23 de fevereiro de 2023

Chaves para a rebelião popular no Peru

A heróica rebelião popular dos Quechuas e Aymaras do Peru tem desafiado o poder oligárquico baseado em Lima, que se recusa a ser derrotado. Mas somente a unidade do movimento popular poderá alcançar vitórias que abram um novo período político.

Johnatan Fuentes


Moradores da cidade de Huaro bloqueiam a rodovia Cusco-Puno, em Cusco (Foto: EFE / Aldair Mejía)

Passados ​​pouco mais de dois meses, continuam as mobilizações populares contra o golpe contra Pedro Castillo e contra a instauração de um regime cívico-militar autoritário. Nesse período, os assassinados já somam mais de sessenta, principalmente manifestantes mortos pelas forças armadas e policiais. A heróica rebelião popular dos Quechuas e Aymaras do Peru tem desafiado o poder oligárquico baseado em Lima, que se recusa a ser derrotado. Mas só a tenacidade do movimento popular poderá alcançar vitórias que abram um novo período político.

Sobre o populismo de baixa intensidade... mais uma vez

O governo de Pedro Castillo despertou expectativas nas classes populares do interior do país, setores sociais historicamente discriminados pela oligarquia de Lima. Como toda liderança populista, em sua dinâmica policlassista optou por representar organicamente os interesses da burguesia emergente e da pequena burguesia com feições indígenas, ambas vinculadas às economias informais das regiões e às universidades provinciais (o que o sociólogo Héctor Béjar costuma chamar de "burguesia popular", para diferenciar em termos de raça, status e classe da burguesia branca/mestiça estabelecida nas cidades da costa peruana).

A progressiva reforma trabalhista que regulamenta a terceirização nos contratos de trabalho e a abertura dos gabinetes do governo de Castillo ao diálogo com as organizações populares expressaram de certa forma o precário dique que representavam contra a ultradireita que não conseguia se agachar no poder executivo, mas que contraditoriamente ao mesmo tempo era a limitação da estratégia defensiva do governo que só recorreu ao movimento popular para resistir aos ataques do congresso golpista.

Após os dois primeiros gabinetes ministeriais de caráter progressista que duraram até o final de janeiro de 2022, nenhum referente do movimento indígena ou camponês entrou no Executivo, mas foram os profissionais provinciais e a burguesia emergente regional que consolidaram seu protagonismo no governo. Com o respaldo sustentado do presidente Castillo, gerou um deslocamento parcial da tecnocracia neoliberal, mas ao mesmo tempo resguardou seu papel nas pastas de Economia e Finanças, Banco Central e Superintendência de Bancos e Seguros. Em meio ano de governo, a esquerda liberal foi expulsa do gabinete ministerial enquanto a esquerda provincial permaneceu em algumas pastas, oscilando do partido no poder à oposição e vice-versa repetidamente, sem considerar seriamente uma política de frente única.

Castillo não fortaleceu os movimentos populares nem construiu um partido político, instrumentos necessários para dar um projeto político nacional à direção populista que chegou ao governo em aliança com o partido Peru Libre e o movimento dos professores. Se Ollanta Humala capitulou à CONFIEP durante seu governo (2011-2016), o governo Castillo capitulou à tecnocracia neoliberal que, em meio ano e sem derrubá-lo, recuperou as molas econômicas do Estado peruano. Não promoveu projetos extrativistas a sangue e fogo contra o campesinato nem levou a cabo políticas de ajuste neoliberal, limitando-se a manter no piloto automático as colunas do capitalismo neoliberal peruano. Antes da greve agrária e de transportes de abril de 2022 liderada por Huancayo, capital da região de Junín, inicialmente recorreu a uma resposta repressiva na área de conflito social, mas finalmente canalizou suas demandas nos conselhos descentralizados de ministros, sem considerar saídas de fundos.

O golpe parlamentar e a ascensão de Boluarte

O golpe parlamentar contra Pedro Castillo em 7 de dezembro de 2022 desencadeou a solidariedade de classe nas regiões do Peru, principalmente no sul dos Andes, desencadeando importantes mobilizações populares em Apurímac e Ayacucho. Em Lima, o movimento dos professores e os grupos populistas do centro da capital foram os primeiros a se mobilizar diante de um acontecimento político inédito: horas antes, o presidente proclamava em rede nacional a dissolução do Congresso e a convocação de um Congresso constituinte.

Até agora, é um mistério quais fatores Castillo ponderou para decidir dar um passo político tão importante sem contar com o apoio de seus ministros ou das forças de ordem. A verdade é que a ascensão de Dina Boluarte à primeira magistratura ocorreu por meio de um golpe institucional com o apoio da ultradireita parlamentar, que sitiou sistematicamente o governo Castillo e atrofiou o equilíbrio de poderes.

Boluarte estabeleceu um regime cívico-militar autoritário em co-governo com o congresso golpista, que pretendia até ficar até 2026 (mas teve que recuar diante da mobilização popular; sua contraproposta para as eleições de 2024 foi deixada nas mãos do congresso golpista). A essa altura, as greves regionais se espalharam por todo o sul dos Andes, à medida que a repressão do governo aumentava. Em 15 de dezembro, quando a primeira greve nacional foi convocada pela Assembleia Nacional dos Povos (ANP), ocorreu um massacre perpetrado pelas Forças Armadas e Policiais em Huanta (Ayacucho) com um saldo trágico de 10 manifestantes assassinados em um único dia.

A segunda onda da Rebelião Popular

Após a tensa pausa nas mobilizações nas últimas semanas de 2022, em 4 de janeiro de 2023, recomeçaram as greves e mobilizações regionais em Lima. Até hoje, eles quase não cessaram. Após a tentativa dos manifestantes de tomar o aeroporto Inca Manco Cápac, em 9 de janeiro ocorreu outro massacre em Juliaca (Puno) nas mãos das forças repressivas com o trágico saldo de 19 pessoas mortas, a maioria manifestantes, mas também um médico que ajudava os feridos.

