1 de fevereiro de 2023

Brasil falhou com os militares

Diante de tantos fracassos, surpreende que a crise só tenha eclodido agora

Érico Esteves Duarte
Professor de relações internacionais e estudos estratégicos da UFRGS, é professor visitante da Universidade de Denver (EUA) e autor de “Estudos Estratégicos” (Intersaberes)


Existe um mal-estar com os militares brasileiros expresso pelo presidente Lula, no último dia 12, e que se generalizou na imprensa e nas mídias sociais. Esse sentimento pode ser indevido porque, se os militares falharam na crise de 8 de janeiro, a República vem falhando com os militares há muito mais tempo.

Todos os presidentes que tivemos desde a redemocratização fracassaram com os militares por terem exercido pouco o papel de comandantes em chefe. Nenhum deles teve como agenda minimamente prioritária reformar as Forças Armadas e o Ministério da Defesa. A criação deste e suas remodelagens sempre foram de maneira delegada e, quando houve maior participação presidencial, foi a contragosto em momentos de crise. Eles falharam gravemente em nunca terem cumprido o artigo 91, parágrafo 1, inciso IV da Constituição, que estabelece ao Conselho de Defesa Nacional a responsabilidade de "estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático". Esse conselho nunca cumpriu seu papel, e os militares são mais consultados que subordinados a prioridades da Presidência da República; já suas atividades ordinárias são submetidas à quase nenhuma avaliação externa.

Reunião do presidente Lula (PT) com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no Palácio do Planalto - Ricardo Stuckert/PR/Divulgação

Pior, mesmo com o histórico de intervenções na política nacional, os vários governos nada fizeram para reduzir o poder político dos militares. Ao contrário, tornaram-se cada vez mais dependentes deles para construir estradas e pontes, distribuir água, conter epidemias, combater o crime organizado e mesmo garantir eleições, entre outras funções civis. Enquanto os militares forem centrais para a administração pública, terão envolvimento na política e recurso de barganha para se manterem insulados do controle civil.

O Congresso falhou com os militares por nunca ter supervisionado e intervisto quando o Executivo não cumpriu seu papel com as Forças. Deputados federais e senadores falharam quando aceitaram um papel marginal na formulação da política de defesa e, em vez de desenvolverem assessorias e debates públicos qualificados, se submeteram aos lobbies dos representantes formais e informais dos militares no Legislativo. Pior que isso, os parlamentares sempre subscreveram, quando não pressionaram, para o uso extrapolado dos militares em funções civis.

Com a exceção de Nelson Jobim, os ministros da Defesa falharam ao aceitar assumir uma pasta desestruturada, sem pessoal qualificado e mais submissa que de autoridade sobre os militares —e pouco fizeram para reverter isso. Nenhum deles foi capaz de desenvolver uma estrutura de análise e gestão da pasta independente. Mais que isso, todos aceitaram que os militares loteassem o Ministério da Defesa e transferissem para lá seus feudos e agendas particulares.

O Judiciário brasileiro também falhou quando nada fez para reverter a permanência, desde a ditadura, de um sistema judiciário militar paralelo sem equivalente em qualquer democracia no mundo.

As universidades falharam no desenvolvimento de expertise e conhecimento qualificados sobre defesa e nunca assumiram um papel mais central na formação dos militares. A maioria dos cientistas sociais tem aversão, senão repulsa, a assuntos de defesa e guerra em geral.

Os militares brasileiros falharam consigo mesmos. Nunca aceitaram plenamente serem servos sem reservas da nação e sempre flertaram com a tutelagem da democracia. Cederam à tentação de expansão de missões subsidiárias em troca de orçamento extraordinário e a posições civis nos governos Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e, principalmente, Jair Bolsonaro (PL), com ganhos financeiros, privilégios e status que deformaram e expuseram suas corporações.

A lista de fracassos do Brasil com os militares é longa, e não surpreende o mal-estar geral em relação a eles. O que surpreende é como isso demorou tanto para acontecer

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