceira via” é atualmente o melhor arcabouço ideológico do neoliberalismo. Apenas cabe considerar acidental o fato de que a teorização mais ambiciosa e intransigente do ultracapitalismo como ordem global, The Lexus and the OliveTree, de Thomas Friedman, seja ao mesmo tempo uma cínica louvação da hegemonia mundial estadunidense e uma defesa incondicional do clintonismo, sob o lema “hoje em dia não é aconselhável ser globalizador se alguém não é um social-democrata”.[4]
  • Por último, a Guerra dos Bálcãs arredondou a década com uma demonstração diplomáticomilitar da ascensão dessa constelação. A comparação com a Guerra do Golfo indica até que ponto se reforçou a Nova Ordem Mundial desde o início da década de 1990. Bush teve que mobilizar um vasto exército para repelir a invasão iraquiana do Kuwait, em nome da proteção do fornecimento de petróleo ao Ocidente e de uma dinastia feudal, sem que conseguisse nem derrubar o regime de Bagdá nem envolver a Rússia, que continua sendo imprescindível para a aliança contra ele. Clinton subjugou a Sérvia com os bombardeios sem que um só soldado tenha dado um tiro em nome do imperativo moral de parar com a limpeza étnica, o que com toda probabilidade não tardará por acabar com a supressão do regime de Belgrado; e conseguiu envolver a Rússia sem grandes esforços na força de ocupação num papel simbólico de tropa auxiliar. Entretanto, a China, depois da destruição de sua embaixada um pouco antes da respeitosa visita de seu primeiro ministro aos Estados Unidos, colaborou docilmente na utilização da ONU como fantoche para o protetorado da Otan em Kosovo, deixando claro que não vai permitir que nada atrapalhe suas boas relações com Washington. Por sua vez, a União Européia se sente em toda sua amplitude como companheira de armas dos Estados Unidos e une seus esforços para a reconstrução generosa dos Bálcãs. Nesse sentido, a vitória em Kosovo não foi só militar e política. Foi além do mais um triunfo ideológico que determina um novo modelo de intervenção em favor dos direitos humanos em todo o planeta, de acordo com a interpretação dos mesmos por Washington: não por que aplicá-lo ao caso dos chechenhos e dos palestinos. A sociedade criada pela refrega capitalista dos últimos vinte anos necessitava de um banho de boa consciência. A operação Força Aliada o proporcionou. 

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A atmosfera intelectual nos países avançados, que se estende para muito além de suas fronteiras, reflete essas mudanças. Ainda que o grosso da inteligência ocidental parecia satisfeito com o status quo, com uma minoria mais inquieta e imaginativa empurrando-a para a direita, a esquerda continuou tendo uma presença importante na maioria dos principais países capitalistas ao longo da década de 1980, por mais que se dessem mudanças importantes: os britânicos se tornaram menos conservadores, enquanto que aos italianos e franceses acontecia o contrário, etc. Com a homogeneização da cena política na década de 1990, cabia esperar por sua vez uma Gleichschaltung da opinião aceitável. No final da década, esse processo começou a tomar um ritmo. Se dermos uma olhada no espectro do que era a esquerda tradicional, antes socialista, são dois os tipos de reação predominante antes da nova conjuntura.

O primeiro é a acomodação. Em sua hora de triunfo generalizado, o capitalismo convenceu a muitos, que antes o consideravam um mal evitável, que é uma ordem social necessária, saudável e equilibrada. Os que se somam, explícita ou tacitamente, à “terceira via” são exemplos óbvios. Mas a gama de disfarces pela qual se pode chegar à acomodação é muito mais extensa e resulta de fato compatível com uma atitude cética ou até mesmo gozadora diante dos falsos pintores, Blumenthal Campbell, da nova ordem: compreende desde o franco reconhecimento da superioridade em toda linha da empresa privada, sem muitos adereços, até a omissão pura e simples da questão dos regimes de propriedade em seu conjunto. Uma das conseqüências dessa modificação do clima ideológico em sentido lato consiste em que se torna cada vez menos necessário expressar uma postura sobre esses temas, na medida em que se vêem expurgados dos limites dos debates importantes. A retratação ruidosa é bastante rara; o mais comum é limitar-se a mudar de tema. Não obstante, a profundidade das concessões reais pode ser vista em episódios como o da Guerra dos Bálcãs, onde o papel da Otan simplesmente se deu como certo como um componente normal e conveniente do universo político por parte de uma ampla parcela da opinião pública que jamais havia sonhado fazê-lo há dez ou vinte anos. A atitude de fundo é: há capitalismo para muito tempo, vamos nos adaptar a ele.

O melhor modo de descobrir o segundo tipo de reação é em termos de desconsolo.5 Aqui estamos diante de uma acomodação sem princípios e os ideais de antes não são abandonados, mas chegam inclusive a ser reafirmados incondicionalmente. Mas diante do desalentador das perspectivas, há uma inclinação humana natural para encontrar resquícios de esperança em algo que do contrário se apresentaria como um entorno ameaçadoramente hostil. A necessidade de albergar uma mensagem de esperança estimula a inclinação para superestimar a importância dos processos contrários, a apoiar ações inapropriadas com possibilidades desinteressadas, a alimentar ilusões acerca de forças imaginárias. Provavelmente, nenhum dos que nos situamos na esquerda ficamos a salvo desta tentação, que pode inclusive buscar uma justificação na regra geral das conseqüências inesperadas derivadas de toda transformação histórica: o sentido dialético segundo o qual, inesperadamente, as vitórias podem gerar por sua vez vencedores sobre as mesmas. Também é certo que nenhum movimento político pode sobreviver sem oferecer a seus aderentes um certo alívio emocional, que em períodos de derrota desenvolverá inevitavelmente elementos de ressarcimento psicológico. Todavia, as tarefas de uma revista intelectual são outras. Sua primeira obrigação consiste em proporcionar uma descrição precisa do mundo, com independência de sua orientação moral. Tanto mais se temos em conta que há um terreno intermediário no qual o desconsolo e acomodação podem se superpor: isto é, quaisquer mudanças na ordem estabelecida calculadas para fortalecer seu domínio são festejadas como passos para sua dissolução, ou talvez como uma transformação qualitativa do sistema. O livro recentemente publicado de Russe Jacoby, End of Utopia, oferece mordazes reflexões sobre alguns aspectos da questão.

Que tipo de postura deveria a New Left Review adotar diante da nova situação? Creio que a atitude geral deveria consistir num realismo intransigente. Intransigente em dois sentidos: negando-se a toda acomodação com o sistema imperante e rejeitando toda piedade e eufemismo que possam subvalorizar seu poder. Disso não se depreende nenhum tipo de maximalismo estéril. A revista deveria expressar sempre sua solidariedade com os esforços em favor de uma vida melhor, por mais modesta que seja sua envergadura, mas deve apoiar todo tipo de movimento local ou de reforma limitada, sem pretender além do mais que alterem a natureza do sistema. O que não pode, ou não deveria fazer, é dar crédito às ilusões de que o sistema avança numa direção de progresso, ou então sustentar mitos reformistas de que é urgente e necessário proteger-lhe das forças reacionárias: atitudes manifestas, para colocar dois exemplos recentes, nas amostras de adesão à princesa e ao presidente por parte da esquerda bien-pensant, como se a monarquia britânica necessitasse de mais popularidade ou a presidência estadunidense de maior proteção. Esse tipo de histeria merece um ataque sem contemplações.

Os chamamentos a veneráveis tradições ou a instituições estabelecidas para, por assim dizer, viver segundo suas próprias normas constituem um assunto de outro matiz. Boa parte da melhor literatura da esquerda em nossos dias tenta levar ao pé da letra as convenções dominantes, tratando da hipocrisia oficial, o desajuste entre as palavras e os fatos, como a homenagem que o vício deve render à virtude, que promete um final feliz. Essa foi a orientação clássica privilegiada e praticada com eloqüência pela primeira New Left. Muitas contribuições à revista continuaram sendo redigidas nesses termos e há que se julgá-las por, freqüentemente consideráveis, méritos. Contudo, há um perigo com esse tipo de discurso. A linha entre o desejável e o factível pode não ficar clara, dando pé à mistificação em torno das realidades do poder e ao que racionalmente deve se esperar delas. A este respeito, é melhor que não fique nenhuma ambigüidade. A prova da capacidade da New Left Review para dar um tom político deveria estar na freqüência com que seja capaz de surpreender a seus leitores, chamando o pão de pão e o vinho de vinho, em vez de cair numa hipocrisia bem-intencionada ou enganar-se a si mesma acerca da esquerda. Hoje em dia, é o espírito da Ilustração, menos que o dos Evangelhos, que mais nos faz falta.

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Uma década não faz uma época. O grande golpe neoliberal da década de 1990 não é nenhuma garantia de poder perpétuo. De uma perspectiva histórica mais ampla, cabe fazer uma leitura mais esperançosa da época. Depois de tudo, este foi também um período em que foi derrotada a ditadura Suharto na Indonésia; a tirania clerical no Irã perdeu o seu vigor; na Venezuela, uma oligarquia venal foi expulsa; o apartheid terminou na África do Sul; os diferentes generais e seus fantoches civis foram dobrados na Coréia, e no Timor Oriental a libertação afinal venceu. Esses não eram movimentos que gozassem da confiança dos investidores ocidentais, como o que aconteceu com a primavera dos povos na Europa. Um ponto de vista otimista os consideraria como os germes de um próximo ajuste de contas: os últimos atos de uma contínua emancipação das nações, que constitui o verdadeiro processo de democratização em escala mundial e cujo resultado não estamos ainda em condições de imaginar. Outra versão apontaria muito mais a atenuação da hierarquia dos sexos, graças às pressões em escala mundial em favor da emancipação das mulheres como relato central da época. Ou então o aumento da consciência ecológica, que inclusive os Estados mais recalcitrantes se vêem agora obrigados a respeitar. O comum de todas estas visões é a insinuação de que o capitalismo poderá ser invencível, mas que poderia finalmente acabar dissolvido nas profundas águas de maiores cotas de igualdade, desenvolvimento sustentável e autodeterminação, de modo que esqueceríamos sua existência.

Sendo assim, tais profundidades continuam sendo insondáveis. A extensão da democracia como substituto do socialismo, como esperança ou reivindicação, fica em evidência diante da moldura dessa mesma democracia em suas terras natais capitalistas, para não falar de suas acompanhantes pós-comunistas: diminuição constante das percentagens de participação eleitoral, aumento da corrupção financeira e mediatização mortal. De modo geral, o vigor não pertence às aspirações democráticas vindas de baixo, mas à asfixia do debate público e da diferença política a partir de cima por parte do capital. A força dessa ordem não está na repressão, mas na adulteração e neutralização, e até o momento ela conseguiu resolver seus desafios mais recentes com destreza. As conquistas dos movimentos feminista e ecologista no mundo desenvolvido são reais e para serem apreciadas: trata-se dos elementos mais importantes do progresso humano dessas sociedades nos últimos trinta anos. Mas até agora demonstraram ser compatíveis com os hábitos da acumulação. Logicamente, contribuíram em boa medida para uma normalização política. O comportamento das feministas nos Estados Unidos e dos Verdes na Alemanha, países nos quais respectivamente é mais forte cada um desses movimentos, a serviço do governo Clinton na Casa Branca e da Otan nos Bálcãs, fala por si mesmo.

