27 de julho de 2022

Francis Fukuyama está certo: O socialismo é a única alternativa ao liberalismo

Em O liberalismo e seus descontentamentos, Francis Fukuyama diagnostica o mal-estar político e psicológico causado pelo capitalismo. Sua análise deixa uma coisa clara: o liberalismo é incapaz de lidar com as crises sociais, econômicas e ecológicas que enfrenta.

Samuel McIlhagga


O cientista político Francis Fukuyama, autor do muitas vezes incompreendido The End of History and the Last Man, publicou um novo livro sobre democracia liberal e natureza humana. (Leonardo Cendamo / Getty Images)

Resenha de Liberalism and Its Discontents por Francis Fukuyama (Macmillan, 2022)

Tradução / Em entrevista à CNN, após mais uma rodada de sanções do governo dos EUA à Rússia, ocorreu a seguinte conversa entre o apresentador do programa e o conselheiro econômico do presidente Joe Biden, Brian Deese:

CNN: O que você diz para aquelas famílias que dizem: “Escute, não podemos pagar US$ 4,85 por galão por meses, senão anos, isso simplesmente não é sustentável”?

Deese: Bem, o que você ouviu do presidente hoje foi uma articulação clara das apostas... Trata-se do futuro da ordem mundial liberal e temos que nos manter firmes.

Os acontecimentos dos últimos dois anos, desde o início da pandemia global até a guerra na Ucrânia, e agora a escassez global de alimentos, são sinais claros de que o liberalismo, como sistema econômico e político global, está em crise. Por enquanto, após o último surto de problemas de saúde, nenhum adversário viável tem sido capaz de acabar com o sofrimento do capitalismo liberal.

Ninguém fez mais em apoio à ideia da resiliência e universalidade do liberalismo do que Francis Fukuyama. Fukuyama alcançou fama de nível internacional na década 1990 como planejador de políticas do Departamento de Estado dos Estados Unidos quando escreveu, primeiro em 1989, um artigo para o periódico The National Interest intitulado “The End of History?” [O Fim da História, em tradução livre] e depois, em 1992, um tratado extendido, O Fim da História e o Último Homem. Sua mais recente obra, Liberalism and Its Discontents (Mal-Estar no Liberalismo, ainda sem edição em português), lançada em maio deste ano, retoma os temas de seus trabalhos anteriores.

Origens intelectuais

Apublicação de O Fim da História e o Último Homem coincidiu com o súbito colapso da União Soviética, com a reunificação da Alemanha e com a independência de vários estados-satélite soviéticos, como a Polônia e a Lituânia. Inicialmente, todos esses Estados pós-soviéticos adotaram modelos da governança liberais, democráticos e capitalistas. Dessa forma, Fukuyama tornou-se uma figura, ao mesmo tempo, famosa e um tanto incompreendida na academia – um profeta do triunfo da democracia liberal e da inevitabilidade material do capitalismo.

Na imprensa, ele foi descrito como um Karl Marx reverso. Para aqueles que não leram seu livro, a lição a ser tirada é que a história acabou porque o capitalismo estadunidense venceu a União Soviética. De fato, no rescaldo do 11 de setembro, os jornalistas, que haviam entendido mal o livro, tentaram entrar em contato com Fukuyama para perguntar se a história haveria recomeçado.

No entanto, Fukuyama é diferente dos partidários político-econômicos do livre mercado e do capitalismo laissez-faire como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman – homens que defendem o mecanismo de preços como um meio mais racional de distribuição e alocação de recursos. Em vez disso, Fukuyama é um escritor e cientista político profundamente preocupado com a forma como os humanos e suas supostas psiques transcendentes operam dentro de sistemas históricos políticos, econômicos e culturais específicos.

Embora ele não se identifique mais como neoconservador, Fukuyama, assim como muitos desse círculo, está profundamente preocupado com ideais trans-históricos e universais. O fracasso da Guerra do Iraque, um importante projeto neoconservador que Fukuyama inicialmente apoiou, parece tê-lo afastado da visão de que o liberalismo, a democracia e o capitalismo ocorrem naturalmente se o terreno for limpado por intervenções “bem-intencionadas”.

