Matt Broomfield
Pessoas seguram uma grande bandeira da oposição síria na Praça Umayyad, em Damasco, em 9 de dezembro de 2024. (Omar Haj Kadour / AFP via Getty Images) |
Tradução / A pior crise humanitária e militar do século XXI atingiu um ponto de virada histórico. Neste fim de semana, os sírios se alegraram depois que Bashar al-Assad foi finalmente deposto em uma reversão chocante liderada pela ramificação da Al-Qaeda, Hayat Tahrir al-Sham (HTS). Os curdos da região se juntaram às comemorações, ocupando áreas anteriormente controladas pelos assadistas e derrubando estátuas do odiado ditador. Mas, como todos os sírios, os curdos sofreram turbulência suficiente durante os últimos treze anos de violência em massa, deslocamento, guerra por procuração e limpeza étnica para saber que o caminho para a paz continua longo e difícil.
Quando a Turquia deslocou duzentos mil civis curdos sírios em uma operação transfronteiriça em 2018, muitos moradores permaneceram o mais perto possível de suas casas bombardeadas, agora ocupadas por um conjunto desorganizado de milícias árabes sunitas e turcomanas. Dezenas de milhares permaneceram agarrados à esperança de retorno em campos dispersos e mal defendidos na região vizinha de Shehba (Tel Rifaat), resistindo aos bombardeios turcos. Mas quando o HTS lançou a ofensiva de dez dias que culminou na derrubada de Assad, a Turquia e suas milícias aproveitaram, tomando até mesmo esses campos de refugiados varridos pelo vento e deslocando seus moradores mais uma vez. Hussein Maamo, um representante oficial curdo sírio baseado em Londres, disse à Jacobin : “As facções ligadas à Turquia visam legitimar seus ataques às áreas curdas, enquadrando seus ataques como ataques contra as forças do regime”.
Muhammed Sheikho, que é copresidente de um conselho regional sob a Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria (DAANES), capitaneada pelos curdos, liderou milhares de curdos, árabes e minorias locais na evacuação dos campos para locais com maior segurança em regiões distantes sob o controle da DAANES. Mas muitos foram deixados para trás. “Centenas do nosso povo ficaram presos e não puderam sair”, ele disse à Jacobin por telefone da Síria. “Alguns foram mortos, alguns foram torturados, alguns foram capturados e seu destino não está claro.” As filmagens mostram combatentes apoiados pela Turquia abusando e pisoteando prisioneiros curdos homens e mulheres.
O projeto DAANES ofereceu um refúgio seguro a milhões de sírios e afirma oferecer um modelo para um futuro assentamento sírio baseado em governança comunitária, autonomia das mulheres e representação minoritária. A abordagem relativamente pragmática do HTS pode até abrir a porta para uma futura coordenação entre o movimento curdo e outros atores da oposição, com a própria ala militar do DAANES tomando território das forças assadistas no leste do país. Mas com a Turquia buscando explorar a crise para ocupar mais faixas do território sírio e deslocar milhões de curdos ao longo de sua fronteira, os últimos desdobramentos deixam o projeto liderado pelos curdos e a Síria como um todo enfrentando um futuro profundamente incerto.
Inimigos dos inimigos
Se o ditado “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” fosse verdadeiro, os curdos sírios seriam o povo mais amado do Oriente Médio. Mas não houve muito tempo para celebrar a partida de Assad para Moscou antes que novas ondas de violência irrompessem contra os curdos e seus aliados árabes. Como o analista Sinan Ciddi, professor adjunto da Universidade de Georgetown, disse à Jacobin, a tão esperada derrota de Assad provavelmente resultará em “uma situação em que a Síria será governada por uma organização salafista-jihadista… ou se tornará um espaço sem governo com um vácuo de poder escancarado”.
Não há razão para os curdos ou qualquer outra pessoa lamentar Assad, que é responsável pela maior parte das mortes de civis na Síria e persistentemente procurou minar o DAANES liderado pelos curdos, que agora governa mais de um terço do território sírio. “O [DAANES] manteve um relacionamento pragmático, mas frágil, com o regime de Assad… definido por coordenação limitada contra ameaças comuns”, diz o analista Yusuf Can, do Wilson Center, à Jacobin. “No entanto, o regime de Assad se opôs às aspirações [do DAANES] por maior autonomia.”
