31 de janeiro de 2025

Teoria do colonialismo por povoamento não é ideologia antissemita

Perspectiva não defende a expulsão de judeus da Palestina, mas questiona a violência colonial do Estado de Israel

Bruno Huberman
Doutor em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professor da PUC-SP. Autor de "Colonização Neoliberal de Jerusalém"


[RESUMO] Em resposta a João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman, autor sustenta que o colonialismo por povoamento é uma realidade persistente, não um fenômeno do passado, e que os detratores dessa perspectiva têm dificuldades em compreender que a luta palestina não busca a expulsão de judeus de Israel, mas a garantia de sua autodeterminação como povo e a superação das hierarquias coloniais.

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Em artigos recentes, João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman criticaram a teoria do colonialismo por povoamento ou assentamento. A partir do livro "On Settler Colonialism", de Adam Kirsch, os colunistas da Folha depreciam os teóricos desse conceito, os qualificando como ideólogos que promovem o antissemitismo e justificam a expulsão de judeus de Israel e da Palestina.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que essa não é uma moda acadêmica. Desde os anos 1960, intelectuais palestinos como Fayez Sayegh vêm buscando compreender a sua realidade a partir dessa perspectiva, sem deixar de levar em consideração outros casos, como os da Argélia, da Rodésia e da África do Sul.

Palestinos deslocados pela guerra caminham de volta para o norte da Faixa de Gaza - Rizek Abdeljawad/27.jan.25/Xinhua

Patrick Wolfe foi o principal rearticulador da teoria com a publicação, em 1999, de "Settler Colonialism and the Transformation of Anthropology". O pesquisador australiano define o colonialismo por povoamento como um processo de eliminação dos nativos. Os genocídios coloniais —dos povos indígenas das Américas ao perpetrado por Israel contra os palestinos— são casos exemplares.

A principal contribuição de Wolfe é apontar a permanência do colonialismo constituído pelo assentamento de estrangeiros. Em Israel, nos EUA, na Austrália e no Brasil, os colonos vieram e nunca foram embora.

Assim, essa perspectiva rompe com a naturalização das relações coloniais ainda vigentes e revela como o colonialismo não é algo do passado, mas um fenômeno do presente.

Os assentamentos judeus e a expulsão de palestinos por Israel não são excepcionais: a proposta do marco temporal, que almeja redefinir os parâmetros jurídicos de demarcação de terras indígenas no Brasil para facilitar empreendimentos extrativistas, e o projeto de construção de um oleoduto na reserva Standing Rock, do povo dakota, nos EUA, são exemplos de como os Estados colonos ainda agem para expropriar as terras indígenas.

Coutinho e Schwartsman reivindicam que a teoria não faz sentido, porque não seria possível apontar os verdadeiros povos originais de um pedaço de terra.

Schwartsman afirma que os judeus já "foram a população invadida" (pelos romanos) e que os palestinos seriam os invasores. Como já apontei em outro artigo na Ilustríssima, os detratores da teoria têm grande dificuldade em compreender o que o colonialismo e a indigeneidade são.

Em primeiro lugar, o colonialismo é um fenômeno característico da modernidade, iniciada com as grandes navegações europeias do século 15. O colonialismo significa a expansão da modernidade europeia e das relações capitalistas por meio da violência e da subjugação racista de povos inferiorizados nas atuais América, África, Ásia e Oceania. Portanto, não é um fenômeno milenar.

A indigeneidade tampouco significa a existência de um povo que seria o habitante original de um território na história, mas uma identidade forjada a partir do colonialismo moderno. São nativos aqueles que originalmente ocupavam um território reivindicado pelos colonizadores. Trata-se de uma identidade relacional, vinculada à existência do colonizador. O palestino só é nativo porque está sob o colonialismo israelense.

Logo, não faz sentido dizer que judeus foram colonizados por romanos ou que palestinos são invasores. O Império Romano pereceu muito antes do alvorecer da modernidade. Ademais, é bem provável que os palestinos de hoje sejam descendentes diretos dos judeus da era romana. Os judeus, inclusive, compõem o povo nativo daquela terra.

Contudo, o que faz de Israel um Estado colonial é a sua origem (e permanência) no projeto sionista europeu do final do século 19, que buscava a constituição de um Estado exclusivamente judaico na Palestina por meio do assentamento permanente de judeus estrangeiros (europeus, asiáticos e africanos) e da negação da autodeterminação dos demais povos que viviam ali.

Coutinho e Schwartsman ressaltam ainda os limites da solução do problema colonial. Segundo eles, a teoria reivindica a remoção dos colonizadores e a devolução das terras aos nativos, o que justificaria a expulsão dos judeus da Palestina.

Adam Kirsch aponta essa como a razão do antissemitismo contemporâneo, apesar de reconhecer que os autores que empregam esse conceito ao analisar o caso palestino, como Lorenzo Veracini e Rashid Khalidi, rejeitam a violência como solução e defendem a resolução de dois Estados ou de um único Estado democrático com a permanência dos judeus.

Há um caso excepcional na história de uma colônia de povoamento que obteve a libertação por meio da expulsão dos colonos: a Argélia francesa, em 1962. Essa não é, porém, a principal referência do Movimento Nacional Palestino, que se volta à África do Sul tanto para nomear a sua realidade —apartheid— quanto para lutar por sua liberdade —a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). A solução sul-africana foi a reconciliação entre brancos e negros em um único Estado.

Nas Américas, onde todos os Estados modernos são fruto de processos de colonização por povoamento, somente dois, Bolívia e Equador, reconheceram juridicamente a soberania indígena. Ambos são Estados plurinacionais onde não há sobreposição única entre Estado —povo e nação—, mas a soberania das múltiplas nações do território —indígenas e colonas— é reconhecida.

Isso resulta na descentralização do poder colonial na gestão do Estado. A Constituição do Brasil de 1988 também pode ser entendida como uma descolonização parcial do país por ter reconhecido direitos específicos e estabelecido a autonomia dos povos indígenas.

Nenhum desses casos envolveu a expulsão dos colonizadores. Contudo, todos eles vêm se mostrando limitados em assegurar a autodeterminação dos nativos, porque as estruturas de séculos de colonialismo resistem aos esforços de descolonização.

De toda forma, compreender a realidade colonial é o primeiro passo para desestruturá-la e constituir uma nova relação social que supere a hierarquia colonial. A teoria do colonialismo por povoamento tem esse objetivo e deve ser entendida como um instrumento para a construção da liberdade e da justiça.

Essa perspectiva não questiona a existência dos judeus no território palestino, mas a violência colonial do Estado de Israel, que põe em risco a existência do povo palestino.

O presidente cripto chegou, e a fraude está crescendo

Com Donald Trump de volta à Casa Branca, as comportas para golpes de criptomoeda foram escancaradas.

Hadas Thier


Donald Trump falando na conferência Bitcoin 2024 em Nashville, Tennessee, em 27 de julho de 2024. (Brett Carlsen / Bloomberg via Getty Images

"Vocês ficarão muito felizes comigo", Donald Trump disse a milhares de crentes apaixonados pelo Bitcoin em julho. Eu estava no meio da multidão, tendo ido a Nashville para cobrir a conferência anual do Bitcoin no verão passado.

O salão de conferências estava frio e escuro, mas o nível de energia estava febrilmente alto, a multidão gritando e gritando enquanto o então candidato à presidência atingia todas as notas certas, chamando o Bitcoin de "milagre da humanidade" e recitando uma lista de promessas — a mais popular entre elas, demitir Gary Gensler, presidente da Securities and Exchange Commission (SEC) que regulamenta criptomoedas.

A SEC sob Gensler foi amplamente criticada pela comunidade cripto pelo que eles alegaram ser o "reinado de terror contra criptomoedas" da comissão. Trump também prometeu comutar a sentença de Ross Ulbricht, fundador da Silk Road, um mercado negro alimentado por Bitcoin para drogas e contrabando, e declarou que criaria um “estoque nacional estratégico de Bitcoin” com Bitcoin que foi apreendido pelo Departamento de Justiça.

Acima de tudo, Trump prometeu ajudar o Bitcoin a “disparar como nunca antes, até além das suas expectativas”, observando que os preços do Bitcoin subiram 3.900 por cento durante seus primeiros quatro anos na Casa Branca. “Agora compare isso com apenas 3,5 anos de [Joe] Biden e [Kamala] Harris ajustados pela inflação. O Bitcoin subiu 50 por cento. Agora 50 por cento parece bom, mas não quando você está comparando com quase 4.000 por cento, certo?”

Aliás, durante seu primeiro mandato na Casa Branca, Trump declarou-se “não um fã” de criptomoedas, reclamando que o valor das criptomoedas era “altamente volátil e baseado no nada”. Mas aqui estamos na distopia que é 2025. Criptomoedas — tokens digitais como Bitcoin, Ethereum, DOGE e dezenas de milhares de outros que podem ser criados e negociados na internet usando tecnologia descentralizada — estão de volta ao mainstream. Sua história de fraude e golpes permanece, assim como a falta de utilidade social da criptomoeda e o excesso de exagero, especulação e trapaça. E o recém-convertido Bitcoiner in Chief agora está emitindo $TRUMP, suas próprias moedas meme altamente voláteis, aparentemente evocando dezenas de bilhões de dólares do nada.

Um romance lucrativo

O caso de amor entre Trump e os proponentes do Bitcoin e outras criptomoedas é um romance relativamente novo, às vezes difícil, mas altamente lucrativo. O Bitcoin passou 2024 recuperando o terreno que sua avaliação havia perdido repentinamente em 2022; outras criptomoedas seguiram a tendência definida pelo Bitcoin. Na primavera do ano passado, o preço do Bitcoin já havia quebrado seus recordes selvagens anteriores e, nas eleições de novembro, estava se aproximando de um preço de US$ 70.000. Assim que Trump foi declarado vencedor, esse número realmente disparou como nunca antes, assim como ele havia prometido, quebrando a marca de US$ 100.000 em semanas.

Essa lucratividade é uma via de mão dupla. Os ricos em criptomoedas encheram Trump e outros candidatos amigáveis ​​às criptomoedas com muito dinheiro antes da eleição, e a indústria organizou uma operação de arrecadação de fundos agressiva e sem precedentes, no valor de quase US$ 200 milhões por meio de seu Fairshake PAC e super PACs alinhados. Somente na conferência do Bitcoin, Trump supostamente arrecadou US$ 21 milhões, principalmente por meio de uma reunião de "mesa redonda" cuja taxa de inscrição foi de US$ 844.600. As sessões de fotos com o presidente não foram incluídas. Elas custam outros US$ 60.000 cada.

Além das eleições, e com seu talento habitual para conflitos de interesse descarados, Trump entrou na própria fraude — de projetos de tokens não fungíveis (NFT) (tokens digitais vinculados a arquivos de mídia que podem ser negociados e vendidos); a participações financeiras no projeto World Liberty Financial, que afirma que desenvolverá um serviço de negociação de criptomoedas; ao lançamento de sua própria memecoin, que fontes da grande mídia alegaram, de forma vertiginosa e falsa, que aumentou o patrimônio líquido da família Trump em dezenas de bilhões de dólares. Na quarta-feira, os sucessos continuaram chegando com o lançamento do Truth.Fi, uma plataforma de serviços financeiros focada em criptomoedas.

A conversão de Trump para criptomoedas começou no final de 2022, com o lançamento de suas coleções de NFT — milhares de imagens digitais ultracringe do presidente, photoshopadas para tirar décadas de sua aparência e transformadas em versões de super-heróis, cowboys ou estrelas do rock de si mesmo. O parceiro de negócios de Trump, Bill Zanker, disse à Bloomberg que o presidente aprovou cada uma das imagens: "Ele passa horas nisso. Ele gosta. Ele chama isso de pop art."