Isto não quer dizer que alguma outra força nos países capitalistas avançados tenha mostrado uma maior cota de antagonismo contra o status quo. Salvo raras exceções, a França no inverno de 1995, a classe trabalhadora encontra-se há vinte anos em letargia. Suas condições não é um mero resultado das mudanças econômicas ou dos deslocamentos ideológicos. Foram necessárias violentas lutas de classes para subjugá-la na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Ainda que algo menos acovardados na Europa, os trabalhadores continuam na defensiva em todas as partes. O único ponto de partida para uma esquerda realista em nossos dias é numa lúcida constatação de uma derrota histórica. O capital repeliu ponto por ponto todas as ameaças contra o seu domínio, as bases de cujo poder as pressões da concorrência acima de tudo foram persistentemente subvalorizadas pelo movimento socialista. As doutrinas da direita que teorizaram o capitalismo como uma ordem sistêmica conservam todo o seu implacável vigor; em comparação, as atuais tentativas de enganar suas realidades por parte de um pretenso centro radical não passam de uma frouxa operação de relações públicas. Entre os que sempre acreditaram no valor primordial dos mercados livres e na propriedade privada dos meios de produção se contam muitas figuras de alto teor intelectual. Não se pode afirmar o mesmo da recente colheita de expurgadores e especialistas da beleza, que somente ontem deploravam a repugnância do sistema que hoje se encarregam de enfeitar.

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Para a esquerda, a lição do século passado é a ensinada por Marx. Sua primeira obrigação é prestar atenção no desenvolvimento real do capitalismo como uma complexa maquinaria de produção e lucro, em constante movimento. The Economics of Global Turbulence, de Robert Brenner, que ocupou todo um número da New Left Review, proporciona o exemplo adequado.[6] Não aparece no horizonte nenhuma agência coletiva capaz de enfrentar o poder do capital. Vivemos num tempo, enquanto a engenharia genética amadurece ameaçadora, em que a única força revolucionária capaz nesse momento de perturbar seu equilíbrio parece ser o próprio progresso científico: as forças produtivas, tão detestadas pelos marxistas convencidos da primazia das relações de produção quando o movimento socialista ainda estava vivo. Mas se por acaso as energias humanas para uma mudança de sistema voltarem a se libertar, o farão a partir de dentro do próprio metabolismo do capital. Não podemos dar-lhe as costas. Só na revolução dessa ordem caberia encontrar os segredos do outro. Esse é o sentido de investigações como as de Robin Blackburn na New Left Review acerca da marcha das instituições financeiras.[7] Aqui não há certezas; no máximo cabe fazer propostas e conjecturas teóricas.

Ideologicamente, a novidade da situação presente salienta-se a partir de uma perspectiva histórica. Pode se expressar da seguinte maneira. Pela primeira vez desde a Reforma, já não se dão oposições significativas, isto é, perspectivas sistematicamente opostas, no seio do mundo do pensamento ocidental; tampouco, apenas uma ou outra, em escala mundial, se deixamos de lado as doutrinas religiosas como arcaísmos inoperantes em sua maioria, como parecem nos indicar as experiências da Polônia e do Irã. Com independência das limitações que continuam impedindo seu exercício, o neoliberalismo como conjunto de princípios impera sem fissuras em todo o globo: a ideologia mais vitoriosa da história mundial. O que isso implica para uma revista como a New Left Review é uma descontinuidade radical na cultura de esquerda, quando esta se renova em termos de geração. Em nenhum outro aspecto é mais agudo o contraste como o contexto original da revista. Todo o horizonte de referência no qual se formou a geração da década de 1960 praticamente foi varrido do mapa: os fios do socialismo reformista e revolucionário igualmente. A lista dos nomes de Bebel, Bernstein, Luxemburg, Kautsky, Jauré, Lukács, Lênin, Tróstky e Gramsci aparece hoje para a maioria dos estudantes tão remota como uma lista de bispos arianos. Como retecer fios de significado entre o século passado e este seria uma das tarefas mais delicadas e difíceis que deveria enfrentar toda revista que leve a sério o termo “esquerda”. Não parece que haja muitos cartazes indicadores que ajudem a realizá-la.

Se damos uma olhada nas tradições intelectuais mais próximas no tempo e influência na primeira New Left Review, à primeira vista a situação não parece muito melhor. A maior parte do corpus do marxismo ocidental ficou também fora da circulação geral: Korsch, o Lukács de História e consciência de classe, quase todo Sartre e Althusser, a escola de Della Volpe, Marcuse. O que melhor sobreviveu é menos diretamente político: no essencial, a teoria da Escola de Frankfurt do período pós-guerra e algumas obras escolhidas de Benjamin. Em nosso país, Raymond Williams foi esquecido, quase como Wrigth Mills nos Estados Unidos há vinte anos; Deutscher desapareceu; o nome de Miliband fala de outro tempo.

Por outra parte, a história das idéias não é um processo darwiniano. Os principais sistemas de pensamento raras vezes desaparece, como se se tratasse de outras tantas espécies extintas. Ainda que não permaneçam compreendidas dentro de um contexto coerente, alguns filamentos dessas tradições continuaram demonstrando uma notável vitalidade. Poderíamos dizer que a historiografia marxista britânica conseguiu ser lida em escala mundial, algo que nunca havia acontecido anteriormente, graças a The Age of Extremes, de Hobsbawm, que provavelmente permanecerá como a interpretação do século passado mais influente neste século, enquanto história global de uma vitória a partir do ponto de vista dos vencidos. O trabalho de Jameson sobre a pós-modernidade, herdeiro direto do marxismo continental, não tem equivalentes fiéis como versão cultural da época. Robert Brenner nos proporcionou a única análise econômica coerente sobre o desenvolvimento capitalista a partir da Segunda Guerra Mundial; Giovanni Arrighi, a projeção mais ambiciosa de sua evolução a longo prazo. Tom Naim e Benedict Anderson são de primeira ordem acerca das ambigüidades políticas do nacionalismo moderno. Régis Debray desenvolveu uma das teorias mais sistemáticas acerca dos meios de comunicação de massa contemporâneos de que dispomos na atualidade. Terry Eagleton no campo literário, T. J. Clark nas artes visuais e David Harvey na reconstrução da geografia são figuras centrais para todos aqueles interessados nessas disciplinas

É suficiente a enumeração desses nomes para se dar conta de que não é concebível sua unificação forçada dentro de um único paradigma. A diversidade dos diferentes métodos, interesses e acentuação é muito grande. Ainda que em certa medida isso seja conseqüência da fragmentação da cultura da esquerda, é também uma expressão de desinibição criativa e de diversificação das linhas de investigação. A respeito dessas últimas, a revista deveria aspirar a apresentar uma paisagem inteligível na qual as distintas séries de trabalho encontrem uma relação recíproca acessível.

Ao mesmo tempo, há um aspecto intelectual mais extenso, de origem pouco ou nada marxista, que se define de esquerda no sentido lato e que continua hoje em movimento. Se considerarmos os campos da filosofia, da sociologia e da economia, teria que se incluir os trabalhos de Habermas, Derrida e Barry; Bourdieu, Mann e Runciman; Stiglitz, Sen e Dasgupta. Aqui podemos comprovar como se entrecruzam as mudanças de uma posição à outra: pensadores antes moderados vão se radicalizando na medida em que a hegemonia neoliberal vai se tornando absoluta, enquanto outros antes mais radicais vão se adaptando a elementos do saber convencional. Mas há um traço comum a boa parte desse leque de trabalhos, mais importante que esses redemoinhos: a combinação de uma atrevida ambição intelectual e uma ampla síntese disciplinar com um compromisso tímido ou trivial no próprio campo político, o qual constitui um eco longínquo do mundo vigoroso e apaixonado de Weber, Keynes ou Russell. Aqui se deixam ver particularmente as conseqüências da extirpação de todas as continuidades da tradição socialista, por mais indireta que pudesse ser a relação com esta última. O resultado característico é um espetáculo de impressionante energia e produtividade teórica, o produto cuja soma social é sensivelmente menor do que suas partes intelectuais.

Ao contrário, dominando o campo das construções diretamente políticas do momento, a direita proporcionou uma visão eloqüente uma depois de outra de para onde vai o mundo ou de onde parou: Fukuyama, Brzezinski, Huntington, Yergin, Luttwark, Fridrnan. Trata-se de escritores que combinam uma tese simples e poderosa com um estilo popular loquaz, destinado não tanto a leitores acadêmicos, mas a um público internacional amplo. Este gênero confiado, do qual até o momento os Estados Unidos ostentam praticamente o monopólio, não tem equivalentes na esquerda. No melhor dos casos, os programas normativos de “democracia cosmopolita” ou de “lei dos povos”, que colocam entre parênteses o curso real das coisas, continuam sendo a alternativa defeituosa. A New Left Review tampouco se ocupou muito do tema. Esta deveria ser uma das prioridades. É pouco provável que essa desigualdade no terreno intelectual se modifique sensivelmente antes que se produza uma mudança na correlação de forças políticas, que provavelmente permanecerá estável a não ser que ecloda uma profunda crise econômica no Ocidente. Só uma depressão de proporções não muito diferentes da do período entre-guerras está em condições de sacudir os parâmetros do consenso atual. O que não é razão suficiente para deixar, entretanto, passar o tempo, polêmico ou analítico.

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Assim, o panorama cultural apenas se assemelha àquele no qual florescera a primeira New Left Review. Três mudanças fundamentais definiram o lapso de tempo transcorrido. Em primeiro lugar, houve um imponente deslocamento de dominação dos códigos verbais para os visuais, com a preponderância da televisão sobre qualquer outro meio de comunicação anterior, seguido ulteriormente pela ascensão dos media eletrônicos, com o que se reproduziu tecnologicamente essa mesma correção. Certamente, esse modelo determinou a chegada das formas pósmodernas em geral. Em segundo lugar, outra marca distintiva destas últimas, grande parte da tensão entre os impulsos desviados ou insurgentes a partir de baixo e a ordem estabelecida a partir de cima foi absorvida, na medida em que o mercado se apropriou e institucionalizou a cultura juvenil quase da mesma forma que como antes conseguira limitar as práticas das vanguardas; mas, por se tratar de um mercado de massas, nesse caso muito mais a fundo. O resultado é a apoteose da mercadoria de ídolos como Jackson ou Jordan. Em terceiro lugar, a voltagem que conectava os sistemas altos e baixos, cujo circuito constituía um dos traços do período moderno, foi se encurtando na medida em que a distância, que era uma de suas condições, foi sendo derrubada progressivamente. O resultado é uma mútua caricatura, na medida em que ambos convergem num terreno comum: espetáculo da sordidez na Royal Academy e da pretensão nos óscares: Sensation e Dreamworks como formas complementares de kitsch. A literatura arrastada para o próprio turbilhão pelos prêmios em dinheiro e os gastos em publicidade gera um Eco ou o último Rushdie.