Em teoria, portanto, a derrota de Assad deveria ser uma boa notícia para o DAANES. Mas o HTS, que governou milhões de sírios na cidade de Idlib, no noroeste, impõe seu próprio governo islâmico profundamente autoritário. A Human Rights Watch documentou detenções arbitrárias e torturas consistentes de milhares de jornalistas, figuras da oposição e ativistas da sociedade civil que buscavam documentar abusos do HTS ou protestar contra sua autoridade. Embora a organização tenha moderado sua abordagem nos últimos anos como parte de uma tentativa de legitimidade, o HTS teria conduzido patrulhas de moralidade, prendendo mulheres jovens por não seguirem códigos de vestimenta religiosos; prendendo homens jovens por fazerem a barba ou ouvirem música; e conduzido execuções públicas por bruxaria e heresia.
O HTS também é conhecido por sua prestação de serviços relativamente eficaz, no que tem sido chamado de “islamismo tecnocrático”, e seus combatentes são de fato disciplinados em sua busca por um novo Estado islâmico na Síria. Essa abordagem ajudou o HTS a alcançar sua vitória inicial ao tomar a segunda maior cidade da Síria, Aleppo, com exceção de cerca de cem mil curdos atualmente sitiados em dois bairros do centro da cidade, agora cercados por combatentes do HTS. Os moradores locais relatam escassez de alimentos e apagões.
“Não sabemos como a situação vai acabar, porque todas essas forças impõem o islamismo por meio da violência”, diz Hamude, um ativista da mídia em Sheikh Maqsud, sitiado pelo HTS, que manteve a autonomia liderada pelos curdos desde o início do conflito sírio, apesar de sofrer o cerco de Assad, supostos ataques com armas químicas por grupos de oposição islâmicos e bombardeios indiscriminados que equivalem a crimes de guerra.
“Representantes curdos continuam profundamente cautelosos quanto à suposta mudança da liderança do HTS em direção ao pluralismo inclusivo, enquanto a força islâmica pode muito bem optar por ficar do lado da Turquia em busca de legitimidade internacional.”
“Em Aleppo, há curdos, cristãos, yazidis e muitos grupos étnicos e religiosos”, diz Hamude. “Esses grupos enfrentam um perigo severo. O HTS não aceita essas minorias e força as mulheres a cobrirem suas cabeças.” Os combatentes do HTS teriam matado pelo menos dois yazidis, que sofreram genocídio nas mãos do ISIS, enquanto tentavam fugir de Aleppo. Um cristão armênio, falando anonimamente por medo de represálias, descreve cenas de recriminação e acrescenta: “Assim que [o HTS] entrou em Aleppo, eles destruíram uma árvore de Natal [como um símbolo da comunidade cristã]. Eles estão nos garantindo que não nos machucarão, mas estamos perdidos. Não sabemos o que fazer.”
Agenda anti-curda
Mulheres, minorias e todos aqueles que buscam um futuro secular e democrático enfrentam um porvir profundamente preocupante sob a governança do HTS. Mas a força islâmica, no entanto, conseguiu uma derrota notável de Assad, enquanto geralmente se absteve de saques contra civis e conflitos desnecessários com os curdos. Em contraste, muitos dos milicianos apoiados pela Turquia que nominalmente se juntaram à ofensiva nunca dispararam um tiro por raiva contra as forças de Assad. Em vez disso, eles se concentraram mais uma vez na violência retributiva contra civis curdos e em encher seus próprios bolsos, levando até mesmo o HTS a prender comandantes apoiados pela Turquia.
As milícias que a Turquia uniu sob a bandeira do Exército Nacional Sírio (SNA) há muito são acusadas de crimes de guerra pelas Nações Unidas e pela Anistia Internacional, incluindo estupro de mulheres, assassinatos em massa de civis curdos, tortura, eletrocussão, execução e desfile de civis enjaulados nas ruas como escudo humano. Durante campanhas militares turcas anteriores, essas milícias mataram centenas — e deslocaram centenas de milhares — de civis.