As vendas dos NFTs renderam alguns milhões de dólares, junto com a zombaria de muitos cantos (incluindo entre os mais ideológicos dentro do espaço criptográfico) e um relacionamento crescente com apoiadores de criptomoedas e líderes da indústria. "Ele se apaixonou por essa multidão: jovem, ambicioso, não regulamentado", disse Zanker.

Mas a trapaça e o narcisismo das coleções de NFT de Trump parecem empalidecer em comparação com sua última incursão em outro canto das criptomoedas: memecoins.

A moeda apropriadamente chamada $TRUMP de Trump, junto com Dogecoin, DogWifHat, FartCoin, Pudgy Penguin e dezenas de milhares de outras "memecoins" são criptomoedas inspiradas em memes ou piadas, sem pretensão de utilidade ou valor, além de inflar preços por meio de propaganda enganosa nas redes sociais, esperando que a moeda em que você apostou decole e, em seguida, despejá-las em investidores desavisados. Na verdade, somente em 13 de julho, logo após a tentativa fracassada de assassinar Trump na campanha eleitoral, mais de 2.000 memecoins relacionadas a Trump foram criadas no popular site de memecoins pump.fun.

Entre a miríade de memes relacionados a Trump, o token $TRUMP é a moeda "oficial" conectada ao próprio Trump. Na véspera de sua posse, enquanto os líderes da indústria estavam dando um luxuoso "Crypto Ball", com Snoop Dogg e Soulja Boy, com ingressos que custavam milhares de dólares, Trump não apareceu pessoalmente na gala. Em vez disso, ele estava ocupado lançando sua própria moeda.

Postando em sua conta Truth Social, ele escreveu: "Meu NOVO meme oficial de Trump está AQUI! É hora de celebrar tudo o que defendemos: VENCER!" Seu logotipo apresenta uma imagem retocada de Trump segurando seu punho no ar, sobreposta com as palavras "LUTA, LUTA, LUTA!"

A moeda Melania veio logo depois. E até mesmo o pastor da posse de Trump, Lorenzo Sewell, lançou a moeda Lorenzo com um vídeo acompanhante no Twitter/X poucas horas depois de ter feito sua benção inaugural: "Preciso que você me faça um favor e vá buscar essa moeda, para que possamos realizar a visão que Deus nos chamou para fazer em nossa terra."

Os adultos na sala

Para muitos na indústria, o presidente cripto vendendo sua própria memecoin azedou seu momento de euforia. Tom Schmidt, um sócio de uma empresa de capital de risco cripto Dragonfly, lamentou: "Eu realmente fiquei meio chateado quando vi. Parecia muito sujo e barato." Nic Carter, de outra empresa de investimento cripto, reclamou que o meme do presidente "faz o oposto de validar" a indústria. “Agora, prestes a obter alguma liberalização das regulamentações de criptomoedas neste país, a principal coisa que as pessoas estão pensando sobre criptomoedas é: ‘Ah, é só um cassino para essas moedas meme.’”

O que os adultos mais sérios na sala de criptomoedas querem são duas coisas: validação convencional e a capacidade de continuar operando sem regulamentação ou supervisão. Ironicamente, um movimento que foi fundado em uma ideologia libertária e antigovernamental passou a depender do próprio governo para forçar a abertura dessas portas. O ex-CEO do PayPal e agora o “Czar da IA ​​e Criptomoedas da Casa Branca” David Sacks anunciou no Crypto Ball: “O início da inovação na América para criptomoedas apenas começou.”

Na esteira da implosão espetacular da bolsa de criptomoedas não regulamentada de Sam Bankman-Fried, a FTX, o governo Biden e a SEC passaram dois anos entrando com queixas legais contra empresas de criptomoedas e deixando claro que a comissão considerava os ativos digitais como títulos — uma classificação que vem com supervisão significativa. Mas o governo não estava em posição de ir atrás de cada uma das centenas de milhares de novos tokens e ativos de criptomoedas. Em vez disso, ele mirou nas bolsas que as vendiam e também estabeleceu orientações para os bancos, desencorajando-os de oferecer serviços de custódia de criptomoedas aos seus clientes.

Na verdade, a guerra regulatória da SEC não era tão poderosa assim. Era uma tentativa de alcançar uma indústria que tinha permissão para criar suas próprias versões do Velho Oeste de ativos financeiros, sem barreiras para proteger milhões de novos investidores de criptomoedas todos os dias, cujo interesse foi despertado por uma avalanche de endossos de celebridades e a promessa de sair das dificuldades financeiras. Mas agora os bons tempos chegaram para a indústria novamente. O próprio Sacks já declarou publicamente que as memecoins de Trump e outros são itens colecionáveis, não títulos.

Certamente, a indústria cripto, voando alto com expectativas absurdamente elevadas, teve algumas decepções iniciais. Primeiro, Trump abandonou suas próprias memecoins, sem aviso ou discussão com os figurões da indústria que estavam ocupados celebrando sua posse no Crypto Ball. Então, em vez de nomear um "czar cripto" de dentro de sua indústria, o movimento cripto teve que se contentar em dividir os holofotes com a IA, com um "czar cripto e IA" que é meramente amigável e odeia regulamentações em vez de um verdadeiro crente em criptomoedas.

Finalmente, a tão esperada ordem executiva cripto essencialmente declarou o que já estava para acontecer: uma revisão desregulamentadora da SEC e da Commodity Futures Trading Commission (CFTC). Em vez de anunciar uma Reserva Estratégica de Bitcoin, a ordem estabelece um grupo de trabalho que irá "avaliar a potencial criação e manutenção de um estoque nacional de ativos digitais e propor critérios para estabelecer tal estoque". Isso desencadeou uma rodada de lutas internas dentro da indústria entre os puristas do Bitcoin que querem apenas Bitcoin no estoque e os proponentes de outros criptoativos, alguns dos quais parecem ter pressionado a administração para ampliar o escopo da reserva. No final das contas, a ordem foi principalmente simbólica e vaga — como disse a pesquisadora e crítica de criptomoedas Molly White, não significou "nada demais".

Mas quaisquer que sejam os detalhes e limitações, não há dúvida de que a criptomoeda já teve seu desejo principal realizado: poder brincar em sua sandbox multitrilionária com suas próprias regras para seu próprio benefício. Até mesmo a moeda $Trump, por mais atrevida e pouco séria que faça a indústria parecer, acabará levando muito mais consumidores desavisados ​​para o Velho Oeste da criptomoeda, promovendo uma adoção e crescimento mais amplos para a indústria como um todo. Mais pessoas e mais instituições financeiras tradicionais serão convencidas a investir em criptomoeda. E o espectro de ações de execução contra empresas que desenvolvem, vendem e promovem esses ativos desapareceu no passado — como se os bilhões de dólares perdidos em fraudes e golpes de criptomoedas nunca tivessem acontecido. Estes são dias realmente sombrios e cheios de memes.

Colaborador

Hadas Thier é um ativista em Nova York e autor de A People's Guide to Capitalism: An Introduction to Marxist Economics.

Líderes latino-americanos estão resistindo a Trump

A beligerância de Donald Trump em relação aos líderes latino-americanos levanta a perspectiva de uma resistência regional mais concertada, uma que seu popular bloco de esquerda está bem posicionado para liderar.

Cruz Bonlarron Martínez


O presidente colombiano Gustavo Petro, fotografado em 9 de julho de 2024. (Sebastian Barros / NurPhoto via Getty Images)

Os primeiros dias de Donald Trump no cargo provaram que sua retórica isolacionista anterior sempre foi uma fachada. Declarações sobre a conquista da Groenlândia, a "retomada" do Canal do Panamá e a invasão do México viraram manchetes; parece que a administração acabou com as formalidades do imperialismo de "dieta" e abraçou completamente a versão superdimensionada de Trump. Mas como todos os glutões, ele pode ter mordido mais do que pode mastigar.

No domingo, Trump entrou em um duelo de palavras com o presidente esquerdista da Colômbia, Gustavo Petro, que se recusou a aceitar um avião militar dos EUA com imigrantes colombianos algemados. Como o conteúdo das postagens de mídia social de Trump e Petro circulou na mídia dos EUA, grande parte dela reivindicou Trump como o vencedor e rapidamente passou para o próximo escândalo. No entanto, se a mídia tivesse escolhido prestar atenção um pouco mais, teria visto que o desafio público de Petro a Trump funcionou; a administração Trump concordou em permitir que os imigrantes retornassem para casa de forma digna e decidiu não aplicar nenhuma das sanções que Trump ameaçou. No dia seguinte, os mesmos colombianos que estavam algemados anteriormente chegaram a Bogotá sem algemas no avião presidencial colombiano.

Os repórteres correram para entrevistar os migrantes assim que eles desceram as escadas para a pista. As histórias que eles contaram foram um testemunho da crueldade do governo Trump e da desumanização dos migrantes que caracterizou a política dos EUA no ano passado. Enquanto muitos corriam diante das câmeras, uma mulher com uma criança nos braços parou para contar sua história. Ela disse que cruzou o deserto de Sonora com seu filho quando foi roubada por coiotes e forçada a passar fome, apenas para ser apreendida pelo Immigration and Customs Enforcement (ICE) e forçada a ficar detida. Ela terminou dizendo que as pessoas estão sendo mantidas sob custódia e há pessoas desaparecidas — uma frase que remonta a alguns dos dias mais sombrios da história da América Latina, quando ditaduras militares e paramilitares desapareciam à força os elementos "indesejáveis" da sociedade, fossem esquerdistas, sindicalistas, pessoas queer, viciados em drogas, profissionais do sexo ou apenas pessoas pobres no lugar errado na hora errada.

Outro homem, José Erick, um requerente de asilo, foi entrevistado por repórteres no saguão do aeroporto, contando uma história semelhante de cruzar o deserto e ser forçado a suportar privação de sono sob custódia do ICE, uma prática que a jornalista colombiana Diana Carolina Alfonso identifica como uma forma de tortura, proibida pelo direito internacional. Erick então contou a história de como ele estava buscando asilo para se juntar ao resto de sua família nos Estados Unidos e escapar da violência, um problema na Colômbia alimentado por armas que são fabricadas nos Estados Unidos. Outro homem foi convidado a responder às acusações de Trump de que os que estavam a bordo eram criminosos. "Sou um engenheiro mecatrônico", ele respondeu. "Trump precisa de melhores conselhos sobre quem estava naquele avião."

O retorno altamente divulgado dos imigrantes em condições mais humanas expôs para a América Latina e o Caribe os horrores da política interna e externa de Trump. Para Petro, esta foi uma vitória moral.
O presidente Petro também lançou as bases para uma coalizão regional que poderia superar as divisões ideológicas e unir a maioria da América Latina em torno de uma agenda compartilhada diante das ameaças do governo Trump, incluindo tarifas. Isso assumiu a forma de uma reunião de emergência da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) convocada em Honduras pela presidente daquele país, Xiomara Castro. Embora a reunião tenha sido cancelada quando a Colômbia e os Estados Unidos chegaram a um acordo, outros líderes têm demonstrado seu desdém pelo tratamento de Trump aos seus cidadãos.

Claudia Sheinbaum, presidente de esquerda do México, também ganhou as manchetes por sua resposta irônica a Trump, particularmente sua proposta de mudar o nome do Golfo do México para "Golfo da América". Ela respondeu propondo que o continente da América do Norte mudasse seu nome para "América Mexicana", citando um mapa espanhol da era colonial como evidência.