Para a revista o importante é o lado crítico da situação. A este respeito, se inverteu o modelo do lado da produção. Desde muito antes dava-se um vivo intercâmbio entre os níveis altos e baixos, se instalou uma polarização que tende a atar cada qual em seus próprios discursos hipertrofiados. Deste modo, as formas altas caíram vítimas das tortuosas rotinas da desconstrução filosófica, enquanto as formas populares se converteram no paraíso dos “estudos culturais” de tipo subsociológico. Ambos fundam suas raízes em filões de trabalho radicais de finais da década de 1950 e da de 1960: Hoggart e Williams por um lado, Bataille e Derrida, por outro. Em termos formais, as respectivas mutações continuam identificando-se, em sua maior parte, com a esquerda: para dizer a verdade, nas grandes ocasiões, como se ufanam em ressaltar os críticos de direita, praticamente como a esquerda, pelo menos nos Estados Unidos. Não obstante, quase sempre não vão além de uma alternativa entre obscurantismo e populismo ou, o que é pior ainda, de uma mescla de ambos, fazendo alarde de uma estranha combinação do demagógico com o apolítico.

O obscurantismo, como impedimento deliberado do significado, tem poucos defensores. Por sua parte, às vezes se pensa que o populismo tem um potencial progressista. Mas se deixarmos de lado suas origens legendárias na Rússia, onde, seguindo os critérios atuais, teria que se considerar os narodniki como astutos elitistas, o peculiar do populismo hoje em dia consiste na simulação de uma situação de igualdade vigente entre votantes, leitores ou espectadores que não existe na maioria dos casos e que serve para se passar por cima das desigualdades reais de conhecimento ou de alfabetização: um terreno no qual com muita facilidade se encontram uma direita cínica e uma esquerda piedosa. Assim, não surpreende o fato de que, das duas hermenêuticas disponíveis, os estudos culturais desfrutem de uma maior influência na atualidade, nem que, em suas formas deterioradas, constituam o principal obstáculo de toda recreação num sentido natural do movimento entre o alto e o baixo. Não faltam análises elogiosas da cultura de massas que determinam uma continuidade com as intenções originais que animaram a linha Hoggart-Williams. Todavia, salvo raras exceções, a prole da escola de Birmingham se encaminhou aos tropeções para uma adesão acrítica ao mercado como manancial entusiasta da cultura popular. Em tais condições, o papel da New Left Review deveria consistir em jogar resolutamente do lado contrário, procurando evitar toda nota neoleavisina. As contribuições de Julian Stallabrass à revista deram o tom preciso, abordando criticamente por sua vez os mais recentes meios eletrônicos, no âmbito das salas de videojogos, assim como a última pintura britânica no ponto em que atua, em todos os sentidos, para a galeria.

Em toda revista radical sempre é razoável uma tensão entre duas formas de crítica, igualmente necessárias, mas marcadamente distintas. Em linhas gerais, podemos identificá-las como os enfoques da cultura “de vanguarda” e “hegeliano”: o primeiro preocupado em assinalar uma postura agressiva e apressada, inclusive ao preço da unilateralidade, enquanto o segundo se empenha em decifrar de maneira mais indicativa a inteligibilidade histórica ou filosófica de um cenário mais vasto: Clement Greenberg e Fredric Jameson destacam-se aqui, respectivamente, como virtuosos. Ambos os estilos não são excludentes e a revista deveria estimulá-los por igual. Inevitavelmente, a necessidade de um e de outro varia em função do tema ou da conjuntura. Num âmbito como o cinematográfico, as reflexões mais sérias sobre o último êxito de bilheteria de Hollywood ou Elstree, ainda que bem-intencionadas, são um desperdício do espaço da New Left Review em comparação com o tratamento de diretores, sobretudo não pertencentes ao mundo de fala inglesa, que não fazem por merecer atenção ou resultam difíceis de ver. Como contrapeso às evoluções negativas do período anterior na zona metropolitana houve um enorme crescimento cultural em geral, como fica demonstrado pela multiplicação de produtores periféricos na Ásia, África, Oriente Médio e América Latina. No Ocidente essa realidade apenas está documentada, daí que constitua uma prioridade à qual a esquerda deveria se dedicar. Um bom texto sobre Hou Xiao Xien, Kiarostami, Sembene ou Leduc vale mais do que cem, por mais críticos que sejam, sobre Spielberg ou Coppola. Uma continuação deste procedimento trasladado para o novo cinema europeu (Amélio, Reitz, Jacquot, Zonka) suporia uma sucessão natural do ciclo pioneiro de Peter Wollen na primeira New Left Review.

Em termos mais gerais, o tipo de geografia literária que Franco Moretti veio elaborando, na medida em que centra sua atenção tanto no mercado como na morfologia das formas, proporciona uma ponte natural entre as zonas da cultura de massas e de elite, assim como, ultimamente, um “giro para o exterior” dos sistemas globais que propõe um modelo diferente. Em todos os campos, a New Left Review deveria tentar contra-arrestar o providencialismo, o narcisismo, na realidade do mundo de fala inglesa, centrando sua atenção, desproporcionada, se necessária, nas obras e nos produtores de fala não-inglesa. Um dos traços mais surpreendentes do panorama inglês atual (e a fortiori também do estadunidense) consiste em que, apesar de que nas escolas e nas universidades se ensinam muito mais línguas, literaturas e políticas estrangeiras do que há vinte anos, as referências culturais das gerações mais recentes, até as mais sofisticadas, freqüentemente são mais estreitas, já que a hegemonia de Hollywood, da CNN e do Bookerismo aumentou exponencialmente. Basta passar os olhos na esteira dos atuais estilos jornalísticos para se dar conta do paradoxo. Em consonância com sua tradição, a revista terá que se opor a essa involução.

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Editar uma revista com este conjunto de preocupações sempre foi um exercício de equilibrismo. Conseguir esse equilíbrio entre âmbitos tão díspares como o econômico e o estético, o sociológico e o filosófico, já seria um tanto complicado em si mesmo. Não obstante, aqui se consegue citar todos esses âmbitos, dada a natureza da publicação, sob a primazia do político, que coloca seus próprios problemas de definição e seleção. A estrutura da revista reflete tacitamente o centro de interesse que a organiza: os editoriais e os artigos principais se ocupam em regra geral de temas internacionais da atualidade. A New Left Review continua sendo antes de tudo uma revista política, afastada de todo consenso educado e de qualquer perímetro estabelecido de opinião. Mas não se trata de uma política que absorva os terrenos que aborda. A cultura de qualquer sociedade sempre excede o espectro da política ativa em seu seio, como uma reserva de significados dentre os quais só um leque limitado tem a ver com a divisão do poder, que é o objeto da ação política.[8]

Uma política eficaz respeita esse excesso. As tentativas de recrutamento forçado de qualquer âmbito teórico ou cultural com fins instrumentais serão sempre inúteis ou contraproducentes. O que não significa indiferença. A esquerda necessita de uma “política cultural”; mas o que isto supõe é, antes de tudo, uma ampliação dos limites de sua própria cultura. Em conseqüência, a New Left Review publicará artigos sem levar em conta a relação ou ausência de relação imediata destes a respeito das mencionadas agendas radicais.

Uma transformação fundamental da época anterior, freqüentemente comentada, foi a migração generalizada de intelectuais da esquerda para instituições de educação superior. Esta evolução, resultado não só das mudanças na estrutura profissional, mas também do esvaziamento das organizações políticas, da idiotização das editoras e da atrofia das contraculturas, dificilmente poderá inverter seu curso nos próximos tempos. Não é preciso dizer que isso gerou perdas específicas. Recentemente Edward Said chamou nossa atenção sem rodeios para as piores delas: níveis de redação que teriam deixado sem fala Marx ou Morris. Mas a academização causou estragos em outros aspectos: aparelhos inúteis, mais para justificar méritos do que por motivos intelectuais, referências repetitivas às autoridades na matéria, citações pretensiosas dos próprios trabalhos, etc. Na medida em que o considera oportuno, a New Left Review aspira a ser uma publicação erudita, mas não acadêmica. Diferentemente da maioria das revistas acadêmicas de hoje, para não falar das que não são, não deixa as notas para o fim dos artigos nem recorre a pobres referências sobre “Harvard”, mas respeita a clássica cortesia das notas de pé de página, como indicação de fontes ou como exposições tangenciais ao texto, acessíveis no ato ao leitor. Quando são necessárias, o autor pode usá-las como quiser. Mas não se aceitará mera proliferação pela proliferação, essa praga do excesso de autoridades em nossos dias. Deveria ser uma questão de honra para a esquerda escrever pelo menos tão bem como seus adversários, sem redundâncias nem confusão.

A revista oferecerá uma seção regular de resenhas de livros e fomentará o intercâmbio polêmico. A New Left Review sempre gozou de uma vantagem comparativa imerecida devido à língua em que se publica, já que o inglês desfruta de um público mundial que não possui nenhum outro idioma. A modo de compreensão, deveria tentar chamar a mesma atenção de seus leitores para obras importantes não publicadas em inglês, como sobre aquelas que o foram neste idioma. A resenha deste número proporciona uma amostra improvisada do que poderíamos fazer. Quanto às polêmicas, tradicionalmente foi se consolidando seu escasseamento nas páginas da revista. Confiamos em mudar esta circunstância. O presente número contém uma delas, como acontecerá no próximo. A respeito deste tipo de artigo, do mesmo modo do que em todo o restante da revista, o critério não é a correção política, como queira que se interprete, mas a originalidade e o vigor do argumento. Não se necessita de colaboradores que sejam convencionalmente de esquerda: há muitas áreas, talvez especialmente no âmbito das relações internacionais, nas quais os argumentos contra os sentimentos piedosos do progressismo habitual, compartilhado de modo geral pelos pilares do liberalismo respeitável, superam estes últimos. Freqüentemente, as críticas mais devastadoras da expansão da Otan e da Guerra dos Bálcãs vinham da direita. A revista deveria acolher intervenções deste tipo. Em troca, o que sobram são apologias das políticas oficiais da esquerda, muitas das quais puderam ser escutadas quando os B-52 decolaram rumo ao Kuwait ou a Kosovo. Estes tipos de discurso estão disponíveis todos os dias na imprensa do sistema. Neste sentido, o valor da troca polêmica deveria se situar distante dessa zona saturada de clorofórmio.

Por último, queria referir-me à situação da revista. A New Left Review é uma publicação concebida na Grã-Bretanha, um Estado cuja vida cabe esperar que não se prolongue muito, pelos motivos mordazmente expostos por Tom Naim. Por tal motivo, foi muito o que teve que dizer sobre o Reino Unido, e não deixará de fazê-lo agora. Ao mesmo tempo, muitos de seus editores vivem e trabalham atualmente nos Estados Unidos, país ao qual a revista também dedicou um sem-número de páginas. Durante décadas, os escritos de Mike Davis, que foi o colaborador mais constante deste país, sobre os Estados Unidos deixaram uma marca indelével. Não se pode esquecer tampouco os antecedentes europeus, que estimularam a maioria das idéias que deram origem à publicação. O alcance da New Left Review sempre ultrapassou esta linha de base ocidental. Mas, ainda que a revista tenha coberto o resto do mundo – tanto o Terceiro e o Segundo como o Primeiro, se é que tais termos continuam sendo válidos – na fortuna e na adversidade, segundo o período, seus autores continuaram precedendo essencialmente de suas terras de origem. Gostaríamos que isto mudasse. Chegará um momento em que os colaboradores da revista serão tão não-atlânticos como seus conteúdos. No momento, este objetivo está fora de nosso alcance. Mas é um horizonte que se tem que ter presente.