Os que sobreviveram enfrentaram o governo sumário de milícias apoiadas pela Turquia sequestrando, torturando e executando civis, juntamente com uma política contínua de mudança demográfica forçada em regiões anteriormente povoadas por curdos, yazidis e minorias cristãs. No momento em que este artigo foi escrito, essas milícias estavam se concentrando em caçar civis curdos presos pelos rápidos desenvolvimentos enquanto executavam novas operações militares contra regiões sob o DAANES liderado pelos curdos. Ataques aéreos turcos mataram crianças curdas e atingiram edifícios civis do DAANES: nenhum teve como alvo o exército morimbundo de Assad.
Enquanto isso, a extensão precisa da cooperação do HTS com a Turquia é motivo de debate. Oficialmente, a Turquia lista o HTS como um “grupo terrorista” e nega qualquer conhecimento prévio das últimas operações e que, ao contrário de outras milícias, o HTS é poderoso o suficiente para agir unilateralmente na Síria. Certamente, Ancara foi pega de surpresa pela velocidade do colapso de Assad. No entanto, a liderança turca e o HTS há muito se coordenam por meio de salas de operação conjuntas; as milícias do SNA que se juntaram à última operação são financiadas, treinadas e dirigidas pela Turquia; e bandeiras turcas tremulavam sobre a cidadela em Aleppo após sua captura, enquanto políticos turcos ultranacionalistas relembravam seu antigo status como uma joia da coroa otomana. Uma coisa é certa, diz o analista Can: a Turquia “usará quaisquer ganhos reais que tiver” contra os curdos, tanto internamente quanto no exterior.
O principal objetivo da Turquia na Síria é simples: liquidar a governança multiétnica liderada pelos curdos ao longo de sua fronteira e empurrar a população curda de volta para o deserto sírio, estabelecendo uma “zona segura” de 32 quilômetros de extensão. Lá, também reassentará refugiados sírios em antigos assentamentos curdos como uma forma de satisfazer o sentimento doméstico antirrefugiados e consolidar a mudança étnica ao longo de sua fronteira.
A Turquia atingiu esse objetivo em pontos ao longo da fronteira. No entanto, apesar de vários momentos difíceis, ela foi impedida de erradicar os DAANES pela intransigência do governo Assad nas negociações sobre a zona de fronteira e pela presença de tropas russas e estadunidenses no território dos DAANES. Enquanto permitiam que a Turquia fizesse chover ataques aéreos, destruindo a água, a eletricidade e a infraestrutura humanitária da região, ambas as potências preferiram, em última análise, manter uma posição no norte ao lado de forças curdas confiáveis, em vez de testemunhar mais violência caótica e uma mudança de poder em favor de Ancara.
Conflito multipolar
A Turquia buscava o sinal verde para uma operação final de Moscou ou Washington: inesperadamente, foi a HTS que o forneceu. À medida que a HTS avançava em direção a Damasco, uma Rússia já enfraquecida e distraída lavou as mãos em relação a seu antigo cliente, Assad. O Irã, que há muito tempo faz parceria com Assad para brutalizar os sírios e usar o país como uma base de treinamento para o Hezbollah e suas próprias milícias, foi incapaz de ou não quis intervir após um ano de golpes punitivos desferidos por Israel.
De fato, Israel lucrou com o caos para expandir sua própria ocupação de longo prazo mais profundamente no território sírio ao sul. Mas também destruiu o antigo equipamento do Exército Sírio com ataques aéreos antes de vê-lo cair nas mãos do HTS, vendo a organização salafista como uma ameaça existencial. Enquanto isso, a resposta dos EUA aos ganhos do HTS e às ameaças turcas contra os curdos foi inicialmente fraca. A ala militar do DAANES agora se moveu para tomar território anteriormente controlado por Assad e milícias iranianas, operando sob a justificativa de sua parceria anti-ISIS com os Estados Unidos enquanto estabelecia cabeças de praia através do Eufrates em face de novos ataques antecipados inspirados pela Turquia.