Em resposta à recente aprovação do Google à mudança de nome de Trump, o Ministério das Relações Exteriores do México enviou uma reclamação formal à empresa, lembrando-os de que ela violava o direito internacional. No entanto, apesar de um breve período de negação de um voo de deportação na semana passada, o México tem sido diplomático sobre como planeja receber migrantes. Ainda assim, se as coisas esquentarem, ele pode negar o uso de seu espaço aéreo ao governo Trump, tornando seus voos de deportação para outros países extremamente custosos.

O governo Trump não perdeu tempo em alienar até mesmo possíveis aliados regionais além dos governos de extrema direita de El Salvador e Argentina. Até mesmo o presidente de centro-direita do Panamá, José Raúl Mulino, se viu em uma posição embaraçosa depois que Trump atacou o país em discursos alegando falsamente que o Canal do Panamá está nas mãos da China e que os Estados Unidos podem precisar "retomar" o canal. Mulino deixou claro que essas declarações violam os Tratados Torrijos-Carter, que devolveram a soberania do canal ao povo panamenho em 1999, após quase um século de ocupação dos EUA.

O fato de Trump ter atacado alguns dos aliados tradicionais dos Estados Unidos na região pode levar seus líderes a buscarem fortalecer as relações com a China, Rússia e Europa e dar impulso a uma nova onda de integração latino-americana. A perspectiva de uma resposta latino-americana concertada ao governo Trump entre as divisões esquerda-direita continua improvável, mas a recente agressão dos EUA e um bloco de esquerda popular na região a tornaram muito menos remota. Esse bloco por si só pode colocar uma pressão significativa sobre o atual governo. Mesmo com os partidos alternando o poder, a desumanidade das ações recentes dos Estados Unidos não será esquecida tão cedo.

Colaborador

Cruz Bonlarron Martínez é um escritor independente e foi bolsista Fulbright na Colômbia de 2021 a 2022. Seus escritos sobre política, direitos humanos e cultura na América Latina e na diáspora latino-americana apareceram em várias publicações dos EUA e internacionais.

Fogo e faísca

Os contos de fadas do capital.

Dylan Riley

Sidecar


Ao longo da década de 2010, Larry Summers insistiu repetidamente que as leis do progresso tecnológico haviam neutralizado o problema do superinvestimento. Como sua suposta inspiração, ele citou a ideia de Hansen de que as empresas estavam sobrecarregadas com enormes investimentos fixos, incapazes de levantar apostas e, portanto, presas no atoleiro do longo prazo. Agora, o conto de fadas de Summers dizia que smartphones, aplicativos, chamadas de Zoom e espaço de escritório alugado por hora haviam mudado a equação, de modo que um escritório de advocacia poderia ser administrado no porão de alguém. Nessa inversão perfeita e paradoxal da fórmula original de Hansen, a estagnação secular do período contemporâneo se deveu ao fato de que iniciar um empreendimento era tão fácil e exigia tão pouco capital. O capital não estava preso; ele apenas se tornou desnecessário.

Oh, que diferença alguns anos fazem. Quando a DeepSeek eliminou US$ 600 bilhões da capitalização de mercado da Nvidia, isso sinalizou que os investimentos massivos dos gigantes da IA ​​— todos aqueles data centers e chips comprados a um grande custo — estavam sujeitos a perder seu valor. Se ao menos os senhores do Vale do Silício tivessem lido seu Aftalion, que comparou o ritmo do investimento a pessoas empilhando toras no fogo em uma sala fria até que de repente elas a transformassem em uma sauna escaldante. A única solução? Correr para as saídas – isto é, cortar seus investimentos e defender o valor do que eles têm.

Mas não, eles nunca se depararam, ou entenderam, ou se entenderam então esqueceram, a metáfora do francês. Então eles simplesmente recorreram à intolerância xenófoba. Os chineses, eles insistiram, não poderiam ser tão "criativos" quanto os californianos. Sua tecnologia era falsa; os testes eram falsos; eles tinham recebido uma vantagem de seu governo, cuja propaganda eles estavam ajudando a difundir. (Presumivelmente, eles esperavam que ninguém olhasse muito profundamente para sua própria posição comprometida a esse respeito).

Um dos pequenos prazeres dialéticos que ainda resta a quaisquer inteligências que permaneçam não incorporadas é observar, neste momento, quão profundamente os capitalistas odeiam o capitalismo, com todas as suas leis e contradições invioláveis. E assim, em mais uma demonstração da não linearidade da relevância, voltamo-nos mais uma vez para o Sr. Ulyanov com sua palestra sobre os estágios mais altos e a transmutação da luta econômica em uma luta diretamente política; aguardamos a faísca, caro camarada, aguardamos a faísca!

"O Brutalista"

Tudo fala nos filmes de Brady Corbet, especialmente as cenas e objetos que são silenciosos.

Michael Wood


Vol. 47 No. 2 · 6 February 2025

Tudo fala nos filmes de Brady Corbet, especialmente as cenas e objetos que são silenciosos. Uma face nevada de uma montanha italiana parece ser algum tipo de fábula, a Estátua da Liberdade aparece de cabeça para baixo em um céu vazio, o mundo gira no final de uma carreata francesa como se tivesse enlouquecido. Corbet gosta de filmar carros à noite, onde vemos principalmente uma tela escura e apenas algumas luzes em movimento. Ou de carros durante o dia, onde tudo o que vemos é a estrada correndo em nossa direção. Se estamos em uma boate, ela está lotada e estamos muito perto das figuras dançantes - elas parecem estar prestes a cair da tela para as primeiras filas do cinema. Em uma escola onde ocorre um tiroteio, a cena tem uma curiosa intimidade, como se as crianças estivessem assustadas, mas não chocadas - o atirador é uma delas.

A comitiva e a escola aparecem em The Childhood of a Leader (2015) e Vox Lux (2018), de Corbet, histórias de um político que se parece com Hitler e uma cantora que se parece tanto com Britney Spears quanto com Lady Gaga. O restante das imagens descritas acima são de The Brutalist, o filme mais recente de Corbet. O herói é um arquiteto formado na Bauhaus, e algumas cadeiras de Mies van der Rohe têm fortes participações especiais no filme. Está claro que todos os três filmes são sobre fama: fama e poder, fama e arte. Todos os três são escritos por Corbet e Mona Fastvold.

De certa forma, todos seguem o modelo do primeiro filme, baseado em um conto de Jean-Paul Sartre de 1939. Eles dramatizam perguntas em vez de respondê-las. Quão brutal ou prejudicial sua infância tem que ser para fazer de você um grande ditador ou uma estrela pop memorável? As palavras de conexão são "por causa de" ou "apesar de"? Ou não há nenhuma causalidade aqui, apenas uma espécie de coexistência desconcertante? Os filmes estão apaixonados por uma ideia feia de acaso? Essa possibilidade parece especialmente relevante para The Brutalist.

O herói é um húngaro chamado László Tóth, brilhantemente interpretado por uma escala errática de humores por Adrien Brody. O ano é 1947. Ele sobreviveu a Buchenwald e o encontramos em uma multidão agitada saindo de um barco em Nova York. Ele visita um bordel para se sentir bem-vindo e segue para Filadélfia, onde um primo o aguarda. Fica claro que o primo alegre, Átila (Alessandro Nivola), dono de uma loja de móveis, pretende explorar os talentos de Tóth como designer de interiores, sem perceber que Tóth foi, antes e durante a guerra, um arquiteto de considerável reputação. É aqui que o acaso joga seu primeiro grande jogo.

Um jovem rico (Joe Alwyn) quer que os húngaros convertam um cômodo da casa palaciana de sua família em uma biblioteca grandiosa. A conversão será um presente para o pai do garoto, que atualmente não sabe nada sobre isso. Tóth e um grupo de trabalhadores produzem uma obra-prima da Bauhaus – aqui e na loja de Attila é onde vemos as famosas cadeiras. O cômodo parece vazio, austero e modernista; poderíamos até dizer brutalista. O OED data o primeiro uso da palavra em 1934 e nos diz que significa "aquele que exibe brutalismo". Um pouco tautológico, mas os exemplos do dicionário se referem principalmente à arquitetura e deixam o significado claro. Veja este exemplo do Guardian em 1959: "O Churchill College em Cambridge será construído por um arquiteto moderno – talvez até mesmo por um "novo brutalista"." Tóth oferece um significado mais interessante quando mais tarde fala sobre mostrar materiais de construção, concreto, por exemplo, em sua luz natural. Ele não usa a palavra "brutalista", mas está se referindo a uma derivação intrigante da palavra. Dizem que vem da palavra francesa brut, que significa "cru".

Previsivelmente, o pai do jovem, Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), não gosta do presente. Ele sente que seu quarto foi arruinado, como aconteceu em certo sentido, e seu filho se recusa a pagar a Átila qualquer quantia do dinheiro que lhe deve. Átila se compensa expulsando Tóth de sua casa e emprego, e o vemos em seguida como um trabalhador retirando carvão de uma construção. Ele não está infeliz, mas esta não é a Bauhaus. E então o acaso lhe concede o início de uma bela amizade.

Harrison acidentalmente descobre quem era Tóth na Hungria e brande artigos de revista sobre ele quando eles se encontram. Ele não está apenas impressionado, e não paga Tóth apenas pelo trabalho que ele já fez. Ele quer contratá-lo para projetar um vasto edifício a ser construído no terreno de sua casa, um centro comunitário combinando salas de reunião, uma academia, uma biblioteca (claro), uma capela. Este projeto se torna realidade, e o filme se perde por uma hora ou mais enquanto os construtores e consultores locais dão trabalho ao artista estrangeiro. Nada de arriscado nisso, e de certa forma é um alívio chegar ao intervalo de quinze minutos.

O acaso intervém novamente na segunda metade do filme quando um trem carregando materiais de construção para o projeto de Harrison sai dos trilhos e duas pessoas morrem no acidente. Harrison, como comprador dos materiais, é responsabilizado e cancela tudo. Isso significa que Tóth é demitido e o vemos em seguida copiando planos para um arquiteto em Nova York. Outro evento importante ocorreu, no entanto. Quando no início do filme ele estava lutando para sair do barco em Nova York, uma narração leu para nós uma carta de sua esposa, Erzsébet (Felicity Jones), que estava em Dachau e foi libertada pelos russos. Ela pensa em Tóth e ela como ainda casados. Ele pensa neles como separados, e ele não fez nenhum esforço para trazê-la para a América. Ele faz agora, com a ajuda de um dos amigos advogados de Harrison. Quando ela chega, seu novo começo é desconfortável, mas as coisas melhoram.

A relação de Tóth com Harrison piora. Eles, às vezes, pareciam gostar um do outro e certamente estavam interessados ​​no que o outro representava. Mas Tóth, ao que parece, havia investido emocionalmente na amizade e Harrison era incapaz de investir em qualquer coisa além da vaidade. Quando os dois homens visitam Carrara para comprar um pouco de mármore para o projeto agora reativado - é aqui que vemos o rosto da montanha falante - ambos ficam muito bêbados em um bar parecido com uma caverna e Harrison estupra Tóth. Esta é uma expressão de superioridade, não de desejo. Nós vemos isso acontecendo, mas o efeito é mais como o dos carros no escuro. Observamos Harrison de trás, mas não temos nenhuma noção real do que ele está fazendo com a forma negra quase invisível de Tóth. O evento é confirmado para nós, ou anunciado para nós, pela marcha posterior de Erzsébet para a casa de Harrison e o acusando publicamente. O filme realmente termina aí. Harrison desaparece, e um epílogo nos leva a Veneza em 1980, onde uma exposição retrospectiva celebra o trabalho de Tóth.

