21 de julho de 2022

A vitória de Petro anuncia um novo ciclo progressista

A vitória de Gustavo Petro foi um momento histórico não só para a Colômbia, mas para toda a região. Embora o governo do Pacto Histórico marque o início de um novo ciclo progressista, também será definido pela derrota decisiva do intervencionismo norte-americano.

Uma entrevista com
Luciana Cadahia

Entrevistada por
Nicolas Allen

Jacobin

O novo governo da Colômbia tem o desafio de colocar sobre a mesa várias dívidas históricas que o ciclo progressivo anterior deixou inacabadas. (Foto: Colprensa)

Talvez poucas notícias de 2022 tenham sido tão animadoras quanto a vitória progressista de Gustavo Petro na Colômbia. O ex-guerrilheiro derrotou Rodolfo Hernández no segundo turno eleitoral em 19 de junho para se tornar o primeiro presidente de esquerda na história do país, acompanhado por ninguém menos que a proeminente ativista afro-colombiana Francia Márquez como vice-presidente.

Para entender a magnitude histórica da vitória do Petro, a situação atual do país e os desafios que aguardam o próximo governo, Nicolas Allen, editor da Jacobin, conversou com a filósofa Luciana Cadahia. A experiência de Cadahia na Colômbia tem sido típica de muitos esquerdistas. Apoiadora de longa data de Petro, suas visões políticas acabaram colidindo com a administração da Universidade Pontifícia Javeriana e as forças de direita reunidas em torno do ex-presidente Álvaro Uribe.

Hoje é professora de Filosofia na Universidade do Chile, coordenadora da rede "Populismo, Republicanismo e Crise Global" e coautora de Sete ensaios sobre o populismo. Em entrevista exclusiva à Jacobin, ela falou sobre o que podemos esperar do primeiro governo de esquerda na Colômbia.

Nicolas Allen

De certa forma, a vitória de Gustavo Petro parecia um triunfo anunciado. Afinal, ele estava muito à frente nas pesquisas nos meses que antecederam a eleição. Talvez valha a pena lembrar, em uma perspectiva mais histórica, por que sua vitória foi tudo menos previsível.

Luciana Cadahia

Para começar a responder a essa pergunta, pode ser interessante colocar sobre a mesa várias peças que ajudem a entender, por um lado, por que o triunfo do Pacto Histórico encarnado por Gustavo Petro e Francia Márquez é tão importante e, por outro, graças a quais fatores o progressismo conseguiu chegar às instituições de um país tão complexo como a Colômbia. Em primeiro lugar, é importante lembrar que a Colômbia tem uma longa tradição de insurgência, resistência e organização popular. Isso pode ser perdido de vista em um país como a Colômbia, ou seja, em um país visto por muitos como "de direita". Mas, ao mesmo tempo, a Colômbia é um dos países do mundo em que o maior número de líderes políticos, territoriais e sociais são assassinados.

Para dar um exemplo concreto, no século 20 na Colômbia cinco candidatos à presidência foram assassinados. Todos se delineavam como lideranças populares que buscavam reverter a lógica do poder oligárquico no país. Os casos mais conhecidos são os do esquerdista liberal Jorge Eliécer Gaitán em 1948 e do candidato liberal Luis Carlos Galán em 1989. Mas o candidato presidencial e ex-M-19 Carlos Pizarro (pai do atual representante da Câmara María José Pizarro), e Bernardo Jaramillo e Jaime Pardo da União Patriótica, partido formado a partir da união entre as FARC e o Partido Comunista.

Vários desses líderes foram assassinados na década de 1990, ou seja, ao mesmo tempo em que o Muro de Berlim caiu na Europa e foi anunciado o fim da história, o fim da guerra fria e a entrada indiscutível em uma (neo)democracia. liberal. Ou seja, enquanto isso acontecia, na Colômbia continuavam a massacrar pessoas de esquerda e lideranças sociais e territoriais.