A liderança dos EUA disse que continuará sua missão anti-ISIS no leste do país. Ainda assim, não está claro até que ponto isso pode proteger os DAANES da violência turca, ou como os Estados Unidos irão interagir com o HTS ou com a coalizão mais ampla de forças de oposição em todo o sul da Síria — mesmo antes de considerarmos o curinga da chegada de Donald Trump à Casa Branca.
Dadas essas realidades complexas, seria equivocado ver a violência da Turquia, membro-chave da OTAN, contra os curdos nominalmente aliados dos EUA, ou o avanço do HTS contra Assad, como um simples conflito por procuração Ocidente-Oriente. Mas uma coisa é clara: são os turcos que agora estão na vanguarda, buscando estabelecer um novo status quo em todo o norte da Síria, o que congelará tanto os aliados de Assad quanto o Irã e a presença cada vez menor do Ocidente na região, deixando a Turquia (o segundo maior exército da OTAN) como o principal agente no terreno.
Após a expulsão contínua e antecipada de civis curdos de seus exclaves no noroeste — limpeza étnica ocorrendo sem uma palavra de protesto dos aliados nominais dos curdos — os olhos da Turquia estão se voltando para o leste. Cerca de cem mil pessoas deslocadas internamente (IDPs) já chegaram ao território contíguo do DAANES, em circunstâncias humanitárias terríveis, com vários idosos e crianças morrendo de frio enquanto milhares dormem ao relento por falta de abrigo. “Não há espaço para as pessoas aqui”, diz o oficial curdo Sheikho, falando comigo por telefone enquanto observa os refugiados chegando a um centro de recepção improvisado no estádio esportivo da cidade. “Alguns idosos estão sucumbindo ao frio. Todos os hospitais do DAANES foram orientados a oferecer atendimento gratuito, mas ainda há uma necessidade urgente de suporte médico.”
Em vez disso, essas regiões, e particularmente a cidade multiétnica de maioria árabe de Manbij, são as próximas na linha de fogo da Turquia. Com o Irã e a Rússia fora do jogo e o Ocidente desorientado, a Turquia será o agente dominante em uma nova Síria islâmica. O presidente turco Recep Tayyip Erdoğan, que há muito lucra com um status de intermediário como inimigo do inimigo estacionado entre Moscou e Washington, parece finalmente ter todas as cartas na mão.
Uma futura Síria
“Esperança e medo podem andar de mãos dadas quando se pensa no futuro da Síria”, diz o analista Can. “É ótimo ver pessoas oprimidas ganhando liberdade, mas há muitas razões para permanecer cauteloso — seja o risco de radicais islâmicos, outros grupos extremistas ou potências estrangeiras com suas próprias agendas.” Em teoria, o movimento curdo deve desempenhar um papel crucial em qualquer acordo futuro produtivo para a Síria. O DAANES há muito sinaliza sua disposição pragmática de trabalhar com uma administração reformada de Damasco, caso demonstre comprometimento genuíno com a devolução e com os direitos das mulheres e das minorias. Hussein Maamo, o oficial curdo sírio em Londres, disse à Jacobin que quer ver “todos os sírios envolvidos no processo de tomada de decisão para estabelecer um Estado democrático, pluralista e secular que permaneça neutro em relação à religião, grupos sociais, etnia e opinião política.”
Inesperadamente, há sinais provisórios de desescalada entre o HTS e o DAANES, com os dois lados preferindo evitar conflitos, para focar de várias maneiras em lutar contra Assad e afastar a Turquia. O HTS emitiu garantias à comunidade curda de Aleppo e facilitou acordos de retirada para civis curdos. Representantes do DAANES atualmente negociam com o HTS sobre o futuro dos bairros, um refúgio seguro de longo prazo cuja população já foi inchada por IDPs fugindo da violência mais recente, em um potencial indicador de suas futuras relações.
A ala militar do DAANES obteve ganhos em territórios anteriormente controlados pelo governo, sugerindo a possibilidade distante de uma Síria pós-Assad dividida entre o autoritário-islâmico HTS e o pluralista e democrático DAANES — uma perspectiva que teria soado totalmente implausível há apenas uma semana. Mas os representantes permanecem profundamente cautelosos quanto à suposta virada da liderança do HTS em direção ao pluralismo inclusivo, enquanto a força islâmica pode muito bem optar por ficar do lado da Turquia em busca de legitimidade internacional. Seja como for que a extraordinária crise se desenrole, a violência apoiada pela Turquia contra curdos, mulheres e minorias continuará a pôr em risco as esperanças dos sírios comuns por um futuro verdadeiramente democrático.