Muita coisa acontece na segunda metade do filme, mas Corbet, intencionalmente, eu acho, faz muito pouco esforço para conectar os pontos. O judaísmo de Tóth é sinalizado, mas não interpretado; o mesmo vale para seu vício em heroína e seus ataques de mau humor, que brevemente o fazem parecer um cara mau. O efeito geral pode criar em nós uma nostalgia pela coerência nervosa da primeira parte. Há, no entanto, um refrão que ecoa pelo filme. Apesar da importância do significado arquitetônico do título, o outro significado, o significado errado, também está intimamente presente em todos os lugares, e Corbet nos tenta a acreditar que nada nem ninguém pode deixar de ter, um dia, seu encontro programado com a brutalidade.

Não vá em silêncio: Fábulas de Ken Loach

O realismo se tornou social na obra de Ken Loach ao absorver o máximo que se poderia razoavelmente esperar da vida que não absorvemos, ou escolhemos ignorar, mesmo que permaneçamos cientes de sua existência.

David Trotter


Vol. 47 No. 2 · 6 February 2025

Kes
por David Forrest.
BFI, 112 pp., £ 12,99, maio de 2024, 978 1 83902 564 8

Philip Larkin​ afirmou que a relação sexual começou em 1963, entre o fim da proibição de Chatterley e o primeiro LP dos Beatles. Uma aposta melhor (embora destruidora de rimas) poderia ter sido 1965, quando a BBC One transmitiu Up the Junction, um retrato de grupo turbulento de mulheres trabalhando em uma fábrica de chocolate em Battersea e no pull em Clapham, em seu horário de quarta-feira. Mary Whitehouse, presidente da recém-formada National Viewers' and Listeners' Association, certamente entendeu o memorando. "A BBC", ela reclamou em uma carta ao então ministro da saúde, Kenneth Robinson, "está determinada a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para apresentar a promiscuidade como algo normal."

Up the Junction, baseado em um livro de Nell Dunn, foi a primeira colaboração entre Ken Loach, que entrou para a BBC como diretor estagiário em 1963, e Tony Garnett, que havia sido contratado por James MacTaggart, produtor da série Wednesday Play, como editor de histórias e caça-talentos. Aproveitando que MacTaggart estava de férias, Garnett investiu recursos suficientes no projeto para garantir que seria muito caro cancelá-lo quando ele voltasse. Segundo seu relato, uma ‘enorme e apoplética discussão de stand-up se seguiu’, tanto sobre a falta de estrutura narrativa da peça quanto sobre seu ‘conteúdo controverso’, antes que MacTaggart, que sabia reconhecer uma obra original quando a via, encontrasse uma maneira de recuar graciosamente. Pois se a relação sexual não começou com Up the Junction, então outra coisa começou. Uma peça de televisão feita com um cronograma rigoroso para preencher uma vaga em uma série estabeleceu uma referência para o novo e extremamente influente estilo de produção cinematográfica que desde então passou a ser conhecido como realismo social.

Antevisão de Up the Junction no Radio Times – uma plataforma improvável para um manifesto – Garnett caracterizou Battersea como uma área de "empregos sem futuro, casas em ruínas, ruas sujas", seus habitantes "explorados, maltratados ou simplesmente convenientemente esquecidos". O propósito da peça era tornar tanto o lugar quanto as pessoas muito mais difíceis de esquecer. "Goste ou não", Garnett insistiu, "isso é aqui, agora, 1965". Ele havia orçado vários dias de filmagem em filme de 16 mm em locações em Clapham Junction e em outros lugares, uma concessão ao impulso documental quase inédito na época na produção de drama televisivo em estúdio. A cena é definida por uma montagem de tomadas breves e estabelecidas. Então somos apresentados aos três personagens principais, Rube (Geraldine Sherman), Sylvie (Carol White) e Eileen (Vickery Turner), por meio de uma panorâmica de uma placa para a estação Clapham Junction que os encaixa exatamente em um lugar e tempo. A estrutura solta e episódica da peça permite improvisação. O que Loach chamaria de "um tipo de produção cinematográfica do tipo vá e agarre" segue os atores — em sua maioria novatos ou não profissionais — enquanto eles se movem por locais reais entre pessoas reais cuidando de seus negócios comuns. Mais tarde, depois que Eileen e um homem que ela pegou fizeram sexo em um prédio abandonado, há uma montagem adicional de uma dúzia de tomadas — muito mais do que o mero efeito de realidade exigiria — de trabalhadores demolindo uma fileira de casas. Pode-se dizer que o realismo social revive junto com o uso familiar do termo "circunstância" para indicar uma condição ou estado de coisas - os tipos de "negócio bruto" (pobreza, falta de moradia, vício) que permaneceriam como seu tópico principal - um significado muito mais antigo e agora obsoleto: a totalidade das coisas imediatamente ao redor.

É costume localizar as origens do realismo social na era imediatamente pós-guerra de epítetos quando "jovens raivosos" eram vistos destruindo tudo no trabalho e em casa, na maioria das vezes sem muita consideração à "pia da cozinha" supostamente instalada em algum lugar da casa. Romances de Stan Barstow, John Braine, Alan Sillitoe, David Storey e outros enquadraram histórias contadas do ponto de vista de um protagonista aspirante e/ou truculento da classe trabalhadora, geralmente do Norte, geralmente, mas nem sempre, do sexo masculino, como um Bildungsroman ou romance de educação moral e sentimental. Junto com peças de John Osborne e Shelagh Delaney, esses livros inspiraram um cinema britânico New Wave que, durante o início dos anos 1960, parecia que poderia rivalizar com seus celebrados equivalentes continentais em originalidade e escopo. Filmados em grande parte em locações, os filmes New Wave deram uma voz sem remorso a pessoas que o cinema convencional tinha, em grande parte, na frase de Garnett, "simplesmente esquecido convenientemente". Loach falou sobre ser atraído por escritores como Barstow, que compartilhavam sua formação e muitos de seus interesses. Os filmes dos livros, ele acrescenta, "não me afetaram em nada".

Esta isenção de responsabilidade sinaliza uma mudança de rumo. Um Bildungsroman é genericamente obrigado a filtrar a atenção para a totalidade das coisas imediatamente ao redor através do estreito calibre do ponto de vista único (embora não necessariamente não representativo) de um narrador/protagonista. O que importa é a intensidade com que essas figuras vivem. Como são todas atitudes, sua compreensão das coisas imediatamente ao redor tende ao provisório ou ao epifânico. Nas páginas finais de This Sporting Life (1960), de Storey, o jogador de rúgbi Arthur Machin faz o que pode ou não ser sua última aparição em campo. Sabendo que para ele o "jogo" (em mais do que um sentido esportivo) acabou, ele olha além de seu caos claustrofóbico para a "vida" ainda não "absorvida" por ele: para "os topos dos ônibus passando no final do campo, as luzes acesas dentro dos andares superiores, as pessoas sentadas descomprometidas atrás das janelas". Significativamente, talvez, do ponto de vista de Loach, a versão cinematográfica, dirigida por Lindsay Anderson, carece até mesmo desse grau de reconhecimento tardio, tendo acabado de gastar a maior parte de sua energia restante nos floreios expressionistas de uma cena de leito de morte. O realismo se tornou social na obra de Loach ao absorver o máximo que se poderia razoavelmente esperar da vida que não absorvemos, ou escolhemos ignorar, mesmo que permaneçamos cientes de sua existência.

Há muita ambição em exibição em Up the Junction, mas sua cristalização ocasional em atitude aberta serve menos como uma maneira de contar uma história do que como um objeto de análise. Trabalhadoras negras são proeminentes na camaradagem e nas sessões improvisadas de jive que animam a rotina diária na fábrica de chocolate Battersea. Mas sua presença, como a da equipe de demolição, não é um mero efeito de realidade. Garnett e Loach reconfiguram astutamente o episódio no romance em que um vendedor porta-a-porta – ‘Eu sou um contador, o nome é Barny. Tapetes, cuecas, utensílios de cozinha, o que você quiser, eu tenho’ – leva o narrador em um passeio por Wandsworth, Clapham e Brixton em sua van Austin. No filme, Barny (George Sewell) fala por cima do ombro para (ou para) uma presença invisível não identificada na parte de trás da van. ‘Depois que você coloca o pé na porta’, ele se gaba, ‘você tem que mantê-lo lá’. Essa exposição de método logo adquire um tom mais desagradável. Em Brixton, Barny nos informa que 60 por cento de suas ligações são para clientes negros. Não demoraria muito para que Enoch Powell construísse seu discurso sobre "rios de sangue" em torno da história de uma aposentada que, tendo perdido o marido e dois filhos na guerra, se viu praticamente a única moradora branca em sua rua.

Há, no entanto, um lado externo na reclamação crescente de Barny, contra o qual ela pode ser medida. Uma tomada em estilo documentário da janela da van mostra duas mulheres negras inspecionando uma vitrine. "Eu sou como o grande caçador branco", Barny confidencia. "No fundo das ruas você pode praticamente ouvir os tambores tocando." Uma das mulheres se vira para olhar descaradamente para a câmera. Mas ela já foi forçada a entrar na fantasia colonial de Barny. "Estou farto desses mestiços", ele continua. O racismo não é o efeito compreensível, como Powell gostaria que seus ouvintes acreditassem, de uma percepção do dano causado a comunidades há muito estabelecidas pela imigração em massa. É, antes, um projeto que requer para sua conclusão bem-sucedida a instituição completa de uma ideia de "raça": do escândalo de um rosto negro em uma rua branca. Uma vinheta excruciante mostra Barny em pleno fluxo enquanto ele persuade um homem a comprar um terno - "Eu vendo muitos desses ternos para o seu tipo de gente" - embora o paletó seja evidentemente pequeno demais para ele. Então o bebê do homem começa a chorar, e Barny vagueia até o berço. "Que adorável picaninny", ele exala. O racismo é o plano de negócios de Barny. "Estou usando meu cérebro da melhor maneira possível", ele explica. "É o que os conservadores chamam de livre iniciativa."

Up the Junction foi a primeira vez que Garnett e Loach trabalharam com Carol White, a "Battersea Bardot", que em 1966 estrelaria a peça de quarta-feira mais famosa de todas, Cathy Come Home, transmitida para um público de doze milhões de pessoas. Up the Junction é um filme sobre resiliência coletiva, seu clima tão alegre em sua conclusão quanto no início. Cathy Come Home, por outro lado, baseado em um roteiro de Jeremy Sandford, adapta o realismo social à história de um único protagonista envolvido em uma luta pela sobrevivência contra probabilidades aparentemente insuperáveis. Uma série de erros e infortúnios leva Cathy, seu marido, Reg (Ray Brooks), e seus três filhos cada vez mais fundo na pobreza e, eventualmente, separados. Durante todo o filme, o foco permanece em Cathy, que faz comentários intermitentes sobre o crescente desespero de sua busca por um lugar para morar. Sandford sentiu que Cathy deveria ser considerada "irrepreensível". Ela é, de fato, o produto puro da convenção melodramática: uma inocente vitimada pelo preconceito institucional e pela negligência. A peça cria um contexto para o estado de coisas em que ela se encontra, desenvolvendo ainda mais as técnicas usadas em Up the Junction para absorver a totalidade das coisas imediatamente ao redor. Quando Reg sofre um acidente no trabalho, a família tem que se mudar para a casa da mãe dele, a quem vemos subindo as escadas para o apartamento dela enquanto vários falantes não identificados comentam em voz off sobre as restrições da acomodação que eles logo compartilharão. "Acho que este é o único bloco de apartamentos em Islington", comenta um deles, "onde você pode sentar no vaso sanitário com a porta aberta e preparar seu café da manhã ao mesmo tempo". Cathy Come Home inaugura a forma narrativa mais duradoura do realismo social, o melodrama das circunstâncias.

