30 de junho de 2024

O gesto de paz de Bob Marley apoiou uma mudança radical na Jamaica

Uma imagem icônica de 1978 mostra Bob Marley unindo líderes de partidos de esquerda e direita no palco, pedindo uma trégua. Interpretado erroneamente como apolítico, seu gesto na verdade tinha a intenção de resgatar um movimento socialista em perigo.

Uma entrevista com
Brian Meeks


A fotografia icônica de Bob Marley unindo as mãos de Michael Manley e Edward Seaga no One Love Peace Concert em Kingston, Jamaica, em 1978.

Entrevistado por
Meagan Day

Tradução / De 1974 a 1980, a Jamaica foi tomada pela violência política. Gangues ligadas aos dois partidos do país, o Partido Nacional Popular (PNP), socialista democrático, e o Partido Trabalhista Jamaicano (JLP), conservador, estavam envolvidas em um conflito paramilitar urbano que matou, feriu e deslocou milhares de pessoas.

Em 1978, influenciados pela mensagem rastafári de unidade, os líderes de gangues concordaram com as negociações de paz. Desse processo surgiu o One Love Peace Concert em Kingston, que reuniu membros de gangues rivais, autoridades dos partidos e os maiores nomes do reggae, incluindo Bob Marley, que havia sido baleado dois anos antes, provavelmente por um atirador do JLP.

Durante sua apresentação, Marley convocou ao palco os líderes dos partidos, o primeiro-ministro Michael Manley do PNP e seu oponente, Edward Seaga do JLP, e a apertarem suas mãos em um sinal de unidade. Imagens daquele momento são icônicas hoje, em parte porque parecem mostrar Bob Marley como a cultura global dominante o imagina: um pacificador transcendendo todos os conflitos, inclusive na política.

Mas essa interpretação é muito simplória. Com seu gesto, Bob Marley não estava tentando omitir as diferenças políticas entre o PNP de esquerda e o JLP de direita. Em vez disso, ele estava tentando resgatar as esperanças do movimento social que levou o PNP ao poder seis anos antes — o vislumbre de uma nova Jamaica que a violência nas ruas, que muitos suspeitam ser o resultado de um programa secreto de desestabilização da CIA, ameaçou destruir.

O acadêmico de estudos africanos Brian Meeks estava presente no One Love Peace Concert de abril de 1978. Meagan Day, da Jacobin, pediu a Meeks para desenterrar esta fotografia icônica, mostrada acima, de Marley abraçando Manley e Seaga. Para entender corretamente o que está acontecendo na imagem, diz Meeks, precisamos examinar a evolução dos partidos e movimentos sociais jamaicanos, o impacto da intervenção estrangeira nas perspectivas de mudança na Jamaica e o papel do reggae e do rastafarianismo na vida cultural e política jamaicana.

Brian Meeks é professor de estudos africanos na Brown University. Ele publicou doze livros, editou coleções sobre política caribenha e escreveu sobre o socialismo democrático de Michael Manley para a Jacobin. Ele também é autor de Paint the Town Red, um romance ambientado em meio à violência política em Kingston na década de 1970.

Meagan Day

Temos essa foto clássica de Bob Marley unindo as mãos de Michael Manley e Edward Seaga. Para entender o que realmente está acontecendo nesta fotografia, primeiro temos que repassar o que acontecia no âmbito da política. Vamos começar com os dois partidos que cada um desses políticos representava, o People’s National Party (PNP) e o Jamaican Labor Party (JLP). De onde eles vieram e o que defendiam?

BM

Em 1938, a Jamaica teve uma revolta trabalhadora contra leis sindicais restritivas que impediam uma organização adequada. Foi parte de uma revolta em todo o Caribe, que trouxe a classe trabalhadora para o movimento anticolonial vigente, pois começaram a ver a independência como uma possível via para acabar com a exploração.

Ao se juntar ao movimento anticolonial, a classe trabalhadora se juntou à classe média, que se sentia excluída no sistema colonial britânico e que esperava herdar o poder dos britânicos após a independência. Então, os atores dessa coalizão anticolonial não queriam ou não antecipavam as mesmas coisas da independência, mas todos viam a necessidade do fim do colonialismo britânico.

O reggae foi a trilha sonora do novo movimento político e, mais particularmente, a trilha sonora da vitória eleitoral de Michael Manley em 1972.

Norman Manley, pai de Michael Manley, era o líder do Partido Nacional do Povo, que foi um dos dois partidos que surgiram após a revolta trabalhadora de 1938. No final do período colonial, “nacional” tinha uma conotação muito mais progressista do que na Europa do entre guerras. O PNP foi fundado na tradição do socialismo fabiano e sempre foi o mais esquerdista dos dois partidos, mas nunca foi um partido trabalhista tradicional. Era uma aliança da classe média, da classe trabalhadora e dos pobres urbanos.

O outro partido, o Partido Trabalhista Jamaicano (JLP), era muito mais conservador, embora carregasse o nome “trabalhista”. E embora fosse conservador, o JLP de fato tinha uma posição significativa entre uma parcela das classes trabalhadoras agrícola e urbana. Ele tinha os trabalhadores como sua base popular, enquanto também desfrutava de apoio significativo do empresariado e do setor comercial. Basta dizer que, embora ambos os partidos dependessem do apoio da classe trabalhadora, a Jamaica não desenvolveu um partido trabalhista tradicional nos anos que antecederam a independência em 1962.

Meagan Day

Então, dois partidos jamaicanos surgem no final do período colonial, um mais progressista e o outro mais conservador, mas ambos focados principalmente na independência e apoiados por um eleitorado formado por diferentes classes. Como Michael Manley chegou a liderar o PNP, e como o partido mudou com ele?

BM

Em 1968, houve outra rebelião na Jamaica, dessa vez inspirada pela recusa do governo jamaicano em permitir que o professor universitário Walter Rodney voltasse ao país depois que ele partiu para uma conferência em Montreal. Sua expulsão levou a uma revolta popular nas ruas de Kingston.

O ano de 1968 tem significado global. No Caribe, é considerado o início do movimento Black Power, e os “Rodney Riots” foram a expressão jamaicana disso. Simultaneamente, o equilíbrio na Jamaica mudou do primeiro governo pós-colonial, que era liderado pelo JLP, para o PNP, que em 1969 elegeu Michael Manley como líder.

Entre 1969 e 1972, Michael Manley acumulou apoio. Naquela época, houve um surgimento híbrido na Jamaica de dois movimentos: o Black Power, com sua ressonância norte-americana, e o rastafarianismo, que era um movimento nacionalista negro indígena jamaicano que seguiu sua própria trajetória. Michael Manley foi capaz de aproveitar essa energia e conquistar a juventude insurgente, ou uma parte significativa dela, para o PNP.

Michael Manley, líder socialista da Jamaica, fala com cidadãos. (Jamaica Information Service)

Curiosamente, Michael Manley começou como um moderado no PNP. Alguns diriam que estava à direita de seu pai. Mas no processo de se tornar o líder do partido, começou a se mover para a esquerda. Ele estava respondendo a uma tremenda pressão vinda de baixo, de um contingente de jovens observando que a Jamaica já era independente há uma década, mas os negros ainda não tinham empregos ou dinheiro, e a riqueza ainda estava concentrada nas mãos de investidores estrangeiros ou elites locais brancas e de pele clara.

Em 1972, o PNP capturou esse sentimento com o slogan “Better Must Come”, que é o nome de uma música do artista de reggae Delroy Wilson. O partido também usou essa música em sua campanha. Então, quando Manley venceu a eleição de 1972 com uma vitória esmagadora para a política jamaicana, havia uma grande expectativa de que ele executaria medidas que “fariam o melhor vir”.

MG

Você mencionou o reggae, um tópico que nos aproxima mais da compreensão do significado da fotografia. Qual era a relação entre o reggae e o movimento político que Manley comandava?

Brian Meeks

Eles estão intimamente ligados. O reggae é muito importante neste momento político.

O reggae como forma musical foi parte de uma rápida evolução que ocorreu na música jamaicana na década de 1960. Começou com o ska, que tinha um ritmo de 2/4 como o reggae, mas era tocado muito mais rápido, ligado a uma tradição de jazz e influenciado pela rumba de Cuba, a vizinha, e também pela música de Nova Orleans, que era a única música que podíamos acessar facilmente dos Estados Unidos no rádio de ondas curtas.

O ska evoluiu muito rapidamente nos anos 60 para o rocksteady. E então, no mesmo ano em que esses tumultos urbanos em torno de Walter Rodney aconteceram, em 1968, o reggae surgiu como uma nova forma musical. Os primeiros artistas foram pessoas como Delroy Wilson, que acabei de mencionar, assim como Prince Buster, e os Wailers, que é a banda da qual Bob Marley surgiu como líder.

O reggae era uma forma militante de música que estava intimamente ligada ao rastafarianismo e ao movimento Black Power. Claro, o reggae abrange do espectro da música romântica e emocional chamada lovers rock, à música hardcore de protesto e à música quase religiosa associada aos rastas.

O reggae foi a trilha sonora do novo movimento político, e mais particularmente da vitória eleitoral de Michael Manley em 1972. Muitas das principais personalidades do reggae eram muito próximas da campanha, e os artistas acompanharam a campanha pelo país tocando em comícios.

No entanto, também havia uma tensão quando se tratava de rastafarianismo, que, como um todo, guardava zelosamente sua independência de conexão aberta com a política. Para avançar um pouco, isso ajuda a explicar a autonomia de Marley em 1978 na imagem que estamos discutindo.

O rastafarianismo foi ao mesmo tempo um movimento político, religioso e estético. Como um movimento religioso, ele tinha amplo alcance, o que significava que também havia alguns rastas que apoiavam Edward Seaga, que surgiu como líder do JLP ao longo de 1973 e 74.

MG

Quem é Edward Seaga e quais forças sociais ele representa?

Brian Meeks

Seaga era um jamaicano de ascendência libanesa que desenvolveu sua influência no JLP por causa de seu domínio em uma das partes mais pobres de Kingston. Lá, ele construiu um reduto chamado Tivoli Gardens, que era bem administrado e eficiente, com serviços sociais, novos arranha-céus e instalações culturais.