Colaborador
Matt Broomfield é um ativista e escritor. É autor de Brave Little Sternums: Poems from Rojava.
Quando a Turquia deslocou duzentos mil civis curdos sírios em uma operação transfronteiriça em 2018, muitos moradores permaneceram o mais perto possível de suas casas bombardeadas, agora ocupadas por um conjunto desorganizado de milícias árabes sunitas e turcomanas. Dezenas de milhares permaneceram agarrados à esperança de retorno em campos dispersos e mal defendidos na região vizinha de Shehba (Tel Rifaat), resistindo aos bombardeios turcos. Mas quando o HTS lançou a ofensiva de dez dias que culminou na derrubada de Assad, a Turquia e suas milícias aproveitaram, tomando até mesmo esses campos de refugiados varridos pelo vento e deslocando seus moradores mais uma vez. Hussein Maamo, um representante oficial curdo sírio baseado em Londres, disse à Jacobin : “As facções ligadas à Turquia visam legitimar seus ataques às áreas curdas, enquadrando seus ataques como ataques contra as forças do regime”.
Muhammed Sheikho, que é copresidente de um conselho regional sob a Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria (DAANES), capitaneada pelos curdos, liderou milhares de curdos, árabes e minorias locais na evacuação dos campos para locais com maior segurança em regiões distantes sob o controle da DAANES. Mas muitos foram deixados para trás. “Centenas do nosso povo ficaram presos e não puderam sair”, ele disse à Jacobin por telefone da Síria. “Alguns foram mortos, alguns foram torturados, alguns foram capturados e seu destino não está claro.” As filmagens mostram combatentes apoiados pela Turquia abusando e pisoteando prisioneiros curdos homens e mulheres.
O projeto DAANES ofereceu um refúgio seguro a milhões de sírios e afirma oferecer um modelo para um futuro assentamento sírio baseado em governança comunitária, autonomia das mulheres e representação minoritária. A abordagem relativamente pragmática do HTS pode até abrir a porta para uma futura coordenação entre o movimento curdo e outros atores da oposição, com a própria ala militar do DAANES tomando território das forças assadistas no leste do país. Mas com a Turquia buscando explorar a crise para ocupar mais faixas do território sírio e deslocar milhões de curdos ao longo de sua fronteira, os últimos desdobramentos deixam o projeto liderado pelos curdos e a Síria como um todo enfrentando um futuro profundamente incerto.
Inimigos dos inimigos
Se o ditado “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” fosse verdadeiro, os curdos sírios seriam o povo mais amado do Oriente Médio. Mas não houve muito tempo para celebrar a partida de Assad para Moscou antes que novas ondas de violência irrompessem contra os curdos e seus aliados árabes. Como o analista Sinan Ciddi, professor adjunto da Universidade de Georgetown, disse à Jacobin, a tão esperada derrota de Assad provavelmente resultará em “uma situação em que a Síria será governada por uma organização salafista-jihadista… ou se tornará um espaço sem governo com um vácuo de poder escancarado”.
Não há razão para os curdos ou qualquer outra pessoa lamentar Assad, que é responsável pela maior parte das mortes de civis na Síria e persistentemente procurou minar o DAANES liderado pelos curdos, que agora governa mais de um terço do território sírio. “O [DAANES] manteve um relacionamento pragmático, mas frágil, com o regime de Assad… definido por coordenação limitada contra ameaças comuns”, diz o analista Yusuf Can, do Wilson Center, à Jacobin. “No entanto, o regime de Assad se opôs às aspirações [do DAANES] por maior autonomia.”