Nesse sentido, Gustavo Petro faz parte desse longo legado de candidatos populares com vocação para disputar o sentido da República com as elites, para desativar os séculos de racismo estrutural e desapropriação territorial das comunidades. O que diferencia Petro dos demais candidatos é que tivemos a sorte de desta vez, ao contrário de outros momentos da história, o candidato popular não ter sido assassinado.

Nicolas Allen

E sua vitória também foi importante para o processo de paz, certo?

Luciana Cadahia

Exatamente, é um marco. O triunfo do Pacto Histórico não pode ser entendido sem relacioná-lo com o processo de paz iniciado pelo governo de centro-direita de Juan Manuel Santos. Seus dois mandatos, apesar de se assemelharem a uma democracia de livre mercado, conseguiram interromper a hegemonia paramilitar de Álvaro Uribe e orientar o país e suas instituições para um processo de paz sem precedentes na história da Colômbia. Entre 2010 e 2018 houve uma negociação muito importante entre a guerrilha, o Estado e diversos atores da sociedade civil. Por quase dez anos o povo colombiano advertiu que a mudança era possível, que era viável acabar com o conflito armado e desatar um dos nós de sua violência sistêmica.

O triunfo de Iván Duque em 2018, como representante do Uribismo, representou um retrocesso em todo esse processo social, político, cultural e econômico para o qual a sociedade colombiana vinha se orientando. Essa ruptura abrupta com o processo de paz e a reativação da lógica da guerra, juntamente com o agravamento do narcotráfico, foi muito traumático para o povo, somado à crise econômica decorrente da pandemia. Tudo isso produziu uma saciedade social que culminou no surto social de 2021.

Visto dessa forma, a vitória de Petro é um avanço e também uma forma de retomar o processo de paz que foi descarrilado pelo Uribismo durante o governo Duque. Gostaria de acrescentar aqui que não é apenas a implementação dos Acordos de Paz que está em jogo; o outro roteiro que já está marcado pela sociedade colombiana é o cumprimento da Constituição de 1991, uma constituição bastante progressista que resultou dos acordos entre o M-19 e o Estado colombiano.

A constituição de 1991 foi um dos primeiros processos constituintes do final do século XX e início do XXI na América Latina. Ao pensar na “maré rosa” e nos constituintes andinos (Venezuela, Equador e Bolívia), a Colômbia é muitas vezes deixada de lado. E acho que isso é um equívoco porque, por um lado, inspirou os constituintes posteriores e, por outro, porque essa constituinte foi fruto de um pacto social muito importante, que incluiu o desmobilizado M-19 (guerrilha urbana a que pertencia Petro). Ou seja, era uma Constituição da qual participava a esquerda desmobilizada e democrática do país.

Hoje, Gustavo Petro tem a oportunidade histórica de fazer valer aquele pacto social imaginado e truncado décadas atrás. A Colômbia, por meio do Pacto Histórico, tem a oportunidade democrática de concretizar tanto os acordos de paz quanto fazer cumprir (e melhorar) sua constituição.

Nicolas Allen

O próprio Petro argumentou que o processo de paz deve ir além da desmobilização dos combatentes armados e abordar as reais causas sociais do conflito violento.

Luciana Cadahia

De fato, se conseguirmos que esses acordos se concretizem, estaremos falando da possibilidade de realizar a reforma agrária. Não esqueçamos que a reforma agrária, a posse da terra, é um dos nós cegos da Colômbia e de toda a América Latina. As elites colombianas assassinaram Gaitán porque ele ia fazer essa reforma. E as guerrilhas nasceram como um movimento camponês para exigir a reforma agrária interrompida pela morte de Gaitan. Ou seja, até certo ponto, tanto a violência quanto a exigência de paz começam e terminam com a questão do acesso à terra.

Nicolas Allen

Você mencionou os protestos de 2021. Até que ponto eles foram decisivos nessas eleições?