[1] Isaac Deutscher, “Three Currents in Communism”, em New Left Review, jan./fev., 1964. 
[2] Respectivamente, New Left Review, no 185, jan.-fev., 1991 (Blackburn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Wollen); Verso, 1994 (Cockburn); New Left Review, no 180, mar.-abril, 1990 (Halliday); Verso, 1997 (Nairn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Anderson); Arcadia, 1998 (Ali). 
[3] “The Dead of Neo-Liberalism”, em Marxism Today, nov./dez., 1998, primeiro número após seu reaparecimento. 
[4] The Lexus and Olive-Tree (Nova York, 1999), p. 354. Numa via semelhante, Yergin e Stanislaw terminam seu percurso entusiasta sobre o triunfo dos mercados em escala mundial com uma homenagem a Blair, artífice da “extraordinária façanha de fundir os valores social-democratas de eqüidade e integração com o programa econômico thatcheriano”, ver The Commanding Heights (Nova York, 1999), p. 390. 
[5] Logicamente há uma terceira reação possível ao curso dos tempos, isto é, nem acomodação nem desconsolo: a saber, a resignação; em outros termos, um reconhecimento lúcido da natureza e do triunfo do sistema, sem pretensões de adaptação, nem ilusões vãs, mas também sem fé alguma nas possibilidades de qualquer alternativa. Contudo, uma conclusão tão amarga rara vez se articula como posicionamento público. 
[6] New Left Review, no 229, maio-junho, 1998; está prevista a publicação de uma edição aumentada pela Verso. 
[7] “The Colletivism”, em New Left Review, no 223, jan.-fev., 1999. 
[8] Pode se encontrar um argumento excepcional em favor da assimetria entre cultura e política em Francis Mulhern, The Present Last a Long Time (Cork, 1998), pp. 6-7, 52-53.

1 de novembro de 1999

A CIA e a Guerra Fria cultural revisitada

James Petras

Monlhly Review

Monthly Review Volume 51, Number 6 (November 1999)

Who Paid the Piper?: The CIA and the Cultural Cold War
por Frances Stonor Saunders
Londres, Granta Books, £20.

Tradução / Este livro faz uma detalhada estimativa das formas pelas quais a CIA atuou e influenciou em um grande número de organizações culturais, através de seus agentes ou por meio de organizações filantrópicas, como as fundações Ford e Rockefeller. A autora dá detalhes de como e porque a CIA organizou congressos culturais, montou exibições de arte e organizou concertos. A CIA também publicou e traduziu autores conhecidos que seguiam a linha de Washington, financiou a arte abstrata contra arte com conteúdo social e, pelo mundo, subsidiou jornais que criticavam o marxismo, o comunismo e políticas revolucionárias. Justificou também, ou ignorou, as políticas imperialistas violentas e destrutivas dos EUA. A CIA criou um biombo para alguns dos principais expoentes da liberdade intelectual no Ocidente, colocando-os a seu serviço, a ponto de incluir alguns desses intelectuais em sua folha de pagamentos. Muitos eram conhecidamente envolvidos em "projetos" da CIA, e outros circulavam em sua órbita, alegando desconhecer a ligação com a CIA depois que esses financiamentos foram denunciados no final da década de 1960 e durante a guerra do Vietnã, quando a onda política virou-se para a esquerda.

Publicações anticomunistas americanas e europeias receberam fundos diretos e indiretos, incluindo Partisan Review, Kenyon Review, New Leader, Encounter e muitas outras. Entre os intelectuais financiados e promovidos pela CIA estavam Irving Kristol, Melvin Lasky, Isaiah Berlin, Stephen Spender, Sidney Hook, Daniel Bell, Dwight MacDonald, Roberto Lowell, Hannah Harendt, Mary McCarthy e numerosos outros, nos EUA e na Europa. Na Europa, a CIA estava particularmente interessada em promover a "esquerda democrática" e ex-esquerdistas, como Ignacio Silone, Stephen Spender, Arthur Koestler, Ràymond Aron, Anthony Crosland, Michael Josselson e George Orwell.

Sob o estímulo de Sidney Hook e Melvin Lasky, a CIA teve importante papel no financiamento e promoção do Congresso Para a Liberdade Cultural, uma espécie de OTAN da cultura, que reuniu toda a sorte de "anti-stalinistas" de direita e de esquerda. Eles tinham toda a liberdade para defender valores políticos e culturais do Ocidente, atacar o "totalitarismo stalinista" e tagarelar suavemente sobre o racismo e o imperialismo americanos. Ocasionalmente, críticas marginais contra a sociedade de massa americana apareciam nos jornais subsidiados pela CIA.

O que era particularmente bizarro nesse conjunto de intelectuais financiados pela CIA não era só seu sectarismo político, mas a pretensão de serem pesquisadores desinteressados da verdade, humanistas iconoclastas, intelectuais de espírito livre ou artistas adeptos da arte pela arte, que se contrapunham aos artistas corrompidos, comprometidos e prostituídos pelo aparato stalinista.

É impossível acreditar quando eles juravam ignorar as ligações com a CIA. Como poderiam ignorar a ausência, em seus jornais, de qualquer crítica mesmo elementar aos numerosos linchamentos que ocorriam em todo o sul dos EUA nessa época? Como poderiam ignorar a ausência, em seus congressos culturais, de críticas à intervenção imperialista na Guatemala, Irã, Grécia e Coréia, que deixaram milhões de mortes? Como poderiam ignorar as grosseiras desculpas, nos jornais onde escreviam, para os crimes imperialistas? Eles eram soldados: alguns lisonjeiros, cáusticos, rudes e polêmicos, como Hook e Lasky; outros, ensaístas elegantes, como Stephen Spender, ou informantes hipócritas, como George Orwell. Saunders retrata como a elite WASP manipula os cordéis da CIA; descreve também o rosnar de antigos esquerdistas contra aqueles que permanecem atuando nos movimentos de esquerda. Quando a verdade sobre esses financiamentos da CIA veio à tona, no final da década de 1960, alguns "intelectuais" de Nova York, Paris e Londres fingiram indignação, alegando terem sido manipulados. Foram desmentidos por Tom Braden, ex-dirigente da Seção das Organizações Internacionais da CIA, que os desmascarou dando detalhes de como eles, na verdade, sabiam quem pagava seus salários e bolsas (pp. 397-404).

De acordo com Braden, a CIA financiou sua "espuma literária", frase usada pelo dirigente linha dura da CIA, Cord Meyer, para descrever os exercícios intelectuais antistalinistas de Hook, Kristol e Lasky. Ele revelou que as mais prestigiosas e conhecidas publicações da chamada "esquerda democrática" (Encounter, New Leader, Partisan Review) foram financiadas pela CIA, e que "um agente tornou-se diretor da Encounter" (p. 398). Em 1953, escreveu, "estávamos operando ou influenciando organizações internacionais em todos os campos" (p. 398).

O livro de Saunders dá informações úteis sobre as formas como esses trabalhadores intelectuais da CIA defendiam os interesses imperialistas dos EUA nas frentes culturais, e abre uma importante discussão sobre as consequências a longo prazo das posições ideológicas e artísticas defendidas por esses agentes intelectuais do imperialismo.

Saunders refuta as afirmações de Hook, Kristol e Lasky de que a CIA e as fundações a ela ligadas promoviam ajuda sem exigir contrapartida. Demonstra que, ao contrário, "esperava-se que os indivíduos e instituições subsidiados pela CIA fossem (...) parte de uma propaganda de guerra". A propaganda mais eficiente era definida pela CIA como aquela em que "o sujeito se move na direção em que você deseja, por razões que ele acredita serem as suas próprias". A CIA dava dinheiro para a tagarelice da esquerda democrática sobre reforma social, mas o que lhe interessava mesmo eram as polêmicas "anti-stalinistas" e as diatribes literárias contra os marxistas ocidentais e os escritores e artistas soviéticos. Os autores dessas diatribes recebiam financiamentos mais generosos e eram promovidos com maior visibilidade. Para Braden, elas refletiam a "convergência" entre a CIA e a esquerda democrática na luta contra o comunismo. A colaboração entre a esquerda democrática e a CIA incluía ações anti-greves na França, deduragem contra stalinistas (Orwell e Hook), e campanhas difamatórias disfarçadas para evitar que artistas de esquerda tivessem reconhecimento (como ocorreu quando Pablo Neruda foi indicado para o Prêmio Nobel, em 1964 (p. 351)).

A CIA, como arma do governo dos EUA mais envolvida na luta cultural durante a Guerra Fria, com foco na Europa no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Depois de quase duas décadas de guerra capitalista, depressão, e ocupação pós-guerra, a grande maioria dos intelectuais e sindicalistas europeus eram anticapitalistas e particularmente críticos das pretensões hegemônicas dos EUA. Para combater a atração do comunismo e o crescimento dos partidos comunistas na Europa (especialmente na França e Itália), a CIA criou um programa de mão dupla. Por um lado, diz Saunders, certos autores europeus foram promovidos como parte de um "programa anticomunista" explícito. O critério cultural adotado pela CIA para "textos adequados" incluía "críticas contra a política externa soviética e contra o comunismo como forma de governo, desde que considerados objetivos e escritos de maneira convincente e oportuna". A CIA gostava especialmente de publicar textos de autoria de ex-comunistas desiludidos, como Silone, Koestler e Gide. A CIA promoveu escritores anticomunistas, financiando generosamente conferências em Paris, Berlim ou Bellagio, às margens do Lago Como, na Itália, onde cientistas sociais e filósofos como Isaiah Berlin, Daniel Bell e Czeslow Milosz pregavam seus valores (e as virtudes da liberdade e independência intelectual do Ocidente, dentro dos parâmetros anticomunista e pró-Washington definidos pelos seus patrões da CIA). Nenhum desses intelectuais de prestígio teve coragem de levantar a menor dúvida ou questionamento sobre o apoio dos EUA aos assassinatos em massa na Indonésia e na Argélia, a caça às bruxas contra intelectuais norte-americanos ou os linchamentos paramilitares promovidos pela Ku Klux Klan no sul dos EUA, assuntos "banais" que deviam ser deixados aos comunistas, segundo Sidney Hook, Melvin Lasky e o grupo do Partisan Review, que procurou avidamente recursos financeiros para evitar a falência da revista. Aliás, muitas dessas famosas revistas anticomunistas teriam falido sem o dinheiro da CIA, que comprou milhares de exemplares e, mais tarde, distribuiu-os gratuitamente.

