27 de junho de 2024

Como o Morena transformou a política anticorrupção em política de classe

A política anticorrupção foi fundamental para a vitória avassaladora do partido Morena de AMLO no México. O Morena rotulou o neoliberalismo como uma forma de redistribuição ascendente, mobilizando a classe trabalhadora sob a bandeira da austeridade republicana contra os excessos dos ricos.

Edwin F. Ackerman


A presidente eleita do México, Claudia Sheinbaum, celebra ao lado do atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, durante uma reunião no Palácio Nacional no dia 10 de junho de 2024, na Cidade do México, México. (Ulises Martínez / ObturadorMX / Getty Images)

Tradução / As eleições presidenciais que ocorreram no México no dia 2 de junho deram uma vitória decisiva ao partido governante Morena e à sua candidata, Claudia Sheinbaum. O partido fundado por Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, em 2014, conquistou 60% dos votos em uma corrida com três candidatos, além de uma maioria de dois terços no legislativo. Sheinbaum está prestes a assumir o cargo com um mandato incontestável. Ela fez campanha prometendo continuar as políticas implementadas por AMLO durante seu mandato como presidente, que testemunhou avanços mensuráveis para as classes trabalhadoras.

Os números oficiais mostram que os salários reais aumentaram aproximadamente 30%, a participação dos trabalhadores na renda aumentou 8%, e os rendimentos dos 10% mais pobres cresceram 98,8%. Além disso, o coeficiente de Gini, medida de desigualdade, registrou uma queda, e a pobreza geral diminuiu em 5%, representando a maior redução em 22 anos para mais de cinco milhões de pessoas. As taxas de desemprego estão agora entre as mais baixas da região, acompanhadas de uma leve diminuição do trabalho informal.

Política de esquerda anticorrupção

Não surpreendentemente, AMLO manteve índices de aprovação extraordinariamente altos, com média na casa dos sessenta por cento (embora uma pesquisa recente da Gallup coloque seu apoio em 80%). Certamente, esquerdistas e progressistas de diferentes linhas criticaram a natureza e o alcance das reformas que ele implementou durante seu governo. Durante seu mandato, críticos afirmam que AMLO não rompeu completamente com o neoliberalismo, não atendeu às demandas de feministas ou ambientalistas, e fortaleceu a chamada militarização dos assuntos públicos — muitos grandes projetos de infraestrutura no México continuam sendo construídos e gerenciados pelo exército. Essas críticas não são sem fundamento na realidade.

O que é incontestável, no entanto, é o progresso que o Morena alcançou em favor da classe trabalhadora, confirmado nas urnas no início de junho. Isso despertou um renovado interesse no mundo anglófono, que por décadas se perguntou como revitalizar uma esquerda centrada nas classes populares. Se houve um traço distintivo no estilo político de AMLO, foi sua habilidade em tratar o neoliberalismo como sinônimo de corrupção. Historicamente, a política anticorrupção tem sido o pilar da direita neoliberal que procura privatizar as indústrias estatais dominadas pela corrupção. Pelo menos na América Latina, as classes média e alta têm sido o eleitorado mais fiável para este tipo de política. Mas AMLO soube adaptar a política anticorrupção para atrair as massas sem abraçar um antiestatismo neoliberal ou uma antipolítica tecnocrática que procura dar poder a funcionários não eleitos.

"A privatização no México tem sido sinônimo de corrupção", disse AMLO em seu discurso de posse em dezembro de 2018. Ele acrescentou que

infelizmente, essa doença quase sempre existiu em nosso país, mas o que aconteceu durante o período neoliberal é sem precedentes nos tempos modernos — o sistema como um todo operou em prol da corrupção. O poder político e o poder econômico se alimentaram e nutriram mutuamente, e o roubo dos bens do povo e da riqueza da nação se estabeleceu como o modus operandi.

As características definidoras do estado neoliberal mexicano incluem um aumento na terceirização de serviços para empresas privadas, subsídios para um setor privado incentivado a competir com empresas estatais (a eletricidade é um dos exemplos mais marcantes), mecanismos para ceder o controle de recursos públicos através de fideicomissos (trusts) administrados privadamente, e formas sancionadas e não sancionadas de evasão fiscal. No cerne do diagnóstico de AMLO sobre o mal-estar do seu país reside uma redefinição fundamental do neoliberalismo: ao contrário da crença comum, o neoliberalismo não se tratava da contração do estado. Para AMLO, o neoliberalismo representava a instrumentalização do estado para servir aos ricos.

Austeridade republicana

A reinterpretação de AMLO sobre o neoliberalismo trouxe uma sofisticação às discussões sobre a economia que permanece alheia a grande parte do mundo anglófono. Graças ao Morena, o debate no México não é, como nos Estados Unidos, sobre governo pequeno versus governo grande — o México operou sob um “grande governo” durante o neoliberalismo, mas ele servia consistentemente à classe alta por meios legais e ilegais. O reconhecimento deste fato forneceu a base para uma política de classe anticorrupção.