Luciana Cadahia

A Colômbia —como Equador, Chile e Haiti— foi um dos epicentros da agitação social latino-americana de 2019. A juventude, formada durante o tempo do santismo que acabei de mencionar, sentiam a lógica da guerra e do fascismo como algo que não coincidia com a promessa de futuro que vinham experimentando. Este foi um elemento desencadeador que também ajudou a dar nova vida à resistência indígena e ao movimento negro, cuja greve cívica de 2014 também devemos ter em mente.

Assim, com a eclosão social de 2019, as resistências sindicalistas, indígenas, camponesas e afro-colombianas coincidiram com as novas resistências da juventude e, posteriormente, dos setores populares e de classe média que se somaram. Tudo isso quebrou o senso comum hegemônico e configurou uma correlação de forças simbólicas e políticas para que a ideia de que alguém como Gustavo Petro pudesse se tornar presidente da Colômbia se tornasse viável. Ele era o único capaz de dar corpo às reivindicações populares expressas nas ruas e, ao mesmo tempo, o único candidato que tinha muita clareza sobre as dívidas históricas do país.

Nicolas Allen

Como Petro se tornou uma figura tão influente e popular na política colombiana?

Luciana Cadahia

Após a destituição fracassada de Gustavo Petro como prefeito progressista de Bogotá (2012-2015) em 2013, sua figura não fez nada além de crescer em nível nacional. Isso porque Petro teve a inteligência e capacidade pedagógica para explicar em que sentido sua destituição foi resultado de uma lógica imune das elites colombianas, um mecanismo de exclusão sistemática sofrido pelas forças progressistas e de esquerda na Colômbia.

Ele soube mostrar que essa forma de operar da direita e das oligarquias não era outra coisa que o coração da guerra e que a verdadeira paz não era tanto "ganhar a guerra" contra a guerrilha, mas sim pagar as dívidas históricas com o povo colombiano. Aos poucos, todo esse discurso progressista começou a se enraizar entre os colombianos, historicamente presos no discurso do inimigo interno a ser combatido. E nas eleições de 2018, Petro e Ángela María Robledo lideraram um projeto político que conseguiu chegar ao segundo turno das eleições. Embora em 2018 tenha perdido para Iván Duque, estima-se que a fraude sistemática na Colômbia possa ter sido um fator importante para torcer pelo triunfo do uribismo.

Nesse sentido, poderíamos dizer que Petro vem configurando uma grande acumulação política, que lhe permitiu encarnar, a partir de 2018, um movimento popular nacional ou multinacional com a Colombia Humana (e agora com o Pacto Histórico). Este pacto foi organizado por diferentes partidos políticos de esquerda (Colômbia Humana, MAIS, União Patriótica, Pólo Democrático, Movimento Eu Sou porque Somos, Poder Cidadão, M-19 desmobilizado, etc.), ao qual se juntaram posteriormente membros do forças políticas mais tradicionais (como o Partido da U, o liberalismo e até atores de direita). Isso criou algo que, em termos gramscianos, poderia ser pensado como um grande pacto político transversal que obrigou seus oponentes a falar em termos de progressismo.

Nicolas Allen

E, no entanto, Petro venceu por uma margem bastante estreita. Isso sugere forte oposição quando ele assumir o cargo em 7 de agosto, certo?

Luciana Cadahia

Claro que, do outro lado da disputa, ainda temos mais de 10 milhões de eleitores que ou são do uribismo ou temem a ideia de que o Pacto Histórico chegue à presidência. Mas seria um erro acreditar que esses eleitores representam uma força homogênea e uma ideologia clara. São votos dispersos, apolíticos em vários casos, e expressam sensibilidades muito diferentes entre si. Muito diferente dos mais de 11 milhões de eleitores do Pacto Histórico, que expressam uma orientação política definida, que poderíamos resumir em dois elementos fundamentais: implementar os acordos de paz e garantir a justiça social e territorial.