No final da década de 1960, Loach e Garnett estavam prontos para deixar a BBC, onde o regime liberal supervisionado por Hugh Greene estava chegando ao fim. Loach já havia feito uma aventura completamente insatisfatória no cinema com Poor Cow (1967), coestrelado por Carol White e Terence Stamp, este último recém-saído do grandioso Far from the Madding Crowd de John Schlesinger. Ele e Garnett decidiram criar uma produtora independente, a Kestrel Films, com o único propósito de levar às telas o romance ainda não publicado de Barry Hines, A Kestrel for a Knave, uma história sobre o senso de propósito incutido em um rejeitado da escola muito criticado por sua captura e treinamento consciente de um falcão. A produção de Kes (1969) foi, como David Forrest explica em sua adição completamente informativa à série BFI Film Classics, ao mesmo tempo uma conquista local e coletiva. Loach testemunhou as semelhanças de experiência e perspectiva que tornaram o trabalho com Hines, que nasceu e foi criado na vila mineira de Hoyland Common, em Yorkshire, um prazer. Eles filmaram na St Helen’s School em Athersley, onde Hines passou dois anos como chefe de educação física, e onde encontraram David Bradley, que interpreta Billy Casper, de 15 anos. "Ele era apenas uma das crianças da classe que tinha a idade certa", lembrou Loach. "O peneireiro, ou peneireiros, na verdade — que eram chamados de Freeman, Hardy e Willis — foram treinados pelo irmão de Barry, Richard, que mostrou a David como trabalhar com os pássaros. Tudo tinha o tamanho apropriado." O senso de "tamanho apropriado" de Loach continua sendo até hoje a chave para sua conquista como cineasta.

Kes marcou um afastamento consciente do estilo "entrar e agarrar" de Up the Junction. O objetivo agora era observar, com simpatia, à distância, mas ainda com o objetivo de evitar, tanto quanto possível, qualquer suspeita de ensaio extensivo. Loach explicou que grande parte de sua "direção" consiste na criação de eventos fora das câmeras aos quais os atores têm que responder. ‘Muito esforço tem que ser feito nas circunstâncias em que eles podem trabalhar.’ Há muito tempo é sua prática filmar sempre que possível na ordem cronológica dos eventos, com os atores não autorizados a ler o roteiro à frente, para que eles só descubram o que vai acontecer conforme acontece. O capítulo de Forrest sobre a produção do filme conclui com algumas páginas ponderadas sobre as implicações éticas dessa demanda intransigente por autenticidade quando se trata do uso de atores mirins. Bradley teve algum sucesso como ator na década de 1970, mas para todos os efeitos sua carreira começou e terminou aos quinze anos. Ele é, como Forrest coloca, ‘definido inteiramente pelo filme’.

Billy Casper não estaria totalmente deslocado em Oliver Twist (1948), de David Lean. Sua magreza física o identifica desde o início como um arquetípico abandonado. Ele está prestes a deixar a escola e não tem perspectivas além da mina que emprega seu irmão mais velho, Jud (Freddie Fletcher); pode nem haver um emprego lá, como Jud se esforça para apontar, para um "pequeno idiota magricela". A história da implacável vitimização de Billy, tanto na escola quanto em casa, preenche amplamente a exigência de pathos do melodrama. Como Hines, Loach sentiu que poderia ter sido mais simpático a Jud, que tem problemas próprios que nem o romance nem o filme jamais admitem totalmente. Jud ataca Billy e mata o falcão, mas foi provocado a isso por Billy gastar — em peixe com batatas fritas — o dinheiro que Jud lhe deu com o propósito de fazer uma aposta. A aposta (bem calculada, como se vê) teria rendido a Jud uma semana bem-vinda de folga do trabalho. É vital para o sucesso do romance e do filme, no entanto, que a exigência de pathos que faz do irmão mais velho um vilão profundo não procure separar o bem do mal no mais novo. Ao contrário de Cathy, Billy não pode ser considerado inocente: há tanto Artful Dodger nele quanto Oliver Twist. Um rascunho inicial do roteiro o apresenta como um membro importante de uma gangue de bandidos colegiais. Nos primeiros dez minutos da versão filmada, ele consegue uma brincadeira levemente perigosa e alguns atos de pequenos furtos.

Para aqueles em posição de autoridade, o impulso que informa o comportamento de Billy parece muito com pura recalcitrância (do verbo latino que significa chutar para trás, como um animal faria). Mas não é nada disso. Aprendemos a reconhecer em suas repentinas acessões de energia — cada uma um passo ou estocada para a frente — uma espécie de desatenção. A conquista do filme é sustentar uma fé romântica ou amplamente humanista na criatividade inerente da negligência, ao mesmo tempo em que descreve de dentro, como o melodrama das circunstâncias exige, o dano causado pela negligência institucional. O realismo social tem consistentemente se interessado mais no fluxo radical que envolve o protagonista da saga da maioridade do que na ambição afiada em exibição no desfile induzido pelo Bildungsroman do cinema New Wave de jovens de vinte e poucos anos falantes. A negligência surge do fluxo e permanece por um intervalo penetrantemente lúcido como sua expressão primária.

A primeira cena da sala de aula dá o tom. O Sr. Crossley, interpretado por Trevor Hesketh, que havia ensinado Bradley, está lendo o registro. O silêncio cai quando ele alcança o nome de Fisher, que não parece estar presente. "German Bight", Billy interrompe. Quando Crossley se vira para ele, ele explica que a piada "acabou de sair. Fisher, German Bight. Essa é a previsão de embarque, senhor. Fisher, German Bight, Cromarty. Gosto de ouvir isso toda noite, senhor. Gosto de t’names.’ De todos os muitos tributos prestados ao encantamento regular noturno da BBC, o mais remoto em proveniência do Billy pode, em certo sentido, ser o mais pertinente a ele. Seamus Heaney certa vez atribuiu sua primeira compreensão das palavras como ‘portadoras de história e mistério’ aos ‘belos ritmos saltados da antiga previsão de embarque da BBC – Dogger, Rockall, Malin, Shetland, Faroes, Finisterre’. Esses ritmos incitaram Billy a uma investida visionária para a frente que escapa da zombaria grosseira de Crossley tão facilmente quanto do riso desdenhoso de seus colegas de classe. ‘Simplesmente saiu, senhor’, ele reitera.

No dia seguinte, Billy, tendo tentado acordar um de seus companheiros e tendo sido mandado pela mãe do garoto para "Cai fora, seu pequeno idiota", sai para a floresta — a paisagem "vasta e verdejante", como Forrest coloca, na qual ele está acostumado a "buscar consolo". Nesta ocasião, no entanto, o humor de Billy é menos do que bucólico. Ele bate violentamente na vegetação com um pedaço de pau e atira algo em um trecho de água que é mais um poço pós-industrial do que um riacho borbulhante. Ao chegar à orla da floresta, ele vê um falcão se lançar das ruínas de uma casa de fazenda em direção a um poste telefônico. Fascinado, ele escala um muro e começa a cruzar um campo. Observamos de sua perspectiva um homem e sua filha pequena emergindo de trás do prédio: "Cai fora, então", grita o homem. ‘Você não sabe que é propriedade privada?’ Billy diz que está lá apenas para ver os falcões. A próxima cena, que dura quase um minuto, é de trás do homem, enquanto Billy se aproxima dele e uma conversa se desenvolve, os dois parados lado a lado olhando para o ninho. É a primeira vez no filme que ele é tratado como um igual — como algo diferente de um pequeno idiota — por um adulto. Seu novo conhecido o aconselha que o que ele precisa para capturar e treinar um falcão é um livro da biblioteca. Rejeitado pelo bibliotecário (mais negligência institucional), ele devidamente pega um exemplar (estilo Dodger) de um sebo. Billy estará de volta à casa de fazenda em ruínas naquela noite para pegar um pássaro jovem. O consolo que ele busca não pode ser encontrado na natureza, mas em uma remoção da natureza da natureza mediada pela troca cultural, pela coleta de informações.

A negligência de Billy recebe sua derradeira justificativa quando o professor de inglês, Sr. Farthing (Colin Welland), convida a turma a considerar a diferença entre fato e ficção e, depois de muita persuasão, Billy é persuadido a falar sobre sua experiência de treinar Kes. Seu relato gradualmente ganha força à medida que ele toma o lugar de Farthing na frente da sala, ilustrando as técnicas de falcoaria com notável clareza tanto de palavras (jess, giro, coleira) quanto de gestos. Nós o vemos em close-up enquanto ele descreve a mistura de medo e admiração que sentiu enquanto esperava Kes retornar ao seu punho enluvado, "como um raio, cabeça parada, e você não conseguia ouvir as asas". A longa tomada termina em uma salva de palmas quando Billy declara: "Bem, era isso, senhor, eu a treinei". Pelo relato de Welland, a recepção que sua história recebe da turma foi "completamente improvisada". ‘Ficamos genuinamente comovidos e é isso que transparece.’ É porque o filme inteiro ocupa o espaço do intervalo lúcido de Billy que seu final pessimista parece menos uma conclusão do que uma pausa mantida indefinidamente.

Kes provou ser uma venda difícil. Falcoaria não é o tópico mais popular, enquanto a densidade dos sotaques de Yorkshire levou o próprio Garnett a se perguntar se o filme seria compreendido em qualquer lugar fora de Barnsley. A United Artists finalmente concordou em apoiá-lo, em um acordo intermediado por Tony Richardson, cuja Woodfall Films foi responsável por filmes New Wave como A Taste of Honey (1961) e The Loneliness of the Long-Distance Runner (1962). Obrigado a mostrar Kes a Eric Pleskow, um executivo da United Artists que por acaso estava em Londres, Garnett sentou-se ansiosamente no fundo do teatro. Quando as luzes se acenderam, Pleskow passou por ele ao sair sem nem mesmo diminuir o passo. ‘‘Eu teria preferido em húngaro’’, ele disse.’ Ainda assim, Kes finalmente conseguiu um lançamento geral. Seu sucesso comercial e de crítica, pelo menos no Reino Unido, serviu para estabelecer a reputação de Loach como diretor de longas-metragens.

Uma acusação às vezes feita contra o realismo social é que sua política é alegremente social-democrata. Ele continua contente com uma exposição dos efeitos da injustiça em vez de suas causas. Isso não é totalmente justo. Up the Junction, Cathy Come Home e Kes não carecem de análise de falha estrutural. Garnett e Loach, no entanto, parecem ter sentido que precisavam encontrar novas maneiras de pressionar essa análise para casa. No final da década de 1960, eles certamente estavam fartos da social-democracia. Seu afastamento doutrinário mais significativo foi The Big Flame, uma peça de quarta-feira transmitida em 19 de fevereiro de 1969, a partir de um roteiro do ex-mineiro e ativista Jim Allen, que vinha acompanhando com grande interesse o progresso de uma greve não oficial no porto de Merseyside. Na cena definidora da peça, um sindicalista militante convence o comitê de greve a buscar uma luta "política" em vez de meramente "econômica" contra os empregadores. O que aconteceria se, em vez de retirarem seu trabalho, os grevistas assumissem o controle das docas e as administrassem como um coletivo de trabalhadores? A traição por parte da liderança sindical, seguida de intervenção militar, acaba sendo a resposta; mas não antes de uma "grande chama" — o abraço da metáfora é revelador — ter sido acesa para que outros vissem. Os organizadores da greve são condenados e enviados para a prisão. The Big Flame faz uso extensivo de narração não identificada e montagem descritiva para dar o devido peso à experiência da base durante a greve. Mas é tanto uma fábula quanto um melodrama de circunstâncias. A fábula contém uma fórmula para a história da aspiração da classe trabalhadora à agência política sob o capitalismo: traição mais martírio é igual a fracasso heróico.