Seaga usou essa base para construir um sólido bloco de apoio dentro do JLP, e assumiu a liderança exatamente no momento em que o PNP estava mudando de seu slogan generalista “O Melhor Deve Vir” para o novo slogan do socialismo democrático em 1974.

Edward Seaga, segundo da direita, com o presidente dos EUA Ronald Reagan e Nancy Reagan em Washington, DC, em 1981. (Coleção Fotográfica da Casa Branca)

O PNP se via como um partido socialista no começo, mas por várias décadas subsumiu o socialismo sob o manto da luta pela independência. E mesmo por uma década após a independência, não se falava em socialismo no PNP. Mas em 1974, em uma tentativa de consolidar seu apoio e desenvolver um programa para levar o país adiante, o PNP sob Manley se dedicou ao socialismo democrático novamente.

Em resposta, o JLP sob Seaga se tornou um partido antissocialista. O JLP evoluiu de uma oposição frouxa para uma coalizão de trabalhadores e capitalistas que estavam claramente contra a direção para onde o PNP queria levar o país, que era explicitamente socialista. Ele implementou reformas como um tremendo programa de habitação urbana, um programa de alfabetização e a licença maternidade.

Então tivemos em 1974 uma bifurcação entre o PNP sob Manley, que estava adotando uma noção ainda moderada de socialismo democrático, e o antissocialista JLP sob Seaga. Este é um momento crítico, porque é também quando outros desenvolvimentos estão ocorrendo globalmente, e os Estados Unidos começam a entrar em cena.

MG

Como o governo socialista de Michael Manley foi recebido pelos Estados Unidos?

Brian Meeks

A Jamaica chamou a atenção de Richard Nixon e Henry Kissinger quando, em 1972, quatro governos caribenhos reconheceram Cuba, tirando-a do isolamento em que estava na década anterior. Esses quatro países eram Guiana, Jamaica, Trinidad e Tobago e Barbados.

Esse evento prenunciou o que ocorreria em 1974, quando Angola se tornou independente de Portugal, o que foi seguido quase imediatamente pela incursão no sul de Angola a partir da Namíbia, que estava sob o controle efetivo da África do Sul.

Kissinger visitou Manley e solicitou que ele não ajudasse os cubanos, e Manley recusou. Este foi o momento em que os Estados Unidos começaram a considerar esforços para derrubar seu governo.

Cuba prometeu apoiar Angola, cuja independência estava ameaçada, mas não poderia fazê-lo sozinha. Esse apoio só poderia chegar a Angola se os aviões que transportavam equipamento pesado pudessem reabastecer. Tanto Barbados quanto Guiana, apoiados pela Jamaica, concordaram em oferecer postos de reabastecimento no Atlântico. E isso colocou a Jamaica na mira de Kissinger.

Kissinger visitou Manley e solicitou que ele não ajudasse os cubanos, e Manley recusou, explicando que ajudar Cuba a defender a Angola independente contra o apartheid da África do Sul era uma questão de princípio. Ele não recuaria.

O registro sugere que esse foi o momento em que os Estados Unidos começaram a considerar esforços para derrubar o governo de Manley.

Entre 1974 e 1976, a violência começou a aumentar nas cidades, particularmente em Kingston, mas também em outras partes da Jamaica. Essa violência estava direcionada, principalmente, às comunidades pobres, perpetrada por todo um sistema cheio de gangues que apoiavam os partidos políticos.

MG

Qual foi a causa raiz desse repentino ápice de violência política?

Brian Meeks

Ainda não está totalmente claro quem estava fazendo o quê, mas o que está claro é que a violência começou a acontecer e aumentou pouco depois de o PNP declarar explicitamente uma agenda socialista democrática.

Ninguém tem provas cabais, mas é lógico que um governo no poder não tem interesse em criar uma situação desestabilizadora que leve as pessoas a questionar se ele é capaz de governar. A sequência de eventos sugere que a violência não foi iniciada por forças que apoiavam o governo, mas sim pelas que se opunham a ele.

MG

Houve muita especulação de que a CIA foi responsável por iniciar ou pelo menos inflamar a violência política. Não teria sido difícil de realizar. Já havia uma divisão feroz entre gangues rivais filiadas aos partidos. Mesmo algumas armas de fogo extras e alguns incentivos em dinheiro teriam feito a diferença. Esse tipo de coisa teria sido consistente com as atividades confirmadas da CIA ao redor do mundo nas décadas de 1970 e 1980.

Brian Meeks

Com certeza, e como você disse, já havia uma infraestrutura de gangues que eram ligadas a partidos políticos, mas semiautônomas e que operavam em seus próprios interesses, buscando suas próprias fontes de lucro.

Dito isso, é preciso duas mãos para bater palmas. Houve, sem dúvida, uma resposta das gangues que apoiaram o PNP, resultando em incidentes trágicos perpetrados por ambos os lados. Em 1976, que foi um ano eleitoral, essa violência havia escalado para um nível paramilitar nas ruas de Kingston.

Rastas não trabalham para a CIA

As eleições de 1976 foram então realizadas sob estado de emergência, porque Manley sentiu que era a única maneira de controlar a violência. O JLP protestou. Eles sustentaram que não eram os perpetradores da violência e disseram que o estado de emergência foi declarado para que perdessem a eleição.

De qualquer forma, Michael Manley venceu a reeleição consolidando e aumentando o apoio em comparação à sua eleição inicial. A violência diminuiu depois de 1976, mas então começou novamente nos anos que antecederam a próxima eleição, em 1980.

MG

Essa violência foi em uma escala difícil de imaginar. Em apenas um ano, mais de oitocentas pessoas foram mortas.

Brian Meeks

Em muitos casos, a violência era indiscriminada. Você tinha paramilitares circulando pelas comunidades, vendo um membro de uma gangue adversária em um bar ou na esquina de uma rua e abrindo fogo.

Ambos os lados estavam envolvidos em um programa semelhante à limpeza étnica, mas, neste caso, o objetivo era a limpeza partidária. Os bairros em Kingston têm afiliações partidárias claras, e as gangues começaram esquemas de deslocamento em uma tentativa de expulsar as pessoas.

Em alguns casos, quarteirões inteiros da cidade foram queimados. A ideia era que se essas pessoas fugissem e se tornassem refugiadas, forçadas a se mudar e ocupar terras às vezes a muitos quilômetros de distância, elas levariam seus votos consigo. Você poderia mudar o eleitorado de um partido para outro dessa forma.

Foi cruel. E, novamente, quando consideramos a sequência de eventos, a direção da flecha aponta para os inimigos do governo de Manley, porque é irracional para um governo no poder criar esse nível de perturbação, que reflete mal em sua capacidade de governar.

MG

Isso parece especialmente verdadeiro considerando que o governo de Manley estava lidando com outro problema após a eleição de 1976: uma crise econômica, seguida pela coerção do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Brian Meeks

Sim. O PNP sob Manley chegou ao poder em 1972. Em 1973, ocorreu a crise da OPEP. Sendo a Jamaica essencialmente um país dependente de energia, os preços aumentaram dramaticamente. Enquanto isso, por causa da depressão iniciada pela crise, os principais produtos para exportação estavam caindo. E, além disso, o turismo estava em declínio por causa da violência política.

Quando Manley ganhou a reeleição, havia problemas fiscais significativos no horizonte. Seu governo tentou descobrir uma solução que não envolvesse recorrer ao Fundo Monetário Internacional, mas, no final das contas, ele não conseguia ver outra alternativa. O primeiro acordo com o FMI foi assinado em 1977.

O primeiro acordo que Manley negociou exigiu ajustes estruturais e cortes fiscais em troca de empréstimos, mas estes foram relativamente brandos. No entanto, se as regras nas letras miúdas fossem violadas, então o FMI poderia impor outro acordo. No outono de 1977, o governo jamaicano violou essas letras miúdas, e a nova exigência impôs medidas cada vez mais draconianas.

As exigências do FMI dificultaram a continuidade da implementação dos programas socialistas democráticos que haviam comprado tanta boa vontade para com o PNP até a eleição de 1976. Eventualmente, o apoio que esses programas conquistaram para o PNP foi desperdiçado. Então, em 1978, o governo Manley enfrentou uma crise econômica, uma crise política e violência desenfreada.

MG

Chegamos a 1978, que é o ano em que nossa fotografia foi tirada. Vamos trazer o reggae e o rastafarianismo de volta. Como eles estavam se cruzando com a política e a violência na Jamaica durante esse período tenso?

Brian Meeks

Rastafári representa uma espécie de força de melhoria que se estendeu por essas comunidades do centro da cidade e forneceu uma voz sábia de união. Havia pessoas que podiam cruzar fronteiras porque eram rastas. Elas podiam viajar de Lower Trench Town, que era território JLP, para Upper Trench Town, que era PNP, sem serem incomodadas.

Os rastas começaram a clamar por uma espécie de união Garveyista do povo negro. Havia dois partidos lutando pelo domínio, um representando o socialismo democrático e o outro lutando contra ele. E então havia o rastafarianismo como uma espécie de contra movimento, que não tinha uma sede ou um centro, mas fornecia uma perspectiva moral em um sentido mais elevado. Isso não quer dizer que não houvesse indivíduos que estivessem no PNP ou no JLP, mas que havia uma espécie de autonomia que os rastas expressavam.

Os rastafáris gravitaram em direção ao PNP em 1972, mas nunca foram completamente conquistados pelo movimento. Agora, eles não estavam dando as costas ao PNP, mas diziam: “Os partidos políticos não são o coração e a alma do nosso movimento. O coração e a alma do nosso movimento são os negros, e não podemos matar uns aos outros.”

MG

Como Bob Marley se encaixou em tudo isso?

BM

Há uma música chamada “Rat Race” no álbum de Marley de 1976, Rastaman Vibration, que é sobre violência política, e nela ele canta o verso “Rasta não trabalha para nenhuma CIA”. Essa era uma declaração clássica naquela época, expressando uma aliança cautelosa entre elementos críticos do rastafarianismo e do PNP, mas também um cansaço em relação à rivalidade entre os partidos.

No final de 1976, Marley foi baleado em uma famosa invasão de sua casa. E isso foi criticamente importante, porque estava diretamente relacionado à situação política.

