14 de julho de 2022

John Bolton deveria ser banido da vida pública

John Bolton gabou-se esta semana de ser "alguém que ajudou a planear golpes" de Estado. Foi uma exibição descarada de arrogância imperial anti-democrática que deixa claro que a interferência contra as democracias é parte habitual da política externa dos EUA.

Andre Pagliarini.

Jacobin


Tradução / No programa de horário nobre da CNN de Jake Tapper em que se discutia a comissão de inquérito à invasão ao Capitólio, o insípido homem de 73 anos, cujas únicas características distintivas são o seu bigode branco farfalhudo e o empenho inquebrantável( para com o militarismo dos EUA, minimizou a ameaça que o ex-presidente Donald Trump representa para a democracia do país. Trump é, "para usar uma metáfora da Guerra das Estrelas, uma perturbação da força", disse. As suas tentativas para corromper os resultados das eleições de 2020 "não foram um ataque à nossa democracia. São Donald Trump a cuidar de Donald Trump. São uma coisa que acontece uma vez na vida."

Bolton criticou as ações de Trump mas sugeriu que a sua natureza confusa garantia que o pretenso golpe não teria nenhuma possibilidade plausível de ser bem sucedido. Tapper contestou, assinalando que coordenação e inteligência não são pré-requisitos de um golpe de Estado bem sucedido. E então Bolton retorque surpreendentemente: "discordo disso. Como alguém que ajudou a planear golpes de Estado – não aqui, sabe, mas noutros lugares – é preciso bastante trabalho. E isso não foi o que ele fez. Apenas andava a tropeçar de uma ideia para outra."

Bolton está certo numa coisa: os golpes de Estado não são coisa trivial. Quase sempre requerem comprar muitos atores sociais diferentes, incluindo os meios de comunicação social, os empresários e uma parte suficiente das forças armadas de modo a repelir qualquer contestação séria. Em nenhum momento do seu governo – incluindo no dia 6 de janeiro – Trump teve estes apoios uniformes, ainda que as suas ações autocráticas tenham sido um assalto incrivelmente perigoso à democracia.

Mas ponhamos isso de lado. A arrogância imperial de Bolton é ofensiva: discute com preocupação séria os perigos relativos com que a democracia dos EUA se depara ao mesmo tempo que reconhece de passagem o papel do país na subversão da democracia noutros locais. É como se as únicas instituições sacrossantas do mundo fossem aquelas criadas e mantidas pelos Estados Unidos. A prática de subverter eleições através da força é uma crise que merece um alarme sério quando acontece nos Estados Unidos mas quando acontece no estrangeiro com o encorajamento ou com o planeamento ativo dos EUA é apenas “política externa”. Não temam, está implícito, nunca iríamos presumir que as táticas pesadas usadas para derrubar um presidente eleito democraticamente, digamos no Chile, pudessem ser usadas nacionalmente. No resto do mundo? Força nisso.

Nunca devemos ler de forma demasiada profunda qualquer declaração de um quadro governamental isolado. Mas o que Bolton diz da boca para fora soma-se a provas esmagadoras de que a política externa dos EUA tem repetidamente subvertido a democracia e a auto-determinação. A cientista política Lindsey O’Rourke descobriu que durante a Guerra Fria “os Estados Unidos apoiaram forças autoritárias em 44 das 64 mudanças de regime encobertas, incluindo pelo menos seis operações que procuraram substituir governos democráticos liberais por regimes autoritários iliberais”. Para além disso, “os países que eram alvo de mudanças de regime encobertas apoiadas pelos EUA durante a Guerra Fria estavam mais expostos a guerras civis e episódios de assassinatos em massa depois disso”.

Fundamentalmente, a teoria do excecionalismo dos EUA simbolizada por apparatchiks do círculo governamental como Bolton defende que apenas os Estados Unidos devem permanecer imunes ao tipo de ameaça que autoritários como Trump representam.

Então, quando é que Bolton terá sido planeador de golpes? Presumivelmente durante o governo de Trump quando era conselheiro de segurança nacional e as tentativas para depor Nicolás Maduro na Venezuela estavam no seu pico. Mas quem sabe – quando se é a “nação essencial” do mundo, quando se insiste que a melhor forma de garantir a ordem do mundo é manter uma ordem hierárquica com os Estados Unidos no topo, qualquer ano é bom para um golpe de Estado.

Antes de ser conselheiro de segurança nacional de Trump, entre 2018 e 2019, Bolton foi o embaixador nas Nações Unidas de George W. Bush entre 2005 e 2006. Durante esse tempo, como salientou Peter Baker, Bolton foi “um falcão entre falcões”, alguém com uma “abordagem contundente, aguçada, confrontacional do mundo”. Passou toda a sua vida profissional como fervoroso adepto do Partido Republicano e do império dos EUA – o que não quer dizer que este seja um exclusivo dos conservadores. O império dos EUA é um negócio bipartidário, juntando toda a gente desde “liberais humanitários” como Samantha Power até “realistas” duros como Henry Kissinger e falcões “neocons” como Bolton.

Muitos presidentes Democratas aprovaram golpes de Estado do tipo daqueles que Bolton parece estar perfeitamente inebriado por ter ajudado a planear. Foi John F. Kennedy que começou a destruir a ordem democrática brasileira no início dos anos 1960 e foi o seu sucessor, Lyndon Johnson, quem destacou meios militares dos EUA para ajudar, em 1964, a derrubar João Goulart, o presidente reformista do Brasil. Mais recentemente, o Departamento de Estado de Barack Obama aprovou a deposição do presidente hondurenho Manuel Zelaya, em 2009, uma política que Mark Engler descreveu na época como “uma vitória para os sabotadores do Departamento de Estado e para os velhos manipuladores da política externa dos governos Clinton dos anos 1990”.

Ao longo do século XX, sucessivos governos dos EUA trataram as interferências em governos estrangeiros como assuntos correntes. A falsa modéstia gabarolas de Bolton sobre o planeamento de golpes podia literalmente ter saído da boca de qualquer conselheiro nacional de segurança desde a criação do órgão em 1947.

No que diz respeito a Bolton, os académicos continuarão a discutir se figuras do tempo de Bush, como ele, realmente acreditavam no propalado idealismo do neoconservadorismo do início dos anos 2000 ou se era apenas uma manobra para mascarar a postura agressiva que foi implantada muito mais abertamente sob Trump. As mesmas questões podem ser levantadas acerca das suas posições atuais: será que se preocupa mesmo com a integridade da democracia dos EUA ou estará apenas a aproveitar a oportunidade para picar Trump por tê-lo despedido e humilhado-o publicamente? Num certo sentido, é irrelevante.

Ao escrever acerca do golpe de Estado de 1954 na Guatemala que foi apoiado pelos EUA, o jornalista Vincent Bevins, defende que “a motivação não interessa muito aos milhões de pessoas que olham para estes acontecimentos na Ásia, ou para os latino-americanos que os veem de perto. Sejam quais forem as suas razões, os Estados Unidos ganharam a reputação de serem intrusos frequentes e violentos nos assuntos de nações independentes”.

O facto é que Bolton e os seus pares golpistas – tanto Republicanos como Democratas – deveriam ser banidos da vida pública. Os seus atos dizem-nos tudo o que precisamos de saber sobre o seu compromisso para com a democracia. Ouçamos antes os que trabalham para fortalecer a democracia em todo o lado.

Sobre o autor

Andre Pagliarini é doutorado em História, professor no Hampden-Sydney College e investigador no Washington Brazil Office. Escreve para órgãos como o The Guardian, New Republic, Folha de São Paulo e o Piauí.

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