16 de junho de 2024

Feminismo pode ser de esquerda ou neoliberal, diz Nancy Fraser

Filósofa lança ensaios reunidos em 'Destinos do Feminismo' e disseca relação entre gênero e produção capitalista

Bárbara Blum

Folha de S.Paulo

Nancy Fraser acha que homens deveriam ser mais como as mulheres. Na tese, desenvolvida no ensaio "Depois do salário familiar", de 1994, a filósofa e professora da New School, nos Estados Unidos, disseca a ideia de que o fim do Estado de bem-estar se atrela à falta de sustentabilidade da família nuclear, baseada no homem provedor e na mulher responsável pelo lar.

A autora de "Feminismo para os 99%" reúne em seu novo livro, "Destinos do Feminismo", uma série de textos que exploram a questão de gênero a partir de diferentes abordagens, da economia à psicanálise.

A filósofa americana Nancy Fraser - Marvin Ester/Divulgação

De caráter mais acadêmico do que sua obra anterior publicada no Brasil, quase panfletária, o lançamento organiza uma bateria de ideias cunhadas pela autora nos últimos 30 anos e dá sinais do feminismo por vir.

Em entrevista à Folha, Fraser, que teve o convite para uma palestra numa universidade alemã retirado após ter assinado uma carta pró-Palestina, se mantém firme no pensamento crítico ao capitalismo que alçou ela ao status de pensadora popular.

Ela é um dos nomes que ganharam força durante o movimento Occupy Wall Street, que questionava a hegemonia neoliberal pós-crise de 2008, e insiste em teses que dialogam com esse momento.

Para Fraser, "o neoliberalismo é muito promíscuo, pode ser hindu, zionista, islâmico". Pode ser, diz ela, até feminista, personificado em figuras como uma ex-candidata à presidência dos EUA, a democrata Hillary Clinton.

O que interessa à filósofa, porém, é compreender quando o feminismo pode ser de esquerda e desafiar o que ela entende como uma hegemonia do sistema neoliberal.

No seu novo livro, a sra. diz que o feminismo de hoje tende a reconhecer e criticar aspectos do capitalismo que são vinculados à questão de gênero. Que aspectos seriam esses? No capitalismo, existe uma divisão rigorosa entre trabalho e família, entre o escritório ou a fábrica e a casa. Como dizem as feministas, entre produção e reprodução. E essa divisão ocorre a partir do gênero, com mulheres associadas ao cuidado e à casa.

O feminismo liberal está mais centrado em questões de direitos legais e muitas vezes rejeita esse aspecto estrutural e material do capitalismo. Mas, mesmo quando se tem direitos iguais no papel, a prática continua desigual, porque as questões estruturais seguem presentes.

Esses tópicos eram ignorados por outras gerações de feministas? Hoje vemos uma retomada do interesse na dicotomia entre produção e reprodução, mas isso não é completamente novo. Socialistas e feministas de esquerda tinham alguma compreensão disso, desde o século 19, mas não era um entendimento perfeito.

Foi na segunda onda do feminismo, nos anos 1960 e 1970, que houve a descoberta do que se tipificou como trabalho doméstico e a compreensão disso como algo essencial ao capitalismo.

Como a sra. define o conceito de cuidado universal, também explorado no novo livro? É uma ideia de uns 30 anos atrás. Não me atraio por uma visão de sociedade baseada em binarismos de gênero, em que existem dois tipos de pessoas, homens e mulheres. Não acho que seja possível atingir a igualdade de gênero com esse binarismo rígido.

Mas muitas mulheres tiram daí a base de sua autoestima, de seu senso de valor e de sua identidade. Nem sempre existe outra fonte para isso. É pedir demais, mas acho que é necessário para atingir a justiça genuína e é uma forma melhor de viver.

Em um cenário em que os Estados Unidos viveram um retrocesso no direito ao aborto com o fim da decisão Roe v. Wade, é possível dizer que os direitos reprodutivos têm relação com o sistema capitalista? Se não há liberdade nesse quesito significa que existe um trabalho sendo feito por pessoas que não têm direitos trabalhistas. Isso inclui a gestação. É um outro tipo de trabalho, muitas vezes não reconhecido.

E, sem esse serviço, não teríamos operários de fábricas ou funcionários para os escritórios. Alguém precisa pari-los e depois cuidar, alimentar, criar. Onde se insere a disputa política em torno do direito reprodutivo?