Bob Marley se apresentando no Dalymount Park em 6 de julho de 1980. (Eddie Mallin / Wikimedia Commons)

Antes da eleição de 76, Marley foi convidado pelo ministro da cultura da época para se apresentar no que foi visto então como um concerto do PNP, embora fosse um evento do governo. Marley foi baleado pouco antes do concerto, e agora é quase certo que o tiro foi disparado por um atirador do JLP que queria impedi-lo de trazer sua presença significativa para um evento que redundaria nos interesses do PNP pouco antes de uma eleição.

De qualquer forma, ele tocou no Smile Jamaica Concert, que foi um concerto muito famoso. E, claro, o PNP venceu a eleição. Mas depois disso, Marley deixou o país e ficou exilado nas Bahamas e depois no Reino Unido, retornando apenas para o Peace Concert em 1978.

MG

O Peace Concert é onde a fotografia foi tirada. Qual era o propósito deste evento?

Brian Meeks

Em 1978, sob a influência do líder rasta Mortimer Planno, dois dos maiores líderes das gangues afiliadas aos partidos — Claudius “Claudie” Massop do JLP e Aston “Bucky” Marshall do PNP — se uniram e decidiram que iriam iniciar um movimento pela paz.

Esse movimento pela paz era contraditório. Ele estava sendo liderado por membros de gangues que estavam envolvidos nas atrocidades. Então, era sempre tenso, e havia alguma dúvida sobre se era genuíno ou se esses líderes de gangues, em uma espécie de tradição do tipo máfia, estavam procurando obter vantagem e tirar algo disso.

De qualquer forma, é inegável que, no nível popular, particularmente nas áreas que vivenciaram mais violência neste período, houve uma tremenda onda de apoio a um movimento pela paz que acabaria com as agressões. As pessoas vivenciaram quatro anos de assassinatos e incêndios, e estavam realmente prontas para que isso acabasse. Foi isso que levou ao Concerto pela Paz.

MG

Você estava no Peace Concert. Como foi?

Brian Meeks

Foi um evento notável. Foi realizado no maior local do gênero, o Estádio Nacional em Kingston. Quase trinta e cinco mil pessoas estavam lá. Todos os principais cantores de reggae estavam lá. E todos os membros e líderes de gangues estavam lá, e havia paz entre eles naquela noite.

Tinha esse tipo de atmosfera que você sente em momentos de mudança potencial, em que o impossível parece possível. Era quase como um momento revolucionário.

Peter Tosh em 1979. (Rogelio A. Galaviz / Flickr)

As duas personalidades mais destacadas entre o panteão jamaicano de cantores de reggae foram Bob Marley e Peter Tosh. Este último também foi um dos Wailers, sendo os três membros originais Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer.

O interessante é que a apresentação de Peter Tosh, que durou uma hora naquela noite, essencialmente não apoiou a iniciativa de paz. Sua atitude foi capturada em sua famosa canção de 1977, “Equal Rights”, na qual ele cantou, “I don’t want no peace, I want equal rights and justice” (“Eu não quero nenhuma paz, quero direitos e justiça”, em tradução livre). O slogan de Tosh foi contra a essência do evento, que era mais comemorativo.

Então Peter Tosh ocupou uma posição, e Marley ocupou outra. Grandes artistas se apresentaram durante toda a noite, mas a apresentação de Marley foi o ponto alto do evento. Ele subiu ao palco por volta da meia-noite. E, como você pode ver na fotografia, chamou Manley e Seaga para o palco, e juntou as mãos deles — bem diferente da atitude de Peter Tosh naquela noite.

Mas é complicado porque, por um lado, sim, Marley está pedindo que a violência acabe. Mas se você ouviu a música que Marley tocou naquela noite, era uma música dirigida contra a Jamaica permanecer dentro dos limites de seu passado neocolonial. É quase como se Marley estivesse dizendo com esse gesto que Manley e Seaga têm que encontrar uma maneira de acabar com a hostilidade para que possamos realmente mudar o país, que era o espírito com o qual Manley foi eleito.

Claro, Marley canta sobre um amor, mas não é um amor abstrato. É um amor se unindo para fazer uma mudança, e não está divorciado da ideia de transformação estrutural fundamental na Jamaica. A posição de Marley é que acabar com a violência permitirá que uma política de mudança social e política prossiga.

Claro que Marley canta sobre um amor, mas não é um amor abstrato. É um amor se unindo para fazer uma mudança, e não está divorciado da ideia de transformação estrutural fundamental na Jamaica.

Depois, houve um debate interessante na imprensa, iniciado por um artigo no jornal radical de um pequeno partido marxista-leninista chamado Workers Party of Jamaica, o Struggle. Esse artigo basicamente dizia que Peter venceu a noite. Bob não gostou nem um pouco, e ele foi ao escritório do jornal no dia seguinte, xingando, dizendo basicamente: “Vocês estão fazendo Peter parecer um revolucionário, e eu sou o quê?”

Então, houve um debate paralelo sobre se Bob havia se vendido ao fazer isso, enquanto minha leitura daquele momento é que ele estava pensando: “Se ao menos os trabalhadores pudessem ter paz, então poderíamos começar a mudar este país”.

MG

O que aconteceu depois daquela noite?

Brian Meeks

Em poucos anos, ambos os líderes de gangues, Claudius Massop e Bucky Marshall, estavam mortos. O acordo de paz não se sustentou. A violência aumentou dramaticamente rumo à próxima eleição. E em 1980, contra esse pano de fundo de violência e um acordo com o FMI que estava estrangulando o país e prejudicando os trabalhadores, o PNP foi derrotado, e Seaga se tornou primeiro-ministro.

A tentativa do socialismo democrático de Manley falhou. Ronald Reagan foi eleito quase simultaneamente com Edward Seaga, que visitou os EUA em 1981. Bob Marley também morreu de câncer em 1981. Então esse é o tipo de desfecho, ou se você preferir, de todo esse processo.

Manley se engajou na oposição e, em 1989, foi reeleito, mas voltou como um líder muito mais contido, operando dentro dos limites do consenso de Washington.

MG

É como se Manley fosse um líder que respondeu ao seu momento. O contexto foi revolucionário no início dos anos 1970, mas não continuou assim na década de 1990.

Brian Meeks

Exatamente. Quando ele retornou, o momento já havia passado; o mundo havia seguido em frente. A conjuntura internacional que permitiu a existência de estados radicais havia sido eclipsada. Manley voltou como uma pessoa completamente diferente. Em seu leito de morte, ele disse que se arrependeu de algumas das decisões que sentiu que teve que tomar nos anos 90, mas isso é para os livros de história.

MG

Dada a forma como o governo de Manley terminou, a história provou que Bob Marley estava certo ao dizer que, sem paz nas ruas, toda esperança revolucionária na Jamaica estaria extinta?

Brian Meeks

A história provou que ele estava certo na medida em que o fracasso de um tratado de paz levou ao aumento da violência, e que o resultado da eleição de 1980 se deveu ao sentimento de que o país era ingovernável. Muitas pessoas diriam depois da eleição que gostavam de Manley e de suas políticas, mas o país estava em guerra, e a única maneira de pará-la era deixar Seaga governar.

Mas a violência não foi a única coisa que precipitou a derrota de Manley. Houve também a situação econômica insustentável, piorada pelo acordo do país com o FMI. Os salários reais haviam diminuído significativamente, você não conseguia encontrar certos produtos nas prateleiras dos supermercados — todas as características clássicas. Nixon disse isso em relação ao Chile: “Faça a economia gritar”. A economia jamaicana estava gritando em 1979 e 1980.

Talvez não fosse possível que houvesse um acordo de paz viável, porque, em última análise, estava acontecendo no nível de senhores da guerra, não de políticos como Manley e Seaga. Mas nunca saberemos o que teria acontecido se a paz tivesse sido possível e alcançada.

Colaboradores

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

Brian Meeks é chefe de estudos da Africana na Brown University.

29 de junho de 2024

Biden e Trump debateram sobre quem apoia mais os crimes de guerra israelenses

Apesar da catástrofe humanitária que se está a desenrolar em Gaza, o tema do genocídio de Israel foi abordado apenas por breves instantes no debate presidencial de quinta-feira. Mas Trump e Biden disseram o suficiente para deixar claro que estão a competir para ver quem é mais pró-Israel.

Alex N. Press

Jacobin

O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, olha para o presidente dos EUA, Joe Biden, durante a presidência da CNN em 27 de junho de 2024, em Atlanta, Geórgia. (Andrew Harnik/Getty Images)

Esta semana, o Washington Post noticiou que os Estados Unidos enviaram 6.500 milhões de dólares em ajuda militar a Israel desde outubro, uma quantidade de ajuda estonteante a um Estado que está a cometer um ataque genocida contra o povo palestiniano em Gaza. A soma até agora não revelada inclui 3 mil milhões de dólares só em maio deste ano, o mesmo mês em que Israel começou a atacar Rafah, uma zona densamente povoada de civis a quem tinha sido dito que era segura.

Apesar de a maioria dos americanos não concordar com a campanha de extermínio de Israel, o governo dos EUA continua firmemente do lado do Estado israelita, disposto a destruir a pretensão de longa data de uma ordem internacional baseada em regras e até a permitir que Israel expanda a guerra para o Líbano, a fim de manter os seus fortes laços com o seu principal aliado no Médio Oriente.

É uma realidade desanimadora, que ficou bem patente no debate presidencial desta semana. A prova deste consenso de elite sobre Israel surgiu antes de Donald Trump ou Joe Biden proferirem uma palavra, patente na escolha dos moderadores: Jake Tapper e Dana Bash, da CNN.

Propaganda sem vergonha

Os dois pivôs de televisão destacaram-se como os mais ferozes apoiantes de Israel nos principais meios de comunicação social, o que significa ultrapassar uma fasquia muito alta. Em maio, quando uma turba pró-Israel atacou violentamente estudantes pró-Palestina da UCLA e o Departamento de Polícia de Nova Iorque invadiu o campus da Universidade de Columbia para reprimir os protestos de estudantes pró-Palestina, Bash produziu uma peça de propaganda vergonhosa. No programa da CNN, ela baralhou a questão de quem, exatamente, era responsável pela violência nos campus; depois, fez um monólogo notável em que comparou a violência na UCLA com "os anos 30 na Europa". Bash não queria dizer, claro, que os atacantes pró-Israel eram camisas castanhas fascistas - estava a dizer que as pessoas que eles agrediram o eram.

