16 de julho de 2022

Luta de classes no Equador

A história recente do Equador sugere que as classes dominantes, antes dispersas e em permanente conflito, conseguiram se articular em um novo bloco de poder. A possibilidade de acabar com as políticas neoliberais de Lasso depende de que os setores populares conseguirem construir um bloco unificado capaz de se opor a ele.

David Chávez

Jacobin


Algumas imagens podem bem resumir a natureza do conflito social vivido durante a Greve Nacional convocada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e outras organizações sociais.

Uma delas é a do vice-presidente Alfredo Borrero, personagem totalmente ausente do governo, entregando pacotes de alimentos doados pelo grupo empresarial Eljuri —um dos mais poderosos do país— a um grupo de soldados que guardavam o Palácio do Governo. Do outro lado do conflito, a imagem recorrente nas ruas tomada pela insurreição popular era a de pessoas de setores populares dividindo comida ou água com os manifestantes em meio ao protesto. Cada classe social apoiando o seu lado. Não é sempre que a luta de classes pode ser representada graficamente com tanta clareza.

O movimento indígena propôs uma plataforma de dez pontos, incluindo redução dos preços dos combustíveis, alívio da dívida no setor financeiro, controle das atividades extrativistas em territórios indígenas e áreas sensíveis, direitos trabalhistas, direitos coletivos, melhoria das condições de saúde e educação, medidas contra a crise de segurança no país, controle de preços, entre outros. Em suma, um conjunto de medidas totalmente contrárias ao programa neoliberal aplicado pelo Governo de Guillermo Lasso.

A Greve Nacional durou dezoito dias, envolveu uma enorme mobilização de organizações indígenas, foi acompanhada por uma revolta nos bairros populares de Quito e por diferentes grupos em todo o país que promoveram marchas e bloqueios de estradas em pelo menos quatorze das vinte e quatro províncias do país.

As consequências em termos de direitos humanos foram dramáticas. De acordo com a Aliança para os Direitos Humanos, até 29 de junho havia seis mortes (cinco manifestantes e um soldado), 335 pessoas feridas e 155 detidos. Uma exibição incomum de violência estatal na história do país, apenas comparável à da Greve Nacional de outubro de 2019.

Enfim, foi um intenso confronto de classes que terminou com dois eventos decisivos: por um lado, um acordo em que o governo fez concessões limitadas sobre a plataforma proposta pelo movimento indígena; por outra, um processo de aplicação do artigo 130 da Constituição que visava a destituição do Presidente e a convocação de novas eleições para o Executivo e o Legislativo que não prosperou, mas alcançou 80 votos a favor do total de 137 da Assembleia Nacional.

O saldo é duplo. Por um lado, temos um governo que conseguiu se manter de pé após a greve mais longa (e provavelmente a mais massiva) das últimas décadas e uma tentativa de destituí-lo constitucionalmente. Por outro lado, foi possível articular uma coalizão dos setores populares, liderada pela CONAIE, que conseguiu algumas medidas de contenção contra a investida neoliberal e uniu as expressões de repúdio ao neoliberalismo refletidas na exigência de cumprimento da plataforma da Greve e no pedido de saída do governo Lasso.

Um paradoxo significativo permeia as insurreições populares de outubro de 2019 e junho de 2022. Essas são as maiores mobilizações das últimas décadas, confrontando dois dos governos com maior rejeição popular, que, no entanto, acabaram superando as crises ao se manterem no poder e sem alterar significativamente seu programa neoliberal.

Na tradição política recente do Equador isso é totalmente desconcertante. Da década de 1990 à primeira metade dos anos 2000, grandes mobilizações populares em meio a crises políticas encontraram uma saída no impeachment do presidente. No período de maior instabilidade, sete presidentes se sucederam em dez anos. Por outro lado, o conflito social, nesse contexto de instabilidade política, nunca enfrentou uma resposta repressiva sistemática: as quedas presidenciais ocorreram sem mortos, feridos ou presos políticos. O que foi que mudou?