A indignação com os contínuos massacres do regime autoritário cívico-militar de Boluarte contra os pobres e camponeses levou as organizações regionais do sul andino a enviar delegações a Lima, centro do poder oligárquico no Peru. Agricultores, pequenos empresários e estudantes lotaram a capital, muitos deles hospedados nos campi universitários da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) e da Universidad Nacional de Ingeniería (UNI). O movimento estudantil UNMSM assumiu a universidade para abrigar as delegações enquanto a UNI teve o apoio das autoridades universitárias.

A greve nacional da ANP, convocada para 19 de janeiro, ganhou força em Lima, embora tenha sido insuficiente sua articulação com as organizações regionais, que se mobilizaram durante toda a manhã e sustentaram as greves por tempo indeterminado bloqueando as rodovias. A juventude operária das cidades litorâneas de La Libertad, Ica e Cañete uniu-se à luta popular em solidariedade com nossos irmãos do sul dos Andes, apesar dos lúmpenes que atuaram como vigilantes a serviço do regime nas operações contra os bloqueios de estradas em Ica, mas também na região de Madre de Dios, no leste do Peru.

No litoral, na serra e na selva, a rebelião popular continua a se espalhar, levantando as palavras de ordem de Fuera Boluarte, Assembleia Constituinte, Fechamento do congresso e libertação de Pedro Castillo.

Lima, centro do poder oligárquico

Uma correlação de forças adversa está sendo enfrentada na capital, mas lentamente começa a se reverter, em grande parte devido a erros políticos do regime de Boluarte. Em 21 de janeiro, as forças policiais expulsaram violentamente os delegados regionais e estudantes do campus da UNMSM, destruindo uma das portas com um tanque e detendo arbitrariamente 193 pessoas de forma humilhante sem a presença do Ministério Público e sem ordem judicial (Finalmente, a libertação dos detidos foi conseguida em 24 horas graças ao apoio dos manifestantes, organizações de direitos humanos e à desaprovação da opinião pública face à humilhação perpetrada, que nos faz lembrar os tempos da ditadura de Fujimori).

A jornada de luta de 24 de janeiro ganhou uma solidez inegável, enquanto as periferias de Lima cumprem seu papel organizativo. Desde o bairro popular de Puente Piedra (norte de Lima), em 26 de janeiro foi realizada uma mobilização social de importante magnitude, composta por delegações regionais e ativistas da periferia de Lima, em direção ao centro da capital. A partir dos bairros populares correspondentes a Lima Sur e Lima Este, mobilizações estão sendo preparadas com mais frequência, no esforço de convocar mais setores sociais e superar as forças da ordem que protegem o regime autoritário de Boluarte. Mas a repressão em Lima se agrava a ponto de já superar a brutalidade policial que se viu na luta contra Merino em 2020: as forças repressivas usam bombas de gás lacrimogêneo e pellets indiscriminadamente, método que já causou sua primeira morte em 28 de janeiro, com o disparo de uma bomba de gás lacrimogêneo na cabeça de um manifestante.

Alguns problemas subjacentes

A rebelião popular carece de um espaço articulador consolidado em nível nacional que possa acelerar a queda do governo assassino de Boluarte e reforçar a bandeira da constituinte como estratégia de ruptura com o neoliberalismo. As organizações populares tradicionais da ANP, que têm peso político significativo, não têm conseguido se articular com as organizações populares regionais na velocidade necessária. Essa dificuldade deve ser resolvida o mais rápido possível; caso contrário, a dispersão pode se aprofundar, postergando os saltos organizativos do movimento popular que tem avançado de reivindicações socioeconômicas para reivindicações políticas em um processo de importante politização. A criação do Comitê Nacional Unificado de Luta (CNUL) que integra organizações regionais, o bloco universitário e Las Limas (Sul, Norte, Leste) é um passo importante nesse sentido.

O processo de radicalização política que está por trás da rebelião popular em curso não se deve às políticas do governo Castillo, mas ao acúmulo de experiências do movimento popular e camponês nas regiões que lideraram o Aymarazo, o Moqueguazo, o Baguazo e o Arequipazo, entre outras revoltas populares antineoliberais durante a transição pós-democrática, que agora enfrenta uma crise política iniciada em 2016 com a derrota de Keiko Fujimori nas eleições presidenciais. É o mesmo movimento popular que em 2020 desencadeou uma rebelião democrática em Lima que derrubou o governo ilegítimo de Merino; o mesmo movimento que se aprofunda diante do cerco do golpe de ultradireita contra a vitória eleitoral de Castillo em 2021 e que, após sua derrubada em dezembro de 2022 e os contínuos massacres do regime de Boluarte, emerge na forma de uma rebelião nacional-popular rebelião sob a liderança dos Quechuas e Aymaras do Peru.

As demandas democráticas e antineoliberais sintetizadas na luta do movimento popular colocam ao peruano o desafio de contribuir para a construção de um projeto político de ruptura com o neoliberalismo e o capitalismo. A tarefa do momento é promover a aliança operário-camponesa para que se torne a direção nacional da heróica luta travada por nossos povos do Peru profundo. Qualquer solução institucional que venha do congresso golpista e do governo assassino de Boluarte seria, no melhor dos casos, insuficiente; o objetivo deve ser o de acabar com a desastrosa constituição de 1993 e seu desenho institucional, legado da ditadura de Fujimori.

Colaborador

Johnatan Fuentes é sociólogo pela Universidade Nacional de San Marcos (Lima, Peru).

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