Em outubro, Tapper fez uma reportagem sobre as alegações de que o Hamas praticava sistematicamente violência sexual a 7 de outubro. Grande parte dessa reportagem baseou-se em fontes cuja fiabilidade foi entretanto posta em causa, e vários dos especialistas citados tinham ligações importantes ao Estado israelita, histórias relevantes que Tapper não revelou. Uma das figuras mediáticas de maior visibilidade no país, Tapper tem sido rápido a difundir as alegações de antissemitismo generalizado entre os manifestantes que criticam a violência desenfreada de Israel, que já matou mais de quarenta mil palestinianos (certamente uma subcontagem dramática, uma vez que Israel enfraqueceu de tal forma a infraestrutura civil de Gaza que já não consegue processar o número de mortos).

E estes são apenas os moderadores. Quanto aos dois homens que disputam o controlo do vasto aparelho militar dos EUA que sustenta o Estado israelita, garantindo que este pode continuar a matar pessoas em massa, o assunto só surgiu por breves instantes. A esmagadora maioria da cobertura pós-debate foi justamente sobre como o evento revelou a inaptidão de Joe Biden para servir mais quatro anos no cargo - um facto que os membros do Partido Democrata têm vindo a sussurrar há algum tempo. Mas tendo em conta que os Estados Unidos são atualmente cúmplices de um dos mais horríveis atos de violência da história da humanidade, vale a pena perguntar o que Biden e Donald Trump têm a dizer sobre o assunto.

Quem é mais entusiasta do genocídio?

Bash introduziu o tema, afirmando corretamente que, após o ataque do Hamas em 7 de outubro, a resposta de Israel não só matou milhares de palestinianos, como criou uma crise humanitária (dois milhões de palestinianos enfrentam agora a fome). Observando que a abordagem de Biden não resultou na libertação dos restantes reféns nem na contenção da violência de Israel, Bash perguntou ao presidente: "Que influência suplementar irá usar para levar o Hamas e Israel a pôr fim à guerra?"

É uma boa pergunta. Os Estados Unidos têm um poder imenso sobre Israel, caso decidam exercê-lo; se não acreditam em mim, acreditem em Ronald Reagan. Mas a administração Biden recusa-se a cortar as transferências de armas e a assistência militar a Israel, apesar de isso afetar imediatamente o seu esforço de guerra. É pena que não tenhamos ouvido uma resposta verdadeira.

Em vez disso, Biden afirmou que o governo israelita, incluindo Benjamin Netanyahu, apoiou a sua proposta de cessar-fogo. Na realidade, o apoio do primeiro-ministro israelita ao plano tem-se revelado, no mínimo, inconstante. Biden afirmou então que "o único que quer que a guerra continue é o Hamas", apesar de o Hamas ter concordado com uma versão da proposta de cessar-fogo de Biden em maio. Depois, o presidente partiu para o que ele claramente acredita ser a única questão relevante na campanha: provar a sua boa-fé pró-Israel.

"A única coisa que neguei a Israel foram as bombas de duas mil libras, porque não funcionam muito bem numa área com muita gente; matam muitas pessoas inocentes", afirmou o Presidente, referindo-se à suspensão temporária que a administração impôs a essas bombas enquanto procede a uma avaliação. "Estamos a fornecer a Israel todas as armas de que precisa e quando precisa."

"Somos o maior produtor de apoio a Israel do que qualquer outro no mundo", disse Biden (e as pessoas dizem que este país já não fabrica coisas!). O presidente não mencionou a crise humanitária que se desenrola em Gaza nem usou a palavra "palestino".

"Ele disse que o único que quer que [a guerra] continue é o Hamas. Na verdade, é Israel que quer, e vocês deviam deixá-los prosseguir, e deixá-los acabar o trabalho", respondeu Trump. No meio de uma enxurrada de mentiras escandalosas, esta foi uma das declarações mais honestas que o ex-presidente fez durante toda a noite. Os eleitos israelitas há muito que deixaram claro que estão a levar a cabo uma campanha sistemática de limpeza étnica na Faixa de Gaza, com o objetivo de deslocar à força os milhões de palestinianos que vivem no enclave. Mais uma vez, é o Hamas que tem estado mais disposto a aceitar propostas de cessar-fogo, não Israel.

O apoio de Trump a esses propósitos não é segredo. A direita israelita está cheia de apoiantes de Trump que compreendem que o antigo presidente seria ainda menos crítico da sua campanha genocida do que a administração Biden. Como muitos já argumentaram, Netanyahu é um homem de Trump, vendo-o como mais tolerante e beligerantemente racista do que Biden, e essa preferência parece ser partilhada pelos israelitas em geral. Quando Trump diz que acredita que se deve deixar Israel continuar a fazer a guerra, está a falar a sério.

"Ele tornou-se um palestino", continuou Trump, referindo-se a Biden, usando a nacionalidade de um povo que enfrenta um genocídio como um insulto. "Mas eles não gostam dele, porque é um palestino muito mau. Ele é um fraco".

Biden revirou os olhos perante a declaração de Trump e os candidatos prosseguiram. Bash tentou trazer a discussão de volta ao tema, perguntando a Trump se ele apoiaria o estabelecimento de um Estado palestiniano, mas tudo o que conseguiu foi um descomprometido "Terei de ver".

Ora aí está. Insensível à opinião pública e imune às críticas, indiferente à lista de agências humanitárias que apelidaram as ações de Israel de "genocídio", a máquina de guerra dos EUA não pára. Em vez de desempenharem o papel de adultos na sala, os Estados Unidos estão a ajudar e a incentivar o genocídio, e vão continuar a fazê-lo - e o presidente liberal que o está a fazer agora não sente necessidade de apresentar justificações. Estes são os dois candidatos: um maníaco racista e um tipo que devia estar reformado e de chinelos. Quer seja Trump ou Biden na Casa Branca - e parece que será Trump - os Estados Unidos estarão lá para dar uma mãozinha (e muitas, muitas armas) a Israel.

Isto não é novidade, mas nem por isso é menos trágico para o mundo. Ao ver o debate, lembrei-me do que Rashid Khudairi, um agricultor palestiniano da Cisjordânia, disse em março. Quando lhe perguntaram o que gostaria de dizer aos trabalhadores dos Estados Unidos, Khudairi disse-me: "Temos de nos unir para criar um mundo com uma verdadeira democracia, com vidas justas e direitos plenos. Espero que os trabalhadores, e toda a população dos Estados Unidos, decidam lutar pela liberdade no mundo, para acabar com a decisão errada dos Estados Unidos de apoiar a ocupação israelita".

Grande parte da população dos EUA apoia a libertação dos palestinianos, mas não temos a democracia de que Khudairi falou, e a sua liberdade não virá lá de cima. Se houvesse alguma dúvida sobre isso, o debate desta semana provou-o.

Colaborador

Alex N. Press é redator da Jacobin que cobre organização trabalhista.

O Real não foi só um plano econômico

Programa teve êxito contra a inflação, mas não garantiu a retomada do crescimento

Aloizio Mercadante
Economista, é presidente do BNDES. Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e ministro da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação

Folha de S.Paulo

O Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Batata com o preço em URV em feira em São Paulo, em março de 1994 - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado "Consenso de Washington". Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.

28 de junho de 2024

A psicologia da opressão e da libertação

O que Fanon diria sobre o genocídio em curso na Palestina?

Hamza Hamouchene


Franz Fanon entrando em um barco. (Leo Zeilig/IB Tauris/HSRC Press - África do Sul)

"Para a Europa, para nós mesmos e para a humanidade... precisamos elaborar novos conceitos e tentar criar um novo homem."

- Frantz Fanon, Os condenados da Terra

Tradução / O pensamento dinâmico e revolucionário de Frantz Fanon, sempre centrado na criação, no movimento e no devir, continua sendo totalmente profético, vívido, inspirador, analiticamente aguçado e moralmente comprometido com a desalienação e a emancipação de todas as formas de opressão. Fanon defendeu de forma contundente e convincente o caminho para um futuro em que a humanidade “avance mais um passo” e rompa com o mundo do colonialismo e com o molde do “universalismo” europeu. Ele representou o amadurecimento da consciência anticolonial e foi um pensador decolonial por excelência. Como uma verdadeira personificação do intellectuel engagé, ele transformou os debates sobre raça, colonialismo, imperialismo, alteridade e o que significa para um ser humano oprimindo outro.

Apesar de sua vida curta (ele faleceu de leucemia aos 36 anos), o pensamento de Fanon é muito rico e sua obra é prolífica, variando de livros e artigos científicos a jornalismo e discursos. Escreveu seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, dois anos antes da batalha de Dien Bien Phu, no Vietnã (1954), e seu último livro, o famoso Os Condenados da Terra, obra canônica sobre a luta anticolonialista e terceiro-mundista, um ano antes da independência da Argélia (1962), durante o período de descolonização africana. Em sua trajetória e em toda a sua obra, podemos ver interações entre a América Negra e a África, entre o intelectual e o militante, entre o pensamento/teoria e a ação/prática, entre o idealismo e pragmatismo, entre a análise individual e os movimentos coletivos, entre a vida psicológica (ele se formou como psiquiatra) e a luta física, entre o nacionalismo e o pan-africanismo e, finalmente, entre as questões do colonialismo e as questões do neocolonialismo.

Não é surpresa nem coincidência que estejamos testemunhando um interesse renovado em Fanon e suas ideias desde os ataques do Hamas em 7 de outubro contra a entidade sionista e a colônia de colonos ocupante deIsrael e o genocídio que se seguiu contra os palestinos. Sem dúvida, sua análise e seu pensamento continuam altamente relevantes e esclarecedores, devido à persistência da colonialidade (que ele analisou)em suas inúmeras formas, desde o colonialismo dos colonos na Palestina até o neocolonialismo em várias partes do Sul global. Entretanto, parte desse interesse renovado – especialmente em relação à situação naPalestina – sucumbe a críticas simplistas e leituras errôneas e insidiosas de seu trabalho que tendem a distorcê-lo e desconectá-lo de sua práxis anticolonial e revolucionária, bem como de seu compromisso inabalável com a libertação dos “condenados da terra”. Esses esforços supostamente”críticos” não podem ser dissociados dos ataques mais amplos ao direito dos palestinos de resistir ao colonialismo usando quaisquer meios necessários e da atitude desdenhosa em relação às pessoas que demonstram solidariedade intransigente com sua resistência e luta de libertação. Em alguns casos, todo o empreendimento equivale a racismo disfarçado de discurso intelectual.