O surgimento de um bloco de poder

A ambiguidade no balanço da Greve Nacional se deve ao fato de o Equador estar passando por uma transformação sem precedentes na configuração do Estado que modifica, por sua vez, a dinâmica do conflito social. O Governo de Lenín Moreno testemunhou a constituição de um sólido bloco de poder: um pacto de setores dominantes de natureza estrutural e estratégica.

Esses tipos de acordos foram quase inexistentes na história política equatoriana. As alianças entre as elites políticas e econômicas têm sido historicamente altamente táticas e circunstanciais; suas tensões eram permanentes e o equilíbrio havia sido alcançado graças a uma espécie de clientelismo horizontal que configurava um "arquipélago estatal" em que cada facção dominante controlava um segmento de poder isolado do resto.

Assim, o Estado capitalista equatoriano se caracterizou pela debilidade estrutural de seu poder centralizado e pela dispersão dos poderes localizados. Isso se traduziu em uma espécie de crise crônica de hegemonia, o que tornou muito difícil observar algo semelhante a uma coesão estratégica da classe dominante.

Hoje a história é diferente. Este novo bloco de poder evidencia coesão e uma liderança política consistente que reúne a grande burguesia, os partidos políticos de direita, as forças repressivas do Estado e certas burocracias estatais poderosas (setores financeiro, diplomático e energético), a embaixada dos Estados Unidos e – claro – a mídia tradicional e alternativa de direita. As brigas entre facções persistem, mas quando o que está em perigo é o pacto de dominação, essas disputas são suprimidas e todas as facções cerram fileiras em torno do Governo. Foi o que aconteceu nas duas greves nacionais.

Tal grau de coesão social e política permitiu que os dois últimos governos aplicassem o programa neoliberal mais agressivo de nossa história, com graves consequências para os setores populares e médios que se conhece. Mas esse processo foi acompanhado por uma deterioração sistemática das condições democráticas, que abriu as portas para uma concentração sem precedentes do poder do Estado nas mãos do bloco no poder. Como consequência, a única resposta possível ao conflito social desencadeado pela execução de seu programa econômico é o autoritarismo e a implantação de todos os tipos de mecanismos antidemocráticos.

Esse bloco de poder também se consolidou no plano ideológico. Em uma parcela importante dos segmentos médios urbanos —em correspondência com o que bem poderia ser uma tendência global— consolidou-se uma identidade política reacionária, que não é exagero qualificar como neofascista.

Durante a Greve Nacional, essa ideologia se manifestou no racismo e no classismo exacerbados, que encontraram respaldo em um surpreendente consenso neofascista entre o governo e a mídia, que incitou esses setores a uma resposta violenta ao protesto. Em Quito e Ambato esta campanha foi bem sucedida e várias pessoas saíram armadas para atirar nos manifestantes; em um caso, eles feriram um.

Em tempos de fragilidade estrutural do Estado capitalista equatoriano, a gestão do conflito teve como um de seus mecanismos centrais o "clientelismo vertical", que regulava a relação com as classes exploradas e os setores populares em geral. Esses mecanismos permitiram tanto conter a luta de classes quanto canalizá-la, permitindo avanços democráticos sob a pressão da luta social. Boa parte da capacidade de diálogo do movimento indígena, e da CONAIE em particular, parece dever-se à sua grande capacidade estratégica de decifrar o antigo Estado.

Nas novas condições, esse clientelismo vertical persiste, mas de forma muito restrita e totalmente controlada pelo bloco no poder. Isso se traduz em uma pressão esmagadora sobre as classes dominadas sem válvulas de escape. A pouca importância que o governo Lasso deu às demandas do movimento indígena nos "diálogos" desenvolvidos ao longo de seu primeiro ano de mandato, juntamente com a atitude mesquinha em relação à plataforma de dez pontos da Greve Nacional, são uma expressão clara de como a configuração o Estado mudou.

Um bloco popular?