Embora possa haver um núcleo ideológico associado ao uribismo que optou por Rodolfo Hernández no segundo turno, também é verdade que a estigmatização que a figura de Petro sofreu ao longo desta década pela mídia hegemônica e pelo establishment político influenciou muito o público a experimentar certos tipos de reservas em relação a esse candidato. Também é interessante ver o mapa de eleitores do país, pois nas áreas mais atingidas pela violência, Sudoeste e Caribe, a votação foi esmagadoramente petrista.

Nicolas Allen

Como a corrida eleitoral foi reduzida a dois candidatos não uribistas, muitos anunciaram o fim do uribismo na política colombiana. O que você acha dessa leitura?

Luciana Cadahia

Entre 2002 e 2010, Álvaro Uribe conseguiu construir uma narco-hegemonia de direita na Colômbia. Ou seja, um regime institucional, político e econômico em torno da economia do narcotráfico. Seu grande triunfo, que ele chamaria de "nação popular de direita", consistiu em afinar os vínculos entre o crime organizado e o Estado (o que tem sido chamado de Narco-Estado) e em gerar, a partir desses vínculos, uma crescente status social que beneficiou muitos setores populares e classes médias.

A história fundadora dessa hegemonia (que tem seus antecedentes conservadores em Julio César Turbay Ayala na década de 1980), e que, portanto, permitiu a construção de uma identidade coletiva e sentimento de pertencimento, foi a luta contra o inimigo interno. E esse inimigo era uma mistura difusa entre a guerrilha, a esquerda, o terrorismo e o narcotráfico (ao qual, paradoxalmente, o próprio Uribe pertencia). Mas, na realidade, foi um mecanismo imunológico — típico das lógicas fascistas — que consistiu em criar mecanismos sociais para exterminar tudo o que se opõe ao uribismo, tanto no plano simbólico e cultural como no plano político e econômico.

Eu colocaria o ano de 2010 como a data em que esse regime começa um colapso lento, mas constante. Juan Manuel Santos, o "suposto" sucessor de Uribe, conquista a presidência e imediatamente se posiciona como adversário do uribismo, abandona o discurso do inimigo interno e assume o processo de paz como bandeira de seus dois mandatos.

A derrota do plebiscito pela paz em 2016 e o ​​triunfo de Iván Duque em 2018 deram um impulso a esse projeto conservador representado por Uribe. Mas o inverso ocorreu em meio a um país que já havia mudado graças ao processo de paz. As novas gerações vivenciaram o retorno do Uribismo como algo estranho às suas biografias (cresceram no santismo) e não estavam dispostas a naturalizar a lógica da guerra. Tudo isso, somado ao surto social e à pandemia, criou as condições para que as forças históricas progressistas se mantivessem no centro do cenário de mudança.

Nicolas Allen

Você acha que a vitória do Petro foi em grande parte devido ao colapso do uribismo?

Luciana Cadahia

Acredito que esse contexto não explica por si só o triunfo de Gustavo Petro. Acho que ele soube driblar muito bem o sentimento antipetrista que a mídia hegemônica e as oligarquias tentaram construir na sociedade colombiana. Petro foi muito paciente, sabia fazer alianças inteligentes e não se envolveu em nenhuma das posições em que queriam colocá-lo. Pelo contrário, ele passou por todas essas "caricaturas" sobre ele com humor graças à força proativa de sua campanha.

E os resultados desta forma de abordar as coisas são óbvios: se em 2018 a sua campanha girou em torno de “explicar” porque não era uma ameaça, mantendo-se assim numa posição “defensiva”, em 2022, pelo contrário, determinou a pauta de quase todos os debates políticos, a ponto de as demais coalizões políticas imitarem seus movimentos e as questões por ele levantadas.

Petro estabeleceu uma votação interna para o pacto definir seu candidato à presidência (operação imitada pelas demais coalizões nacionais que acabou funcionando como primárias para definir os candidatos das diferentes forças que iriam ao primeiro turno), marcou o estilo de debates e apresentou a agenda feminista, educacional, ambiental, financeira e de políticas públicas. Para colocar na linguagem do futebol: ele marcou o campo em que o jogo seria jogado e todos os outros (partidos políticos e mídia) o seguiram, sem estar muito ciente disso.

