25 de fevereiro de 2023

Democracia corintiana liderou Diretas no futebol

Time paulista foi pioneiro no meio esportivo na mobilização pela democracia

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”, entre outros livros. Lança agora “O Girassol que nos Tinge: Uma história das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (ed. Fósforo), sobre os 40 anos das Diretas

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Jogadores corintianos, como Sócrates e Casagrande, e a torcida flamenguista, entre grupos de outros times, levaram a defesa da redemocratização aos estádios de forma pioneira e ajudaram a fazer da campanha das Diretas, que completa 40 anos, uma mobilização que ia muito além da esfera política.

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A partir do segundo semestre de 1982, com a proximidade das eleições de 15 de novembro —a primeira para governadores em quase 20 anos—, a política invadiu todos os espaços públicos, e os estádios de futebol não foram exceção. Em São Paulo, os jogadores do Corinthians saíram na frente. No Rio, os torcedores do Flamengo foram precursores na defesa da redemocratização.

Duas semanas antes de os brasileiros irem às urnas, o Corinthians entrou em campo com uma camisa onde se lia: "Dia 15 vote". A iniciativa, repetida nos jogos seguintes, resultava do movimento Democracia Corintiana, que desde o ano anterior agitava a equipe.

Vista do "Bloco Corintiano" durante comício pelas Diretas Já, na praça da Sé, em São Paulo (SP) - Avani Stein-26.jun.84/Folhapress

Tudo começa com a eleição para presidente do clube depois da eliminação prematura no Campeonato Brasileiro de 1981, que inviabiliza uma nova reeleição do folclórico cartola Vicente Matheus. Numa manobra continuísta, ele inverte a ordem da chapa, e disputa como vice na chapa encabeçada por Waldemar Pires.

Uma vez eleito, no entanto, o novo presidente põe de lado o roteiro de coadjuvante que lhe haviam reservado. Escolhe como vice-presidente de futebol o empresário Orlando Monteiro Alves, que, por sua vez, indica Adilson Monteiro Alves, seu filho, para ocupar a diretoria da área. O nepotismo tinha o agravante de Adilson, admitidamente, não entender nada do esporte.

O aparente mau começo, porém, acabou sendo a gênese de uma revolução que projetou o time dentro e fora dos campos.

Ex-dirigente estudantil que enfrentara a ditadura em passeatas e assembleias, Adilson fez da deficiência técnica um diferencial político. Na contramão do estilo despótico que marcava a atuação dos dirigentes dos clubes em geral, ele decidiu ouvir todos, dos atletas aos roupeiros, e acatar a decisão da maioria. As primeiras reivindicações, de cunho esportivo, logo incluiriam questões da política nacional, e o movimento se confundiria com as Diretas Já.

Quem falou primeiro em "democracia corintiana" foi Juca Kfouri, hoje colunista da Folha, num debate sobre a renovação no clube. Na plateia, o famoso publicitário e corintiano fanático Washington Olivetto, focado no marketing esportivo que surgia com a recente autorização de vender espaço publicitário nas camisas, anotou a expressão que em breve transformaria em mote.

Em um primeiro momento, ainda sem anunciantes, o time decidiu aproveitar para veicular a mensagem política sobre a eleição de novembro.

A convocação para que a população votasse não era politicamente neutra. Os jogadores entravam em campo com uma faixa que explicitava a mensagem da camisa: "Ganhar ou perder, mas sempre com Democracia". O contexto induzia à interpretação de que o voto deveria ser na oposição, contra a ditadura.

Embora o movimento privilegiasse o coletivo, o ídolo Sócrates era a sua face mais visível. Ao lado dos colegas, como Wladimir e Casagrande, o jogador colocou sua popularidade a serviço da causa, e chegou a anunciar em palanque que ficaria no Brasil, renunciando a um contrato milionário para jogar na Itália, caso as Diretas Já fossem aprovadas pelo Congresso.

O apoio à democracia colocou o Corinthians no circuito cultural. Seus atletas eram ovacionados em shows de uma Rita Lee vestida com a camisa do clube e, na Globo, a novela "Vereda Tropical" (1984) teve o enredo adaptado para incluir um jogador da equipe, vivido por Mário Gomes.

O time paulista já havia cruzado a fronteira entre o futebol e a política quando, no Rio, a torcida do Flamengo, a maior do Brasil, decidiu seguir o mesmo caminho. Em 28 de janeiro de 1984, logo depois do comício da praça da Sé, em São Paulo, um grupo de torcedores ergueu cartazes no Maracanã, durante o jogo contra o Palmeiras, na estreia do Campeonato Brasileiro, onde estava escrito "Fla Diretas". Tratava-se da primeira torcida a se manifestar pela redemocratização.

A ideia surgira durante uma pelada em Botafogo, no campinho da ASA (Associação Scholem Aleichem), reduto da esquerda judaica, onde costumavam jogar universitários ligados ao clandestino Partido Comunista Brasileiro, flamenguistas em sua maioria, como os humoristas Bussunda, que morreria em 2006, e Cláudio Manoel. "Nosso Figueiredo é melhor que o deles", diziam os flamenguistas, comparando o presidente Figueiredo ao zagueiro Figueiredo, querido da torcida.

Antes de estrear, a Fla Diretas enfrentou alguma resistência por parte das torcidas organizadas, mais por disputa de espaço nas arquibancadas do que por razões políticas —até porque o Flamengo tinha tradição na defesa da democracia, tendo deflagrado, cinco anos antes, a Flanistia, iniciativa de apoio à anistia que chegou a ser monitorada pela polícia do regime.

No fim, a Fla Diretas ganhou o apoio decisivo da maior e mais influente torcida do Flamengo, a Raça Rubro-Negra, e tudo se resolveu.

Ganhou também um desenho do flamenguista Henfil retratando o tradicional urubu da Gávea com uma cédula eleitoral no bico assinalada com um X. O rastro do seu voo formava, no ar, o nome da torcida.

Torcida do Fluminense usa faixa com os dizeres "O Flu não vai Malufar... Diretas Já!", em jogo contra o Flamengo após a derrota da emenda de eleições diretas na Câmara, em 1984 - Lewy Moraes-23.set.84/Folhapress

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