Do lado das classes trabalhadoras racializadas, a CONAIE mais uma vez demonstrou sua enorme capacidade de organização e mobilização. A Greve Nacional deixou claro que alcançou grande coesão interna com base na "democracia comunitária" que articula sua estrutura organizacional. Tanto Leonidas Iza, presidente da CONAIE, quanto o restante da liderança, tiveram que negociar intensamente com setores de sua base organizacional a dinâmica da mobilização e os termos do acordo com o governo.

A CONAIE também demonstrou no conflito sua capacidade de unir o movimento indígena. Sua ação coletiva reuniu outras organizações, como a Confederación Nacional de Organizaciones Campesinas Indígenas y Negras (FENOCIN) e o Consejo de Pueblos y Organizaciones Indígenas Evangélicos (FEINE), ou seja, o conjunto das mais importantes organizações indígenas.

Conseguiu tornar-se articulador de um conjunto de setores organizados e desorganizados do campo popular. Setores com maiores vínculos diretos, como o movimento feminista e universitários, além de outros que aderiram à Greve Nacional de forma espontânea e não orgânica (como é o caso da população dos bairros populares de Quito e dos setores mobilizados em outras cidades do país como Cuenca e Guayaquil) se juntaram às suas iniciativas.

Além disso, num contexto de asfixia das instituições democráticas, a insurreição popular encontrou eco na Assembleia Nacional, na qual o bloco parlamentar do correismo (UNES) promoveu a ativação do mecanismo constitucional que permite o avanço das eleições. Com isso —depois de vários devaneios da UNES para chegar a um acordo prebendário com o bloco no poder, política que fortaleceu uma tendência de direita dentro desse partido—, o correismo voltou seu olhar para as demandas populares e para seu caráter de representante político dessas demandas.

Essa postura sustentou a posição da CONAIE, fazendo com que —apesar de muitos ressentimentos— o bloco Pachakutik, o partido do movimento indígena, aderisse à iniciativa UNES, que finalmente alcançou 80 votos, pouco menos de 12 do que os votos necessários para remover Lasso e convocar novas eleições.

Pode-se dizer, então, que a CONAIE conseguiu unir a insurreição popular e dar-lhe direção política. Isso parece ser porque sua posição atual é fortemente baseada na política de classe. Historicamente, a CONAIE combinou dimensões étnicas e de classe em suas demandas, enfatizando uma ou outra. Nesta ocasião, as demandas são principalmente demandas de classe, como fica claramente evidenciado pela plataforma de dez pontos. Demandas das classes trabalhadoras empobrecidas e racializadas em geral, e não apenas dos povos e nacionalidades indígenas.

Isso não se deve exclusivamente a uma lógica interna da CONAIE, mas é produto do contexto político dos últimos anos, que traduziu as práticas e representações de classe dissipadas no cotidiano para o âmbito da política, produto do surgimento do correismo e da politização a que deu origem.

Durante a greve, a política de classe foi condensada de tal forma que dividiu as posições dentro de vários grupos em dois, a começar pelo próprio movimento indígena, dadas as tensões internas entre os legisladores indígenas de Pachakutik ou entre alguns dos ex-líderes deste partido. Algo semelhante aconteceu entre ativistas do movimento feminista e LGTQBI+, bem como entre o campo intelectual.

Em suma, o movimento articulado em torno da Greve Nacional e das iniciativas parlamentares que a acompanhou é uma complexa coalizão de classes que reúne vários grupos sociais: trabalhadores assalariados de baixa renda ou precários, trabalhadores autônomos e uma pequena burguesia emergente com forte raízes plebeias. Essa diversidade está presente no próprio movimento indígena e está na base de uma complexa configuração das atuais relações campo-cidade.

Esse olhar esquemático sobre a base social da rebelião popular também nos permite distinguir dois setores nesse "baú de alfaiate" que é a classe média: um mais conservador e tradicional (que muitas vezes corresponde aos grupos de renda mais alta) e outro mais plebeu e "jacobino" (de menor renda).

No entanto, esse grupo dos de baixo está longe de constituir um "bloco popular" propriamente dito. Sua unidade ainda está longe de adquirir um caráter estratégico. E um dos fatores que impede a constituição de tal bloco é a fratura existente entre o movimento indígena e o correismo, que parece continuar a ordenar a política de ambos os setores.