Essa compreensão ajuda a explicar o conceito emblemático do governo de AMLO, que talvez seja contraintuitivo: “austeridade republicana”. A austeridade republicana refere-se a uma reorganização e centralização contínuas dos gastos públicos, com o objetivo de “cortar de cima”. O neoliberalismo no México, conforme entendido pelo Morena, não significava a contração geral do estado, mas sua descentralização e instrumentalização — a austeridade (de um tipo específico) poderia, portanto, ser contra intuitivamente uma ferramenta para combater o neoliberalismo.

Aqui, a conexão com o diagnóstico mais amplo de AMLO sobre corrupção é fundamental: a austeridade republicana busca combater o neoliberalismo/corrupção através da eliminação de intermediários de todos os tipos entre o estado e a cidadania na distribuição de recursos públicos. A visão do governo de AMLO é que essas redes intermediárias — partes do setor privado, intermediários clientelistas, ONGs que recebem fundos governamentais, fideicomissos ou simplesmente empresas privadas contratadas pelo estado para realizar serviços específicos — facilitam a captura orçamentária. Assim, central para a política do Morena tem sido o impulso para centralizar funções governamentais que haviam sido terceirizadas para entidades privadas ou semi privadas.

Em uma coletiva de imprensa em maio de 2021, AMLO vinculou seu projeto político a uma visão distinta da história mexicana:

No nosso país, a acumulação de capital não ocorreu necessariamente através da exploração do burguês ou do empregador sobre o trabalhador; a acumulação de capital no México ocorreu através da corrupção. Isso não é novo; aumentou na última fase, no período neoliberal… não é para marginalizar o marxismo, não é [que discussões] sobre luta de classes, ou mais-valia sejam inválidas, mas sim que o caso do México é algo especial.

Certamente, há muitas objeções acadêmicas que se poderiam fazer aos argumentos de AMLO, especialmente sua afirmação de que a redistribuição política ascendente é uma característica única da política mexicana. No entanto, o que essa narrativa faz é explicar em grande parte a perspectiva e os objetivos do governo Morena. Mais do que uma série de crimes individuais ou escândalos isolados, para AMLO, a corrupção é consequência de uma reordenação na relação estado-economia. O neoliberalismo foi caracterizado não pela contração do governo, mas pela sua conversão em um estado rentista reverso, no qual o governo e uma rede de contratantes drenavam dinheiro público através de uma série de mecanismos muitas vezes ilegais. Isso variava desde a terceirização de funções governamentais até, nos casos mais extremos, a criação de estruturas paralelas de empresas de fachada e empresas fraudulentas, produzindo uma aliança não oficial entre políticos, empresários e prestadores de serviços especializados.

Esse nexo de políticos-empresários-consultores representa uma fração que é, se não específica do neoliberalismo mexicano, especialmente proeminente dentro dele. A característica definidora desta fração de classe é que seu valor excedente é gerado não pela produção e venda de bens no livre mercado, mas pela extração de recursos públicos. Em vez de focar exclusivamente na exploração dos trabalhadores, AMLO concebeu a luta de classes no neoliberalismo principalmente como uma batalha para desmantelar essa fração através da luta contra a corrupção armada com a ferramenta da austeridade republicana.

Mas os fenômenos observados por AMLO no México têm análogos em todo o mundo. O sociólogo histórico Robert Brenner argumentou há muito tempo que o período neoliberal é caracterizado pela redistribuição ascendente através de meios políticos. Cortes de impostos, altas taxas de juros sobre dívida governamental, privatização de ativos públicos a preços de barganha e socialização de perdas privadas massivas, como os programas de resgate após a crise financeira de 2008, são todos exemplos de como o estado interveio na economia para alterar o equilíbrio do poder de classe em favor dos ricos.

Em todo o mundo rico, assim como no Sul Global, o estado não simplesmente se contraiu. O historiador de desigualdade Thomas Piketty descobriu que as receitas fiscais nos países ricos como porcentagem do produto nacional nunca diminuíram durante o período neoliberal. O neoliberalismo foi, na verdade, uma reorganização do estado para que ele pudesse reproduzir mais de perto os interesses do capital. Esta fusão de poder político, administrativo e econômico sem dúvida tornou o neoliberalismo difícil de desalojar. Mas também expôs as elites ao tipo de crítica moral e política promovida mais fortemente por AMLO. Este tipo de política de esquerda anticorrupção não apenas conseguiu legitimar a redistribuição, mas trouxe a classe trabalhadora de volta ao campo dos partidos de esquerda, revertendo a tendência de desalinhamento predominante em grande parte do mundo rico.

Colaborador

Edwin F. Ackerman é professor assistente de sociologia na Universidade de Syracuse e pesquisador visitante no Weatherhead Center for International Affairs em Harvard.

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