No entanto, seu idealismo político ainda é profundo. Nascido em Chicago em 1952, a família de Fukuyama mudou-se para o leste, para Manhattan. Seu histórico familiar possui raízes acadêmicas, religiosas e mercantis. O avô paterno, imigrante japonês de primeira geração, administrava uma loja de ferragens na Costa Oeste, enquanto seu avô materno era um proeminente economista acadêmico e administrador universitário na Universidade de Kyoto. Seu pai era um sociólogo acadêmico e ministro da Igreja Congregacional – um bastião do idealismo religioso burguês liberal e puritano. A ênfase que Fukuyama coloca na autogestão democrática, predestinação político-moral e autonomia individual dentro de um “sacerdócio de todos os crentes” liberal parece ser um resquício secularizado de seu calvinismo.

Em 1970, Fukuyama iniciou seu curso de graduação na universidade de Cornell em Estudos Clássicos: ele é, em muitos aspectos, um pensador político clássico. Pode-se ver a influência da teoria política grega antiga por todas partes em seu pensamento. Por exemplo, Fukuyama se interessa nas unidades políticas básicas de Aristóteles (monarquia, aristocracia e democracia) e sua relação com a modernidade liberal, e continua a usar a teoria platônica da alma (dividida entre a razão (logos), espírito (thymos) e apetite (eros)) para descrever a eterna natureza humana e sua necessidade por reconhecimento. Durante sua passagem por Cornell, Fukuyama se encontrou com o filósofo e classicista Allan Bloom, melhor conhecido pelo seu livro The Closing of the American Mind [O Fechamento da Mentalidade Americana, em tradução livre], de 1987, no qual critica a prática do relativismo moral e o contextualismo histórico nas universidades estadunidenses.

Bloom, que aprendeu com os filósofos Leo Strauss e Alexandre Kojève, apresentou a Fukuyama à tradição intelectual do idealismo, que remonta a Hegel. Strauss influenciou a academia conservadora com seu texto Natural Right and History [Direito Natural e História em português, 1953], no qual argumentava um conjunto transcendente e trans-histórico de direitos naturais que poderiam fornecer uma bússola moral à política.

Os seguidores de Strauss nos Estados Unidos desenvolveram uma abordagem para interpretar textos políticos que enfatizavam problemas perenes e o poder do texto de autoria para gerar significado de forma independente. Kojève foi um pensador marxista pouco ortodoxo, um administrador econômico francês no Mercado Comum Europeu e um neo-hegeliano que reintegrou o pensamento do filósofo alemão sobre a história na política contemporânea. Sua introdução à leitura de Hegel, de 1946, propôs uma teoria anterior do “fim da história” que influenciou a própria tese de Fukuyama. Kojève sugeria que a vitória do Império Napoleônico racionalista sobre o Estado absolutista da Prússia em Jena, em 1806, representou o ápice da possibilidade política humana: os parâmetros de toda ação política futura foram traçados por Napoleão em Jena.

Depois de Cornell, Fukuyama passou um tempo em um programa de literatura comparada em Yale e estudou com os pós-estruturalistas Roland Barthes e Jacques Derrida em Paris, antes de mudar para a ciência política em Harvard. Embora Fukuyama se envolvesse com o estudo empírico quantitativo e qualitativo da política externa e das relações internacionais, ele manteve um profundo interesse no texto e nos ideais humanos, que ele levou para a RAND Corporation, o Departamento de Estado e nas suas funções consultivas sob Ronald Reagan e George W. Bush.

O sucesso do seu artigo publicado na revista National Interest “O Fim da História?”, de 1989, resultou em um adiantamento de US$ 600.000 para escrever uma continuação – O Fim da História e o Último Homem. Isso empurrou Fukuyama de volta à escrita e à academia, onde popularizou o idealismo de seus precursores intelectuais.

