24 de junho de 2023

Maior desafio à liderança de Vladimir Putin dura pouco, mas seguirá no ar

Até Estados Unidos se assustaram com o risco de ver seu vilão favorito ter o poder ameaçado em tão pouco tempo

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Os dois dias que abalaram a Rússia de Vladimir Putin parecem ter chegado ao fim com uma vitória pontual do presidente russo após sua mais grave crise em 22 anos no leme do Kremlin. Mas são testemunho, tanto na sua escalada quanto na sua incerta resolução, da opacidade que cerca todos os jogos de poder russo.

Redes sociais começaram a especular o quão comprometido com um golpe estava o líder mercenário Ievguêni Prigojin, o antigo "chef de Putin", tornado adversário número 1 das Forças Armadas do país.

É uma prática antiga, a de mergulhar em teorias conspiratórias tudo o que ocorre na "charada embrulhada por um mistério dentro de um enigma", como colocaria Wiston Churchill. Mas há fatos objetivos que podem ser estabelecidos antes de a poeira baixar nos próximos dias —se baixar, claro.

Moradora de Rostov-do-Don, cidade no sul do território russo tomada pelos mercenários do Grupo Wagner, caminha perto de membros da empresa militar privada - Roman Romokhov/AFP

Primeiro: em menos de 20 horas, as forças de Prigojin avançaram 200 km com consistência e quase 800 km com seu ameaçador comboio. Isso é humilhante para o Exército de Serguei Choigu, o ministro da Defesa, mesmo que seja possível especular que havia uma ordem para evitar um massacre de rebeldes russos, ainda mais em meio à Guerra da Ucrânia. A questão que fica é se o Wagner resolver fazer o mesmo de novo, "indo até o fim".

Segundo: Prigojin assustou o mundo, mas não tinha força militar suficiente depois que o mais respeitado general russo, Serguei Surovikin, adjunto da chefia da invasão ucraniana, negou-lhe apoio e pediu que depusesse armas. Mesmo que tivesse 25 mil homens, como alega, isso não seria suficiente para tomar Moscou.

Terceiro: ao mesmo tempo, o desespero mostrado na defesa improvisada da capital é uma demonstração de fraqueza grande de Putin. Retroescavadeiras arrebentando rodovias para impedir tanques e poucos soldados da Guarda Nacional se apinhando em avenidas sugerem falta de preparo para contingências.

Quarto: Putin usou um preposto, o ditador Aleksandr Lukachenko, para não transparecer que cedia em negociações a Prigojin. Com isso, o aliado de Belarus ganha musculatura política, após três anos de genuflexão ante o Kremlin. E ele acaba de ter posicionadas armas nucleares em seu território pelos russos.

Quinto: Putin havia apoiado o enquadramento de forças mercenárias, mas segundo relatos estava bastante irritado com Choigu recentemente. Agora, o ministro da Defesa viu seu principal crítico ameaçar um golpe, ter anistia prometida pelo presidente após ser indicado por sedição e manter suas forças intactas —perdeu aparentemente apenas um caminhão, enquanto as Forças Armadas tiveram cinco helicópteros derrubados, pelo menos.

Sexto: o presidente russo piscou ao falar de seu maior pesadelo, a desintegração russa, no discurso agressivo que fez em rede nacional. Comparar a quartelada mercenária com a crise que antecedeu o golpe bolchevista dentro da Revolução Russa de 1917 pareceu um exagero retórico, mas trai temores —ainda que se encaixe na narrativa de ameaça constante preferida do Kremlin.

Com esses pontos, há um arcabouço mínimo do que ocorreu na crise, mas as perguntas a serem respondidas são muitas. Como diz desde o começo da guerra o professor Sam Greene, especialista em Rússia do King's College de Londres, o Ocidente precisa se acostumar a não ter questões esclarecidas nessa guerra.

A primeira é a extensão da perda de poder de Putin após essa demonstração de força anárquica. As elites seguem com o presidente, e as Forças Armadas, também. Mas o fato de o desafio ter ocorrido e ser enfrentado com acomodação levanta dúvidas.

Não se trata do sonhado golpe contra Putin que delicia iludidos no Ocidente, mas mostra que há peças se mexendo no tabuleiro. Para o principal rival de Moscou, Voldodimir Zelenski, foi uma bem-vinda sinalização de fissuras no campo adversário. Não é de se imaginar que Prigojin terá suas tropas na Ucrânia novamente.

De forma inversa, ganha poder Ramzan Kadirov, o poderoso ditador tchetcheno que já havia se dissociado de Prigojin ao alinhar-se a Choigu no enquadramento dos mercenários. Suas tropas estavam rumo à base ocupada pelo Wagner em Rostov-do-Don, no que prometia ser uma violenta batalha.

Isso tem implicações para a contraofensiva ucraniana em curso, que enfrenta muita dificuldade. Kadirov irá assumir o papel que antes era de Prigojin? Não se sabe, mas é possível que ataques punitivos russos e a intensidade dos combates cresça como forma de asseverar força apesar da crise.

Por fim, ficou claro durante o percurso da crise que o Ocidente adora ter Putin como vilão, mas não está preparado para vê-lo substituído por qualquer outra força. No Kremlin, o presidente sempre agiu de forma tática, e seus rivais se acostumaram com isso.

Ainda que desejem o fim do reinado dele, certamente não querem isso com uma espiral violenta que coloque em risco o controle de armas nucleares da maior potência do setor no mundo, para começar. Com tudo isso, aparentemente Putin sobreviveu à batalha, mas o fôlego para o resto da guerra é algo que ainda terá de ser escrutinado.

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