Em teoria, portanto, a derrota de Assad deveria ser uma boa notícia para o DAANES. Mas o HTS, que governou milhões de sírios na cidade de Idlib, no noroeste, impõe seu próprio governo islâmico profundamente autoritário. A Human Rights Watch documentou detenções arbitrárias e torturas consistentes de milhares de jornalistas, figuras da oposição e ativistas da sociedade civil que buscavam documentar abusos do HTS ou protestar contra sua autoridade. Embora a organização tenha moderado sua abordagem nos últimos anos como parte de uma tentativa de legitimidade, o HTS teria conduzido patrulhas de moralidade, prendendo mulheres jovens por não seguirem códigos de vestimenta religiosos; prendendo homens jovens por fazerem a barba ou ouvirem música; e conduzido execuções públicas por bruxaria e heresia.
O HTS também é conhecido por sua prestação de serviços relativamente eficaz, no que tem sido chamado de “islamismo tecnocrático”, e seus combatentes são de fato disciplinados em sua busca por um novo Estado islâmico na Síria. Essa abordagem ajudou o HTS a alcançar sua vitória inicial ao tomar a segunda maior cidade da Síria, Aleppo, com exceção de cerca de cem mil curdos atualmente sitiados em dois bairros do centro da cidade, agora cercados por combatentes do HTS. Os moradores locais relatam escassez de alimentos e apagões.
“Não sabemos como a situação vai acabar, porque todas essas forças impõem o islamismo por meio da violência”, diz Hamude, um ativista da mídia em Sheikh Maqsud, sitiado pelo HTS, que manteve a autonomia liderada pelos curdos desde o início do conflito sírio, apesar de sofrer o cerco de Assad, supostos ataques com armas químicas por grupos de oposição islâmicos e bombardeios indiscriminados que equivalem a crimes de guerra.
“Representantes curdos continuam profundamente cautelosos quanto à suposta mudança da liderança do HTS em direção ao pluralismo inclusivo, enquanto a força islâmica pode muito bem optar por ficar do lado da Turquia em busca de legitimidade internacional.”
“Em Aleppo, há curdos, cristãos, yazidis e muitos grupos étnicos e religiosos”, diz Hamude. “Esses grupos enfrentam um perigo severo. O HTS não aceita essas minorias e força as mulheres a cobrirem suas cabeças.” Os combatentes do HTS teriam matado pelo menos dois yazidis, que sofreram genocídio nas mãos do ISIS, enquanto tentavam fugir de Aleppo. Um cristão armênio, falando anonimamente por medo de represálias, descreve cenas de recriminação e acrescenta: “Assim que [o HTS] entrou em Aleppo, eles destruíram uma árvore de Natal [como um símbolo da comunidade cristã]. Eles estão nos garantindo que não nos machucarão, mas estamos perdidos. Não sabemos o que fazer.”
Agenda anti-curda
Mulheres, minorias e todos aqueles que buscam um futuro secular e democrático enfrentam um porvir profundamente preocupante sob a governança do HTS. Mas a força islâmica, no entanto, conseguiu uma derrota notável de Assad, enquanto geralmente se absteve de saques contra civis e conflitos desnecessários com os curdos. Em contraste, muitos dos milicianos apoiados pela Turquia que nominalmente se juntaram à ofensiva nunca dispararam um tiro por raiva contra as forças de Assad. Em vez disso, eles se concentraram mais uma vez na violência retributiva contra civis curdos e em encher seus próprios bolsos, levando até mesmo o HTS a prender comandantes apoiados pela Turquia.
As milícias que a Turquia uniu sob a bandeira do Exército Nacional Sírio (SNA) há muito são acusadas de crimes de guerra pelas Nações Unidas e pela Anistia Internacional, incluindo estupro de mulheres, assassinatos em massa de civis curdos, tortura, eletrocussão, execução e desfile de civis enjaulados nas ruas como escudo humano. Durante campanhas militares turcas anteriores, essas milícias mataram centenas — e deslocaram centenas de milhares — de civis.
Os que sobreviveram enfrentaram o governo sumário de milícias apoiadas pela Turquia sequestrando, torturando e executando civis, juntamente com uma política contínua de mudança demográfica forçada em regiões anteriormente povoadas por curdos, yazidis e minorias cristãs. No momento em que este artigo foi escrito, essas milícias estavam se concentrando em caçar civis curdos presos pelos rápidos desenvolvimentos enquanto executavam novas operações militares contra regiões sob o DAANES liderado pelos curdos. Ataques aéreos turcos mataram crianças curdas e atingiram edifícios civis do DAANES: nenhum teve como alvo o exército morimbundo de Assad.