O Fim da História - de Nietzsche a Freud

Em seu primeiro livro, Fukuyama fez questão de enfatizar o fato de que o fim da história não ocorreria de forma sincrônica entre as distintas regiões geográficas; em vez disso, dissidentes ativos no Sul Global acabariam por alcançá-los depois de um século ou mais. Os enclaves não-liberais que existiam no mundo em desenvolvimento não eram modelos para uma ordem mundial alternativa. Escrevendo em O Fim da História, ele proclamaria que “pouco importa que pensamentos estranhos ocorram às pessoas na Albânia ou em Burkina Faso”. Para Fukuyama, o liberalismo venceria, não porque fosse historicamente inevitável, mas porque representava uma forma ideal de organização social racional que, quando comparada a seus concorrentes, tinha menos contradições internas.

No entanto, o mal-lembrado último capítulo de O Fim da História de Fukuyama – “O Último Homem” – leva o nome do letztermensch de Nietzsche, o oposto passivo, seguro e materialista do übermensch (super-homem). Fukuyama usa a imagem do “Último Homem” para reconhecer as contradições inerentes ao sistema democrático liberal e a frustração sentida pelos sujeitos democráticos liberais ricos. Como ele escreveu em 1992, “A paixão pelo reconhecimento igual – isotimia – não diminui necessariamente com a conquista de maior igualdade de facto e de abundância material, mas pode realmente ser estimulada por ela”.

Fukuyama entendeu, em 1992, que a democracia liberal estaria em maior perigo não por forças externas concorrentes, mas pelo tédio e seus efeitos sobre uma população inquieta disposta a experimentar e alcançar o timo platônico, ou reconhecimento espirituoso. Em O Fim da História, Fukuyama, influenciado pelas leituras de Hegel por Kojève e pela análise detalhada de Leo Strauss das concepções platônicas da psique humana em A República, argumentou que aspectos perenes da natureza humana como timo colocariam em perigo o mundo friamente racional e tecnocrático do liberalismo avançado.

Embora os confrontos entre a natureza humana e o sistema democrático liberal tenham sido um importante pós-escrito para O Fim da História, eles ocuparam o centro do palco em Liberalism and Its Discontents. O que permanece constante é a confiança de Fukuyama em modelos psicológicos trans-históricos de natureza humana imutável, em vez de uma análise de relações materiais e econômicas, para explicar a atual fragilidade da democracia liberal.

Sua última publicação passa das estruturas metafísicas de Platão e Nietzsche para a perspectiva psicológica de Sigmund Freud – Liberalism and Its Discontents ecoa o título de Civilization and Its Discontents [Mal-estar na Civilização, em português], obra do psicanalista austríaco de 1930. Um pessimismo profundo sobre a modernidade permeia grande parte da obra de Freud. Mas o Mal-estar na Civilização não é simplesmente uma rejeição da sociedade racional. Freud ironicamente aponta que a civilização é a causa e o bálsamo para a miséria humana.

Nossa civilização é em grande parte responsável por nossa miséria... seríamos muito mais felizes se abandonássemos e voltássemos às condições primitivas... Seja como for que definamos o conceito de civilização, é certo que todas as coisas com as quais procuramos nos proteger contra as ameaças que emanam das fontes do sofrimento fazem parte dessa mesma civilização.

As teorias de Freud sobre a relação dos humanos com a civilização – que o descontentamento com a civilização é gerado dentro do sistema e usado contra ele – são, para Fukuyama, igualmente aplicáveis à democracia liberal.

Liberalismo em perigo

De fato, Liberalism and Its Discontents, assim como seu antecessor freudiano, argumenta que os dois adversários da democracia liberal, “conservadorismo populista” e “progressismo”, não são ameaças externas, mas consequências da própria tradição liberal. Como Fukuyama afirma em seu primeiro capítulo, “O que é o liberalismo clássico” – a ameaça vem de corrupções econômicas e sociais internas dentro do liberalismo, e não de modelos concorrentes externos ou contradições materiais inerentes.

