9 de julho de 2022

Enzo Traverso, a revolução é o sopro da história

Qual é a revolução hoje. Seu significado é turvo ou é entendido como uma utopia privatizada. E, no entanto, a hipótese estratégica permanece. Um novo modelo ainda não está à vista. Nesse vazio, os novos movimentos se reinventam. Como mudar o mundo, acabar com o capitalismo, salvar o planeta. O historiador Enzo traverso, que ensina na Universidade de Cornell a partir do livro: "Revolution: An Intellectual History" (Verso Books)

Enzo Traverso



Tradução / "A revolução — sem ícones e sem maiúsculas — continua sendo uma necessidade, como ideia indeterminada de mudança e como bússola da vontade humana. Não como modelo, não como esquema pré-fabricado, mas como hipótese estratégica e horizonte regulador." Essas palavras do filósofo Daniel Bensaïd dão início ao novo livro de Enzo Traverso, sobriamente intitulado Revolution: An Intellectual History. Traverso, um dos principais historiadores das ideias italiano, agora leciona na Universidade de Cornell. Il manifesto encontrou-se com ele em Roma durante uma recente visita em que apresentou seu livro.

Roberto Ciccarelli

Hoje, os inimigos da revolução política e social falam de “revolução” quando estão vendendo o último modelo de smartphone, a última marca de pasta de dente ou concorrendo a eleições. Ao passo que aqueles que seriam a favor da revolução se calam. Em que sentido a revolução ainda é uma “hipótese estratégica” hoje, como argumentou Bensaïd?

Enzo Traverso

Houve uma ofuscação da palavra “revolução”, que se tornou desprovida de conteúdo, um significante vazio. Houve um tempo em que a esquerda teve que escolher entre reforma e revolução. Hoje, a palavra “revolução” se refere ao último modelo de iPhone e “reforma” a alguma medida socialmente regressiva relacionada à introdução da gestão neoliberal (daí reformas trabalhistas, reformas no sistema de saúde, reformas universitárias e assim por diante). Essa metamorfose também é significativa no campo da historiografia, onde a ideia de “revolução fascista” – ela própria pertencente à retórica fascista – é difundida, enquanto a dimensão revolucionária de eventos como a Guerra Civil Espanhola ou a Comuna de Paris tende a ser ignorada. O conceito de “revolução” muda, assim como seus usos políticos. Já passamos da era em que um historiador como Eric Hobsbawm fez dela a chave para interpretar a modernidade. Estou convencido de que esse eclipse tem sua origem – longe de questões das estratégias comunicativas da política e da indústria cultural – na derrota das revoluções do século XX. Esta foi, de fato, a era das revoluções, não apenas das guerras e do totalitarismo. No século do “princípio da esperança”, o comunismo tornou-se uma utopia concreta e possível, no sentido de Ernst Bloch. Esse “horizonte de expectativas” desapareceu.

Roberto Ciccarelli

Você escreve que os movimentos dos últimos quinze anos, e talvez até mais do que isso, não manifestaram uma memória histórica, mas não são prisioneiros do passado e precisam se reinventar. Como é possível criar uma tradição política revolucionária, nessas condições?

Enzo Traverso

Obviamente, não se trata de culpar os jovens por sua falta de memória histórica. Pelo contrário, trata-se de chegar a um acordo com o “sentido” da história que hoje é dominante. Os novos movimentos sociais e políticos têm um potencial considerável, mas são fruto de uma virada histórica que esvaziou o horizonte utópico do passado, identificado justamente com a ideia de revolução. Reconstruir sua história e suas mudanças semânticas talvez nos ajude a entender que ela continua sendo uma bússola para o nosso tempo.

Roberto Ciccarelli

O que significa não ter memória da revolução?

Enzo Traverso

Significa que o ciclo de revoluções do século XX chegou ao fim e que estamos vivendo as consequências dessa mudança. Durante um século, a história parecia caminhar em direção ao socialismo, cuja premissa era a conquista do poder pela força militar. Esta visão está a anos-luz de distância do nosso universo intelectual hoje. É essa reviravolta que impede que os novos movimentos se encaixem em uma continuidade histórica. Isso não significa que não haverá mais revoluções. Pelo contrário, já houve algumass nos últimos anos – basta pensar na “Primavera Árabe”. Essas revoluções, no entanto, não se identificavam mais com os modelos passados ​​– socialismo, libertação nacional, pan-arabismo – que agora estão obsoletos, esgotados ou derrotados, e eles realmente não sabiam para onde estavam indo. Uma vez derrubados os regimes opressivos de Ben Ali e Mubarak, eles não sabiam como substituí-los.

Roberto Ciccarelli

Mesmo quando existiam modelos fortes, muitas revoluções falharam. A perda de rolamentos é um agravante?