Isso não é novidade: existem muitas interpretações reducionistas de Fanon, interpretações que eliminam tanto a dimensão histórica/política quanto a dimensão filosófica/psicológica de sua obra, dependendo dos imperativos sociais do momento. Fanon foi um pensador político, um militante revolucionário e um psiquiatra, e todos esses aspectos de sua vida formaram uma unidade coerente: dialética, complementar e enriquecedora entre si. Afinal de contas, seu projeto era combater a alienação em todas as suas formas: social, cultural, política e psicológica.Fanon viveu a vida de um revolucionário, um embaixador e um jornalista, mas é impossível separar essas muitas vidas de sua prática científica e clínica. Da mesma forma, suas expressões e articulações não eram apenas as de um médico psiquiatra, mas também as de um filósofo, de um psicólogo e de um sociólogo. Fanon foi um pioneiro precisamente porque combinou um compromisso com a transformação social com um compromisso com a liberação psicológica dos indivíduos. Seu objetivo essencial era pensar e construir a liberdade como desalienação, ocorrendo dentro de um processo necessariamente histórico e político.

Fanon,o psiquiatra revolucionário

"A ciência despolitizada, a ciência a serviço do homem, muitas vezes não existe nas colônias."

- Frantz Fanon, O ano V da revolução argelina

Ao chegar ao Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville, na Argélia, em 1953, Fanon percebeu rapidamente que a colonização, em sua essência, era uma grande produtora de loucura, daí a necessidade de hospitais psiquiátricos nos países colonizados. Com entusiasmo, ele se empenhou em revolucionar a prática psiquiátrica convencional, de acordo com os ensinamentos “desalienistas” do asilo de Saint-Alban e do professor Tosquelles. Ele percebeu como a psiquiatria colonial naturalizava os transtornos mentais, que eram determinados por fatores sociais e culturais. O reducionismo científico floresceu nas colônias, em especial sob a autoridade de Antoine Porot e sua influente “escola de Argel”. Fanon apresentou uma crítica incisiva à etno-psiquiatria colonial, expondo seu racismo grosseiro e a justificativa da opressão colonial. Ele argumentou que a psiquiatria colonialista como um todo tinha de ser desalienada.

Como Jean Khalfa e Robert J.C. Young já afirmaram, a atividade política de Fanon estava ancorada em uma epistemologia surpreendentemente lúcida e em um trabalho científico e uma prática clínica inovadores. Seus artigos científicos formaram uma crítica ao biologismo da etno-psiquiatria colonial e permitiram que ele reavaliasse a cultura em sua relação tanto com o corpo quanto com a história. Isso fica claro em seu famoso discurso sobre cultura nacional, proferido no Segundo Congresso de Artistas e Escritores Negros em Roma, em 1959.

Durante esse período, Fanon fez experiências com abordagens que o tornariam um dos pioneiros da etno-psiquiatria moderna. Por fim, ele se distanciou da terapia institucional depois de chegar à firme convicção de que a terapia deveria, acima de tudo, restaurar a liberdade dos pacientes e deveria ser realizada dentro do ambiente cultural e social normal do paciente. Ele argumentou que a psiquiatria estabelecida e as instituições de saúde mental “amputavam, puniam… rejeitavam, excluíam e isolavam”os pacientes.

O projeto de Fanon era tornar acessíveis aos pacientes as atividades criativas, culturais e manuais que poderiam permitir que eles se tornassem seres humanos novamente, com aspirações pessoais. Ele queria que seus pacientes assumissem o controle de suas próprias vidas e se expressassem. Com esse objetivo em mente, no hospital Blida-Joinville, Fanon criou oficinas de cestaria e cerâmica, celebrou festas religiosas (muçulmanas e cristãs), organizou um clube de cinema, eventos esportivos e excursões e, talvez o mais importante de tudo, fundou uma pequena publicação semanal chamada Notre Journal, lançada em dezembro de 1953, que registrava a evolução e o progresso no tratamento dos pacientes do hospital.

Durante seus últimos anos, que foram passados em Túnis, além de suas atividades políticas, ele dedicou uma energia considerável à criação e administração de um centro psiquiátrico diurno, que dirigiu de 1957 a1959 e que foi uma das primeiras clínicas psiquiátricas abertas no mundo francófono. Hoje em dia, a hospitalização diurna é um componente tão comum do tratamento psiquiátrico nos países industrializados que é difícil avaliar suficientemente a importância da adoção dessa abordagem em Túnis durante a década de 1950.

Fanon, violência e a psicologia maniqueísta da opressão

"O colonialismo só perde o controle quando está com a faca em sua garganta."

- Frantz Fanon, Os Condenados da Terra

Não podemos falar de Fanon sem nos debruçarmos sobre sua análise da violência e da psicologia da opressão, especialmente durante a atual era de destruição e morte. O que Fanon diria sobre o genocídio colonial e a”avalanche de assassinatos” que está ocorrendo atualmente em Gaza e em outros lugares? O que ele diria sobre os efeitos traumáticos e atormentadores sobre crianças, mulheres e homens palestinos? Como ele analisaria a violência e a contra-violência em curso?

Em sua obra, Fanon descreve minuciosamente os mecanismos de violência implementados pelo colonialismo para subjugar os povos oprimidos. Ele escreve: “O colonialismo não é uma máquina de pensar, nem um corpo dotado de faculdades de raciocínio. É a violência em seu estado natural”. Segundo ele, o mundo colonial é um mundo maniqueísta, que segue em direção à sua conclusão lógica: ele “desumaniza o nativo ou, para falar claramente, o transforma em um animal”. Para Fanon, a colonização é uma negação sistemática do outro e uma recusa frenética de atribuir qualquer aspecto de humanidade a esse outro. Em contraste com outras formas de dominação, a violência colonial é total, difusa, permanente e global. Tratando tanto de torturadores quanto de vítimas, Fanon não conseguiu escapar dessa violência total, cujas dimensões estruturais, institucionais e pessoais ele analisou com ousadia. Em 1956, isso o levou a renunciar ao cargo de Chefe de Serviço no Hospital Blida-Joinville e a se juntar à Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN).

A vida e o trabalho na Argélia colonial, bem como a maneira implacável de como a Guerra da Argélia foi conduzida, com sua violência e contra- violência e imensa perda humana, levaram Fanon a reformular suas ideias sobre opressão e saúde mental e a tornar a questão da violência o foco de seu interesse e do primeiro capítulo de sua última obra clássica, Os condenados da terra. Nesse livro, ele descreve a psicologia maniqueísta que está por trás da opressão e da violência humanas.

Como Hussein Abdilahi Bulhan argumentou, as observações de Fanon na Argélia e em outros lugares ressaltam o fato de que o colonialismo, assim como os homens que dirigem essa máquina violenta, é impermeável aos apelos da razão e se recusa obstinadamente a reconhecer a humanidade do outro, gerando assim uma violência incalculável. Fanon não apenas demonstra as manifestações horríveis da violência, mas também explica seu papel libertador em situações em que todos os outros meios falharam. O colonizador depende e entende apenas a violência, e precisa ser enfrentado com mais violência: “Somente a violência, a violência cometida pelo povo, a violência organizada e educada por seus líderes, possibilita que as massas compreendam as verdades sociais e dá a chave para elas.” Durante a luta pela independência da Argélia, ficou claro para Fanon e para o povo argelino que, quando todas as medidas pacíficas fracassavam, só restava um recurso: lutar. Os palestinos de hoje estão fazendo exatamente isso, com coragem e heroísmo formidáveis, mas a um custo incrivelmente alto.

Fanon foi injustamente e erroneamente acusado de ser o profeta da violência. De fato, o que ele faz é descrever e analisar a violência do sistema colonial. Longe de fazer uma apologia da violência, ele a considera inevitável como resposta à violência da colonização, da dominação e da exploração do homem pelo homem.

A carta de demissão de Fanon do Hospital Blida-Joinville é um documento comovente e baseado em princípios, de um tipo raro na literatura psicológica. Ela mostra a integridade e a coragem do homem e resume o impulso revolucionário e humanista de sua psiquiatria. Nele, ele escreve: “O árabe, alienado permanentemente em seu país, vive em um estado de absoluta despersonalização.” Ele acrescenta que a Guerra da Argélia foi “uma consequência lógica de uma tentativa abortada de descerebralizar um povo”.

Ao longo de seu trabalho profissional e de seus escritos militantes, Fanon desafiou as abordagens culturalistas e racistas dominantes e os discursos sobre os nativos, como o que ele chamou de “síndrome do norte da África”, segundo a qual “o norte da África é um simulador, um mentiroso, um malfeitor, um preguiçoso, um ladrão…”. E ele apresentou uma explicação materialista, situando sintomas, comportamentos, ódio a si mesmo e complexos de inferioridade dentro da vida de opressão e da realidade das relações coloniais desiguais. Ele explicou que a solução para esses problemas era mudar radicalmente as estruturas sociais.

Fanon e a psicologia da libertação

"Eu, o homem de cor, quero apenas isso: que a ferramenta nunca possua o homem. Que a escravidão do homem pelo homem cesse para sempre."

- Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas

Fanon entendeu que a psiquiatria deve ser política. Seus esforços para colocar a loucura em sua perspectiva sócio-histórica e cultural e para restaurar a integridade do corpo e da mente do nativo eram consistentes com o projeto maior de instituir a justiça política e social. Portanto, ele defendia uma psiquiatria da libertação.

A guerra de libertação da Argélia foi claramente um ponto de virada para o trabalho de Fanon como psiquiatra. A perda física e o deslocamento psíquico causados pela guerra consolidaram a convicção de Fanon de que a psiquiatria estabelecida e as instituições mentais em sociedades opressivas são locais de violência, não de cura, e o levaram a fundir sua psiquiatria radical com a crítica mais forte e prática possível da dominação, ou seja, a luta popular pela libertação.