Enquanto isso, a extensão precisa da cooperação do HTS com a Turquia é motivo de debate. Oficialmente, a Turquia lista o HTS como um “grupo terrorista” e nega qualquer conhecimento prévio das últimas operações e que, ao contrário de outras milícias, o HTS é poderoso o suficiente para agir unilateralmente na Síria. Certamente, Ancara foi pega de surpresa pela velocidade do colapso de Assad. No entanto, a liderança turca e o HTS há muito se coordenam por meio de salas de operação conjuntas; as milícias do SNA que se juntaram à última operação são financiadas, treinadas e dirigidas pela Turquia; e bandeiras turcas tremulavam sobre a cidadela em Aleppo após sua captura, enquanto políticos turcos ultranacionalistas relembravam seu antigo status como uma joia da coroa otomana. Uma coisa é certa, diz o analista Can: a Turquia “usará quaisquer ganhos reais que tiver” contra os curdos, tanto internamente quanto no exterior.
O principal objetivo da Turquia na Síria é simples: liquidar a governança multiétnica liderada pelos curdos ao longo de sua fronteira e empurrar a população curda de volta para o deserto sírio, estabelecendo uma “zona segura” de 32 quilômetros de extensão. Lá, também reassentará refugiados sírios em antigos assentamentos curdos como uma forma de satisfazer o sentimento doméstico antirrefugiados e consolidar a mudança étnica ao longo de sua fronteira.
A Turquia atingiu esse objetivo em pontos ao longo da fronteira. No entanto, apesar de vários momentos difíceis, ela foi impedida de erradicar os DAANES pela intransigência do governo Assad nas negociações sobre a zona de fronteira e pela presença de tropas russas e estadunidenses no território dos DAANES. Enquanto permitiam que a Turquia fizesse chover ataques aéreos, destruindo a água, a eletricidade e a infraestrutura humanitária da região, ambas as potências preferiram, em última análise, manter uma posição no norte ao lado de forças curdas confiáveis, em vez de testemunhar mais violência caótica e uma mudança de poder em favor de Ancara.
Conflito multipolar
A Turquia buscava o sinal verde para uma operação final de Moscou ou Washington: inesperadamente, foi a HTS que o forneceu. À medida que a HTS avançava em direção a Damasco, uma Rússia já enfraquecida e distraída lavou as mãos em relação a seu antigo cliente, Assad. O Irã, que há muito tempo faz parceria com Assad para brutalizar os sírios e usar o país como uma base de treinamento para o Hezbollah e suas próprias milícias, foi incapaz de ou não quis intervir após um ano de golpes punitivos desferidos por Israel.
De fato, Israel lucrou com o caos para expandir sua própria ocupação de longo prazo mais profundamente no território sírio ao sul. Mas também destruiu o antigo equipamento do Exército Sírio com ataques aéreos antes de vê-lo cair nas mãos do HTS, vendo a organização salafista como uma ameaça existencial. Enquanto isso, a resposta dos EUA aos ganhos do HTS e às ameaças turcas contra os curdos foi inicialmente fraca. A ala militar do DAANES agora se moveu para tomar território anteriormente controlado por Assad e milícias iranianas, operando sob a justificativa de sua parceria anti-ISIS com os Estados Unidos enquanto estabelecia cabeças de praia através do Eufrates em face de novos ataques antecipados inspirados pela Turquia.
A liderança dos EUA disse que continuará sua missão anti-ISIS no leste do país. Ainda assim, não está claro até que ponto isso pode proteger os DAANES da violência turca, ou como os Estados Unidos irão interagir com o HTS ou com a coalizão mais ampla de forças de oposição em todo o sul da Síria — mesmo antes de considerarmos o curinga da chegada de Donald Trump à Casa Branca.