Enzo Traverso

É também uma condição que permite grande liberdade. A ideia de uma transformação radical persiste mesmo que não se reconheça como herdeira dos modelos herdados do século XX, em particular o comunismo e o anticolonialismo. Mas um novo modelo ainda não está à vista. Esse vácuo está na origem de uma criatividade incrível, diria até de uma considerável sofisticação teórica, presente em movimentos que são forçados a se reinventar. Na base dessa criatividade está uma pergunta revolucionária: como mudar o mundo, acabar com o capitalismo, salvar o planeta, superar as terríveis desigualdades que assolam nossas sociedades? Acho que essa necessidade é amplamente sentida entre os jovens de hoje.

Roberto Ciccarelli

Referências às décadas de 1960 e 1970 percorrem vários de seus livros, por exemplo Left-Wing Melancholia. Marxism, History and Memory. Quais são as diferenças entre aqueles anos e hoje?

Enzo Traverso

Aqueles que descobriram a política na década de 1970 tiveram que escolher entre uma ampla gama de movimentos e organizações bem definidas. Este não é, felizmente, o problema dos jovens de hoje, que pensam e agem sem sentir que estão presos em jaulas ideológicas. No entanto, essa mudança não só oferece vantagens, como também traz grande fragilidade, justamente porque esses movimentos não se inscrevem em uma continuidade histórica. São faíscas efêmeras e de curta duração. Quando conseguem construir uma presença política duradoura e consolidada, correm o risco de serem reabsorvidos pela política tradicional, como vimos com o Podemos, com o Syriza, ou mesmo na Grã-Bretanha, onde a tentativa de renovação do Partido Trabalhista a partir de baixo se chocou com um muro. Na Itália, todos os movimentos que surgiram nos últimos vinte anos não conseguiram se expressar politicamente, exceto por meio de coalizões de microaparelhos que sufocariam qualquer entusiasmo. Precisamos ir além desses breves surtos para reconstruir um horizonte de expectativa, reinventar uma ideia de futuro.

Roberto Ciccarelli

Nas sociedades neoliberais que você analisa em Singular Pasts: O “Eu” na Historiografia existe o terror do fracasso e da derrota. Isso nos impede de pensar em tentar novamente?

Enzo Traverso

Talvez, mas o socialismo nasceu da derrota “trabalhada”, ou seja, a derrota da Revolução Francesa que terminou com a Restauração. O século XXI nasceu de mais uma derrota histórica, de dimensões globais. As gerações mais jovens provavelmente não percebem isso, mas atuam em um contexto fortemente sobrecarregado por esse legado. Recuperar o sentido da história, saber que mudar o mundo é um projeto antigo – um projeto que no século XX não só parecia possível, como foi posto em ação – poderia oferecer uma identidade, por mais instável que seja, e nos fazer sentir menos vulnerável.

Uma das ideias mais interessantes que surgiram nos últimos anos dos movimentos é a interseccionalidade, a convergência de lutas e uma nova ideia de classe como objeto de múltiplas opressões e sujeito de possíveis resistências. Essa perspectiva é frequentemente evocada na França, país onde você viveu e ensinou, inclusive na experiência de La France Insoumise. Esta pode ser uma prática útil para construir o sentido da perspectiva revolucionária?

Enzo Traverso

La France Insoumise evoluiu de forma positiva. Vários nacionalistas desagradáveis ou “soberanistas” saíram ou foram convidados a sair. Participou dos Gilets Jaunes mesmo sem ser a força motriz deste movimento. Conseguiu integrar a dimensão ambiental e praticar – na medida do possível – a interseccionalidade entre reivindicações e demandas baseadas em gênero, raça e classe. Por estar sintonizado com os movimentos antirracistas nos banlieues da classe trabalhadora, superou os estreitos limites do “nacional-republicanismo”, o antigo arcabouço do socialismo francês. A coalizão de esquerda alcançou um sucesso eleitoral significativo, mas claramente isso não é uma revolução. Deve superar muitos obstáculos.

Roberto Ciccarelli

Como assim?

Enzo Traverso

Do ponto de vista puramente formal, o programa da coalizão de esquerda NUPES é mais moderado do que o da Union de la gauche de François Mitterrand em 1981. Não inclui a nacionalização de alguns setores-chave da economia. Mélenchon reconheceu isso honestamente: mesmo que tivesse se tornado primeiro-ministro, não teria forças para implementar seu programa sem o apoio de um movimento social forte, que está faltando no momento. O problema é o nível muito elevado de abstenção. No contexto atual, o antigo programa da social-democracia — redistribuição da riqueza, reformas sociais, defesa de salários e pensões, acesso à educação, transporte e saúde — implica uma ruptura com a ordem neoliberal. La France Insoumise encarna essa ruptura. No pós-guerra, a social-democracia foi o instrumento de “humanização” do capitalismo diante de um gigantesco desafio, o do socialismo como “princípio de esperança” que se desdobrava em escala global. Hoje, a social-democracia tornou-se um dos pilares da ordem neoliberal. Na era da reificação universal, um programa social-democrata genuíno não pode ser realizado sem uma ruptura com o modelo dominante de capitalismo.