O compromisso ativo de Fanon com a libertação social também implicava um compromisso com a libertação psicológica. De fato, foi sua capacidade de conectar a psiquiatria à política e os problemas particulares aos problemas sociais, e de agir de acordo com isso, que o tornou um pioneiro da psiquiatria radical. O que ele viu nos centros de saúde da FLN, com toda a angústia acumulada dos refugiados argelinos deslocados, convenceu-ode que a centralidade da liberação e da liberdade para os pacientes psiquiátricos e para os colonizados são dois lados da mesma moeda. Essa foi a psiquiatria de Fanon até sua morte: um projeto nobre de restaurar a liberdade dos cativos do colonialismo e do establishment psiquiátrico, e um compromisso total com os seres vivos e com qualquer ação/prática clínica, escrita e violência revolucionária que pudesse reabilitar a integridade das pessoas e dos valores humanos básicos.

Hussein Abdilahi Bulhan resumiu de forma eloquente a abordagem de Fanon à psiquiatria:

uma psicologia adaptada às necessidades dos oprimidos daria primazia à conquista da 'liberdade coletiva' e, como essa liberdade só é alcançada por coletivos, enfatizaria a melhor forma de promover a consciência e a ação organizada do coletivo.

Portanto, a interdependência e a cooperação humanas, em vez do individualismo e da mercantilização, devem estar no centro da psicologia da libertação, que deve capacitar as pessoas para mudar as instituições e transformar radicalmente as estruturas sociais, em vez de se ajustar e se submeter ao status quo enquanto obtém lucro.

De acordo com Fanon, em situações de opressão, devemos tratar as causas básicas e não apenas os sintomas; devemos prevenir doenças, não apenas tratá-las; devemos capacitar as vítimas para resolver seus problemas, em vez de mantê-las dependentes e impotentes; e devemos promover a ação coletiva, não uma individualização autodestrutiva das dificuldades. Aqui reside uma das contribuições mais importantes de Fanon. Uma psicologia da libertação do tipo proposto por Fanon dá primazia ao empoderamento dos oprimidos por meio de atividades organizadas e socializadas, para restaurar histórias individuais e coletivas que foram descarriladas e prejudicadas pela opressão e pelo colonialismo. Seja por meios pacíficos ou violentos, é somente por meio da luta organizada que os oprimidos podem mudar a si mesmos e superar as dificuldades que enfrentam.

Sobre o autor

Hamza Hamouchene é um pesquisador-ativista argelino radicado em Londres. Membro fundador da Campanha de Solidariedade da Argélia e Justiça Ambiental Norte de África, é atualmente coordenador do programa Norte de África no Instituto Transnacional.

Ezra Klein sobre por que os democratas têm muito medo de substituir Biden

Os apoiadores do presidente há muito tempo tratam sua idade como uma questão superficial. O comentarista do Times explica por que essa posição se tornou insustentável.

Isaac Chotiner


Fonte da fotografia: Justin Sullivan / Getty

Tradução / Na quinta-feira à noite, o Presidente Joe Biden teve uma atuação amplamente criticada no debate contra Donald Trump, causando pânico em todo o Partido Democrata e levantando questões sobre se Biden deve continuar como candidato do partido. Biden já está atrás de Trump nas sondagens nacionais e nos estados ditos indecisos (swing-states), em que os eleitores registaram preocupações significativas com a idade do Presidente (ele terá 82 anos em Novembro). No debate, Biden tropeçou nas suas palavras, por vezes pareceu ficar completamente em branco e teve dificuldade em dar respostas claras, o que provavelmente reforçou estas preocupações entre os eleitores. (Uma sondagem da CNN realizada imediatamente após o debate revelou que cinquenta e sete por cento dos telespectadores disseram não ter “confiança” na “capacidade de Biden para liderar o país”; para Trump, o número foi de quarenta e quatro por cento).

Há mais de quatro meses, o colunista do Times e podcaster Ezra Klein escreveu uma coluna intitulada “Os democratas têm uma opção melhor do que Biden”, na qual apelava ao partido para que convencesse Biden de que “não deveria concorrer novamente”. Preocupado com o facto de Biden estar a perder, considerou que era imperativo que os democratas não cedessem ao “fatalismo” em relação à corrida e defendeu que o partido deveria pressionar para uma convenção aberta, na qual poderia ser escolhido outro candidato. A coluna de Erza Klein causou sensação, mas obviamente não levou a que Biden fosse significativamente desafiado nas primárias, nem a uma grande pressão para que se afastasse.

Na sexta-feira de manhã, falei por telefone com Klein sobre o que aconteceu na quinta-feira [o debate Biden-Trump] e o que os democratas devem fazer agora. A nossa conversa, editada por razões de extensão e clareza, encontra-se a seguir.

Isaac Chotiner

Porque é que acha que o que sugeriu que deveria acontecer em fevereiro não aconteceu?

Ezra Klein

Penso que é muito difícil contornar um Presidente em exercício que se quer candidatar à reeleição. Não creio que nada do que defendi em fevereiro fosse particularmente invulgar ou não fosse sentido por muitos democratas, incluindo muitos democratas de topo. Recebi muitos comentários sobre esse artigo, e o comentário que quase nunca recebi foi: “Está errado. Joe Biden é um candidato forte. Ele é o melhor candidato que os democratas poderiam colocar nas urnas em novembro”.

O que as pessoas disseram foi: “Não há outra opção. Não há outra opção porque ele não se vai afastar. Não há outra opção porque, mesmo que ele se afastasse, Kamala Harris não é suficientemente forte. Não há outra opção porque não se acha que Kamala Harris ganharia numa convenção e, se ela não ganhasse numa convenção, o partido ficaria desfeito. Para mim, o bloqueio na mente das pessoas não era tanto o facto de a idade de Biden se ter tornado um risco realmente substancial na campanha ou mesmo na Presidência, mas sim na incapacidade de imaginarem que o Partido era suficientemente forte para fazer outra coisa e assumir o risco de fazer outra coisa.

Havia um problema de ação coletiva. Qualquer político individual ou funcionário, conselheiro ou confidente de Joe Biden que saísse da linha e dissesse em privado ou publicamente que Joe Biden não se devia candidatar enfrentava um verdadeiro risco de carreira. Ao passo que não dizer nada não representava um risco.

Isaac Chotiner

Desafiar um Presidente em exercício é geralmente visto como difícil para o desafiador e potencialmente prejudicial para o titular. Uma coisa que me ocorre, no entanto, e que eu gostaria de ter pensado na altura da sua coluna, é que quando o principal problema do presidente em exercício é a sua idade, há um benefício adicional em desafiá-lo: algo como este debate poderia ter acontecido durante as primárias, o que eu realmente acho que teria agitado as coisas.

Ezra Klein

Tinha planeado esse mesmo artigo com o meu editor e ia publicá-lo logo após as eleições intercalares. Depois, os democratas saíram-se tão inesperadamente bem nas eleições intercalares que se sentiu a possibilidade de uma contestação escapar-se do partido. Segundo percebi, as pessoas estavam pelo menos a considerar a possibilidade de participar nas primárias exatamente por esta razão, e poderiam ter sido recetivas ao argumento de que os Democratas precisavam de umas primárias simplesmente para ver se Joe Biden ainda era capaz de fazer campanha. Não havia qualquer hipótese de o fazer depois do desempenho democrata em 2022, que foi invocado – incorretamente, penso eu – como prova de que eu estava errado não só em relação aos democratas mas também em relação a Joe Biden.

Algo que estamos a ver este ano é Biden a ficar atrás dos democratas do Congresso. Eles estão a liderar as principais corridas ao Senado, em estados onde ele está a ficar para trás. Por isso, é evidente que as pessoas estão mais dispostas a votar num democrata mediano do que em Joe Biden, e é muito plausível, na minha opinião, que o delta seja a idade.

O problema era, mais uma vez, o partido. Quero voltar sempre a este ponto: o Partido teria de tomar uma decisão mais estratégica. O Partido teria de fazer coisas que fossem incómodas para gerir o risco de queda. Em vez disso, houve uma coerência em torno do melhor caso possível para Joe Biden. Por vezes, as pessoas dizem que eu voltei atrás no meu discurso depois do discurso sobre o, mas não é assim que eu penso. O que eu disse depois do Estado da União foi, essencialmente, “Se este Joe Biden aparecer todos os dias até às eleições, as pessoas que dizem o que eu tenho dito vão parecer um pouco tolas”. Mas ele não ia aparecer assim todos os dias até às eleições.

Não sei realmente porque é que o seu discurso do Estado da União foi tão forte. Mas a esperança de que se ia ter aquele tipo todos os dias, quando qualquer pessoa que tenha visto os seus discursos e atuações regularmente sabe que não se vai ter aquele tipo todos os dias, é um problema.

Isaac Chotiner

Mesmo que não tenha assistido aos seus discursos ou atuações, ele tem oitenta e um anos de idade e, provavelmente, não vai ter esse desempenho todos os dias simplesmente porque ele tem oitenta e um anos.

Ezra Klein

Penso que isto é algo que os democratas têm estado a tratar como uma questão superficial em vez de uma questão substantiva.

Isaac Chotiner

Certo, uma das coisas mais interessantes de que falou no seu artigo e de que tem falado desde então é esta ideia de Biden ser demasiado velho para se candidatar a Presidente ou demasiado velho para ser Presidente. Como é que pensa nisso agora?

Ezra Klein

O que eu disse no artigo, que é algo que ouvi de muitas pessoas em torno de Joe Biden, é que ele estava perfeitamente à altura do cargo de Presidente. Diziam-me, embora eu não estivesse presente nessas reuniões, que se estivéssemos em reuniões com ele, veríamos que era perspicaz, que tomava boas decisões, que as pessoas não tinham preocupações quanto à sua capacidade de desempenhar o cargo em termos de tomada de decisões. Outra coisa era a sua capacidade de desempenhar o cargo em frente às câmaras. Por isso, afirmei que ele parecia estar à altura do cargo de Presidente, mas que não parecia estar à altura de fazer campanha para Presidente.