Garnett disse que ele e Loach queriam que The Big Flame "fosse verdade, tivesse a textura do mundo, como o mundo realmente é", ao mesmo tempo em que admitia que é "propaganda direta". Uma decisão sobre o gênero logo removeria a fábula completamente dos tipos de "textura" possibilitados pela preferência do realismo social por um cenário contemporâneo. A televisão, de forma um tanto inesperada, tornou essa mudança de ênfase possível. Days of Hope, uma colaboração posterior com Allen, foi transmitida pela BBC em setembro e outubro de 1975, durante um período de instabilidade econômica e a politização generalizada das relações industriais, enquanto os governos conservador e trabalhista buscavam sucessivamente lidar com essa instabilidade por meio de contenção salarial. Suas quatro partes registram episódios de fracasso heróico, do tratamento selvagem de objetores de consciência durante a Primeira Guerra Mundial ao colapso da Greve Geral de 1926, passando pelo envolvimento de vários membros de uma família da classe trabalhadora do Norte, fornecendo assim um contra-roteiro revolucionário à ideologia levemente reformista de dramas de época bem-sucedidos, como The Forsyte Saga e Upstairs, Downstairs. O último e mais longo dos quatro filmes coloca a culpa pelo fracasso da Greve Geral diretamente na traição da militância da classe trabalhadora pela liderança do Trades Union Congress e dos Partidos Trabalhista e Comunista. Isso é considerado propaganda, paciente, ousado e admiravelmente sério, e deu origem a um amplo debate - incluindo o elogio final de uma repreensão desdenhosa de Margaret Thatcher, durante seu primeiro discurso na Conferência do Partido Conservador como líder da oposição, em 10 de outubro de 1975.

Mas havia um preço a ser pago. Days of Hope luta uma batalha perdida contra as convenções do drama de época, que complicam qualquer esforço para reconciliar as reivindicações da propaganda com as da textura do mundo. Quer você goste ou não, como Garnett provavelmente não comentou com Loach, isso estava lá, então: 1916, 1921, 1924, 1926. Os dois primeiros filmes adotam técnicas de observação testadas e comprovadas, como o uso de uma câmera móvel para seguir o movimento através de um espaço físico e social com o qual gradualmente nos tornamos familiarizados. Mas os locais foram inevitavelmente adulterados, enquanto os veículos antigos novos em folha — limusines, táxis, ônibus, vans, carroças, carros blindados — são uma distração constante, mais brinquedo do que acessório. À medida que a fábula se desenvolve, o diálogo se transforma em dissertação. Com a intenção de desenvolver uma tese, os filmes têm menos tempo para um burburinho de vozes não identificadas.

Pode-se dizer que mais dois dramas históricos completaram a transição de Loach de diretor de peças de televisão emblemáticas para diretor de filmes de arte financiados internacionalmente com um público entusiasmado, embora um pouco mais disperso: Land and Freedom (1995) e The Wind that Shakes the Barley (2006), ambos produzidos por Rebecca O'Brien, um escrito por Allen, o outro por Paul Laverty. Essas reconstruções épicas de episódios-chave da Guerra Civil Espanhola e da Guerra da Independência da Irlanda certamente tiveram sucesso em agitar o debate político. Sua propaganda também é considerada. Mas, como Days of Hope, eles são, na minha opinião, inibidos como dramas por sua adesão à fórmula Big Flame. É uma fórmula que Loach já havia começado a articular como ativista político. O discurso que ele fez em Islington em apoio à candidatura de Jeremy Corbyn durante a eleição geral de 2024 se volta precisamente para a memória do fracasso heróico (a greve dos mineiros de 1984-85) como uma reprovação viva à "traição" serial da liderança do Partido Trabalhista (Kinnock, Hattersley, Blair, Brown, Starmer). Por esse cálculo, o fim do jogo ainda é o martírio: expulsão do partido usado "como um distintivo de honra, orgulhosamente". Em setembro do ano passado, Loach compareceu a uma reunião privada do Collective, uma organização dedicada ao estabelecimento de um "novo partido político de esquerda com filiação em massa".

A rejeição da social-democracia pelo ativista não restringiu os usos criativos que o cineasta conseguiu encontrar para o comprometimento do realismo social com a textura do mundo. Nunca mais feliz do que quando mergulhado em densas concentrações de discurso vernáculo, Loach embarcou no final da década de 1990 em uma "trilogia" escocesa: My Name Is Joe (1998), Sweet Sixteen (2002) e Ae Fond Kiss ... (2004), todos produzidos por O'Brien e escritos por Laverty, um advogado de direitos civis que originalmente lhe enviou um roteiro baseado em suas próprias experiências na Nicarágua, que se tornou Carla's Song (1996). Loach descreveu My Name Is Joe como uma "história de amor" sobre o relacionamento intermitente entre um alcoólatra em recuperação que treina um time de futebol para desempregados e um visitante de saúde responsável pela família de um dos jogadores. "É bem leve em alguns aspectos", acrescenta. Suas cenas mais gráficas envolvem violência doméstica, uso de drogas intravenosas, uma recaída no alcoolismo e suicídio. Se o "bem leve em alguns aspectos" de Loach faz você se perguntar o que ele pode entender por "bem sombrio em alguns aspectos", você não precisa procurar além de Sweet Sixteen. Liam (Martin Compson), de quinze anos, é um Billy Casper moderno, que não quer emprego nenhum, em vez de um que ele sabe que vai odiar. A negligência que ele dedica a sustentar sua mãe quando ela sai da prisão tem a consequência não totalmente não intencional de apresentá-lo aos rigores da guerra de gangues. "Você não lutou contra eles porque foi corajoso", comenta sua irmã mais velha, secamente, enquanto (mais uma vez) limpa suas feridas. "Você lutou contra eles porque não se importou com o que aconteceu com você." Afastando-se um pouco desse abismo de Clydeside, Loach embarcou em uma história de amor sobre o relacionamento intermitente entre um professor católico irlandês e um asiático de Glasgow de segunda geração que se formou como contador, mas aspira a algo um pouco mais aventureiro. Escrito com uma sutileza que não foge da aspereza de forma alguma, o filme se aproxima o suficiente do território da comédia romântica para evitar a melancolia da canção de Burns que fornece seu título ('Ae fond kiss, and then we sever!').

É em grande parte graças ao exemplo de Loach que o realismo social continua sendo um recurso cultural potente e versátil para jovens cineastas com algo a dizer sobre a experiência da classe trabalhadora na Grã-Bretanha aqui e agora. Kes, Forrest observa, "conquistou um espaço no cinema britânico" para "representações matizadas e poéticas da política da infância", como Ratcatcher (1999), de Lynne Ramsay, Fish Tank (2009), de Andrea Arnold, The Unloved (2009), de Samantha Morton, e The Selfish Giant (2013), de Clio Barnard. Todos esses são filmes nos quais os jovens protagonistas "demonstram sua capacidade de amor, cuidado e habilidade, de outra forma não realizada", por meio de sua relação com os animais. Em cada caso, eu acrescentaria, é a desatenção essencial do protagonista - sua recusa em se encaixar ou ir embora em silêncio - que expõe a "política da infância". Se ampliarmos o foco o suficiente para incluir a negligência que não envolve animais, poderíamos adicionar Last Resort (2000), de Paweł Pawlikowski, This Is England (2006), de Shane Meadows, e, mais timidamente, Better Things (2008), de Duane Hopkins, e Aftersun (2022), de Charlotte Wells. Bird (2024), de Arnold, uma saga de amadurecimento ambientada na parte do norte de Kent onde ela cresceu, segue o manual de Loach em muitos aspectos (foi filmado na ordem cronológica dos eventos, no local, com uma mistura de atores estreantes e profissionais que nem sempre tiveram permissão para ler o roteiro). Há momentos em que a estética desordenada do filme, como se tivesse sido filmado em um telefone, começa a parecer o estilo "entre e agarre" responsável pela bravata estridente semelhante de Up the Junction. Um manual, no entanto, não é um modelo. Os animais proliferam em Bird. À medida que sua presença vívida se infiltra e, por fim, comanda o enredo, o social rende-se ao realismo mágico, a observação duramente conquistada a extratos de um bestiário.

Notavelmente, Loach ainda está nisso, em colaboração com Laverty e O'Brien, dirigindo The Old Oak (2023) aos 86 anos. A greve de 1984 continua sendo um importante ponto de referência em um filme ambientado em uma comunidade de mineração no Condado de Durham. À medida que a era heróica da militância sindical recua, no entanto, a ênfase de seu trabalho mudou mais uma vez. Agora, ele deposita mais fé na solidariedade cívica do que na política. Padrões diferentes moldam a narrativa: o calor das amizades entre um homem mais velho cansado do mundo e uma jovem mulher sem saber o que fazer em I, Daniel Blake (2016) e The Old Oak; ou a materialização milagrosa de um flash mob ou grupo de simpatizantes nas conclusões de Looking for Eric (2009) e The Old Oak — como dentes de dragão brotando da terra nua, mas joviais e surpreendentemente cooperativos. A dedução política pode ser que um movimento de massa no estilo Coletivo precisará começar no ativismo comunitário.

O filme recente com a melhor reivindicação de "tamanho apropriado" é Sorry We Missed You (2019), que narra a tensão intolerável colocada em uma família por uma batalha difícil contra a dívida. Ricky Turner (Kris Hitchen) é um motorista de van autônomo abandonado na economia de gig; sua esposa, Abby (Debbie Honeywood), uma enfermeira de cuidados que perdeu os pés; seu filho adolescente, Seb (o novato Rhys Stone), um Billy Casper que busca consolo no grafite em vez da falcoaria. Como em Kes, a dependência de Loach em lentes de foco longo serve para incorporar os protagonistas em um ambiente implacável. A "textura" do mundo se infiltra no filme com cada guarda de trânsito apaziguado, cada suave apaziguamento da mortificação causada pela incontinência ou demência incipiente. A ascensão de Seb e sua equipe ao outdoor elevado que eles propõem pintar com spray é tão descuidada quanto a escalada de Billy por uma parede de tijolos até o ninho dos falcões. Sorry We Missed You é o realismo social em sua forma mais implacável. Seu título adquire uma ressonância sombria à medida que os membros da família contam o custo emocional das disputas amargas que os separaram. A espiral descendente de Ricky culmina em uma surra selvagem. Na manhã seguinte, embora claramente não esteja apto para o trabalho, ele sai em sua van, enquanto Abby e Seb tentam em vão detê-lo. Acelerando ferozmente pela rua, ele pega uma lombada muito rápido. A cena demora apenas o suficiente para capturar o salto trêmulo da van no ar - um boletim final da totalidade das coisas imediatamente ao redor.

30 de janeiro de 2025

O drama político de "Ainda Estou Aqui" é comovente, mas retocado

No filme de Walter Salles indicado ao Oscar, Fernanda Torres interpreta uma mulher cuja família é despedaçada pela ditadura militar do Brasil.

Justin Chang


Cortesia da Sony Pictures Classics

Em 1970, seis anos após o início da ditadura militar no Brasil, Rubens Paiva, engenheiro civil e ex-político de esquerda, retornou ao país após anos de exílio autoimposto. Pouco depois de se estabelecer no Rio de Janeiro com sua esposa e seus cinco filhos, ele foi preso, em 20 de janeiro de 1971. Sua esposa, Eunice, também foi detida e interrogada, e ela nunca mais viu seu marido: só muito mais tarde foi confirmado que Rubens havia sido torturado e assassinado pouco depois de sua prisão. Nos anos que se seguiram, Eunice se formou em direito e se tornou uma defensora dos direitos humanos, trabalhando incansavelmente para garantir uma medida de justiça para seu marido e milhares de outras pessoas cujas vidas foram destruídas pela ditadura, que terminou em 1985.

