18 de dezembro de 2019

O protocolo de Paraisópolis

Regras não podem ser iguais em situações diversas

Betty Milan

Folha de S.Paulo

Patricia Stavis/Folhapress

— Funk? Mas o que é isso?
— Baile funk, ora. Você não sabe?
— Coisa de negro, só pode ser.
— Vamos lá…

Foi possivelmente depois de um diálogo como este que a polícia entrou no baile de Paraisópolis, jogando bombas. Nove jovens que estavam para dançar o funk foram mortos. A maioria (seis), evidentemente, era afrodescendente. No dia seguinte aparece o governador, na televisão, dizendo que a Polícia Militar de São Paulo é a melhor do Brasil, a única que segue um verdadeiro protocolo, e que este não será alterado. Depois, pressionado pela mídia, mudou de ideia.

A palavra “protocolo” diz respeito a um conjunto de regras ou critérios cumpridos numa dada atividade. Ou seja, é uma palavra vazia, porque as regras não podem ser as mesmas em situações diferentes. O governador se serviu dela precipitadamente para mostrar serviço. Porque mostrar é a única coisa que de fato conta para quase todos os nossos políticos —se não para todos.

Até quando um governador pode fazer uma declaração como essa? Com que direito? Quem pode votar num político que reage dessa forma diante do assassinato inexplicável de nove jovens da cidade? Polícia nenhuma, em lugar nenhum do mundo, tem o direito de entrar num baile onde há 5.000 pessoas atirando bombas. A tentativa de prender criminosos que supostamente estavam no baile não convence ninguém. Melhor deixar o bandido escapar do que matar vários jovens.

Agora os policiais estão sendo investigados. Isso, porém, não basta. É preciso que o governador seja responsabilizado pelas suas palavras, tão irresponsáveis quanto as ações da polícia. As palavras de qualquer pessoa que ocupa um cargo político devem ser responsáveis. Seja ela de direita ou de esquerda.

Os pais perderam os filhos por eles gostarem de funk e se identificarem com os afro-americanos que, nos anos 1960, criaram uma nova forma de música através da mistura de soul, jazz e rhythm and blues? Uma música rítmica e dançante, que os brasileiros de todas as classes adotaram por serem “amefricanos” e terem a cultura africana no sangue, como os afro-americanos.

O funk é um descendente do jazz, que, por sua vez, ele influenciou. Não foi só nos EUA, mas também no Reino Unido que o funk atingiu seu auge de popularidade —sem sofrer o mesmo tipo de discriminação racial que limitava sua aceitação na América do Norte. Grupos como os Rolling Stones levaram o funk a grandes plateias e não serão esquecidos.

Mas a polícia não quer saber disso. Com a ideia de que bandido bom é bandido morto, o que ela quer é matar. Só que, desta vez, o “protocolo” foi desqualificado a ponto de desqualificar quem o sustentou. Quem não suporta os que gostam do funk, música cuja grande referência era Miles Davis?

Paraisópolis, que tem 100 mil habitantes e nove famílias de luto pelos filhos, não pode aceitar o ocorrido. E paulista nenhum pode. A horrenda carnificina não será esquecida. As palavras do governador também não.

Sobre o autor

Escritora e psicanalista; autora dos romances "O Papagaio e o Doutor" e "Baal" (ed. Record), entre outros

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