24 de julho de 2022

2001 e o problema da hegemonia na Argentina

A rebelião de 2001 foi um ponto de virada na história argentina. Mas o significado daqueles dias — a irrupção de um novo capítulo progressista? O ponto alto de uma crise estrutural das elites nacionais? – é um debate que pesa muito na política atual.

Leonardo Frieiro

Jacobin

O significado da crise de 2001 é um debate vivo com muitas implicações para o futuro da Argentina (Perfil/Pablo Cuarterolo).

Em 1972, o presidente norte-americano Richard Nixon visitou a República Popular da China, um evento histórico que marcou uma ruptura nas relações internacionais no contexto da Guerra Fria. Durante aquela semana de fevereiro, o então secretário de Estado Henry Kissinger iniciou uma rara relação de amizade com Zhou Enlai, então primeiro-ministro. As longas conversas, algumas delas muito interessantes, entre os dois foram cuidadosamente relatadas por Kissinger em seu livro On China.

A anedota mais marcante do encontro —além das fotos entre Nixon e Mao Tsé-tung— ocorreu quando Kissinger, na tentativa de analisar a difusão das ideias ocidentais e o sincretismo do confucionismo com o marxismo, perguntou a Enlai o que ele achava ser a influência do Revolução de 1789. Com uma mistura de temperança socialista e sabedoria ancestral, Enlai respondeu "é cedo para dizer".

Em La Hegemonía Imposible (Capital Intelectual, 2022), Fernando Rosso propõe pensar a rebelião argentina de 2001 como ponto de partida para uma análise mais ampla da história recente do país. Ele se pergunta —e nos pergunta— se é cedo demais para dar uma opinião contundente sobre os significados de uma das mais importantes rebeliões latino-americanas de nosso tempo ou se, pelo contrário, já é tarde demais, e só podemos analisar a rebelião de 2001 como peça de museu, esgotada, engolida e petrificada em sua própria temporalidade histórica. Será o 2001 argentino uma "terrível sombra" que recai sobre quem quer ocupar o trono abandonado pelo então presidente De la Rúa? Ou um mero lembrete para as classes dominantes de que às vezes vale a pena “parar la mano” e que, no final das contas, a paz social sai bem barata?

Na verdade, a anedota original entre Kissinger e Enlai é falsa, pelo menos no sentido em que era conhecida mundialmente e na forma como está registrada no livro. Houve um mal-entendido devido à diversidade linguística do encontro. Kissinger perguntou sobre a Revolução Francesa, Enlai respondeu sobre o maio francês de 1968. O tradutor da missão diplomática de Nixon, Chas Freeman, confirmou em 2011. Por que ele não disse isso antes? Parece que o mal-entendido era bom demais para ser corrigido. Como destacou Enzo Traverso em O Passado, instruções de uso, essa memória está sempre conjugada no presente, e é neste caso que a questão que Rosso levanta é, sem dúvida, correta.

Vinte anos após os acontecimentos de dezembro de 2001, que de alguma forma marcaram toda a história contemporânea da Argentina, já passou água suficiente sob a ponte. Nesse sentido, o autor nos propõe inserir 2001 em uma historicidade da Argentina lida a partir das incapacidades das classes dominantes para se tornarem líderes, ou seja, como um episódio particularmente turbulento de uma longa e crônica crise de hegemonia. Todo o livro está estruturado em torno desse conceito, o de hegemonia, e é aí que reside sua contribuição mais relevante para a análise da Argentina de hoje.

2001 e a "palavra H"

O que foi 2001? Segundo o historiador Colin Lewis,

A crise argentina de 2001-02 representa um ponto de virada na história nacional e regional. A magnitude do colapso econômico, juntamente com uma crise de legitimidade política, deu origem ao slogan "¡Que se vayan todos!" popularizada pelos manifestantes (...) quando convergiram as revoltas sociais que ocorreram em toda a Argentina. (...) as respostas à crise e ao processo de recuperação podem e devem ser analisadas e interpretadas através de inúmeras lentes para captar adequadamente o caráter das principais dinâmicas que as integram. Mas, ao mesmo tempo, os períodos de crise e pós-crise revelam uma surpreendente continuidade com o panorama pré-crise. A forma como o Estado respondeu ao movimento de protesto (...) foi um caleidoscópio complexo que combinava elementos de mudança e elementos de continuidade.

