17 de janeiro de 2024

Tupi or not Tupi?

O épico nacional modernista do Brasil

Stephen Henighan


Detalhe do cartaz da adaptação cinematográfica de Macunaíma, de 1969. Album/Alamy

Nesta resenha

MACUNAÍMA
The hero with no character
Traduzido por Katrina Dodson
320 pp. Fitzcarraldo Editions. Impresso, £ 12,99 (EUA: New Directions. Impresso, $ 17,95).
Mário de Andrade

Assim como a terra, o modernismo brasileiro foi criado em uma semana. A expressão definidora da consciência modernista ocorreu em São Paulo, em fevereiro de 1922, durante evento conhecido como Semana de Arte Moderna. Para horror dos tradicionalistas, foram exibidas pinturas influenciadas pelo cubismo e pelo futurismo. A música dissonante composta por Heitor Villa-Lobos desafiou a sensibilidade sóbria, enquanto dançarinos afro-brasileiros se apresentavam no coração da metrópole. Perto do final desta semana, um dos organizadores do evento, o escritor Mário de Andrade, subiu ao palco do Theatro Municipal de São Paulo para ler um longo poema evocando a maior cidade do Brasil em versos que misturavam formas europeias com alusões a culturs indígenas e afrodescendentes. A leitura de Mário de Andrade foi recebida com vaias de escárnio. Destemido, ele e seus colaboradores publicaram um “Manifesto Antropfágivo”, elogiando a ingestão criativa de elementos do interior brasileiro como essenciais para forjar uma mitologia nacional e uma consciência artística distinta. Em uma referência astuta a uma das culturas indígenas do litoral brasileiro, famosa por ter festejado com um bispo português rechonchudo quase quatro séculos antes, o manifesto lançou o dilema da cultura brasileira como “Tupi ou não Tupi?”.

Nos cinco anos seguintes, Mário de Andrade, um professor mestiço de musicologia do sul europeizado do Brasil, viajou pelas áreas remotas do norte do país. Ele mergulhou na língua, nas histórias tradicionais e no vocabulário das comunidades negras e indígenas. Ele também procurou escritores de outras nações que estivessem empreendendo missões análogas. Mário de Andrade descobriu a tradução francesa de uma das histórias que mais tarde apareceria em Lendas da Guatemala (1930), uma das primeiras obras do futuro ganhador do Nobel Miguel Ángel Asturias, que integrava elementos maias em uma identidade guatemalteca hibridizada. De forma mais controversa para alguns leitores posteriores, Mário de Andrade pilhou uma compilação de cinco volumes de histórias indígenas tradicionais do antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Aqui ele encontrou um herói mítico chamado Makunaíma. Em dezembro de 1926, em uma segunda semana de criação milagrosa, Mário de Andrade trancou-se durante seis dias e escreveu Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, um dos romances mais originais da literatura latino-americana e a obra que estabeleceu os termos do debate para a forja de uma estética brasileira distinta da modernidade.

Publicado de forma privada em 1928, depois de mais de um ano de revisões, Macunaíma suscitou perplexidade e repulsa com a mesma frequência que elogios. A primeira tradução para o inglês, publicada em 1984, foi de E. A. Goodland, um engenheiro britânico que se aposentou no Nordeste do Brasil. Goodland passou anos viajando pelos destinos visitados pelo herói da epopéia de Mário de Andrade. Sua tradução exibe uma energia impressionante para um projeto de aposentadoria, principalmente em cenas em que os personagens falam em rima. É prejudicado por uma dicção eduardiana de “violência” e “grande ressentimento” que tira o leitor do cenário tropical; suas representações contundentes de insultos raciais e encontros sexuais desiguais são chocantes para a sensibilidade do século XXI. A tradução de Katrina Dodson, empregando uma dicção coloquial americana com conotações afro-americanas e do Sul profundo palpáveis, dá a Macunaíma uma voz consistente e credível em inglês. Ela habita e dá vida ao romance como se fosse um fantasma da selva brasileira de um século atrás. Seu posfácio é o mais completo relato da conquista de Mário de Andrade disponível em inglês; suas anotações sobre as escolhas de palavras de cada capítulo, resultado de cinco anos de pesquisa, superam em seus insights até mesmo edições críticas em língua portuguesa, como a coordenada por Telê Porto Ancona Lopez, publicada pela Unesco em 1988.

Macunaíma é ao mesmo tempo uma epopéia nacional modernista e uma problematização do conceito de épica nacional. O herói homônimo, referido ao longo do romance como “o herói”, nasce em um cenário tropical que provavelmente será tanto na Guiana ou na Venezuela quanto no Brasil. Sua mãe indígena é da etnia fictícia Tapanhumas, cujo nome sugere ascendência africana. Essa herança, assim como as frases que a descrevem, são uma paródia de um dos romances fundadores da literatura brasileira, Iracema (1865), do escritor romântico José de Alencar, que termina de forma otimista com o nascimento de uma criança concebida por uma mulher indígena com um português, simbolizando o futuro racialmente integrado da nação. Mário de Andrade, pelo contrário, torna a cultura brasileira órfã e enraíza a sua novidade na fusão de elementos indígenas e africanos, colocando a questão de como estas culturas serão recebidas pelo sul europeizado do país. Mais do que fornecer uma solução, o nascimento é o problema que a narrativa deve resolver.