O título de "Ainda Estou Aqui", o novo drama emocionante do diretor Walter Salles sobre a família Paiva, vem, como o próprio filme, de um livro de memórias de 2015 de Marcelo Rubens Paiva, o mais novo dos filhos de Rubens e Eunice. Pode ser lido como uma declaração desafiadora ou um lamento amargo. (Eunice é interpretada por Fernanda Torres, e sua performance soberbamente controlada é sutil e ampla o suficiente para acomodar qualquer possibilidade.) Quando o filme chega ao fim, décadas após o desaparecimento de Rubens, o fato de Eunice ainda estar aqui — que ela sobreviveu ao regime que destruiu sua família — é um orgulhoso testamento de sua força e resiliência. Mas sua resistência também foi uma derrota prolongada; como a própria Eunice diz nas passagens finais do filme, ter que continuar sem Rubens, sem saber se ele retornaria, condenou ela e sua família à "eterna tortura psicológica".

O filme de Salles, seu primeiro longa narrativo desde sua adaptação de 2012 de "On the Road", de Jack Kerouac, pretende transmitir algum sentido dessa tortura. Mas também dilui a dor, dobrando a angústia crua da experiência de Eunice em um cobertor quente e transparente de narrativa humanista. Um brilho suave impregna os momentos iniciais, ambientados em uma tarde idílica na praia, e mais tarde parece permear cada cômodo carinhosamente decorado da casa próxima de Rubens e Eunice. Tudo o que vemos e ouvimos exalta os Paivas como um modelo de alegria familiar contagiante e indisciplinada: brincadeiras bem-humoradas entre irmãos, festas dançantes espontâneas, refeições generosamente transbordantes e um convite aparentemente aberto a amigos, crianças da vizinhança e até mesmo um cachorro de rua, que, naturalmente, é adotado no momento em que entra. O próprio Salles conhecia os Paivas e visitou sua casa quando criança, um fato que, junto com a especificidade vibrante e descolada do design de produção de Carlos Conti, pode explicar a profundidade do sentimento que ele traz a esses pontos de encontro animados. A ação, filmada radiantemente pelo diretor de fotografia Adrian Teijido, flui sem esforço entre ambientes internos e externos; a proximidade da casa com o oceano é ao mesmo tempo uma realidade física prática e uma metáfora fácil para o senso efervescente de liberdade da família.

Mas é Eunice, ao mesmo tempo uma presença estabilizadora e uma observadora afiada, que parece mais consciente das crescentes ameaças a essa liberdade. A primeira cena do filme, linda, mas cheia de presságios, a encontra nadando no Atlântico, sua paz momentaneamente perturbada pelo rugido de um helicóptero militar acima. Mais tarde, enquanto os Paivas posam para uma foto com amigos na praia, o sorriso de Eunice vacila diante da visão cada vez mais familiar de soldados armados em veículos passando rapidamente. Ela não diz nada; Rubens (Selton Mello), que mantém uma vigilância atenta sobre a situação com amigos e colegas, parece inicialmente despreocupado. Momento a momento, porém, a ansiedade aumenta. Os Paivas enviam sua filha mais velha, Veroca (Valentina Herszage), para Londres nas férias, mantendo-a e sua veia político-ativista temporariamente fora de perigo. Pouco depois da notícia de que um diplomata suíço foi sequestrado por guerrilheiros de esquerda brasileiros, homens armados aparecem na porta dos Paivas e levam Rubens para um "depoimento". Nunca vemos o que acontece com ele; deste ponto em diante, a câmera permanece praticamente colada em Eunice, presa em casa com seus filhos. Os homens, concisos, sérios e invariavelmente educados, os mantêm sitiados por dias.

"Ainda Estou Aqui" está no seu ponto mais forte nessas sequências inerentemente tensas, em parte porque Salles não sensacionaliza. Sua abordagem, durante o choque inicial da remoção de Rubens, é simplesmente drenar todo traço anterior de calor e efervescência. As cortinas são fechadas, mergulhando a casa em sombras sobrenaturais; um silêncio terrível desce, quebrado apenas quando Eunice oferece comida aos homens e pergunta se eles sabem quando seu marido retornará. O silêncio e a escuridão só se aprofundam quando Eunice e sua segunda filha mais velha, Eliana (Luiza Kosovski), são levadas para uma instalação próxima para interrogatório; Eliana, descobrimos mais tarde, é liberada após um dia, mas Eunice é presa por quase duas semanas, agredida com perguntas sobre as afiliações de seu marido com "terroristas" e solicitada a identificar outros suspeitos de subversividade em fotografias. Ela silenciosamente enfrenta essa provação extenuante de frente, mantendo seu medo externamente sob controle e tentando o seu melhor para ignorar os gritos emitidos das celas vizinhas.

A performance de Torres aqui é uma maravilha de contenção expressiva, cada olhar fundindo descrença horrorizada e autocontrole meticuloso. Mesmo quando Eunice finalmente retorna para casa, limpa doze dias de sujeira e se reúne com seus filhos, ela mantém sua compostura com uma certeza que é quase indescritivelmente comovente. De forma reveladora, é só bem depois da libertação de Eunice que ela registra algo próximo à raiva. Ela também consegue manter seu temperamento sob controle quando descobre segredos que Rubens e seus aliados esconderam dela, e quando aqueles em posição de ajudá-la insistem que não podem. Apenas uma vez, quando o destino cruelmente torce a faca — o único desenvolvimento que parece uma manipulação longe demais — Eunice finalmente perde o controle, levanta a voz e libera toda a força de sua raiva contra a junta. A essa altura, você pode realmente temer por sua segurança. Os Paivas estão sendo observados, afinal, por forças que consideram até mesmo a crítica mais branda como um ato de traição.

Em mais de um sentido, "Ainda Estou Aqui" é um filme sobre a retenção estratégica de informações. Rubens é preso por razões não especificadas. Durante anos, a junta, tentando manter a ilusão de normalidade, se recusa a reconhecer que ele foi preso. Os esforços para aumentar a conscientização sobre o desaparecimento de Rubens geralmente ignoram os meios de comunicação locais, a maioria dos quais são considerados braços de propaganda do governo. A própria Eunice é tanto uma vítima quanto uma perpetradora de engano; mantida no escuro sobre algumas das atividades de seu marido, ela, por sua vez, esconde as piores notícias de seus filhos pelo maior tempo possível, incluindo a crescente probabilidade de que Rubens esteja morto.

Foi astuto dos roteiristas, Murilo Hauser e Heitor Lorega, se aterem tão de perto à perspectiva de Eunice, confiando que o público se identificaria com sua incerteza, sua vulnerabilidade e seu desejo instintivo de proteger seus filhos. Mas "Ainda Estou Aqui" tem sua própria cota de evasões táticas, e sua astúcia dramática acaba embotando sua própria força emocional. Não é nenhuma surpresa que nenhum dos personagens coadjuvantes possa se igualar a Eunice em nuance ou gravidade, mas você pode desejar pelo menos uma visão mais áspera da vida familiar dos Paivas, que parece estranhamente idealizada mesmo sob essas circunstâncias menos ideais. Cada criança recebe um ou dois traços distintivos úteis: Veroca é a agitadora mundana à beira da idade adulta, Marcelo (Guilherme Silveira) o adorável bobo. Em vários pontos, vemos filmagens caseiras granuladas da família Paivas — um toque elegante, mas curiosamente supérfluo, dado que o material doméstico filmado de forma mais convencional já parece ter sido alimentado por um filtro nostálgico.

Até Eunice parece receber pouca atenção quando a história avança 25 anos para 1996, o ano em que a família finalmente obtém uma medida de encerramento legal. A vitória é o resultado de uma luta de anos por justiça, mas o roteiro quase não fornece nenhuma noção de como ela foi realmente travada, e recai inteiramente sobre os ombros de Torres fornecer dicas da centelha moral e intelectual que levou Eunice a embarcar em seu notável segundo ato. Esse lapso narrativo é seguido por outro: é 2014, e Eunice, agora lutando contra a doença de Alzheimer na casa dos oitenta, luta para manter suas memórias de tudo o que sua família viveu. É difícil não interpretar essa sequência como um aviso discreto ao Brasil contemporâneo, que, na era de Jair Bolsonaro, mostrou sinais de uma amnésia histórica preocupante sobre a ditadura.

Inadvertidamente, trazendo para casa esses ecos políticos modernos, grupos locais de extrema direita tentaram montar um boicote a "Ainda Estou Aqui" quando foi lançado nos cinemas brasileiros, em novembro. Esses esforços se mostraram feliz e ridiculamente malsucedidos: o filme de Salles se tornou o filme brasileiro de maior bilheteria desde a pandemia e teve um acolhimento igualmente caloroso no exterior. O filme ganhou um prêmio de roteiro no Festival de Cinema de Veneza no outono passado e, na semana passada, recebeu três indicações ao Oscar — Melhor Filme, Melhor Longa-Metragem Internacional e Melhor Atriz (Torres). O burburinho do Oscar nunca é inerentemente interessante, mas a energia em torno de "Ainda Estou Aqui" tem uma ressonância cultural inegável em uma indústria não conhecida por seu reconhecimento excessivo de cineastas e artistas latino-americanos. Torres é apenas o segundo artista brasileiro a ser indicado ao Oscar de atuação; a primeira foi ninguém menos que sua mãe, a veterana atriz Fernanda Montenegro, que foi indicada por seu esplêndido trabalho no drama de Salles de 1998, "Central do Brasil", no qual ela interpreta uma professora aposentada rabugenta que ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos e que aparece brevemente em "Ainda Estou Aqui". Montenegro não ganhou — ela perdeu para Gwyneth Paltrow, por "Shakespeare Apaixonado" — e a rejeição percebida, não menos que sua performance, se tornou uma lenda no Brasil.

Há algumas referências astutas a "Central do Brasil" em "Ainda Estou Aqui", a mais astuta delas envolve a leitura deliberadamente errada de uma carta escrita à mão. (Aqui, como no filme anterior, uma pequena mentira se torna um ato de amor.) A outra, embora amplamente divulgada na imprensa cinematográfica, vale a pena descobrir por si mesmo; é um momento adorável, embora também, ao que parece, engenhosamente inventado. Suspeito que Salles, ao dar a Torres uma vitrine tão marcante, ao mesmo tempo em que faz referência à do próprio Montenegro, pretende estimular a memória de mais do que alguns eleitores da Academia, talvez na esperança de que eles sejam movidos a retificar pelo menos uma injustiça histórica. ♦

Leviatã frágil?

Trump e tecnologia.