A rebelião de dezembro de 2001 foi um processo de condensação da rebelião social que começou na periferia da Argentina em 1993, com o Santiagazo, uma revolta popular que terminou na tomada da casa do governo da província de Santiago del Estero, o poder judiciário e a legislatura provincial, que se estendeu às vilas onde se realizaram durante vários dias bloqueios, acessos e acampamentos, liderada por alianças sociais que incluíam trabalhadores, desempregados, profissionais liberais e alguns pequenos proprietários agrícolas e industriais.

Em dezembro, o país era um barril de pólvora: num mesmo dia, 13, coincidiu uma grande greve geral convocada por todas as centrais sindicais, um cacerolazo convocado por organizações empresariais de médio porte da cidade de Buenos Aires, quadras de rua, vias e acessos a grandes cidades do interior do país (como em Tucumán e Jujuy), combate de rua (Neuquén), pedras contra instituições bancárias e de crédito (Córdoba) e até o motim e a tomada da sede de um governo municipal (Pergaminho, província de Buenos Aires).

O golpe final ao regime foi dado com a proliferação de saques a mercearias nos principais centros urbanos do país, ou seja, quando uma camada empobrecida da sociedade ignorou a propriedade privada dos produtos de subsistência. Nos dias 19 e 20 de dezembro, todas as formas anteriores de luta convergiram em um episódio insurrecional que ocorreu espontaneamente quando o presidente decretou estado de sítio e convocou as Forças Armadas dos seus quartéis, que terminou com a ocupação do centro de Buenos Aires, uma subsequente batalha campal entre as massas auto-convocadas contra a Polícia e, finalmente, com a fuga do presidente.

Das várias maneiras pelas quais podemos pensar o que aconteceu em dezembro de 2001 na sociedade argentina, Rosso propõe uma em particular: como um episódio disruptivo que transformou a lógica da relação entre as classes sociais no país e, por extensão, as possibilidades da direção hegemônica. Visto assim, 2001 não aparece como ponto de chegada nem como ponto de partida, mas sim como um acontecimento que nos permite traçar um corte normativo, tão discricionário quanto evidente, para pensar os elementos que ainda carregamos do século anterior.

Rosso se propõe a perguntar por que a Argentina tem sido o país do "empate" hegemônico por excelência. Revisita os esforços teóricos feitos pela tradição dos estudos gramscianos na Argentina para explicar a incapacidade dos setores dominantes de se tornarem líderes e ordenar um esquema politicamente sustentável para a consolidação do capitalismo como sistema político, social e moral.

Nessa chave de leitura, grande parte do período pode ser lido como uma sucessão de tentativas fracassadas das classes dominantes de consolidar sua dominação política. Golpe de Estado após golpe de Estado, a democracia liberal foi a primeira vítima desse empate entre as forças sociais. A densidade da sociedade civil e o poder da classe trabalhadora impediram que o projeto da elite alcançasse a estabilidade. Essa peculiaridade orgânica da sociedade argentina a diferenciou de boa parte do continente e permitiu a uma série de intelectuais marxistas reler a obra de Antonio Gramsci para "traduzir" sua teoria da hegemonia para o castelhano rioplatense.

Se nos debruçarmos sobre isso, torna-se necessário mencionar que a ditadura militar de 1976 foi a última das tentativas das classes dominantes de romper o "empate", não mais pela liderança, mas pelo desmantelamento da classe trabalhadora através do terrorismo de Estado, em uma contexto de um boom no ciclo de oposição popular à dominação capitalista em geral.

O resultado final foi ambíguo: se conseguiu desmantelar as diferentes iniciativas anticapitalistas presentes tanto na esquerda quanto no peronismo revolucionário, desativando a ameaça mais frontal às classes dominantes, o outro lado foi que a busca por acabar com o "empate“pela repressão aberta levou ao esgotamento histórico da agência política das Forças Armadas. Assim, o verdadeiro início da democratização argentina em 1983 coincidiu com a queda de qualquer paradigma alternativo liderado pelas classes subalternas.

