24 de junho de 2023

Putin promete esmagar revolta de mercenários, que controlam parte de cidade

Presidente fala que foi traído por Prigojin; há relatos de combate em mais uma região, na pior crise desde os anos 1990

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, prometeu neste sábado (24) esmagar a maior rebelião militar em solo russo desde os anos 1990. Falou em traição do grupo mercenário Wagner, de seu antigo aliado, Ievguêni Prigojin.

O rebelde, por sua vez, afirmou ter tomado controle dos principais prédios administrativos da cidade de Rostov-do-Don, no sul do país, além de estruturas do Comando Militar do Sul —peça central na engrenagem da Guerra da Ucrânia, na qual o Wagner lutou e que agora é criticada por Prigojin.

O presidente russo, Vladimir Putin, após discurso sobre as ações do grupo mercenário Wagner, em Moscou - Gavriil Grigorov/Sputnik via AFP

Não se via tal movimentação na Rússia desde que Boris Ieltsin lidou à bala com uma revolta parlamentar em 1993 e nas duas guerras de secessão da Tchetchênia, em 1994-96 e 1999-2000.

"Ambições excessivas levaram à traição. É um golpe contra a Rússia e seu povo. Nossas ações para proteger a pátria-mãe serão duras", disse Putin. Todos que entraram deliberadamente no caminho da traição, que prepararam uma rebelião armada, que adotaram o caminho da chantagem e métodos terroristas, irão sofrer a punição inevitável."

O presidente falou em rede nacional de TV no começo da manhã deste sábado (madrugada no Brasil) e estava visivelmente irritado. Prigojin, afinal, era conhecido até há pouco como "o chef de Putin", responsável pela alimentação do Kremlin desde os anos 2000 e, desde 2014, dono de um crescente exército particular a serviço do líder.

Logo depois da fala, o rebelde foi ao Telegram e mudou seu tom, criticando pela primeira vez o ex-chefe —até aqui, só havia atacado a liderança militar, a começar pelo ministro Serguei Choigu (Defesa). "O presidente comete um grande erro quando fala em traição. Somos patriotas, estamos lutando pela pátria-mãe. Não queremos corrupção. Estamos prontos para morrer."

Em campo, foi como se a guerra no país vizinho tivesse recomeçado. "Passei a madrugada em claro. Onde moro, no sul de Rostov, as coisas estão calmas, mas as ruas estão bem vazias. No centro, o governo pediu para ninguém ir, e eu não arrisquei", afirmou Ivan, um comerciante da cidade centro da crise que pede para não ter o sobrenome identificado.

Quem arriscou captou imagens com celulares que agora correm o mundo, de soldados do Wagner cercando o quartel-general da Polícia Nacional e pelo menos dois tanques, além de diversos blindados que o grupo usou na Ucrânia, nas ruas da região central.

Membros do Grupo Wagner durante patrulha nas ruas de Rostov-on-Don, no sul da Rússia - AFP

Há relatos esporádicos de combates, e um helicóptero russo Mi-8 foi derrubado perto de Rostov-do-Don na madrugada. Mas também há sinais de que o Wagner quer levar seu motim para a região imediatamente acima da de Rostov, Voronej. Ao menos uma coluna de veículos do grupo foi vista na capital regional, segundo blogueiros militares russos.

Na região, houve uma grande explosão em um depósito militar de combustível. Aqui, há duas versões: uma de que o combustível pertencia ao Wagner, em apoio à sua ação no leste da Ucrânia, e foi atingido pela Força Aérea russa. A outra, de que foram os mercenários que atearam fogo ao local.

A rodovia M4, que liga todo o sul russo a Moscou e desde que o espaço aéreo da região foi fechado no início da guerra em 2022 é sua única via de acesso, foi bloqueada em Voronej. Se o Wagner quer levar sua rebelião à capital, tem de ser por lá.

Em qualquer caso, não se via combates desse tipo na Rússia há décadas, e esta constitui a maior crise já enfrentada por Putin após sua chegada ao poder em 1999. Naquele ano e no seguinte, ele derrotou os separatistas tchetchenos e instalou a dinastia dos Kadirov no país muçulmano, mas em nenhum momento houve um desafio parecido às suas Forças Armadas.

Não sem ironia, o atual ditador tchetcheno, Ramzan Kadirov, poderá ser chamado para o combate contra o ex-aliado Prigojin. Em rede social, ele afirmou que suas forças estão prontas para intervir a pedido do Kremlin, se necessário.

Ele também é rival de Choigu, mas compôs com o ministro quando a Defesa decidiu enquadrar os mercenários, obrigando-os a assinar contratos. Isso foi a gota d´água da rixa de meses entre Prigojin e os militares, marcada por acusações de boicote ao esforço do Wagner, que tomou Bakhmut, em Donetsk, única vitória expressiva russa neste ano.

Apesar da gravidade da crise, não há nenhuma expectativa de golpe contra Putin, ou mesmo o tamanho da erosão de sua autoridade é mensurável agora. Em Moscou, após a tensão da madrugada, com imagens de veículos militares nas ruas que evocavam os acontecimentos de 1993, a situação é calma.

Segundo relatou à Folha um jornalista, que também pede anonimato, as ruas elegantes em torno do Kremlin, como a Tverskaia, estão com frequência normal para um sábado. A praça Vermelha permanece com acesso fechado, contudo, mas sem uma presença policial muito diferente da normal.

Há a questão da força militar. Prigojin diz ter "25 mil homens, e mais 25 mil a qualquer momento", sugerindo espalhar sua sublevação. Até aqui, contudo, isso não foi visto, e seu principal aliado no alto escalão militar, o general Serguei Surovikin, pediu para que ele desista do motim e se entregue.

Para o "chef de Putin", as opções são nulas. Sem Surovikin e se não alcançar a soldadesca em quarteis, está fadado a ver sua revolta ser asfixiada. O processo já aberto contra si pelo temido serviço de segurança FSB pode lhe dar 20 anos de cadeia, mas o dano à imagem de Putin e seu governo em um momento delicado ainda terá de ser medido.

Os adversários mais diretos aproveitam. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, postou no Twitter a avaliação de que a crise mostra "a fraqueza da Rússia" e conclamou a "comunidade internacional" a agir contra Putin.

Nos Estados Unidos, patronos de Kiev, a ordem é de cautela. O presidente Joe Biden está, segundo a Casa Branca, acompanhando os acontecimentos. Por mais que o país queira ver o rival de joelhos, não é do interesse americano uma instabilidade militar na única potência nuclear que faz frente a Washington.

Há também o risco de toda a crise, se debelada, levar a um endurecimento ainda maior do regime e das ações militares na Ucrânia, até como forma de mostrar força aos adversários. Nesta noite, por exemplo, foram lançados 51 mísseis de cruzeiro contra cidades ucranianas, o maior ataque em algumas semanas. Três pessoas morreram em Kiev, atingidas por destroços de projéteis abatidos.Até aqui, apesar de Prigojin ter divulgado o vídeo que deflagrou sua revolta na sexta-feira (23) criticando a guerra como um projeto da elite russa para tomar a Ucrânia, o Wagner não interrompeu ações russas. Aviões que participaram de ataques no vizinho levantaram voo normalmente da base de Rostov que suas forças dizem controlar.

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