Nicolas Allen
 
Onde você acha que está o maior potencial de um governo como o do Petro? O que podemos esperar desta nova etapa na Colômbia?

Luciana Cadahia

Parece-me que o triunfo do Pacto Histórico faz da Colômbia o novo líder regional. É o país que consegue articular a América Central, o Caribe, os Andes e o Cone Sul, tanto do lado do Atlântico quanto do lado do Pacífico. E o problema da Amazônia será fundamental em tudo isso.

Ao conectar as diferentes regiões do continente, pode funcionar como uma ponte para várias coisas. Em um nível mais imediato, pode ajudar a controlar a rede regional de narcotráfico. Em outro aspecto, pode desbloquear o conflito com a Venezuela e liderar a transição energética entre o Pacífico e o Atlântico. E, em um sentido mais amplo, pode ajudar a conectar imaginários políticos e culturais que hoje são vividos em fragmentos, mas que na Colômbia se reúnem como parte de uma mesma acumulação regional com diferentes faces. Podemos começar a pensar, por exemplo, que o Caribe (que inclui até os Estados Unidos) e os Andes têm mais vínculos do que podemos imaginar hoje.

Ao mesmo tempo, o progressismo colombiano colocará no centro da cena várias dívidas históricas que o ciclo progressista anterior deixou inacabadas: a transição energética da economia extrativista fóssil para um novo modelo sustentável; o papel central do Caribe e dos afro-americanos na disputa política (além dos setores indígenas, camponeses e urbanos populares, mais presentes no ciclo anterior); um novo pacto hemisférico que não implique nem a liderança dos Estados Unidos nem a rejeição desse país como ator-chave no continente.

Acredito que estamos às portas de um novo pacto continental. E isso requer também uma relação mais democrática com os Estados Unidos, que integre em pé de igualdade os povos indígenas, afro-americanos, latinos e anglo-saxões. México, Colômbia (e possivelmente Brasil) vão exigir uma revisão da correlação de forças Norte-Sul na América. Talvez estes sejam os primeiros sinais do fim da Doutrina Monroe. A partir dessa doutrina, o Caribe e a América Latina ficaram subordinados à política norte-americana, sem capacidade de reverter as decisões econômicas (FMI e diferentes pressões por endividamento) ou as decisões políticas (golpes, Plano Condor etc.) que os Estados Unidos criaram para controlar a região.

Assim, as grandes desigualdades, as interrupções do nosso estado de direito e as políticas de guerra e tráfico de drogas estão intimamente ligadas, por um lado, à implementação do neoliberalismo e, por outro, ao controle dos Estados Unidos sobre o continente. Neste momento, e com o triunfo do progressismo na Colômbia, México, Honduras, Peru, Argentina, Bolívia e Chile (e muito possivelmente no Brasil), estamos em condições de começar a reverter essa política imperial dos Estados Unidos e iniciar uma diálogo continental mais igualitário. Um triunfo do progressismo nos Estados Unidos seria a chave para iniciar o verdadeiro caminho democrático de todo o continente, uma antiga dívida do século XIX.

Nicolas Allen

Petro anunciou recentemente um gabinete que contém uma mistura de figuras políticas mais tradicionais – várias das quais serviram em governos anteriores – e outras que vêm de movimentos sociais. O que essa composição do gabinete nos diz?

Luciana Cadahia

Parece-me que a eleição do seu gabinete foi muito inteligente porque às vezes há uma certa crença ingênua de que mudanças reais só acontecem colocando pessoas que nunca ocuparam cargos no Estado ou que não têm experiência em políticas públicas. E isso é um grande erro. Nesse sentido, acho que o Petro conseguiu um equilíbrio muito oportuno entre pessoas com grande experiência em lugares estratégicos (como José Antonio Ocampo no Ministério da Economia ou Álvaro Leyva Durán no Ministério das Relações Exteriores) e outras pessoas com muito peso simbólico em cargos relacionados à unidade multinacional (como Patricia Ariza na Cultura ou Francia Márquez na Igualdade).