Depois de ter publicado o artigo, refleti bastante sobre essa linha, porque senti que a situação era um pouco menos clara do que parecia. A forma como a coloco agora é que penso que a distinção é mais ténue. Não acho que Joe Biden esteja senil. Não acho que ele esteja a tomar más decisões. Mas penso que, em primeiro lugar, a capacidade de comunicar faz parte das funções do Presidente. Na formulação clássica da ciência política, o poder da Presidência é o poder de persuadir. Joe Biden tornou-se bastante limitado nas suas capacidades de persuasão. Parte do trabalho do Presidente é incutir confiança nas pessoas de que tem sob controlo os múltiplos problemas do mundo.

O Partido Democrata tornou-se este partido da normalidade, dos sistemas e das instituições de uma forma diferente da que existia quando entrei na política, quando o mundo dos negócios estava muito alinhado com os republicanos. Atualmente, todas as grandes instituições da vida americana estão muito mais próximas dos democratas. Assim, de uma forma que penso ser um pouco complicada para eles, este partido que é, por um lado, o partido da reforma, é também o partido da preservação do que temos. É um partido de conservação e de mudança.

A dificuldade que Biden colocava é que, num partido que, a um certo nível, quer argumentar que é o partido de pessoas normais e competentes que nomearão pessoas normais e competentes para cargos e farão um trabalho normal e competente, Joe Biden tinha passado a parecer ser uma aberração para os eleitores. E os democratas não os estavam a ouvir. Os democratas estavam a dizer-lhes que estavam errados, da mesma forma que os democratas disseram aos eleitores que estavam errados em 2016, quando os eleitores disseram que não gostavam de Hillary Clinton. Na altura, eu era alguém que dizia: “Estão enganados. Inalaram a Fox News e anos de ataques sexistas a Hillary Clinton”. Mas não se pode dizer aos eleitores que estão errados. Isso não funciona.

Isaac Chotiner

Concordo que não se pode dizer aos eleitores que estão errados numa coisa destas. Pondo isso de lado- com Biden, acha que os eleitores têm razão?

Ezra Klein

Penso que a capacidade de comunicar claramente, a capacidade de persuadir, a capacidade de incutir confiança na sua liderança fazem parte do trabalho da Presidência. Tenho dificuldade em dizer que Joe Biden e a sua equipa não estão a tomar decisões razoáveis em termos de governação. Penso que, na sua maioria, estão a fazê-lo. Mas, em termos de campanha, não estão claramente a fazê-lo. Não me parece que candidatar Joe Biden novamente seja a decisão correta.

E, mesmo que se acredite que o único problema aqui é o facto de Joe Biden já não ser tão rápido retoricamente e parecer bastante velho e fisicamente limitado quando o vemos a andar numa pista, isso é algo que não faz parte do trabalho da Presidência, ou que fazer campanha é algo que não faz parte do trabalho da Presidência, ou que ser capaz de articular o seu historial e o que está a fazer e porquê de uma forma clara e convincente, o que não vimos ontem à noite, é algo que não faz parte do trabalho da Presidência – essas coisas fazem parte do trabalho da Presidência.

Isaac Chotiner

Penso que é ainda mais do que isso. Se quisermos dizer que o trabalho da Presidência é aprovar políticas e governar de uma forma que seja boa para o povo americano, a coisa mais importante que terá impacto na forma como os Estados Unidos serão governados nos próximos cinco anos é se Joe Biden consegue vencer Donald Trump numa eleição. De facto, provavelmente a coisa mais importante para determinar se as políticas aprovadas por Biden têm impacto, quer estejamos a falar de políticas económicas ou de ajuda à Ucrânia, é se Joe Biden consegue vencer Donald Trump nas eleições. Por isso, a distinção parece-me quase irrelevante numa determinada altura.

Ezra Klein

Sim, também é verdade, obviamente, que concorrer à presidência – conseguir a reeleição – também faz parte do trabalho do presidente. Para mim, a comparação governamental aqui é Ruth Bader Ginsburg. Pergunto-me se Joe Biden e as pessoas que o rodeiam interiorizaram o que significará para o seu legado se perder estas eleições. Após a morte de Ginsburg, o que pelo menos em parte levou à evisceração de Roe, tornou-se o seu legado, muito mais do que o outro trabalho que fez, e desse ponto de vista há uma verdadeira raiva contra ela, e justificadamente penso eu. Penso que se Biden perder, o conjunto de decisões que tomou em torno desta eleição vai parecer muito, muito mau.

Isaac Chotiner

Esta conversa também me faz pensar que há algo de único no facto de a idade ser uma responsabilidade política, no sentido em que parece ser inerentemente mais difícil dissipar as dúvidas das pessoas em relação a ela. Porque o que as pessoas não estão a duvidar é de uma questão específica que se possa resolver. Estão a duvidar de algo sobre o futuro. Mesmo que pareçamos mais unidos num determinado dia, parece muito mais difícil dizer: “Bem, daqui a três anos, estarei bem”.

Ezra Klein

Penso que é quase preferível falar em termos de capacidade percecionada do que de idade. Porque é verdade que Donald Trump tem setenta e oito anos. Está muito próximo da idade de Joe Biden, mas parecia muito mais jovem ontem à noite. Eu diria que Donald Trump parecia melhor ontem à noite do que em 2020, e não foi por pouco. E eu diria que Joe Biden parecia pior ontem à noite do que em 2020, e foi por muito

Ontem à noite, estava a trocar mensagens de texto com várias pessoas do Partido Democrata que tentavam convencer-me de que os Presidentes têm muitas vezes um mau primeiro debate. Ronald Reagan teve um mau primeiro debate. Barack Obama teve um mau primeiro debate. Uma das coisas que os ouvi dizer foi: “É uma maratona, não um sprint”.

Isaac Chotiner

Será que estas pessoas têm uma resposta para o facto de Biden querer apenas dois debates?

Ezra Klein

Eu não lhes perguntei isso. Mas penso que o facto de se tratar de uma maratona, e não de uma corrida de velocidade, também tem efeitos na outra direção. Numa maratona, o que está errado vai ter muitas oportunidades para se mostrar: momentos estranhos nos discursos, possivelmente outro debate, embora quem sabe. A questão é que Biden não consegue manter um nível de desempenho muito elevado de forma fiável. Podemos apanhá-lo de vez em quando, como aconteceu no Estado da União, mas ele não o consegue manter. Por isso, a ideia de que isto é uma maratona é má para ele.

Penso que ele tem sido um Presidente bastante forte. Tenho discordâncias normais com ele enquanto Presidente, coisas relativamente às quais tenho uma visão ligeiramente diferente da política. Mas penso que tem sido um bom Presidente. Não creio que se possa projetar o que ele está a projetar para o povo americano e ter uma hipótese suficientemente forte de ganhar uma eleição. Se acreditarmos no que Joe Biden me diz que acredita sobre Donald Trump, então temos de levar isso muito a sério.

Penso que muitas pessoas – mesmo as que rodeiam Biden – sabem que a sua idade é um problema real. O que eu acho é que eles não conseguem imaginar, o que o Partido Democrata não consegue imaginar, é fazer algo de diferente.

Há uma coisa louca que o Gavin Newsom disse ontem à noite. Ele basicamente disse: “Que tipo de partido seríamos se desistíssemos deste tipo depois de uma noite má?” E depois disse: “É para isso que serve um partido”. Um partido não existe para servir o Joe Biden. Repetindo um termo que gosto muito e que Charles Sumner usou para abrir a convenção que designou Lincoln, um partido existe “para organizar a vitória”. Um partido existe para vencer e cumprir a sua agenda. Precisa de tomar decisões estratégicas nesse sentido.

Isaac Chotiner

Sim, e penso que há aqui uma discrepância entre as pessoas do partido que o apoiam e pensam que ele deve permanecer na lista de candidatos, mas que, na minha opinião, nunca responderam à questão de saber por que razão é que a sua campanha o está a tratar como se ele não pudesse concorrer nas suas plenas capacidades.

Ezra Klein

Falei com pessoas do Partido sobre isto, e eles têm uma resposta para isto em que nunca verdadeiramente acreditei, mas eis a resposta deles. A resposta deles é que o tipo de entrevistas que pessoas como Isaac Chotiner ou Ezra Klein estão a dizer que Biden deveria fazer não lhes servem de nada. E há argumentos razoáveis a favor disso. Mas há muitas pessoas e muitos fóruns em que Joe Biden poderia participar que seriam eléctricos, muitos locais que ele poderia visitar, se quisesse, que não são políticos. Mas não o vão colocar em qualquer tipo de situações adversas ou mesmo incontroláveis porque estão preocupados com o que poderia acontecer. Toda a gente, a um certo nível, sabe isto.

Penso que a luta de Biden entre as pessoas que obtêm as suas notícias através do YouTube, das redes sociais, de sítios como esse, não é apenas o excesso de clips negativos e muitas vezes enganadoramente editados de Joe Biden a parecer muito velho. É a ausência de momentos virais positivos para ele, como grandes momentos em discursos, como respostas realmente incisivas às pessoas – o tipo de coisas que as pessoas partilham, os apoiantes partilham por sua própria vontade.

A diminuição de Joe Biden como candidato significou que não há muito material positivo sobre ele que as pessoas estejam a dar umas às outras por conta própria, de uma forma que Barack Obama poderia muito bem gerar em 2012. Quando se pensa em quem está no YouTube, quando se pensa em quem está no TikTok, não apenas nos sítios mais fáceis, mas nos sítios onde pode ser interessante… Não estou a dizer que precisam de o fazer, mas, de certa forma, seria interessante colocar um Presidente democrata no podcast de Lex Fridman ou no podcast de Joe Rogan.

Isaac Chotiner

Obama costumava ir ao programa de Bill O’Reilly.

Ezra Klein

Não vão pôr Biden num lugar como esse.

Isaac Chotiner

Incluindo um terceiro debate.

Ezra Klein

Incluindo um terceiro debate.

Isaac Chotiner

Disse que achava que Biden tinha sido um Presidente forte. Sem discutir a Ucrânia, Gaza ou a Lei de Redução da Inflação, acho que o que vai determinar se Biden é um bom Presidente é o que acontece nestas eleições. Haverá algumas conquistas que se manterão se Trump for reeleito, certamente, e outras que não. Mas o meu receio é que daqui a cinquenta anos olhemos para trás e digamos: “Biden foi demasiado egoísta para se demitir quando devia fazê-lo. E escolheu um vice-presidente que não é um político forte”. São estas as decisões que vão efetivamente determinar o que foi a sua Presidência.