O outro caminho usado pela CIA para a intervenção cultural foi muito mais sutil. Ele envolvia a promoção de sinfonias, exibições de artes plásticas, balé, grupos de teatro, e a apresentação de músicos de jazz famosos e cantores de ópera, com o objetivo explícito de neutralizar o sentimento antiimperialista na Europa e criar um ambiente favorável à cultura e ao governo norte-americanos. A ideia que orientava essa política era difundir a cultura norte-americana, para alcançar a hegemonia cultural em apoio ao império militar e econômico dos EUA. A CIA gostava especialmente de enviar artistas negros para a Europa particularmente cantores (como Marion Anderson), escritores e músicos (como Louis Armstrong), para neutralizar a hostilidade européia contra a política interna racista dos EUA. Se os intelectuais negros não aderiam ao script artístico e faziam críticas explícitas, eram banidos da lista, como foi o caso do escritor Richard Wright.

O nível de controle político da CIA sobre a agenda intelectual dessas atividades artísticas aparentemente apolíticas foi demonstrado claramente na reação dos editores de Encounter (Lasky e Kristol, entre outros) contra um artigo proposto por Dwight MacDonald. Ele era um dissidente anarquista e antigo colaborador do Congresso Para a Liberdade Cultural e de Encounter para a qual escreveu, em 1958, um artigo intitulado "America America", criticando a cultura de massa americana, seu materialismo rude e falta de civilidade. Era uma negação dos valores americanos, a matéria-prima da qual era feita a propaganda da CIA e da Encounter na guerra cultural contra o comunismo. O ataque de MacDonald ao "decadente império americano" foi demais para a CIA e seus intelectuais empregados na Encounter. Embora Braden tenha escrito, nas instruções para os intelectuais, "que não se pode exigir, das organizações financiadas pela CIA, o apoio a todos os aspectos da política dos EUA", esse era geralmente o quesito mais importante quando estava em jogo a política externa dos EUA. Apesar de MacDonald ser um ex-editor de Encounter, seu artigo foi recusado, mostrando que as queixas piedosas contra a guerra fria feitas por escritores como Nicola Chiaromonte, publicadas na segunda edição de Encounter, segundo as quais "nenhum intelectual pode deixar de aceitar, sem degradar-se, o dever de desmascarar ficções, não aceitando 'mentiras úteis' apresentadas como verdades", certamente não se aplicava a Encounter e sua famosa lista de colaboradores quando se tratava de lidar com as "mentiras úteis" do Ocidente.

Uma discussão importante e fascinante no livro de Saunders revela a ação da CIA e seus aliados no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que aplicaram muito dinheiro para promover as pinturas e os pintores do expressionismo abstrato como antídoto contra a arte de conteúdo social. Nessa ação, a CIA chocou-se com a direita no Congresso dos EUA. Ela viu nessa arte uma "ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade e da livre empresa. Não figurativa e politicamente silenciosa, era a perfeita antítese do realismo socialista" (p. 274). A CIA e o MoMA viram essa arte como a verdadeira expressão da vontade nacional americana. Para enfrentar a crítica da direita parlamentar, a CIA voltou-se para a iniciativa privada (isto é, o MoMA e seu co-fundador, Nelson Rockefeller, que se referia ao expressionismo abstrato como "a pintura da livre empresa"). Muitos diretores do MoMA tinham ligações antigas com a CIA, e apoiavam a promoção do expressionismo abstrato como arma da guerra fria cultural. Mostras dessa arte foram organizadas em toda a Europa, sendo gasto muito dinheiro para isso. Críticos de arte foram mobilizados, e revistas de arte publicaram artigos com generosos elogios. A combinação dos recursos econômicos do MoMA com a ajuda da Fundação Fairfield, ligada à CIA, assegurou a colaboração das galerias europeias de maior prestígio que, por sua vez, puderam influenciar a estética em toda a Europa.

O expressionismo abstrato, como ideologia de uma "arte livre" (como disse George Kenan), foi usada para atacar politicamente os artistas engajados na Europa. O Congresso Para a Liberdade Cultural (ponta de lança da CIA) deu grande apoio à pintura abstrata, contra a estética figurativa e realista, numa atitude explicitamente política. Comentando o papel político do expressionismo abstrato, Saunders diz que "um dos papéis extraordinários que a pintura americana teve na guerra fria cultural não foi o fato de participar daquela jogada, mas sim o de um movimento tão deliberadamente apolítico ter se tomado tão intensamente politizado" (p. 275). A CIA associou artistas apolíticos e arte com liberdade para neutralizar os artistas da esquerda européia. A ironia aqui, é claro, era que a postura apolítica só valia para o consumo da esquerda.

A CIA e suas organizações culturais puderam, com isso, moldar profundamente a visão da arte no pós-guerra. Muitos escritores de prestígio, poetas, artistas e músicos proclamaram sua independência política, declarando sua crença na arte pela arte. O dogma do artista ou intelectual livres, isto é, sem engajamento político, ganhou força, e ainda hoje é muito difundido.

Saunders apresenta um balanço muito detalhado das ligações entre a CIA e os artistas e intelectuais do Ocidente, mas não explorou as razões estruturais pelas quais a espionagem dos EUA tinha de controlar os dissidentes. Sua discussão é amplamente emoldurada pela competição política e do conflito com o comunismo soviético, sem nenhuma tentativa séria de colocar a guerra fria cultural no contexto da luta de classes, das revoluções do Terceiro Mundo e dos desafios dos marxistas independentes à dominação do imperialismo econômico dos EUA. Isso leva Saunders a privilegiar algumas aventuras e operações da CIA em detrimento de outras. Ao invés de ver a guerra cultural da CIA como parte de um sistema imperialista, Saunders tende a criticar sua natureza reativa desigual e enganadora. A conquista cultural do Leste europeu e da ex-URSS pela OTAN deveria dissipar rapidamente a noção de que a guerra cultural foi uma ação defensiva.

As raízes da guerra fria cultural estão fincadas na luta de classes. Muito antes, a CIA e seus agentes na central sindical americana AFL-CIO, Irving Brown e Jay Lovestone (ambos ex-comunistas), usaram milhões de dólares para corromper sindicatos militantes e acabar com greves comprando sindicatos social-democratas (p. 94). O Congresso para a Liberdade Cultural e seus intelectuais eruditos eram financiados pelos mesmos funcionários da CIA que em 1948 contrataram gangsters de Marselha, na França, para acabar com uma greve de estivadores.

Depois da II Guerra Mundial, com o descrédito da velha direita na Europa Ocidental (comprometida por suas ligações com o fascismo e com um sistema capitalista enfraquecido), a CIA percebeu que, para submeter os sindicatos e intelectuais contrários à política dos EUA e à OTAN era preciso encontrar (ou inventar) uma esquerda democrática disposta a se engajar na luta ideológica. Foi criada então uma seção especial da CIA para neutralizar a resistência dos políticos de direita no Congresso dos EUA. A esquerda democrática foi usada essencialmente para combater a esquerda radical e dar um verniz ideológico à hegemonia norte-americana na Europa. Mas não cabia a esses pugilistas ideológicos moldar as estratégias políticas e os interesses dos EUA. Sua tarefa não era questionar ou exigir, mas servir ao império em nome dos "valores democráticos ocidentais". Somente quando a oposição em massa à guerra do Vietnã tomou conta dos EUA e da Europa, e suas ligações com a CIA foram reveladas, muitos dos intelectuais financiados e promovidos por ela abandonaram o barco e começaram a criticar a política externa dos EUA, como Stephen Spender que, depois de passar a maior parte de sua carreira na folha de pagamentos da CIA, tomou-se um crítico da política norte-americana no Vietnã; alguns editores da Partisan Review fizeram o mesmo. Alegavam inocência, mas poucos críticos acreditaram que um namoro com tantas publicações e conferências, antigo e com um envolvimento tão profundo, pudesse ter acontecido sem um grau mínimo de conhecimento.

O envolvimento da CIA na vida cultural dos EUA, Europa e outros lugares teve importantes consequências em longo prazo. Muitos intelectuais foram recompensados com prestígio, reconhecimento público e dinheiro para pesquisas precisamente por trabalhar dentro do cabresto ideológico imposto pela agência. Alguns dos grandes nomes da filosofia, ética política, sociologia e arte, que ganharam visibilidade com as publicações e seminários financiados pela CIA, foram quem definiram as normas e padrões para a formação das novas gerações, seguindo os parâmetros políticos criados pela CIA. Não foi o mérito ou o talento, mas a política - a linha definida por Washington como "verdade" ou "excelência" - que abriu caminho para postos em universidades, fundações e museus de maior prestígio.

A retórica anti-stalinista dos EUA e da esquerda democrática européia e suas proclamações de fé nos valores democráticos e libertários foram uma cobertura ideológica útil para os horríveis crimes cometidos em nome do Ocidente. Isso repetiu-se na recente guerra da OTAN contra a Iugoslávia, quando muitos intelectuais da esquerda democrática puseram-se ao lado do Ocidente e do ELK (Exército de Libertação de Kosovo), apoiando o sangrento expurgo de milhares de sérvios e o assassinato em massa de civis inocentes. Se o anti-stalinismo foi o ópio da esquerda democrática durante a guerra fria, o intervencionismo a pretexto de defesa dos direitos humanos tem hoje o mesmo efeito narcotizante e ilude membros da esquerda democrática contemporânea.

As campanhas culturais da CIA criaram o protótipo de intelectuais, acadêmicos e artistas que, hoje, se dizem apolíticos, divorciados das lutas populares, e cujo valor aumenta na medida em que se distanciam das classes trabalhadoras e se aproximam das fundações de prestígio. O modelo que a CIA fixou, de profissional de sucesso, é o do leão de chácara ideológico, e exclui intelectuais críticos que escrevem sobre a luta de classes, a exploração dos trabalhadores, e o imperialismo norte-americano categorias consideradas "ideológicas" e não "objetivas", como eles dizem.

A pior e mais duradoura influência do pessoal do Congresso para a Liberdade Cultural não foi a defesa das políticas imperialistas dos EUA, mas o êxito em impor, para as gerações seguintes de intelectuais a ideia de excluir toda discussão sobre o imperialismo norte-americano, sua influência cultural e sua ação através dos meios de comunicação de massas. A questão não é se os intelectuais ou artistas podem ou não tomar partido ou assumir uma posição progressista numa ou outra questão. O problema é a crença difundida, entre escritores e artistas, de que expressões sociais e políticas antiimperialistas não devem aparecer em suas canções, pinturas e escritos, se querem ter sua obra valorizada como trabalho de substancial mérito artístico. A vitória política duradoura da CIA foi a de convencer intelectuais e artistas de que um engajamento sério e firme à esquerda é incompatível com arte e conhecimentos sérios. Hoje, na ópera, teatro, galerias de arte, nas reuniões profissionais nas universidades, aqueles valores culturais que a CIA promoveu na guerra fria cultural são visíveis: quem ousará dizer que o rei está nu?

Sobre o autor

James Petras is the author of thirty-six books and several hundred refereed articles. His most recent book is The Left Strikes Back (Boulder, CO: Westview Press, 1998).