A partir desse momento, o "empate" continuou, mas em termos diferentes. Não é por acaso que os dois primeiros governos democráticos da Argentina pós-ditadura terminaram do jeito que terminaram: com profundas crises econômicas e com o capital político dos presidentes e dos partidos no poder despedaçados.

Raúl Alfonsín, que assumiu o governo com a promessa de complementar os direitos democráticos recentemente conquistados com direitos econômicos e sociais, enfrentou uma dívida externa insuportável e uma crise fiscal gerada conscientemente pelos últimos meses do governo militar. Sem a vontade, a intenção ou a certeza de enfrentar o endividamento ilegítimo de qualquer ponto de vista, o peso da dívida destruiu sucessivamente os planos do governante para estabilizar uma economia que já enfrentava uma espiral inflacionária (em dezembro de 1983, ano em que o presidente radical tomou posse, a inflação era superior a 340%).

Em 1984, Alfonsín declarou uma "economia de guerra" e lançou o plano de estabilização mais ambicioso de seu governo (o Plano Austral), que consistia em uma política de choque antiinflacionário cujo fracasso terminou na medida desesperada de congelamento de preços e salários em fevereiro de 1986, quando o desemprego e o subemprego atingiram 12% da população economicamente ativa, um número recorde para a Argentina naquele momento.

Diante da queda do valor dos salários, o conflito trabalhista aumentou: houve treze greves gerais convocadas pela Confederação Geral do Trabalho, cujas reivindicações centrais eram a recomposição do valor dos salários e a renegociação da dívida externa. A derrota nas eleições de meio de mandato deixou Alfonsín nu, sem capacidade de negociar com os sindicatos, com a oposição ou com os grandes atores financeiros com os quais a Argentina estava em negociação permanente para evitar o calote da dívida. Isolado e sem muita capacidade de se reinventar, tentou uma última tentativa de estabilização da economia em 1988 —Plano Primavera—, que terminou em completo colapso social: as hiperinflações de 1989 e 1990.

Editorial Capital Intelectual

A queda de Alfonsín e sua entrega antecipada do poder ao presidente eleito Carlos Menem após uma onda geral de saques e com quatorze mortes nas ruas, correspondeu à desarticulação geral das relações sociais devido ao desaparecimento do dinheiro (com 3.000% de inflação em 1989 e com uma em cada duas pessoas caindo abaixo da linha da pobreza) e também significou o colapso da União Cívica Radical como opção de poder. Em 1995, esse processo culminou no colapso do bipartidarismo argentino, quando a FREPASO – uma coalizão ideologicamente diversa de socialistas moderados, progressistas e peronistas anti-Menem – ultrapassou a UCR (que mal obteve 16% dos votos) e se tornou o principal partido da oposição.

Em 1999, a FREPASO e a UCR selaram a primeira aliança política entre peronistas e radicais na história argentina, episódio que pode ser pensado como o primeiro grande sinal de alarme para a estabilidade das identidades ideológicas no país e, portanto, para sua capacidade de construção hegemônica. Sem mudanças no modelo econômico herdado de Menem, a sociedade argentina chegou a dezembro de 2001 com um enorme acúmulo de rebeldia, mas sem um projeto alternativo. Como nos diz Rosso, parafraseando o revolucionário peronista John William Cooke, 2001 tornou-se assim "no fato maldito" do país normal... mas não do país burguês.

Assim, enquanto o vínculo hegemônico anterior à ditadura de 1976 se baseava na pressão constante da classe trabalhadora para impor seu programa político, a rebelião de 2001 consagrou uma espécie de "laço negativo", onde os setores majoritários não contavam com nenhuma outra ferramenta a não ser a ação direta esporádica, que já havia entrado em processo de refluxo. A proliferação de assembleias populares e o aumento nas pesquisas de algumas organizações de esquerda desapareceram tão rapidamente quanto surgiram, somando-se a um forte período de divisão no movimento sindical organizado. A principal proclamação coletiva da insurreição de 2001, "que se vayan todos", tinha um caráter "contrapolítico" - algo que Rosso se propõe a discutir - tão radical quanto poderia ser no estado emaciado da sociedade argentina.