Para a direita, autonomia significava principalmente o direito de comprar e vender livremente, sem interferência do Estado. Levando essa noção ao extremo, o liberalismo econômico se transformou em “neoliberalismo” e elevou a desigualdades grotescamente. Para a esquerda, autonomia significava autonomia pessoal em relação às escolhas de estilo de vida e resistência às normas sociais impostas pela sociedade. Empurrado por esse caminho, o liberalismo começou a erodir sua própria premissa de tolerância à medida que evoluiu para a política de identitarismo moderna. Essas versões extremas do liberalismo geraram então uma reação, que é a fonte dos movimentos populistas de direita e progressistas de esquerda que ameaçam o liberalismo hoje.

Sua solução para essas ameaças é retornar a um status quo ante imaginado – um liberalismo histórico incorrupto, renovado, reformado e robusto que se reconhece como tal. Em Liberalism and Its Discontents, ele usa o termo “liberalismo clássico” para descrever esse programa, a cuja capacidade Fukuyama saúda com boas-vindas. “O liberalismo clássico é uma grande tenda que engloba uma série de visões políticas que, no entanto, concordam com a importância fundamental da igualdade de direitos individuais, lei e liberdade.”

Em seu último capítulo, “Princípios para uma Sociedade Liberal”, Fukuyama afirma que o liberalismo clássico “pode ser entendido como um meio de governar a diversidade”. Mas esse pluralismo político diversificado requer um Estado forte e confiável. A falha do liberalismo desde o início da era neoliberal, argumenta ele, é que ele falhou em reconhecer o papel central que o Estado deve desempenhar na gestão dessa diversidade.

Ao longo dos capítulos restantes de Liberalism and Its Discontents, Fukuyama identifica as forças que prejudicaram a confiança pública nos governos democráticos liberais e as soluções que o liberalismo clássico supostamente pode empregar. Primeiro, em “Do Liberalismo ao Neoliberalismo”, ele vê o neoliberalismo como uma perigosa consequência do liberalismo econômico que promove extrema desigualdade e ameaça o corpo político.

Embora Fukuyama não abandone o compromisso com o mercado capitalista, ele assevera que, sob o neoliberalismo, o “insight válido sobre a eficiência superior dos mercados evoluiu para uma espécie de religião, na qual a intervenção do Estado se opunha por uma questão de princípio”.

Seu segundo capítulo, “O Indivíduo Egoísta”, lida com os efeitos pessoais e sociais do neoliberalismo. Nele, Fukuyama argumenta que o modelo econômico dos atores racionais individuais que buscam maximizar sua utilidade tem sido corrosivo para um mercado equilibrado que respeite valores concorrentes, tais como a dignidade do trabalho, a família, a tradição e o altruísmo coletivo. “A premissa individualista na qual a teoria liberal se baseia não é, portanto, errada, mas incompleta.”

Cautelosamente, em Liberalism and Its Discontents sugere-se que uma sociedade focada na produção e não no consumo pode ajudar a corrigir as patologias do capitalismo contemporâneo. Longe do triunfalismo de trinta anos atrás, em seu lugar está uma análise freudiana da conturbada consciência liberal, o que leva Fukuyama a perguntar: “As pessoas estariam dispostas a sacrificar um pouco do bem-estar do consumidor para manter a dignidade do trabalho e sustento em casa?”

Em outros capítulos que buscam abordar questões não econômicas de identidade – e sua exclusividade inata, que se choca com o suposto universalismo do liberalismo – Fukuyama defende um retorno a um amplo conjunto de nacionalismos e identidades cívicas. Seguindo o sociólogo Max Weber, ele insiste que os direitos liberais não têm sentido sem a imposição do Estado. De fato, Fukuyama identifica corretamente um forte conjunto de problemas com a democracia liberal, mas sua solução – um retorno à causa raiz do problema: o liberalismo clássico histórico – está, em última análise, em desacordo com seu compromisso com um grupo de valores que transcendem o sistema capitalista liberal particular em que operam.