Ezra Klein

Não houve nenhum voto de Ruth Bader Ginsburg e nenhuma decisão da sua autoria que fosse tão importante como a sua decisão de não se reformar.

Isaac Chotiner é redator da The New Yorker, onde é o principal colaborador do Q. & A., uma série de entrevistas com figuras públicas da política, mídia, livros, negócios, tecnologia e muito mais.

27 de junho de 2024

Como o Morena transformou a política anticorrupção em política de classe

A política anticorrupção foi fundamental para a vitória avassaladora do partido Morena de AMLO no México. O Morena rotulou o neoliberalismo como uma forma de redistribuição ascendente, mobilizando a classe trabalhadora sob a bandeira da austeridade republicana contra os excessos dos ricos.

Edwin F. Ackerman


A presidente eleita do México, Claudia Sheinbaum, celebra ao lado do atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, durante uma reunião no Palácio Nacional no dia 10 de junho de 2024, na Cidade do México, México. (Ulises Martínez / ObturadorMX / Getty Images)

Tradução / As eleições presidenciais que ocorreram no México no dia 2 de junho deram uma vitória decisiva ao partido governante Morena e à sua candidata, Claudia Sheinbaum. O partido fundado por Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, em 2014, conquistou 60% dos votos em uma corrida com três candidatos, além de uma maioria de dois terços no legislativo. Sheinbaum está prestes a assumir o cargo com um mandato incontestável. Ela fez campanha prometendo continuar as políticas implementadas por AMLO durante seu mandato como presidente, que testemunhou avanços mensuráveis para as classes trabalhadoras.

Os números oficiais mostram que os salários reais aumentaram aproximadamente 30%, a participação dos trabalhadores na renda aumentou 8%, e os rendimentos dos 10% mais pobres cresceram 98,8%. Além disso, o coeficiente de Gini, medida de desigualdade, registrou uma queda, e a pobreza geral diminuiu em 5%, representando a maior redução em 22 anos para mais de cinco milhões de pessoas. As taxas de desemprego estão agora entre as mais baixas da região, acompanhadas de uma leve diminuição do trabalho informal.

Política de esquerda anticorrupção

Não surpreendentemente, AMLO manteve índices de aprovação extraordinariamente altos, com média na casa dos sessenta por cento (embora uma pesquisa recente da Gallup coloque seu apoio em 80%). Certamente, esquerdistas e progressistas de diferentes linhas criticaram a natureza e o alcance das reformas que ele implementou durante seu governo. Durante seu mandato, críticos afirmam que AMLO não rompeu completamente com o neoliberalismo, não atendeu às demandas de feministas ou ambientalistas, e fortaleceu a chamada militarização dos assuntos públicos — muitos grandes projetos de infraestrutura no México continuam sendo construídos e gerenciados pelo exército. Essas críticas não são sem fundamento na realidade.

O que é incontestável, no entanto, é o progresso que o Morena alcançou em favor da classe trabalhadora, confirmado nas urnas no início de junho. Isso despertou um renovado interesse no mundo anglófono, que por décadas se perguntou como revitalizar uma esquerda centrada nas classes populares. Se houve um traço distintivo no estilo político de AMLO, foi sua habilidade em tratar o neoliberalismo como sinônimo de corrupção. Historicamente, a política anticorrupção tem sido o pilar da direita neoliberal que procura privatizar as indústrias estatais dominadas pela corrupção. Pelo menos na América Latina, as classes média e alta têm sido o eleitorado mais fiável para este tipo de política. Mas AMLO soube adaptar a política anticorrupção para atrair as massas sem abraçar um antiestatismo neoliberal ou uma antipolítica tecnocrática que procura dar poder a funcionários não eleitos.

"A privatização no México tem sido sinônimo de corrupção", disse AMLO em seu discurso de posse em dezembro de 2018. Ele acrescentou que

infelizmente, essa doença quase sempre existiu em nosso país, mas o que aconteceu durante o período neoliberal é sem precedentes nos tempos modernos — o sistema como um todo operou em prol da corrupção. O poder político e o poder econômico se alimentaram e nutriram mutuamente, e o roubo dos bens do povo e da riqueza da nação se estabeleceu como o modus operandi.

As características definidoras do estado neoliberal mexicano incluem um aumento na terceirização de serviços para empresas privadas, subsídios para um setor privado incentivado a competir com empresas estatais (a eletricidade é um dos exemplos mais marcantes), mecanismos para ceder o controle de recursos públicos através de fideicomissos (trusts) administrados privadamente, e formas sancionadas e não sancionadas de evasão fiscal. No cerne do diagnóstico de AMLO sobre o mal-estar do seu país reside uma redefinição fundamental do neoliberalismo: ao contrário da crença comum, o neoliberalismo não se tratava da contração do estado. Para AMLO, o neoliberalismo representava a instrumentalização do estado para servir aos ricos.

Austeridade republicana

A reinterpretação de AMLO sobre o neoliberalismo trouxe uma sofisticação às discussões sobre a economia que permanece alheia a grande parte do mundo anglófono. Graças ao Morena, o debate no México não é, como nos Estados Unidos, sobre governo pequeno versus governo grande — o México operou sob um “grande governo” durante o neoliberalismo, mas ele servia consistentemente à classe alta por meios legais e ilegais. O reconhecimento deste fato forneceu a base para uma política de classe anticorrupção.

Essa compreensão ajuda a explicar o conceito emblemático do governo de AMLO, que talvez seja contraintuitivo: “austeridade republicana”. A austeridade republicana refere-se a uma reorganização e centralização contínuas dos gastos públicos, com o objetivo de “cortar de cima”. O neoliberalismo no México, conforme entendido pelo Morena, não significava a contração geral do estado, mas sua descentralização e instrumentalização — a austeridade (de um tipo específico) poderia, portanto, ser contra intuitivamente uma ferramenta para combater o neoliberalismo.

Aqui, a conexão com o diagnóstico mais amplo de AMLO sobre corrupção é fundamental: a austeridade republicana busca combater o neoliberalismo/corrupção através da eliminação de intermediários de todos os tipos entre o estado e a cidadania na distribuição de recursos públicos. A visão do governo de AMLO é que essas redes intermediárias — partes do setor privado, intermediários clientelistas, ONGs que recebem fundos governamentais, fideicomissos ou simplesmente empresas privadas contratadas pelo estado para realizar serviços específicos — facilitam a captura orçamentária. Assim, central para a política do Morena tem sido o impulso para centralizar funções governamentais que haviam sido terceirizadas para entidades privadas ou semi privadas.

Em uma coletiva de imprensa em maio de 2021, AMLO vinculou seu projeto político a uma visão distinta da história mexicana:

No nosso país, a acumulação de capital não ocorreu necessariamente através da exploração do burguês ou do empregador sobre o trabalhador; a acumulação de capital no México ocorreu através da corrupção. Isso não é novo; aumentou na última fase, no período neoliberal… não é para marginalizar o marxismo, não é [que discussões] sobre luta de classes, ou mais-valia sejam inválidas, mas sim que o caso do México é algo especial.

Certamente, há muitas objeções acadêmicas que se poderiam fazer aos argumentos de AMLO, especialmente sua afirmação de que a redistribuição política ascendente é uma característica única da política mexicana. No entanto, o que essa narrativa faz é explicar em grande parte a perspectiva e os objetivos do governo Morena. Mais do que uma série de crimes individuais ou escândalos isolados, para AMLO, a corrupção é consequência de uma reordenação na relação estado-economia. O neoliberalismo foi caracterizado não pela contração do governo, mas pela sua conversão em um estado rentista reverso, no qual o governo e uma rede de contratantes drenavam dinheiro público através de uma série de mecanismos muitas vezes ilegais. Isso variava desde a terceirização de funções governamentais até, nos casos mais extremos, a criação de estruturas paralelas de empresas de fachada e empresas fraudulentas, produzindo uma aliança não oficial entre políticos, empresários e prestadores de serviços especializados.

Esse nexo de políticos-empresários-consultores representa uma fração que é, se não específica do neoliberalismo mexicano, especialmente proeminente dentro dele. A característica definidora desta fração de classe é que seu valor excedente é gerado não pela produção e venda de bens no livre mercado, mas pela extração de recursos públicos. Em vez de focar exclusivamente na exploração dos trabalhadores, AMLO concebeu a luta de classes no neoliberalismo principalmente como uma batalha para desmantelar essa fração através da luta contra a corrupção armada com a ferramenta da austeridade republicana.

Mas os fenômenos observados por AMLO no México têm análogos em todo o mundo. O sociólogo histórico Robert Brenner argumentou há muito tempo que o período neoliberal é caracterizado pela redistribuição ascendente através de meios políticos. Cortes de impostos, altas taxas de juros sobre dívida governamental, privatização de ativos públicos a preços de barganha e socialização de perdas privadas massivas, como os programas de resgate após a crise financeira de 2008, são todos exemplos de como o estado interveio na economia para alterar o equilíbrio do poder de classe em favor dos ricos.

Em todo o mundo rico, assim como no Sul Global, o estado não simplesmente se contraiu. O historiador de desigualdade Thomas Piketty descobriu que as receitas fiscais nos países ricos como porcentagem do produto nacional nunca diminuíram durante o período neoliberal. O neoliberalismo foi, na verdade, uma reorganização do estado para que ele pudesse reproduzir mais de perto os interesses do capital. Esta fusão de poder político, administrativo e econômico sem dúvida tornou o neoliberalismo difícil de desalojar. Mas também expôs as elites ao tipo de crítica moral e política promovida mais fortemente por AMLO. Este tipo de política de esquerda anticorrupção não apenas conseguiu legitimar a redistribuição, mas trouxe a classe trabalhadora de volta ao campo dos partidos de esquerda, revertendo a tendência de desalinhamento predominante em grande parte do mundo rico.

Colaborador

Edwin F. Ackerman é professor assistente de sociologia na Universidade de Syracuse e pesquisador visitante no Weatherhead Center for International Affairs em Harvard.

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