4 de julho de 1999

Raízes do autoritarismo brasileiro

Maria da Conceição Tavares


Em homenagem aos mortos na luta pela terra

Na nossa história recente, as raras passagens pela democracia política nunca conseguiram estabelecer um Estado de Direito com instituições capazes de conter dentro delas o seu próprio aperfeiçoamento. A moldura de regulação dos conflitos das oligarquias territoriais e financeiras sempre ameaça rasgar-se ao menor solavanco nas relações de poder intraburguesas. As lutas paralelas dos movimentos sociais sempre serviram de pretexto para o endurecimento do regime político. O acesso à terra, a educação e os direitos do trabalho nunca puderam ser reivindicados abertamente pela nossa população rural e urbana nos marcos do nosso precário Estado de Direito. Não por falta de "leis", mas porque uma das marcas terríveis do nosso capitalismo selvagem foi a descolagem completa entre a ideologia das elites bacharelescas liberais ou libertárias e os pactos de poder ferozmente conservadores que conduziram o país por meio de sucessivas alianças entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas do poder ligadas ao Império e ao dinheiro.

Nossas "transições democráticas interrompidas" nunca alteraram a marcha batida do capitalismo excludente, dando a impressão sistemática de que os ideais reformistas ou revolucionários estão "fora de lugar", quando na verdade as idéias postas em prática pela chamada "sociedade civil" burguesa brasileira sempre estiveram no lugar: o de manter em movimento o "moinho satânico" do capital em suas várias formas.

Para manter o movimento do dinheiro e assegurar a propriedade do território -a ser retalhado e reocupado por formas mercantis sempre renovadas de acumulação patrimonial-, o Estado brasileiro é chamado periodicamente a intervir de forma centralizada e arbitrária. Os propósitos da intervenção autoritária são sempre os mesmos: manter a segurança e o domínio das nossas classes proprietárias ou tentar validar o estoque de riquezas acumulado, tanto pelo capital nacional como estrangeiro.

As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares das nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do povo. Todas as tentativas reformistas democráticas tenderam sistematicamente a extravasar os limites de tolerância da dominação oligárquica, fosse ele estabelecido pelas armas ou pelo famoso "pacto de compromisso" das elites políticas e sociais. A tentativa de conciliar o mandonismo das nossas burguesias regionais, donas do território, com o cosmopolitismo dos donos do dinheiro associados ao Império sempre produziu alianças políticas que excluíram os interesses majoritários da cidadania. Esse forte autoritarismo ligado à terra e ao dinheiro serviu sempre de embasamento para aniquilar as lutas populares e das classes médias radicalizadas, nas suas tentativas recorrentes de levar à prática as, nunca concluídas, reformas democráticas.

Nem os pactos oligárquicos, liberais ou autoritários, nem os projetos "nacional-desenvolvimentistas" encontraram tempo, dinheiro ou razão suficientes para levar adiante a reforma agrária e o ensino básico universal. Os sucessivos pronunciamentos sobre a "necessidade" de reforma agrária -desde o patriarca da Independência, passando pelo programa do Estatuto da Terra do governo Castelo Branco até os nossos dias- dão uma demonstração inequívoca da falta de vontade política do nosso poder central de enquadrar num pacto social concreto os direitos do nosso povo. Mesmo quando consagrados explicitamente em "pactos constitucionais", sempre formais e "provisórios".

A "necessidade" de ensino público fundamental também vem sendo reiterada como "direito universal" desde o Ministério da Educação do Estado Novo até o governo Fernando Henrique Cardoso, com os resultados conhecidos. No Brasil, até hoje, as tradicionais reformas burguesas continuam, portanto, sendo "revolucionárias" e, como tal, difíceis de aceitar pela ordem social vigente.

O fato de a nossa "revolução democrática-burguesa" continuar "incompleta" não se justifica, porém, nem pelo caráter tardio do nosso capitalismo, nem porque os nossos burocratas de Estado sempre procuraram fazer a "revolução pelo alto". Muitos outros países de capitalismo tardio, com governos autoritários e sociedades atrasadas, no seu processo de construção nacional, levaram a cabo as reformas agrárias e de ensino, requeridas pelas suas "modernizações conservadoras".

Na verdade, a história vitoriosa da constituição do capitalismo em mais de cinco quartos de século de Brasil independente e os seus percalços e "desvios históricos", do ponto de vista da incorporação popular, parecem dever pouco tanto à herança colonial quanto às idéias iluministas que animaram os corações e mentes de nossas elites bem pensantes.

O dado estrutural mais relevante para a história social e política da nossa "modernidade" parece ter sido sempre a apropriação privada de um território de dimensões continentais apenas para valorização mercantil-patrimonialista, sem que o uso social da terra e dos seus recursos naturais fosse levado em consideração pelos sucessivos regimes "republicanos" e pelas repetidas "reformas fiscais".

Ordem sempre significou domínio duro das classes proprietárias sobre a terra e as classes subordinadas, e progresso sempre resultou na acumulação "familiar" de capital e riqueza, qualquer que fosse a inspiração ideológica, positivista ou liberal, das elites no poder. Nunca se conseguiu constituir, por isso, nenhuma espécie de consenso amplo da "sociedade civil" sobre como governar de forma democrática o nosso país.

O processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações rurais, em busca de terra, e rurais-urbanas, em busca de trabalho remunerado, produziu mudanças radicais nas condições de vida das nossas populações, mas sempre com um alargamento nas formas de exploração da mão-de-obra. Esse imenso processo "migratório" e de deslocamento recorrente das "fronteiras" de ocupação e de exploração capitalista não permitiu, até hoje, a formação de classes sociais subordinadas mais homogêneas e sedimentadas capazes de um enfrentamento sistemático com as classes dominantes que pudesse levar a uma ordem civil burguesa estabilizada e democrática.

Por sua vez, a "ordem" das elites de negócios sempre foi capaz de mudar as "regras jurídicas" e fazer "contratos de gaveta", produzindo assim uma sociedade mercantil predatória em constante "fuga para a frente", sem normas e sem dinheiro permanentes. A nossa (des)ordem civil burguesa jamais foi capaz de auto-administrar-se nos marcos de um Estado de Direito que respeitasse pelo menos os contratos privados, que dizer o direito público das gentes. Recorrendo periodicamente a golpes militares ou a elites políticas "salvacionistas", as classes dominantes brasileiras não enfrentaram até hoje uma acumulação política de forças democráticas acompanhadas de uma participação societária popular, capazes de produzir uma verdadeira sociedade civil emancipada.

As "forças de ocupação" dos donos do Império, do Território e do Dinheiro sobrepuseram-se sempre aos interesses de vida da maioria da população brasileira. Percorrendo os seus caminhos de dominação, ao longo dos últimos dois séculos, podem ser encontradas as razões da riqueza e da miséria da nação brasileira. É por isso que as bandeiras da emancipação nacional, da democracia e da justiça social continuam, hoje como ontem, a ser bandeiras esfarrapadas por sucessivas derrotas.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis e, enquanto não se tornarem uma ideologia hegemônica e consciente da maioria da sociedade nos sucessivos embates das lutas populares, não será possível mudar o significado histórico de um projeto de desenvolvimento para o futuro.

Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

14 de maio de 1999

No supermercado espalhafatoso

Terry Eagleton

London Review of Books

Vol. 21 No. 10 · 13 May 1999

A Critique of Post-Colonial Reason: Toward a History of the Vanishing
por Gayatri Chakravorty Spivak,
Harvard, 448 pp., £30.95, June 1999, 0 674 17763 0

Tradução / Em algum lugar deve haver um manual secreto para críticos pós-coloniais, cuja primeira regra ordena: “Comece por rejeitar toda a noção de pós-colonialismo”. É notável o quanto se padece para encontrar entusiasta sem restrições, entre os que promovem a ideia: tão difícil como foi, nos anos 1960 ou 1970, achar quem confessasse ser estruturalista. A ideia do pós-colonial tanto apanha dos teóricos pós-coloniais, que usar sem reservas a palavra seria quase como se autochamar de balofo, ou confessar algum interesse furtivo pela coprofilia. Gayatri Spivak anota, com algumas evidências em seu livro, que grande parte da teoria pós-colonial norte-americana é “lixo”, mas a ressalva é de rigueur, sempre que se tem um crítico pós-colonial escrevendo sobre o resto. Além do mais, que seja um teórico do “Terceiro Mundo” a trazer a notícia aos seus colegas norte-americanos é, num sentido, muito mal visto; noutro, é exatamente o que os norte-americanos querem ouvir. Nada mais “da moda” na academia norte-americana sempre devastada pela culpa, que confessar a inevitável má fé na posição de quem escreve. É o mais perto a que um pós-moderno consegue chegar, da autenticidade.

A segunda regra desse manual clandestino ordena: “Seja o mais obscuro e incompreensível possível, no limite do que você ainda tenha escapatória”. É frequente encontrarem-se teóricos pós-coloniais em estado de agonia provocada pela ravina que distancia e separa o próprio discurso intelectual deles e os povos nativos dos quais eles falam; mas a ravina parece-lhes menos horrível se não produzem discurso que a maioria dos intelectuais considerem inteligível. Ninguém precisa ser nativo de favela para estar qualificado a declarar “pretensiosamente obscura” uma confusão metafórica spivakiana como: “muitos de nós estão tentando esculpir negociações positivas com a gráfica epistêmica do imperialismo”. É difícil ver como alguém consegue escrever desse jeito e, simultaneamente, admirar a escrita luminosamente clara de, digamos, Freud. A teoria pós-colonial faz tempestades a favor de respeitar o Outro, mas o Outro mais próximo deles, o mais imediatamente próximo deles, o leitor, fica, ao que parece, excluído daquela sensibilidade. Acadêmicos radicais, algum ingênuo poderia ingenuamente supor, têm certa responsabilidade política por garantir que suas ideias cheguem a públicos também do lado de fora de salas de reunião do Conselho Universitário. Mas na academia nos EUA, as popularizações ou Plumpes Denken [alemão, “pensamento cru”] pouco rendem ao autor em termos de cátedras ou prêmios prestigiosos; então esquerdistas como Spivak, apesar do muito que escarnecem da academia, sempre podem esperar boa recompensa se escrevem escrita ainda mais inacessível ao público que os elitistas literários que tão apaixonadamente os desprezam.

Pode ser também o caso, é claro, de que a meta de uma sentença tão desgraçada como “o paratema in-coativo in-fans ab-originário não pode ser teorizado como se fosse completamente funcionalmente congelado num mundo no qual a teleologia é esquematizada em geo-grafia” seja subverter a falsa transparência da Razão Ocidental. E pode também ser que discutir questões públicas nesse idioma tão hermeticamente privado seja, mais, sintoma daquela Razão, do que solução para o sintoma. Como na maioria das questões de estilo, a obscuridade de Spivak não é só questão de estilo. Seu ouvido surdo a tom e ritmo, o descalabro descuidoso com a textura verbal, suas mordidas teóricas (“Derrida pôs em cena o homoerotismo da filosofia europeia na coluna esquerda de Glas”), saltam tanto da própria linguagem feita mercadoria dos EUA como da tentativa pervertida de miná-la. Uma sentença que começa “Aos 26, grafando-se ele mesmo no sotaque da Aufhebung, Marx vê a necessidade, para sua empreitada crítica”... combina o vocabulário de Hegel e a sintaxe de “Oba. Tudo belê?” da linguagem de Spivak, vagueando, como faz, do tom altissonante para a malandragem de rua, pertence a uma cultura na qual há cada vez menos e menos meio campo, entre o portentoso e o feito em casa, o retórico e a futrica. Um pingo de ironia ou de humor seria fatal para a solenidade autocontemplativa. Ao longo de seu livro, Spivak escreve com grande brilho teórico sobre Charlotte Brontë e Mary Shelley, Jean Rhys e Mahasweta Devi; mas não dá praticamente qualquer atenção à linguagem, à forma ou ao estilo do que escrevem. Como qualquer aluno iniciante de qualquer velha faculdade de Letras que Spivak tanto despreza, a sua teoria literária mais avant-garde reduz-se, se se examina de perto, à velha boa antiga análise de conteúdo.