Dadas essas realidades complexas, seria equivocado ver a violência da Turquia, membro-chave da OTAN, contra os curdos nominalmente aliados dos EUA, ou o avanço do HTS contra Assad, como um simples conflito por procuração Ocidente-Oriente. Mas uma coisa é clara: são os turcos que agora estão na vanguarda, buscando estabelecer um novo status quo em todo o norte da Síria, o que congelará tanto os aliados de Assad quanto o Irã e a presença cada vez menor do Ocidente na região, deixando a Turquia (o segundo maior exército da OTAN) como o principal agente no terreno.
Após a expulsão contínua e antecipada de civis curdos de seus exclaves no noroeste — limpeza étnica ocorrendo sem uma palavra de protesto dos aliados nominais dos curdos — os olhos da Turquia estão se voltando para o leste. Cerca de cem mil pessoas deslocadas internamente (IDPs) já chegaram ao território contíguo do DAANES, em circunstâncias humanitárias terríveis, com vários idosos e crianças morrendo de frio enquanto milhares dormem ao relento por falta de abrigo. “Não há espaço para as pessoas aqui”, diz o oficial curdo Sheikho, falando comigo por telefone enquanto observa os refugiados chegando a um centro de recepção improvisado no estádio esportivo da cidade. “Alguns idosos estão sucumbindo ao frio. Todos os hospitais do DAANES foram orientados a oferecer atendimento gratuito, mas ainda há uma necessidade urgente de suporte médico.”
Em vez disso, essas regiões, e particularmente a cidade multiétnica de maioria árabe de Manbij, são as próximas na linha de fogo da Turquia. Com o Irã e a Rússia fora do jogo e o Ocidente desorientado, a Turquia será o agente dominante em uma nova Síria islâmica. O presidente turco Recep Tayyip Erdoğan, que há muito lucra com um status de intermediário como inimigo do inimigo estacionado entre Moscou e Washington, parece finalmente ter todas as cartas na mão.
Uma futura Síria
“Esperança e medo podem andar de mãos dadas quando se pensa no futuro da Síria”, diz o analista Can. “É ótimo ver pessoas oprimidas ganhando liberdade, mas há muitas razões para permanecer cauteloso — seja o risco de radicais islâmicos, outros grupos extremistas ou potências estrangeiras com suas próprias agendas.” Em teoria, o movimento curdo deve desempenhar um papel crucial em qualquer acordo futuro produtivo para a Síria. O DAANES há muito sinaliza sua disposição pragmática de trabalhar com uma administração reformada de Damasco, caso demonstre comprometimento genuíno com a devolução e com os direitos das mulheres e das minorias. Hussein Maamo, o oficial curdo sírio em Londres, disse à Jacobin que quer ver “todos os sírios envolvidos no processo de tomada de decisão para estabelecer um Estado democrático, pluralista e secular que permaneça neutro em relação à religião, grupos sociais, etnia e opinião política.”
Inesperadamente, há sinais provisórios de desescalada entre o HTS e o DAANES, com os dois lados preferindo evitar conflitos, para focar de várias maneiras em lutar contra Assad e afastar a Turquia. O HTS emitiu garantias à comunidade curda de Aleppo e facilitou acordos de retirada para civis curdos. Representantes do DAANES atualmente negociam com o HTS sobre o futuro dos bairros, um refúgio seguro de longo prazo cuja população já foi inchada por IDPs fugindo da violência mais recente, em um potencial indicador de suas futuras relações.
A ala militar do DAANES obteve ganhos em territórios anteriormente controlados pelo governo, sugerindo a possibilidade distante de uma Síria pós-Assad dividida entre o autoritário-islâmico HTS e o pluralista e democrático DAANES — uma perspectiva que teria soado totalmente implausível há apenas uma semana. Mas os representantes permanecem profundamente cautelosos quanto à suposta virada da liderança do HTS em direção ao pluralismo inclusivo, enquanto a força islâmica pode muito bem optar por ficar do lado da Turquia em busca de legitimidade internacional. Seja como for que a extraordinária crise se desenrole, a violência apoiada pela Turquia contra curdos, mulheres e minorias continuará a pôr em risco as esperanças dos sírios comuns por um futuro verdadeiramente democrático.
Colaborador
Matt Broomfield é um ativista e escritor. É autor de Brave Little Sternums: Poems from Rojava.
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