Nascido “preto retinto”, Macunaíma parte em uma odisseia pelo Brasil que equilibra as influências de Homero, Rabelais e Cervantes com a mudança de forma das histórias Anansi da África Ocidental e os ecos dos malandros das mitologias indígenas. Ele tropeça em vermes falantes e figuras da história brasileira. Ele é morto, cortado em pedaços, depois remontado e revivido. Embora Mário de Andrade fosse homossexual, Macunaíma raramente encontra uma mulher com quem não tenha relações sexuais uma hora depois de a conhecer. Infundida com a modernidade autoconsciente da Semana de Arte Moderna, a odisséia do herói ocorre em um ritmo imprevisível. Os personagens às vezes demoram; em outros momentos, eles percorrem vastas distâncias em minutos. Os contos indígenas adaptados que alimentam muitos dos episódios do romance, como enfatiza Dodson, são um palimpsesto. Contados pela primeira vez na língua pemon, foram traduzidos pelos assistentes de Koch-Grünberg para o português, escritos por Koch-Grünberg em alemão, depois lidos de maneira imperfeita por Mário de Andrade e reimaginados em uma gíria brasileira (e agora foram traduzidos por Dodson para um inglês americano que soa sulista). Muitas cenas parecem fábulas, explicando o aparecimento da lua ou das estrelas, ou as origens das frases brasileiras.

Herói de nascença, ainda que “sem caráter”, Macunaíma é astuto, sedutor e maleável. Seu primeiro relacionamento adulto é com Ci, descrita como “a mãe da floresta”, uma mulher indígena que é tão mitológica quanto humana. (Mais tarde, ela ascende aos céus.) A criança nascida dessa união não sobrevive, um acontecimento indicativo de que, se a cultura europeizada do Sul do Brasil não é autossuficiente, a dos indígenas ou negros brasileiros também não são: todos exigem hibridização. Misturando mitologias, Mário de Andrade não deixa intacto nenhum essencialismo: toda cultura é adulterada; ele mistura deliberadamente lendas e deuses de diferentes regiões do Brasil. No entanto, em contraste com José de Alencar e com as afirmações triunfalistas posteriores do país como uma “democracia racial”, Mário de Andrade retrata estes sincretismos como chocantes, privando os brasileiros de tradições partilhadas ou de uma abordagem distinta da modernidade. Enquanto Macunaíma viaja para São Paulo, ele pula em um poço mágico e emerge, embora ainda reconhecidamente ele mesmo, como um homem branco; seu irmão Jiguê, ao contrário, “só conseguiu virar a cor do bronze novo”. Este comentário sobre a natureza arbitrária das identificações raciais e a sua ausência de qualquer ligação axiomática com a identidade cultural é central para a concepção de Mário de Andrade de um dilema enfrentado não apenas pelo Brasil, mas por todos os países das Américas.

O contraponto ao mundo indígena e africano de Macunaíma nunca é o Rio de Janeiro racialmente mestiço - preterido em poucas linhas, embora elogiado por sua beleza - mas sempre São Paulo. É apresentado numa passagem ditirâmbica e falsamente épica de seis páginas como o herdeiro da Roma Antiga, uma metrópole construída sobre sete colinas cuja forma falada da “língua de Camões” é “enriquecida pelo mais autêntico italiano”. É em São Paulo que Macunaíma se integra ao debate sobre a nação ao “aprimorar sua proficiência nas duas línguas da terra, o brasileiro falado e o português escrito”. A chegada de Macunaíma do interior à maior cidade do Brasil inverte a herança do colonialismo português, que conquistou a mesma área ao mar. Embora a cidade os emocione, o herói e seus companheiros de viagem finalmente retornam à sua região natal. Percebendo que, como herói brasileiro, não tem nenhuma missão específica a concretizar e que sua odisséia se resumiu a “nada mais do que uma deriva pela vida”, Macunaíma segue seu primeiro amor, Ci, e ascende às estrelas.

Embora a integração de mitologias de culturas animistas por Macunaíma, juntamente com seus trocadilhos e inventividade, o tornem uma obra de modernidade surpreendente, ele continua sendo a criação de um homem de 1926. Em sua introdução cuidadosa, John Keene convida o leitor a ver os insultos raciais do romance, sexismo e ingestão sangüínea de culturas indígenas como traços que representam a tentativa do autor “de incorporar de maneira temática, psicótica e sinedóquica a cultura brasileira em grande parte de sua complexidade turbulenta”. Não é apenas a complexidade do Brasil que Mário de Andrade capta, mas a das Américas como um todo e, até certo ponto, de todo o mundo moderno.

O romance mais recente de Stephen Henighan é The World of After, 2021.

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