Por fim, a nomeação de Susana Muhamad em Meio Ambiente é fundamental, pois ela é uma ativista ambiental com experiência no Estado e com ideias muito claras sobre como começar a caminhar para outro tipo de relação com a natureza. Esse equilíbrio garantirá a governabilidade em meio a um cenário em que a direita internacional buscará desestabilizar o Pacto Histórico pela mídia ou pelos tribunais.

Nicolas Allen

Entre os principais desafios que Petro pode enfrentar nos primeiros meses de mandato, lidar com a direita deve estar entre os primeiros, certo?

Luciana Cadahia

Gustavo Petro e Francia Márquez têm muitos desafios agora mesmo na Colômbia. A primeira coisa que o Pacto Histórico deve garantir é a governabilidade. Na América Latina, as oligarquias costumam ser ferozes e é muito difícil para elas abrir mão de alguns de seus privilégios. Elas estão dispostos a aplicar todos os meios midiáticos, políticos e econômicos para neutralizar os governos populares, e ainda mais em um país como a Colômbia, onde todos esses elementos se juntam às alianças de certas elites com o crime organizado.

No entanto, e diferentemente de outros países progressistas, a vantagem de Petro é que essa governabilidade pode ser construída a partir da narrativa dos Acordos de Paz. Este é o significante sobre o qual se podem organizar as mudanças estruturais de que a Colômbia necessita. E digo que é uma grande vantagem porque permite colocar na mesa uma questão que antecede o líder popular e que, portanto, não será vista pelos outros como algo da vontade pessoal de um líder. É um roteiro que já foi acordado e sobre o qual as diferentes partes têm que se sentar para se materializar.

Escolher Alejandro Gaviria, o Ministro da Educação, para liderar este grande acordo nacional me pareceu uma decisão muito inteligente, porque ele estende a mão para aqueles que assumem pertencer a um progressismo mais moderado que o próprio Gaviria expressa.

A outra grande frente em aberto, e mais imediata, é o déficit fiscal que a Colômbia sofre neste momento e a reforma tributária que está pendente no país. Ou seja, sobre quem vão recair os impostos: nas elites ou nos setores populares? A decisão do Petro é clara: sobre quem tem mais. Mas a questão é se ele pode fazer isso. Em países como Equador ou Argentina quase destituíram seus presidentes por decisões semelhantes.

Depois vêm os desafios estruturais: educação, saúde, reconhecimento de identidades historicamente excluídas e reforma agrária. Mas acredito que todos eles poderão se concretizar com a materialização dos Acordos de Paz. Por fim, vem o desafio epocal, global e mais difícil de implementar: a transição de uma economia fóssil para uma economia sustentável. Esperamos que Petro possa abrir um debate continental sobre a necessidade de um novo pacto ambiental e ajudar a materializar os primeiros passos nessa direção.

Acredito que os primeiros passos nessa direção foram dados por Rafael Correa durante seus dois mandatos no Equador, com seu compromisso de arrecadar um imposto global para preservar a Amazônia e também com seu compromisso com a mudança da matriz produtiva por meio de uma articulação muito inteligente entre educação, novas tecnologias e práticas ancestrais. As reformas educacionais no Equador foram impressionantes. Eu mesmo fiz parte desse processo liderado pelo então Secretário do Senescyt (equivalente ao Ministro da Educação) René Ramírez. Seria interessante para Petro pegar esse legado para a Colômbia.

Nicolas Allen

Que tipo de força política Petro terá de recorrer para enfrentar seus adversários? Que canais Petro tem para dialogar e mobilizar a sociedade ao seu lado?