O debate sobre o aborto ser ou não legalizado, ou se a pílula do dia seguinte deveria ser amplamente acessível, não se enquadra numa divisão tradicional entre o que querem os trabalhadores versus o que querem os que comandam a economia.

Existem pessoas que acreditam piamente que aborto é assassinato, muitas vezes a partir de uma perspectiva religiosa. Outros manipulam a questão e não se importam com o assunto, mas usam isso para obter apoio político, como Donald Trump.

O ex-presidente americano não parece ter convicções firmes. Ele era a favor do direito à escolha antes de se candidatar e mudou de opinião para agradar os cristãos evangélicos.

Há, ainda, pessoas que se importam com o direito ao que chamam de escolha, mas que não se importam com os serviços sociais, saúde pública e com as condições necessárias para a criação de filhos em um ambiente saudável.

Você não consegue deduzir uma posição a partir dessas estruturas sociais do capitalismo.

A sra. trabalha com as ideias de neoliberalismo progressista e reacionário. Como a sra. define essas ideias? Nos anos 1990, com Bill Clinton nos EUA e Tony Blair na Inglaterra, houve a consolidação do modelo neoliberal. Esse modelo se repetiu e, em vários países, foram os social-democratas que cimentaram as políticas neoliberais.

Quando Trump se candidatou pela primeira vez, em 2016, não havia muita diferença entre progressistas e conservadores na economia. A divisão se dava em questões como imigração, direito ao aborto, casamento homossexual.

Havia um vácuo no espectro político e ele foi preenchido pelos populistas de direita, como Trump e Jair Bolsonaro, no Brasil. Eles se apresentavam como aliados dos trabalhadores, mas mantinham um viés pró-capitalista.

Então você podia escolher entre multiculturalismo ou chauvinismo, mas não entre sistemas econômicos.

O neoliberalismo é muito promíscuo. Ele pode ser hindu, zionista, islâmico. Mas precisa dessa legitimação. Não se pode fazer uma campanha política que se baseia em ganância, em mais dinheiro para quem já tem. É necessário dar uma roupagem identitária.

E o gênero se tornaria parte dessa roupagem? Sim. Existem feministas neoliberais, como Hillary Clinton, Christine Lagarde [presidente do Banco Central Europeu]. Hillary fala sobre feminismo enquanto dá palestras para banqueiros de Wall Street.

Mas também existem liberais antifeministas, caso da extrema direita cristã com quem Trump teceu acordos pelos assentos na Suprema Corte dos EUA. Foi assim que a decisão Roe v. Wade foi derrubada.

O feminismo pode estar em lados diferentes, assim como o antifeminismo. Há mais de um tipo de feminismo e mais de um tipo de liberalismo.

Nesse cenário, como os progressistas devem lidar com o feminismo? Ele deve estar no centro da política? Hoje existem muitos movimentos sociais com potencial emancipatório. O feminismo é um deles, bem como o ambientalismo, os sindicatos, o antirracismo e o anti-imperialismo.

Mas eles não podem se afastar muito. Um feminismo que ignora outras questões é problemático. Se você só se importa com gênero, vai acabar com um feminismo neoliberal que ajuda somente o topo da cadeia.

Hoje vemos uma intensa movimentação em torno da questão palestina. Feministas devem se unir aos manifestantes críticos de Israel? O movimento de solidariedade com a Palestina é forte. Com o que tem acontecido em Gaza, faz sentido que isso esteja no centro do debate.

Muitas pessoas que se radicalizaram por causa disso são jovens e estão vivendo sua primeira experiência na política. Eles tendem a se jogar com paixão e com um enorme comprometimento com a justiça, inclusive ambiental e de gênero. Mas não necessariamente têm uma visão de mundo sofisticada. No melhor cenário, esse ativismo se torna uma escola.

Eu fui pessoalmente afetada por isso e tive visitas e aulas canceladas em uma universidade alemã porque eu assinei uma carta em solidariedade à Palestina. Usei meu espaço na mídia para tentar educar o público.

RAIO-X | NANCY FRASER, 77

Formou-se em filosofia pela universidade Bryn Mawr, nos Estados Unidos, em 1969, e obteve o doutorado na City University of New York em 1980. Lecionou na Universidade Northwestern, em Chicago, antes de se tornar docente na New School, em Nova York, em 1995. Ficou conhecida por suas pesquisas no campo da teoria crítica.

DESTINOS DO FEMINISMOPreço R$ 87 (344 págs.)
Autoria Nancy Fraser Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes

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