Spivak opõe-se, com razão, aos filisteus esquerdistas, para os quais qualquer ideia que não derrube instantaneamente os patrões seria tão politicamente inútil quanto a topologia algébrica. Mas reluta muito, demais, a reconhecer a semente de verdade que há no ponto de vista deles: que a teoria radical tende a crescer desagradavelmente narcisista, se privada de uma válvula política de vazão. Como os semióticos poderiam dizer, a teoria então passa a se impor por metáfora, no lugar do que ela significa. A revolução política implica muitos perigos, mas fracassar na operação de concentrar magnificamente a inteligência não está entre eles. As digressões infinitas e as autointerrupções nesse estudo – como os meandros que vão de Kant a Krishna, de Schiller a Sati, cabem, dentre outros buracos, numa esquerda politicamente sem rumo. Leitores mais caridosos verão esse cozidão de tediosa loquacidade como ataque às narrativas lineares do Iluminismo, por autora cujos gênero e etnicidade são lá violentamente excluídos. Se sociedades coloniais passam por o que Spivak chama de “uma série de interrupções, repetidos cortes de tempo que não podem ser suturados”, o mesmo vale também para sua prosa superinflada, excessivamente elíptica. Ela própria, como se poderia esperar que acontecesse e acontece, lê o que é espinha dorsal partida na estrutura do livro, como se fosse distanciamento iconoclasta da “prática acadêmica ou crítica aceita”. Mas as elipses, o jargão super carregado, o pressuposto de superioridade (segundo o qual todos entendem o que ela diz, mas, se você não entender coisa alguma, ela nem se importa muito) são tanto a supercodificação de uma ‘manha’ acadêmica, quanto o beijo-de-judas do academicismo convencional.

Assim como um salto abrupto de Jane Eyre para O Modo Asiático de Produção desafia as noções composicionais de acadêmicos machos e brancos, há aí também mais do que um toque do bom velho ecletismo norte-americano. Nesse supermercado de exibidos da mente, em que tudo é permitido, qualquer ideia pode, aparentemente, ser trocada por qualquer outra. O que alguns talvez chamem de pensamento dialético é, para outros, uma inabilidade patológica de manter-se atento ao problema. A linha entre o hibridismo pós-colonial e o vale-tudo-ismo pós-moderno é embaraçosamente tênue. Como feminista, desconstrucionista, pós-marxista e pós-colonialista, tudo ao mesmo tempo, Spivak parece não querer perder nenhum dos jogos teóricos que estão rolando hoje na cidade. Multiplicar as próprias alternativas é postura teórica admirável, tanto quanto é item conhecido da filosofia do supermercado norte-americano. Para Spivak, impor uma narrativa coerente aos seus materiais, mesmo que o título sugira espuriamente uma (alguma) narrativa, seria pecar por teleologia, que pune com pena de banimento alguns tópicos, como o imperialismo bane alguns povos. Mas se teóricos culturais hoje em dia podem saltar bruscamente de alegoria para Internet, numa espécie de versão intelectual do DDA (Déficit de Desordem de Atenção), é em parte porque estão libertos dos clamores inevitavelmente constritores de algum grande projeto político. Pensamento lateral, assim, é quase absolutamente não distinguível de perda de objetivo político. Até os livros sobre os quais Spivak não escreveu circulam como fantasmas inquietos pelas notas de rodapé, resistindo contra a exclusão. Verdade é que ainda falta escrever outro ensaio sobre os escritos não publicados de Gayatri Spivak, que tomaria por objetos todas aquelas notas nas quais ela anunciou trabalho jamais publicado ou que ninguém jamais viu ou que a autora apresenta como trabalho que ela não pode ou não quer escrever.

O ardente desejo de Spivak de dizer tudo de uma vez talvez não seja perfeitamente inocente, ou desejo de impressionar; mas é muito mais do que isso, assim como a obscuridade do estilo de um teórico pode vez ou outra ser sinal quase tanto de insegurança, quanto é de arrogância. Fato é que Spivak tem amplidão formidável de referências, o que deixa muito teórico cultural parecendo tristemente paroquial. Poucos poderiam de longe, que fosse, equiparar-se ao alcance e à versatilidade desse livro, que vai da filosofia hegeliana e dos arquivos históricos da Índia colonial à cultura pós-moderna e ao comércio internacional. Muitos autores pós-coloniais agem como se as relações entre o norte e o sul do mundo fossem, basicamente, assunto ‘'cultural'’, o que permite aos tipos literários exercitar os músculos em questões mais pesadas que a imagética dos insetos no James da última fase. Spivak, ao contrário, manifesta adequado escárnio contra tal “culturalismo”, mesmo que partilhe de boa quantia dos pressupostos dele. Não comete o erro de imaginar que ensaio sobre a figura da mulher em Passagem para a Índia seja inerentemente mais ameaçador, contra as corporações transnacionais, que uma pesquisa sobre o emprego do ponto-e-vírgula, em Thackeray. As relações entre norte e sul não são basicamente sobre discurso, linguagem ou identidade, mas sobre armas, mercadorias, exploração, trabalhadores precários, imigrados, dívida e drogas; e esse estudo trata de realidades econômicas que excesso de críticos pós-coloniais só fazem culturalizar e afastar para bem longe. (Para alguns deles ultimamente qualquer referência ao econômico seria, por isso mesmo, “economicista”, assim como falar de pulmões ou rins já é imediatamente “biologismo”). Se Spivak sabe de grafêmica, também sabe da indústria do vestuário. E ajuda bem que ela esteja entre os/as mais coruscantemente inteligentes teóricos contemporâneos/as, cujos insights podem ser idiossincráticos, mas só muito raramente são menos que originais. É possível que ela tenha feito mais bem político de longo prazo, como pioneira de estudos feministas e pós-coloniais na academia global, que qualquer outro de seus/suas colegas de teoria. E, como essas grandes maîtresses, tem de enfrentar agora essa fonte inesgotável de incômodos e embaraços: os acólitos devotados.

Ela desincumbe-se da tarefa com excessiva graça. Alguém devia mesmo escrever uma crítica da razão pós-colonial, avaliando as realizações e os absurdos, mas esse livro é excessivamente bem-comportado, excessivas boas-maneiras, tanto quanto excessivamente episódico, para a tarefa. Se o subtítulo mal se entende, o título, esse, desencaminha completamente. Spivak é simultaneamente a autora mais bem e mais mal situada para levar a cabo esse projeto; e quanto falha, o fracasso é, simultaneamente também, frustrante e compreensível. É a mais bem situada, porque, como imigrada para o ocidente, consegue ver aqueles limites conceituais menos óbvios para locais e insiders. Há muito oportuno bom senso, mas só se Spivak parasse de só pensar na frase, em mostrar aos mais idealistas empregados da indústria ocidental pós-colonial que o nativismo não deve ser romanticizado; que as minorias étnicas dentro dos países-metrópoles não são a mesma coisa que povos colonizados; que nada há de “essencialista” nos direitos civis; e que, para grupos subalternos, tornarem-se cidadãos institucionalizados não é meta desejável só para primitivistas passeadores de cartazes em passeatas. Diferente de alguns de seus colegas de olhos mais na-Lua, Spivak não vê a transição de migrante étnico para executivo de empresa como inequívoco progresso, nem sente a necessidade de denunciar “empreendedores étnicos, cafetões das transnacionais, que vendem as próprias mulheres a empregadores clandestinos”. Também sabe que feministas a trabalhar pró “justiça de gênero” no ocidente só fazem contribuir inevitavelmente para promover uma ordem social cujas operações globais violentarão ainda mais os mesmos direitos noutros pontos do planeta.

Mas essa crítica aguada contra os liberais pós-coloniais ocidentais tampouco chega aos cabeças. Se Spivak mostra faro refinado para localizar a mentira, a hipocrisia, o apadrinhamento ocidental, ela ao mesmo tempo é notavelmente cautelosa no serviço de não sugerir rompimentos nem quebrar fileiras. Num sentido, é uma recusa louvável a ceder ao jogo sujo entre os que sabem e os que querem saber. Já há autodilaceramento fútil suficiente dentro da academia norte-americana, sem Spivak fazer-se ainda mais, de vítima. É também valente reconhecimento de sua própria condição comprometida, como celebridade acadêmica que discorre sobre casta e clitoridectomia. Mas há mais que isso, nas reticências dela. Esse livro encaminha algumas bem merecidas porretadas à ninhada mais feroz dos críticos pós-colonialistas, cuja fascinação pelo Outro é em parte uma ânsia desmoralizante de não serem absolutamente outro, nada de outro, só eles mesmos. Mas vem também suavizado pelo consenso brando, anódino da academia norte-americana, na qual os grandes conflitos são praticamente sempre abafados por um “profissionalismo” que interessa a todos. Além do hábito-sintoma revelador de usar o adjetivo “agressivo” como elogio, os EUA são cultura que teme profundamente qualquer discussão ou debate – o que talvez explique que a luta livre, jogo que converte briga em simulacro e espetáculo, seja o esporte mais popular da televisão norte-americana.

Spivak é a mais mal posicionada dos críticos para escrever o livro que seu título tão falsamente promete, porque ela é também, por demais, a insider, como uma das maiores arquitetas de toda a empreitada pós-colonial no Ocidente. Seu arquiteto associado, Edward Said, rapidamente perdeu a paciência com o que haviam conseguido construir juntos e, à maneira dele, sedutoramente cáustico, não se nega a dizer precisamente isso. Mas Spivak é mais irênica do que sugeriria a sua prosa ocasionalmente pugilística. Seu comentário de que muito na área é “lixo” é em vasto sentido, marginal. Se ela distingue corretamente entre minoria étnica e nação colonizada, ao mesmo tempo não consegue afirmar o ponto de que foi bom negócio do pós-colonialismo ser uma espécie de versão “exportada” dos graves problemas étnicos dos EUA e, assim, apenas mais uma instância do God’s Own Country, um dos mais insulares da Terra, que define o resto do mundo em termos dele mesmo. Para que essa exportação acontecesse, algumas importações, conhecidas como intelectuais do Terceiro Mundo, tiveram de atuar como seus agentes; embora Spivak tenha razão para saber disso melhor que muitos, ela nunca para por tempo suficiente em seu livro, em pausa para desembrulhar suas implicações. Fazer isso requer alguma crítica sistemática; mas crítica sistemática é, para ela, parte mais do problema que da solução, como é para os suficientemente privilegiados para não precisarem de conhecimento rigoroso. Esses indivíduos são acostumados a ser tratados como “a elite” [orig. the gentry], e são hoje conhecidos como pós-estruturalistas. Se ela pode ser esplendidamente amarga sobre “rapazes brancos falando de pós-colonialidade”, ou da aliança entre estudos culturais, multiculturalismo liberal e capitalismo transnacional, esses saudáveis bocados só brevemente surgem à superfície, para novamente sumirem no cozido indigesto de seu texto.