Roberto Ciccarelli

Não há apenas a história das revoluções, mas também a história das contra-revoluções. Este tem sido o caso desde o início das revoluções modernas, as revoluções francesa e soviética, com efeitos devastadores. As contrarrevoluções são simplesmente reações ou são autônomas, produzindo uma nova realidade própria?

Enzo Traverso

É uma espécie de norma da história: não há revolução sem contrarrevolução, vinculada por uma relação simbiótica. As “revoluções de veludo”, que surgiram quando o poder soviético estava em crise e não podia mais enviar os tanques para suprimi-los, foram uma exceção. As contrarrevoluções têm cultura e ideologia próprias, que passam por transformações. No século XX, elas produziram o fascismo. A retórica do fascismo pretendia ser “revolucionária”, mas seu principal componente era a reação contra o bolchevismo. A contrarrevolução do século XX não pretendia restaurar o ancien régime, mas sim inventar uma nova forma de poder. Sua cultura não era insignificante, ainda que alguns a considerassem apenas uma “anticultura”; afinal, o fascismo inventou uma nova ideia de civilização. Na Alemanha, o nazismo produziu grandes figuras como Jünger, Schmitt e Heidegger. Na França, a literatura da primeira metade do século XX é marcada, depois de Proust, por uma série de fascistas como Céline e Drieu la Rochelle.

Roberto Ciccarelli

O atual ciclo neoliberal pode ser interpretado como uma contrarrevolução – como uma reação ao ciclo revolucionário global dos anos 1960 e 1970?

Enzo Traverso

Sim. Gostaria de responder, como historiador, evocando a longue durée de Fernand Braudel. A era neoliberal que vivemos hoje pode ser vista como uma reação – nesse sentido, uma contrarrevolução – contra o longo ciclo de revoluções do século XX. No nível social, isso é óbvio. Todas as conquistas sociais do século passado foram postas em causa. As relações de poder entre as classes em escala global mudaram profundamente. No Brooklyn, os trabalhadores de um armazém da Amazon ganharam reconhecimento por seu sindicato – e essa foi uma das grandes conquistas dos últimos anos. Se pensarmos no que era o movimento operário nas décadas de 1960 e 1970, não há dúvida de que essa conquista vem em um contexto assustador de retrocesso.

Roberto Ciccarelli

Qual é a história da contrarrevolução que estamos vivendo?

Durante décadas, o neoliberalismo foi uma corrente herética dentro da cultura das classes dominantes. Durante a Segunda Guerra Mundial, quem teria levado a sério um livro como The Road to Serfdom, que apresentava Roosevelt como um quinto colunista do totalitarismo, numa época em que a União Soviética, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha lutavam contra o nazismo e o fascismo? Na época, as ideias de Hayek eram inadmissíveis. O primeiro sinal de uma reviravolta veio com o golpe chileno de 1973. Os Chicago Boys chegaram e introduziram reformas estruturais que a esquerda em torno de Gabriel Boric ainda tem que lutar contra hoje. Pinochet encarnava a contrarrevolução armada. Posteriormente, o neoliberalismo se impôs com uma retórica “antitotalitária” baseada na combinação de democracia liberal e sociedade de mercado.

Roberto Ciccarelli

Assim, o neoliberalismo não é apenas uma reação, mas também uma forma política institucionalizada e uma forma específica de vida que aspira à auto-renovação contínua. É certo classificá-lo como “revolucionário”?

Enzo Traverso

A “revolução” neoliberal – que se estende muito além do neoliberalismo como modelo econômico – é um bombardeio permanente de imagens, modas, mercadorias e ilusões. É, numa palavra, uma “utopia privatizada”. Esta não é uma operação inocente. Procura incutir a sensação de que tudo está se transformando ao nosso redor, mesmo que a ordem socioeconômica que produz catástrofes e imenso sofrimento, o capitalismo como civilização – o que Andreas Malm chama de “capitaloceno” – permaneça imutável. Gostaria de enfatizar que o neoliberalismo não se impôs apenas com exércitos, mas sobretudo como uma alternativa “democrática” ao totalitarismo, no qual toda a história do século XX foi dobrada.

Roberto Ciccarelli

Se a revolução foi sequestrada pelos contra-revolucionários, como reverter essa perspectiva?

Enzo Traverso

Acho que ninguém tem a receita para isso. A revolução é um momento histórico em que os oprimidos tomam consciência de sua força, de sua capacidade de mudar o mundo por meio da ação coletiva. Walter Benjamin usou uma fórmula evocativa: a divisão do átomo que desencadeia forças extraordinárias e explosivas. A revolução é o momento em que a linearidade da história é subitamente quebrada e tudo se torna possível, quando novos horizontes se abrem: as revoluções são fábricas de utopias. Isso inevitavelmente acarreta riscos consideráveis, pois também podem ser tomados caminhos perigosos.

As revoluções, no entanto, não acontecem por decreto, elas surgem de baixo e se espalham como “fúrias”, como disse Jules Michelet. Mas é importante saber que, embora as revoluções sejam continuamente exorcizadas, elas ainda estão dando vida à história.

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