Cédric Durand

Sidecar


No romance O homem sem qualidades, que se passa em Vienna, na véspera da Primeira Guerra Mundial, o general Stumm von Bordwehr questiona “Como é que aqueles diretamente envolvidos no que está acontecendo podem saber, de antemão, se aquilo será um grande evento?” Sua resposta é que “tudo que eles podem fazer é fingir para si mesmos que será! E, se me for permitido um paradoxo, eu diria que a história do mundo é escrita antes de acontecer; ela sempre começa como uma espécie de fofoca”. Na semana passada, com o retorno de Donald Trump ao poder, a fofoca se espalhou conforme os gigantes da indústria tecnológica se reuniram na inauguração. Assentos nas primeiras fileiras foram reservados para Mark Zuckerberg, da Meta, Jeff Bezos, da Amazon, Sundar Pichai do Google e Elon Musk, da Tesla, enquanto Tim Cook, da Apple, Sam Altman, da Open AI e Shou Zi Chew do Tik Tok, sentaram-se algumas fileiras atrás. Alguns anos atrás a grande maioria desses bilionários apoiavam abertamente Joe Biden e os democratas. “Eles estavam todos com ele”, lembrou Donald Trump, “cada um deles, e agora estão todos comigo”. A questão crucial diz respeito à natureza desse realinhamento: trata-se de uma simples guinada oportunista, dentro dos mesmos parâmetros sistêmicos? Ou estamos diante de um momento de ruptura digno de ser chamado de grande evento histórico? Arrisquemos essa segunda hipótese.

Donald Trump, como sabemos, aprecia homenagens e gestos extravagantes. Quando cortesãos se reúnem em sua mansão em Mar-a-Lago, não parece uma miniatura de Versalhes? Mas o ex-presidente não é um aspirante a Luís XIV. Seu projeto não é centralizar a autoridade no Estado, mas sim fortalecer interesses privados às custas das instituições públicas. Ele já busca reverter as incipientes tentativas de intervencionismo da administração Joe Biden, revogando seus subsídios verdes, políticas antitruste e medidas tributárias, ampliando assim o campo de ação dos monopólios corporativos dentro e fora do país.

Dois de seus decretos executivos, assinados no dia da posse, sublinham essa tendência. O primeiro revogou um mandato da era Biden que exigia que “desenvolvedores de sistemas de Inteligência artificial que representassem riscos para a segurança nacional, economia, saúde ou segurança pública dos EUA compartilhassem os resultados dos testes de segurança com o governo americano”. Se antes as autoridades públicas anteriormente tinham alguma influência sobre os avanços na fronteira da Inteligência artificial, agora essa supervisão mínima foi eliminada. O segundo decreto anunciou a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), chefiado por Elon Musk. Baseado em uma reorganização do US Digital Services – estabelecido sob Barack Obama para integrar os sistemas de informação entre diferentes ramos do Estado –, o DOGE terá acesso irrestrito a dados não classificados de todas as agências governamentais. Sua primeira missão é “reformar o processo de contratação federal e restaurar o mérito no serviço público” garantindo que os funcionários do Estado tenham um “compromisso com os ideais, valores e interesses americanos” e “sirvam lealmente ao Poder Executivo’” O DOGE também irá “integrar tecnologias modernas” a esse processo, de modo que Elon Musk e suas máquinas terão a responsabilidade pela supervisão política dos funcionários civis federais.

Nas primeiras horas do segundo mandato de Donald Trump, portanto, os empreendedores do setor tecnológico conseguiram blindar do escrutínio público seus projetos mais lucrativos e, simultaneamente, ampliaram significativamente sua influência sobre a burocracia estatal. A nova administração não está interessada em usar o Estado federal para unificar as classes dominantes como parte de uma estratégia hegemônica. Pelo contrário, busca emancipar a fração mais agressiva do capital de quaisquer restrições federais significativas, enquanto obriga o aparato administrativo a se submeter ao controle algorítmico de Elon Musk.

O aumento da concentração de poder nas mãos de tecno-oligarcas não é, de forma alguma, inevitável. Na China, a relação entre o setor tecnológico e o Estado é volátil, mas o primeiro em geral é forçado a se acomodar aos objetivos do desenvolvimento do segundo. No Ocidente, órgãos públicos, em algumas ocasiões, também enfrentaram monopólios corporativos – quando o Congresso, o Departamento do Tesouro e o Fed se uniram para bloquear o Libra, projeto de cripto moeda do Facebook, em 2021. Para o economista Benoît Cœuré, “a mãe de todas as questões é o equilíbrio de poder entre o governo e as Big Tech [as maiores empresas de tecnologia] na definição do futuro dos pagamentos e no controle dos dados relacionados”. Mas Donald Trump agora está inclinando ainda mais esse equilíbrio a favor das Big Techs. Na sequência de seus decretos executivos, ele tomou medidas instruindo os reguladores a impulsionar investimentos em criptomoedas, ao mesmo tempo em que impediu os bancos centrais de desenvolverem suas próprias moedas digitais, que poderiam atuar como um contrapeso. Podemos esperar mais políticas desse tipo no futuro: desregulação, isenções fiscais, contratos governamentais e proteções jurídicas.

Esse projeto radical, levado a cabo pela maior potência mundial, pode ter sérias implicações na redefinição da relação entre capital e o Estado, classes e países, por muitos anos. Isso ameaça acelerar um processo que, em outro lugar, descrevi como ‘tecno-feudalização’. À medida que grandes corporações monopolizam o conhecimento e os dados, elas centralizam os meios algorítmicos de coordenação das atividades humanas – desde as práticas de trabalho até o uso de redes sociais e os hábitos de consumo. Com as instituições públicas cada vez mais incapazes de organizar a sociedade, essa tarefa passa para as Big Techs, que adquirem uma capacidade extraordinária de influenciar o comportamento individual e coletivo. A esfera pública se dissolve, assim, em redes online, o poder monetário se desloca para as criptomoedas e a Inteligência Artificial coloniza o que Marx chamou de “intelecto geral”, anunciando a progressiva apropriação do poder político por interesses privados.

O enfraquecimento de instituições mediadoras caminha de mãos dadas com um impulso antidemocrático, ou melhor, com um ódio à igualdade. Desde a publicação do manifesto tecno-otimista “Ciberespaço e o Sonho Americano”, em 1994, grandes partes do Vale do Silício aderiram ao princípio randiano [de Ayn Rand] segundo o qual criadores pioneiros não podem ser limitados por regras coletivas. O empreendedor tem o direito de passar por cima de seres mais fracos que ameaçam restringi-lo: trabalhadores, mulheres, minorias raciais e trans. Daí a rápida aproximação entre os liberais californianos e a extrema direita, com Musk e Zuckerberg agora se apresentando como guerreiros culturais lutando para reverter a maré do “wokeness”. A governamentalidade algorítmica consagra o direito de “inovar” sem qualquer prestação de contas ao demos.

Esse regime de acumulação emergente também substitui a lógica da produção e consumo pela lógica da predação e dependência. Embora o apetite pelo excedente continue tão voraz quanto em períodos anteriores do capitalismo, o motivo do lucro das Big Techs é único. Enquanto o capital tradicionalmente investe para reduzir custos ou atender à demanda, o capital tecno-feudal investe para trazer diferentes áreas da atividade social para seu controle, criando uma dinâmica de dependência que enreda indivíduos, empresas e instituições. Isso ocorre em parte porque os serviços oferecidos pelas Big Techs não são mercadorias como outras. Muitas vezes, são infraestruturas críticas das quais a sociedade depende. O gigantesco apagão da Microsoft no verão de 2024 foi um lembrete contundente de que aeroportos, hospitais, bancos e agências governamentais, entre outros, agora dependem dessas tecnologias – permitindo que os monopolistas cobrem aluguéis exorbitantes e gerem fluxos intermináveis de dados monetizáveis.

O resultado final desse processo é estagnação generalizada na economia global. Empreendimentos lucrativos em outros setores estão observando um enfraquecimento de sua posição de mercado conforme se tornam mais dependentes da “nuvem” e Inteligência artificial, enquanto a população como um todo está sujeita às predações do capital rentista. A imensa necessidade de recursos dos tecno-feudalistas também leva a uma crescente destruição ecológica, com novos data centers de alta emissão de carbono surgindo em todo o mundo. À medida que o crescimento desacelera, a polarização política e a desigualdade econômica se aprofundam, com os trabalhadores disputando uma parcela cada vez menor da riqueza.

Isso levanta diversas questões estratégicas para a esquerda. Como a luta contra as Big Tech se relaciona com outras já existentes na disputa anticapitalista? Como devemos pensar o internacionalismo em uma era em que o poder tecno-feudal transcende fronteiras nacionais? Aqui talvez valha a pena ter em mente os principais preceitos de Mao no clássico Sobre a contradição (1937), habilmente sintetizados por Slavoj Žižek:

A contradição principal (universal) não se sobrepõe à contradição que deve ser tratada como dominante em uma situação particular – a dimensão universal reside literalmente nessa contradição particular. Em cada situação concreta, uma "contradição particular" diferente é a predominante, no sentido preciso de que, para vencer a luta pela resolução da contradição principal, deve-se tratar uma contradição particular como a predominante, à qual todas as outras lutas devem ser subordinadas.

Hoje, a contradição universal continua sendo a da exploração capitalista, que opõe o capital ao trabalho vivo. No entanto, a ofensiva tecno-feudal representada por Donald Trump e Elon Musk pode alterar essa situação, criando uma nova contradição principal entre as Big Techs americanas e aqueles que elas exploram. Caso cheguemos a esse ponto, a tarefa da esquerda mudaria drasticamente. Tomando as guerras coloniais da China como exemplo, Mao explica que

quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um país desse tipo, as diversas classes dentro desse país, com exceção de um pequeno número de traidores da nação, podem temporariamente se unir em uma guerra nacional contra o imperialismo. A contradição entre o imperialismo e o país em questão torna-se então a contradição principal, e todas as contradições entre as várias classes dentro do país (incluindo a contradição, que antes era a principal, entre o regime feudal e as massas populares) passam temporariamente para segundo plano e assumem uma posição subordinada.

No nosso contexto, isso significaria formar uma frente anti-tecno-feudal que vá além da esquerda, incluindo diversas forças democráticas e frações do capital em conflito com as Big Techs. Esse movimento hipotético poderia adotar o que poderíamos chamar de ‘política digital não alinhada’, com o objetivo de criar um espaço econômico fora do domínio dos monopólios, onde tecnologias alternativas pudessem ser desenvolvidas. Isso, por sua vez, implicaria uma forma de protecionismo digital – negando acesso às empresas de tecnologia dos EUA e desmontando sua infraestrutura sempre que possível – além de um novo internacionalismo digital, no qual as pessoas compartilhariam soluções tecnológicas de forma cooperativa.

É claro que uma aliança desse tipo precisaria confrontar diversas barreiras estruturais. Por conta da complexa interpenetração de interesses capitalistas, com investimentos ligados uns aos outros atravessando diferentes setores e territórios, é difícil determinar que frações do capital estão mais alinhadas com as Big Tech e quais poderiam ser pressionadas a participarem de um movimento como esse. Há também o fato de que as burguesias nacionais são, notoriamente, parceiros pouco confiáveis quando se trata de projetos de desenvolvimento fora do núcleo imperial; elas geralmente estão mais interessadas em aumentar sua própria riqueza rentista do que em promover o tipo de mudança estrutural que poria fim à dependência. E existe também o risco que, mesmo que tal reunião de forças fosse possível, uma frente anti-tecno-feudal fosse vulnerável à captura burocrática – confiando o desenvolvimento de alternativas digitais a especialistas, em vez de envolver ativamente as massas populares.

No entanto, os bilionários da tecnologia também têm seus próprios obstáculos a enfrentar. Seu projeto – usar uma aliança com Donald Trump para derrubar os últimos obstáculos remanescentes ao controle algorítmico – tem uma base social extremamente estreita, e a velocidade com que avança certamente gerará resistência tanto da população em geral quanto das elites. Além disso, deve lidar com a capacidade digital da China, à medida que empresas rivais, como a DeepSeek, tentam minar a imagem de invencibilidade do Vale do Silício. Poderia, então, o tecno-feudalismo americano revelar-se um Leviatã frágil? O retorno de Donald Trump ao poder será lembrado como um “grande evento”, ou isso não passará de mera fofoca?

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