Há, com certeza, muito mais a ser dito a favor dos estudos pós-coloniais do que isso aqui, e a própria Spivak diz muito nessas páginas. Sejam quais forem as ilusões românticas e a autoapreciação secreta dos estudos pós-culturais, seu setor de mais rápido crescimento, o da crítica literária, assinala a entrada no estágio cultural ocidental, pela primeira vez na história, dos que o ocidente mais agrediu e dos que mais abusou. Difícil, pois, que haja críticos mais importantes em nosso tempo que os equivalentes de Spivak, Said e Homi Bhabha, mesmo que dois desse trio sejam impenetravelmente opacos. Diferente de salvar-se um dentre dois ladrões no Calvário, aqui a porcentagem não é razoável. Mas há razões pelas quais dar crédito, tantas quantas pelas quais não dar, ao rápido surgir à tona do pós-colonialismo, e Spivak, praticamente durante todo o tempo, mantém-se em silêncio sobre elas. O nascimento, por exemplo, seguido do início da derrota, pelo menos por hora, de ambos: da luta de classe nas sociedades ocidentais e do nacionalismo revolucionário no mundo antes colonizado. Os alunos nos EUA que, embora não por culpa deles, não reconhecem a luta de classe nem que apareça pendurada à rabeta de suas pranchas de skate, ou que talvez não amassem tanto o Terceiro Mundo se alguns de seus habitantes se puserem a matar seus pais e irmãos em grandes números, podem deslocar generosamente seus vicários sentimentos generosamente radicais, bastando para tanto deslocar a opressão para outros pontos. Esse movimento os deixa plugados às sombras das dores da moda pós-moderna sobre o atraso ‘monolítico’ das próprias ordens sociais. É como se o tema desorientado, empobrecido, do Ocidente consumista conseguisse, por uma extraordinária ironia histórica, encontrar uma imagem dele mesmo, nos condenados da terra. Se “margens” não andam muito na moda, é em parte porque os que habitam as margens clamam por justiça política, e em parte porque uma geração sem memória política delegou cinicamente toda a esperança ao “centro”. Como grande parte do feminismo norte-americano, o pós-colonialismo é um modo de ser politicamente radical, sem ter necessariamente de ser anticapitalista, e, assim, é uma forma peculiarmente hospitaleira de esquerdismo para um mundo “pós-político”. Gayatri Spivak, diferente disso, manteve a fé, embora com ambiguidades, na tradição socialista; mas embora haja muitas agudas percepções sobre o marxismo em seu livro, ela está investida profundamente demais no feminismo e no pós-colonialismo, para lançar a crítica socialista à vera, dessas correntes. E assim como aqui cavalga dois mundos, e também o hábito cansativo em seu trabalho de se autorreferir e se autoteatralizar, vê-se o autodesempenho irônico do colonial, uma facada satírica na personificação de intelectual, e um já conhecido culto norte-americano à personalidade.

Há alguns tipos de crítica – a de Orwell pode servir como exemplo – que são muito mais radicais politicamente do que o estilo “senso comum” poderia sugerir. Com toda a azia que faz jorrar sobre os marxistas, para nem falar da visível vontade de entregar os comunistas ao estado, as políticas de Orwell têm muito mais longo alcance do que sua prosa pensada convencionalmente pode sugerir. Como grande parte do que se escreve de pós-colonial, a situação é exatamente o contrário. O coruscante avant-gardismo teórico deles oculta uma agenda política muito pobre, bem modesta. Onde se arriscam a fazer propostas políticas, o que é muito raro, eles sequer têm o élan revolucionário das escandalosas especulações sobre o desejo ou a morte do Homem ou o fim da História. Esse é um traço que também se constata em Derrida, Foucault e outros como eles, que vagueiam entre um culto da ‘loucura’ ou da ‘monstruosidade’ e um tipo mais contido, reformista, de política, recuando para um ou outro ponto, dependendo da direção da qual lhes venha o fogo crítico. Derrida – figura que esse livro consagra, sobre o qual não se admite nem um sopro de crítica – consegue fazer a desconstrução soar, às vezes, como um tipo de negócio tão ordinário, afirmativo, inócuo, que se fica a cogitar por que Christopher Ricks e Denis Donoghue não correm imediatamente a abraçá-lo. Outras vezes, e para outros públicos, torna-se assunto muito mais ameaçador: nada menos que uma forma radicalizada de marxismo, o que, aliás, deve irromper como grande surpresa para muitos desconstrucionistas e para todos os marxistas. Desconstrução pode ser, sim, manobra politicamente desestabilizatória, mas devotos como Gayatri Spivak teriam de reconhecer também seu efeito de desvio. Como muita teoria cultural, ela permite que alguém fale soturnamente de subversão, ao mesmo tempo em que, em termos políticos, posiciona-se só um pouquinho à esquerda de Edward Kennedy. Para alguns teóricos pós-coloniais, por exemplo, o conceito de emancipação é chapéu embaraçosamente velho. Para algumas feministas norte-americanas, socialismo é território tão jamais pisado como Alpha Centauri.

As próprias políticas de Gayatri Spivak são tão elusivas como seus processos de pensar; mas há indícios nesse estudo de que ela também é bastante mais ousada na epistemologia, que na reconstrução social. Às vezes, ela falará positivamente sobre a necessidade de novas leis, sistemas de educação e saúde, relações de produção; outras vezes, em estilo pós-colonial familiar, sua ênfase é menos na transformação que na resistência. A resistência sugere ação militante, mas também implica que a pegada política está(ria) noutro lugar. É doutrina conveniente para os que não gostam do que o sistema faz, ao mesmo tempo em que duvidam de que algum dia terão força bastante para pô-lo abaixo. O marxismo, para Spivak, embora não para seu fundador, é uma especulação, não um programa; e só pode ter consequências violentas se usado para “engenharia social preditiva”. Como o pensamento de estrangular seu companheiro de apartamento; em outras palavras: tudo bem, desde que você não aja. O atual sistema de poder pode ser incessantemente “interrompido”, adiado ou “posto de lado”, mas tentar ir além dele, completamente, é a forma mais crédula de utopismo.

Pode até que venha a ser verdade, mais soa um pouco demais antidesconstrutivistamente seguro de si, como estão as coisas, assim como esse livro assume (sem argumentar abertamente) o caso pós-moderno dogmático segundo o qual todo o universalismo é reacionário, quase toda transgressão ou disrupção é positiva, e quase todas as tentativas de calcular com precisão e rigor são uma forma de razão dominatória. Para Spivak, propor um “outro” ao que temos hoje é negar a inevitável cumplicidade de alguém com o que tenha; e assim é deixar particularmente vulneráveis críticos como ela mesma. Ninguém imaginaria que Stanley Fish não estaria afundado até as orelhas no capitalismo, nem Stanley Fish; mas há várias almas enganáveis nos programas de graduação nos EUA que podem cometer o erro de ver Gayatri Spivak como algum avatar de pura alteridade. Ela mesma trabalha corretamente para emperrar esse sentimentalismo, lembrando esses fãs da Mulher Negra de que ela também é burguesia altamente paga e líder de uma elite colonial. E então, ela antes opta pela má fé de recusar o sistema sem propor alternativa geral, que pela má fé de negar sua colusão com o mesmo sistema.

Mas a culpa pode ser tão desabilitante quanto a arrogância. O bem político que Spivak fez ultrapassa em muito o fato de que ela vive vida mansa nos EUA. Se cumplicidade é viver em sociedade capitalista, praticamente todo mundo, até Fidel Castro, pode ser acusado de cúmplice; se significa ‘comprar sua parte para entrar’ (como diz eloquentemente a expressão “buying in” dos norte-americanos) em algo chamado Razão Ocidental, então só esses pensadores racistas e não dialéticos para os quais tal razão seria uniformemente opressora têm por que se preocupar com ela. A palavra “cúmplice” tem um signo daninho ligado a ela, mas nada há de daninho em ser “cúmplice” do Grupo de Ação Contra a Pobreza Infantil ou dos escritos das suffragettes. Em todos os casos, Spivak está logicamente errada ao supor que imaginar alguma alternativa geral ao atual sistema significa(ria) declarar-se não conspurcada por ele. Imaginar que seria ótimo estar em Siena não é necessariamente negar o fato de que estou em Scunthorpe. Ela compara sua própria crítica da teoria pós-colonial metropolitana ao ardente assalto que seu colega indiano Aijaz Ahmad move contra ela em seu livroIn Theory, e apresenta o próprio livro dela como “mais nuançado, com reconhecimento produtivo de cumplicidade”. Mas por que, afinal, isso deveria ser pressuposto qualidade, se o resultado é menos aproveitável? Ahmad pode disfarçar seu envolvimento no que ataca, pelo menos na visão de Spivak, mas isso não implica automaticamente que faça retrato menos acurado [do que ataca]. Seja como for, pode-se dizer que Ahmad é menos “cúmplice” que Spivak: lecionou por muito menos tempo no ocidente; está mais explicitamente comprometido com uma alternativa socialista; e está muito (muito!) menos apaixonado por novas teorias cevadas no ocidente. Mas nada disso importa. O que importa é que ele escreve muito bem sobre teoria pós-colonial, um corpo de trabalho escrito que se pode descartar em Delhi e apoiar em Sacramento. A ênfase pós-estruturalista na “posição do sujeito” é parente próxima da obsessão existencialista com a autenticidade: o que você diz conta menos que o fato de você estar dizendo [qualquer coisa]. O liberalismo, muito semelhantemente, tende a crer que o escolhido é menos importante que o fato de que eu escolhi [qualquer coisa] – por isso é ética especialmente talhada para adolescentes. Mas está-se interessado em pós-colonialismo, não na má fé ou nos vícios de psíquicos de acadêmicos que o pratiquem. Spivak é anti-intencionalista resoluta, no que tenha a ver com trabalho dos outros; mas é frequentemente autobiográfica e anedótica no que tenha a ver com o trabalha dela mesma. Se é tentativa admirável para introduzir um pingo de subjetividade no debate impessoal dos patriarcas, ao mesmo tempo trai excesso de interesse na própria subjetividade.

Quando se trata da ideia de resistência, qualquer intrépido Derridaeano deve “tomar certo cuidado, ser vigilante, uma persistente tomada de distância” [orig. persistent taking of distance (sic)], nas próprias palavras de Spivak, atento a outro tema. Bem pouca gente no bloco soviético nos anos 1980 estava convencida de que seria possível resistir àquele sistema, mas não seria possível transformá-lo; mas essa opinião, ao fim, mostrou-se um pouco rígida demais, ainda que aquilo em que aquele sistema transformou-se dificilmente se possa chamar de sociedade justa. Pode-se acrescentar que, quando chegou a hora de varrer aquela estrutura de poder, comprovou-se que a agência coletiva nada tinha de ficção essencializante e nem o cálculo preciso comprovou-se tão impreciso como os pós-estruturalistas parecem imaginar.

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