Luciana Cadahia

Desativar a extrema direita passa pela construção de um senso comum alternativo. Ou seja, por colocar no centro do debate nacional uma agenda diferente da retórica da guerra e do inimigo interno. E, para isso, é preciso contar com todos os atores políticos e empresariais favoráveis ​​ao processo de paz. Mas, ao mesmo tempo, é preciso abrir o jogo para movimentos sociais e ativistas. Ou seja, que sejam esses setores populares que também estão moldando os debates públicos.

Acredito que na Colômbia há uma dívida histórica com esses setores e seria muito importante ver como os movimentos coletivos indígenas, afro-colombianos, feministas, sindicais e LGBTIQ+ tomam a palavra pública e orientam os debates. E seria ainda mais interessante vê-los nas instituições republicanas, mudando as narrativas e as correlações de poder no país. Precisamos de muitos Márquez e Petro no Estado colombiano. Petro acaba de abrir uma porta para o futuro para que os povos afro-colombianos, indígenas, camponeses e feministas possam governar a Colômbia.

E também acaba de abrir uma porta para deixar de pensar na cultura e na arte como um espaço conservador ou um conjunto de clichês. A ligação entre literatura e poder causou muito dano na Colômbia, a ponto de ainda não ter sido possível romper o que Ángel Rama, depois de morar em Bogotá, chamou de "cidade letrada": a ideia de que a cultura na América Latina é um instrumento de dominação; uma combinação perversa, irradiada de Bogotá, que destruiu e excluiu as forças mais vivas e vanguardistas do pensamento e da cultura.

Hoje as figuras hegemônicas da cultura, literatura ou academia (embora sempre haja exceções) são uma estranha mistura entre decoração de interiores, neoliberalismo e entretenimento. O melhor da arte, literatura e pensamento ainda está para ser descoberto na Colômbia. Estão ali, à vista de todos, mais vivos do que nunca, mas sem se localizarem no lugar a que pertencem, ou seja, naquele lugar que gera as sinergias necessárias entre as pessoas e a cultura. Ou seja, uma circulação viva que funciona como força transformadora para a Colômbia e não como um clichê que acaba por folclorizar tudo e reafirmar as forças mais retrógradas da sociedade.

Nicolas Allen

A vitória de Petro e Francia veio após o triunfo de Gabriel Boric no Chile e a meses de uma eleição em que Lula é o favorito. Como você caracterizaria o atual momento político na América Latina, que vários já descrevem como uma segunda onda progressiva ou "maré rosa"?

Luciana Cadahia

Também acredito que é hora de falar sobre dois ciclos de progressismo na América Latina e no Caribe. O importante, primeiro, é defini-lo. A primeira abre com o triunfo de Hugo Chávez e o projeto de um socialismo do século XXI em 1999. A segunda é inaugurada por Gabriel Boric em 2021 e vem reforçar o projeto encarnado por Gustavo Petro e Francia Márquez. No meio, a ascensão da extrema direita e a fusão dos dois ciclos combinam-se com triunfos como o de AMLO no México, Pedro Castillo no Peru, Xiomara Castro em Honduras e a recuperação do poder pelo MAS na Bolívia e pela Frente de Todos na Argentina. Assim, temos um primeiro ciclo progressista que vai de 1999-2016, seguido de um impasse entre 2017-2020, e depois um segundo ciclo que se inicia em 2021.

A primeira caracterizou-se por limitar as políticas do FMI e a interferência dos Estados Unidos, a consolidação da integração regional e a expansão das políticas redistributivas e reparadoras do Estado para os setores populares, o movimento indígena e as classes médias. Os pontos cegos que este segundo ciclo pode começar a trabalhar giram em torno do extrativismo, das demandas identitárias não resolvidas e da falta de imaginação —como bloco continental, não apenas regional, ou seja, concentrado na América do Sul— para construir processos de integração sólidos e duradouros.

Colaboradora

Luciana Cadahia é filósofa, coordenadora da rede Populismo, Republicanismo y Crisis Global e membro do Centro de Pensamiento Colombia Humana (CPCH).

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