Mas 2001 gerou uma profunda transformação na mecânica da dominação política: com o obelisco pouco visível pela fumaça dos bairros e com a Plaza de Mayo sitiada, o "empate hegemônico" foi transmutado no que Rosso nos apresenta como um hegemonia impossível. Assim, com um tom que mistura a crônica com a teoria gramsciana, Rosso dedica o restante dos capítulos de seu livro a rever as razões do fracasso dos empreendimentos políticos do kirchnerismo, do macrismo e do pan-peronismo que – mal ou mal – presididos por Alberto Fernández, quem enfrentou o desafio de ocupar o governo estatal, mas com uma fatia real de poder cada vez mais estreita.

Com exceção do primeiro período do kirchnerismo —que, junto com o menemismo, foi para Rosso o único momento relativamente hegemônico da experiência política recente—, os resultados não foram bons, e as capacidades de captura hegemônica dos governos parecem cada vez mais fugazes. Pior ainda, cada tentativa de construir hegemonia é menos bem sucedida que a anterior, numa verdadeira espiral de declínio político. Rosso aponta algo importante: os dois únicos momentos hegemônicos recentes (o menemismo e o primeiro kirchnerismo) precisaram de um ciclo externo e de um clima de época para seu sucesso limitado. Esse argumento é interessante, pois sugere o modo como a hegemonia se espalha para as periferias do capitalismo global e também a fragilidade estrutural desse tipo de "hegemonia soft".

Afirmar que a Argentina está imersa em uma hegemonia impossível significa, nos diz Rosso, a existência de uma espécie de empate prolongado: não há coalizão política que não esbarre em suas próprias contradições. Como sustenta ao longo do livro, o país da hegemonia impossível é aquele em que não se pode ser mais neoliberal ou mais populista do que permite a relação de forças. Os dois últimos governos são a expressão mais completa disso, além de refletirem as tentativas desesperadas da classe política de suplantar sua incapacidade hegemônica tentando soluções "de cima": o peronismo tentou e os resultados estão à vista, e agora as direitas estão tentando tentar algo semelhante com vistas às eleições de 2023.

À sombra do obelisco

Se voltarmos às primeiras linhas deste texto, podemos responder que sim, estamos hoje suficientemente perto e necessariamente suficientemente longe para começar a fazer da insurreição de 2001 um fato terreno (e, consequentemente, passível de análise). 2001 aterrorizou os setores dominantes, disso não há dúvida. Esses setores aprenderam que sua união é o bem mais precioso que possuem. A última reunião da Associação Empresarial Argentina, a elite empresarial argentina que hoje trava uma luta imaginária contra o comunismo, é um teste perfeito de como os setores do poder econômico conseguiram digerir o "susto" que sofreram em 2001.

Com isso pretendemos esclarecer a tese de Rosso que propõe pensar 2001 como uma "terrível sombra". Que agora os setores dominantes retornem com pressão frontal sobre os direitos coletivos dos trabalhadores com um programa unificado —reforma trabalhista, previdenciária e tributária baseado no programa político da elite financeira e agroexportadora— embora apresentado em várias velocidades, é um exemplo de quão longe ficou o estrondo das panelas.

Tirando algumas conclusões do texto, ainda há uma influência palpável dos acontecimentos de 2001: o crescente fosso entre as reivindicações de hegemonia da classe dominante e a resposta da sociedade, cuja última face é a explosão de um novo processo de ruptura nas identidades políticas coletivas e de insatisfação partidária que, no momento, tem a extrema direita como principal beneficiária.

Nas primeiras páginas de seu texto, Rosso antecipa um livro militante de reflexões provisórias. Entrega ambas as promessas. A hegemonia impossível é tão provisória quanto a insurreição de 2001 permite que seja, tanto por sua proximidade quanto por sua singularidade, e tão militante quanto a realidade argentina o garante. O livro merece ser debatido, respondido e refutado. Como Maquiavel afirmou sobre sua obra, não é um livro de conjuntura, mas escrito sobre a conjuntura, ou seja, inserido ativamente em um determinado processo histórico, no aqui e agora.

Colaborador

Cientista político (UBA), Mestre em Estudos Internacionais (UTDT) e bolsista de doutorado do CONICET na área de teoria política. Fundador da Revista Espartaco.

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