As ameaças à democracia liberal que Fukuyama encontra no neoliberalismo (desigualdade maciça, consumismo, falta de capacidade estatal) foram inicialmente os valores dos liberais clássicos do livre comércio do início do século XIX – ideias que pensadores neoliberais como Milton Friedman queriam ressuscitar para o final do século XX.

Mas o que é o Liberalismo Clássico?

Fukuyama admite que o que ele chama de liberalismo clássico tem conotações historicamente específicas, mas ainda assim decide usá-lo para tentar descrever um liberalismo ideal não contaminado por transformações recentes. Esta é uma posição estranha para um hegeliano. O filósofo alemão insistiu que a forma específica que a sociedade assumiu não deve ser entendida como uma aberração ou desvio de um ideal; ideais que não podiam ser realizados eram, em vez disso, intempestivos. Como afirma Hegel em seus Elementos da Filosofia do Direito (1820), “O que é racional é real; e o que é real é racional”.

Ausente nas teorias dos defensores contemporâneos do liberalismo está o realismo frio, mas lúcido, de Hegel. Os defensores do liberalismo clássico muitas vezes tentam traçar uma linhagem anacrônica entre suas ideias e as visões supostamente atemporais de um punhado de pensadores europeus como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Esses teóricos não se entendiam como liberais, preocupando-se muito mais com as formas políticas clássicas e com as disputas constitucionais de sua época. Quando nos referimos ao liberalismo clássico hoje, raramente mencionamos, de fato, àqueles que puderam ter reconhecido o termo – principalmente indivíduos que ofereciam um conjunto específico de políticas de livre comércio de curta duração, vinculadas à crítica dos interesses aristocráticos pela terra e o mercantilismo da Europa no início do século XIX.

Em grande parte do livro, Fukuyama salta entre duas noções, entre a democracia liberal e o liberalismo. A primeira denota uma configuração específica que tomou forma em grande parte do mundo ocidental após o fim da Segunda Guerra Mundial e a segunda descreve um ideal trans-histórico que remonta à Guerra Civil Inglesa e à Revolução Americana. Esses dois conceitos servem para encobrir as limitações um do outro. O liberalismo como um ideal pode ser organizado como uma crítica dos déficits do liberalismo realmente existente, e o liberalismo realmente existente pode ser usado para rejeitar o socialismo e outros projetos políticos que não conseguiram se tornar hegemônicos.

Na realidade, o liberalismo, assim como o conservadorismo, é simplesmente um conjunto de ideias políticas e associações culturais determinados pelo posicionamento histórico, sociológico e político entre facções em sistemas particulares. Vide a relatividade gerada pela comparação das enormes diferenças entre os liberais australianos, europeus e japoneses e seus colegas americanos. Fukuyama poderia ter evitado essas críticas definindo claramente um conjunto estreito de valores para sua definição de liberalismo clássico. Alternativamente, ele pode ter cunhado um novo termo para descrever o conjunto real e mais amplo de valores com os quais ele se importa. O que Fukuyama defende não é o liberalismo clássico, mas uma forma de social-democracia humanista.

O que é estranho em Liberalism and Its Discontents é que, quando Fukuyama se propõe a descrever os valores com os quais se preocupa sem usar o termo liberalismo clássico, ele muitas vezes soa como um socialista ou marxista no molde secular, humanista, universalista e democrático.

Em uma entrevista recente com Aaron Bastani, da Novara Media, Fukuyama surpreendentemente concordou com grande parte do atual programa populista social-democrata recentemente proposto por Bernie Sanders e Jeremy Corbyn. Por exemplo, em Liberalism and Its Discontents, ele argumenta que a classe econômica, em vez das identidades sociais, deve ser a base para a subjetividade dos atores políticos: “As políticas sociais devem buscar equalizar os resultados em toda a sociedade, mas devem ser direcionadas para categorias fluidas como classe ao invés de categorias fixas como raça ou etnia.”