Ganhar perdendo ou perder ganhando

As interpretações sobre o significado da Greve Nacional são conflitantes. Esquematicamente, elas podem ser divididos em dois: aqueles que veem a greve como uma vitória da CONAIE e da coalizão das classes trabalhadoras que ela reuniu em torno dela, e aquelas que sustentam que é mais uma derrota, e que é o governo que sai mais forte. Ambas as posições têm razões objetivas para seu balanço. Isso porque, na realidade, eles variam de acordo com o ponto de vista a partir desde o qual é julgado.

Assim, ao nível do estrito exercício do poder de classe, a Greve Nacional esbarrou na solidez do bloco de poder constituído durante estes anos. Autoritarismo e repressão, mais do que medidas desesperadas, foram demonstrações de força, expressões de um poder que não precisa da democracia para prevalecer. E é nesse contexto que as concessões limitadas do governo à já limitada plataforma da CONAIE —um conjunto de medidas muito básicas para conter minimamente o neoliberalismo— podem ser vistas como um resultado escasso em comparação com a magnitude da insurreição popular.

Em termos de seu poder autoritário, o governo Lasso está se consolidando, conseguindo superar um pedido de impeachment e cedendo muito pouco (e impondo suas condições) contra a plataforma da segunda maior e mais combativa Greve Nacional das últimas duas décadas. Isso não é pouca coisa. Com isso, une o bloco de poder que recentemente dava sinais de disputas importantes dentro dele e também ajusta a divergência de setores da classe média que esperavam por um político com conotações neofascistas, transformando-os em uma base social não desprezível e isso começa a dar sinais de uma incipiente capacidade de mobilização de rua.

Da mesma forma, essa situação serviu para fortalecer o partido midiático de direita, que funciona cada vez mais como um aparato de propaganda e tem concentrado seus esforços quase que exclusivamente na estigmatização e criminalização do movimento indígena e, em geral, de tudo o que possa representar algum identidade política esquerdista ou progressista. Além disso, ele conseguiu alinhar com mais firmeza o aparato da justiça nesse espectro de poder.

Contudo; do ponto de vista da legitimidade democrática, a vitória é da CONAIE e do movimento indígena, que conseguiu articular um pacto conjuntural do que poderíamos chamar de "política plebeia". Além das conquistas obtidas graças à plataforma da Greve, que não devem ser superestimadas, houve um avanço importante tanto no campo político quanto no ideológico. Nesse nível, pode-se até pensar em uma mudança na correlação de forças.

O movimento indígena tem conseguido preencher o vazio de representação política das classes trabalhadoras, duramente atingidas pela pandemia e pelo plano neoliberal de Moreno e Lasso. Esse vazio foi o resultado, entre outras coisas, de o correismo ter passado de mostrar algum desconforto com a identidade política plebeia que havia cultivado em seus anos de governo, para abandoná-la quase completamente nos últimos tempos. Preencher esse vazio não é pouca coisa, então. Especialmente quando isso possibilita criar condições para bloquear o caminho de qualquer projeto neofascista que, diante de um vácuo, também possa se tornar um canal de agitação e indignação popular.

Sem dúvida, as apostas de um eventual bloco popular serão direcionadas para um confronto democrático tanto nas instituições liberais quanto nas ruas. Mas se há uma coisa que a experiência das duas últimas greves nacionais e das recentes eleições deixa claro, é que nenhuma delas é suficiente por si só. A Greve Nacional foi rica em aprendizados, e uma última lição a tirar desses dias é que um confronto combinado, de mobilização social e ação política, nos permite enfrentar melhor a investida do novo bloco de poder.

Com um governo que muito provavelmente não alterará significativamente o seu exercício autoritário da política, é fundamental que os atores sociais e políticos da esquerda coloquem toda a sua energia e toda a sua inteligência em traçar novas estratégias, sabendo que estão diante de um poder de classe na história recente do Equador.

Sobre o autor

Sociólogo e professor da Universidade Central do Equador.

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