9 de novembro de 2022

Lula desarma golpismo bolsonarista sem embate com militares

Relatório da Defesa paga pedágio a Bolsonaro e encerra de forma melancólica relação tumultuada

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Em sua primeira incursão a Brasília após ser eleito presidente pela terceira vez, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi cirúrgico. Prometeu normalidade institucional, abriu portas ao centrão e buscou desarmar o discurso golpista que subsiste em estradas e na frente de quartéis Brasil afora.

O temor do mundo político residia no uso que o bolsonarismo quer fazer do relatório do Ministério da Defesa acerca das urnas eletrônicas, que cumpriu o papel de deixar suspeitas no ar apesar de atestar que não houve fraude no pleito —um fim melancólico para a tumultada reinserção dos militares na política sob Jair Bolsonaro (PL).

Bolsonarista pede intervenção militar em frente ao CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), em São Paulo - Jardiel Carvalho - 2.nov.2022/Folhapress

Não por acaso, o texto só foi divulgado depois que Lula concedeu sua entrevista coletiva, após reunião com o destinatário do papelório, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes.

O petista evitou dar oxigênio para o golpismo. Disse que "não há tempo para vingança", para sacar na sequência sua primeira declaração acerca dos protestos. "Essas pessoas não têm o que contestar", afirmou, completando de forma nada inocente que é necessária a investigação acerca do financiamento dos atos antidemocráticos.

Nenhuma palavra sobre o relatório ou acerca do papel complexo que estratos militares diversos, Defesa, serviço ativo e reserva, tiveram no relacionamento íntimo com o capitão reformado do Exército Bolsonaro.

Ponto para Lula, que teve interlocutores alertados nos últimos dias de que a caserna quer passar a régua no tema das urnas eletrônicas. Não se sabe ainda se isso é uma sinalização de armistício, mas ao focar nos manifestantes como entes isolados, o petista acenou.

Um integrante da cúpula militar dizia, na noite de quarta (9), que não havia alternativa e que Bolsonaro desejava algo ainda mais contundente, tentando assim pintar um quadro de cooperação fardada para evitar uma crise.

Se a versão lhe é conveniente, e é, ela também casa com a ideia de que alguma normalização está sendo buscada. A reação do TSE, "recebendo com satisfação" a peça, vai nesse sentido de fim de jogo.

Como a Folha mostrou na segunda (7), a relação entre o presidente eleito e os fardados tem várias arestas egressas do episódio do tuíte do ex-comandante do Exército que pressionou o Supremo a não lhe conceder um habeas corpus em 2018.

Naturalmente, toda essa concertação precisa ser posta à prova pela realidade. O bolsonarismo segue o modelo de Donald Trump em 2020, quando o ídolo do presidente perdeu a eleição e passou meses fomentando uma sedição que não veio.

Houve a invasão traumática do Capitólio, mas, olhando com a perspectiva da distância temporal, foi algo isolado e até menor em escala do que sua versão tupiniquim —que, de resto, parece tender a ser um elemento de paisagem política, ridicularizada por uns, ignorada por outros, mas até aqui sem eficácia.

Um teste mais óbvio será a diplomação de Lula e do vice, Geraldo Alckmin (PSB), pelo TSE tão odiado pelos bolsonaristas. Ela ocorrerá até 19 de dezembro, e institucionalmente isso equivale ao 6 de janeiro de 2021, quando o Congresso americano foi atacado.

Sobre o relatório em si, fruto de um erro do TSE em colocar os militares como protagonista que já era, na prática, do processo eleitoral, a montanha pariu um rato —mas um roedor pode causar estragos no longo prazo. Nenhuma acusação de fraude ou falha grave, e uma série de sugestões de aprimoramentos técnicos dos mecanismos de votação.

"A urna eletrônica é uma conquista", ressaltou Lula, sem falar no trabalho fardado. Após passar quase quatro anos na berlinda, associada a um golpe que não veio, a Defesa se prestou a dar alimento às conspiratas do bolsonarismo.

Esse erro será cobrado no futuro, isso parece claro, mas a palavra de ordem na Brasília de Lula 3º é "volta a normalidade", com presidente conversando com chefes de outros Poderes e sentando à mesa com ministros que ajudaram a mandá-lo para 580 dias de prisão.

Os termos do relatório servirão para Bolsonaro e os seus sustentarem até 2026 o discurso contra as urnas, e a pacificação proposta pelo petista terá um teste de fogo no trabalho adicional de Moraes contra os financiadores dos correntes atos.

E claro, ainda falta a eventual manifestação do presidente recluso em sua torre simbólica, magoado pela derrota cercado pelos filhos e acólitos residuais. Se deixará a cadeira com um sussurro ou uma explosão, é algo em aberto. O que está claro é que ninguém importante parece prestar atenção a essa altura.

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