Ele prossegue argumentando que as concepções coletivas do bem comum foram substituídas por uma ênfase exagerada na autonomia pessoal, auto-realização e escolha: “Com o tempo, nas sociedades liberais, tem havido uma relutância crescente em postular fins humanos substantivos que têm prioridade sobre outros fins; em vez disso, é o próprio ato de escolha que tem a mais alta prioridade.”

Ironicamente, os valores “liberais” com os quais Fukuyama mais se preocupa – liberdade de expressão, instituições de prestação de contas, direitos humanos, mecanismos de autonomia pessoal e uma concepção do bem comum além da política de identidade – são corroídos pela dinâmica capitalista construída na estrutura liberal. Dentro de um sistema democrático, as liberdades liberais realmente existem apesar do capitalismo, não por causa dele. Fora dos Estados Unidos, que tem uma esquerda liada a países historicamente subdesenvolvidos, as tradições liberais foram conquistadas por social-democratas e socialistas, para quem o direito de se organizar e de falar era essencial.

As linhas divisórias entre o “populismo” e o “progressismo” de Fukuyama não são mapeadas consistentemente em outros sistemas políticos. Os descontentamentos gerados pela democracia liberal variaram de nação para nação. Por exemplo, um determinado liberalismo de esquerda republicano na França rejeitou o que eles entenderam como noções americanas sobre autonomia pessoal em relação a escolhas e valores de estilo de vida e, em vez disso, insiste em um nacionalismo cívico de bem comum enfatizando valores franceses universais como a laicidade estrita, que na prática, serviu para marginalizar muçulmanos e outras minorias.

No Peru, o socialista Pedro Castillo, influenciado pela vertente católica da Teologia da Libertação, venceu sua eleição atacando tanto a desigualdade econômica, o neoliberalismo e, em certa medida, o sócio-liberalismo. Consequentemente, o mapa dinâmico do descontentamento proposto por Fukuyama é especificamente estadunidense – a constelação de atitudes e posições políticas que compõem o populismo e o progressismo americanos não são universalmente fungíveis.

O admirável desejo de Fukuyama por uma política universalista e humanista o leva de volta a uma ideologia esgotada do século XIX. Em vez disso, devemos olhar para o estado atual da modernidade em sua especificidade. A China demonstrou que o capitalismo pode ter sucesso sem um apêndice democrático que vá junto. Sua imagem espelhada, um Estado não-capitalista efetivamente democrático, ainda não emergiu explicitamente. Em um mundo definido por crises políticas e pelo colapso climático, talvez a melhor maneira de defender os valores com os quais Fukuyama se preocupa seja por meio de uma ordem política imaginativa. Essa ordem política reconheceria como o capitalismo causa consequências sociais desestabilizadoras, como a desigualdade, e impulsiona as causas econômicas do nacionalismo e da guerra – todas ruins para a democracia.

O objetivo desse projeto político seria substituir a autoridade irrestrita do mercado pela responsabilidade democrática, sustentada pelo pivô do trabalho organizado. Esse sempre foi o projeto de uma miríade de tradições socialistas – e especialmente a democrática. As suas instituições foram feridas no final do século passado. Essa derrota, no entanto, não foi total. Em quase todos os países do mundo desenvolvido, existem forças de esquerda e socialistas, algumas das quais têm ampliado suas bases. Elas podem cumprir a promessa democrática liberal que o capitalismo é incapaz de realizar, mas elas só podem fazer isso se substituírem o capitalismo democrático pelo socialismo democrático. O que Fukuyama deixou incrivelmente claro é que, deixado por conta própria, o liberalismo não fará nada para aliviar as crises que causou.

Colaborador

Samuel McIlhagga é um repórter e crítico literário britânico que cobre relações exteriores, cultura e teoria política.

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