29 de abril de 2024

Tributação de super-ricos é necessária para combater desigualdade global

Imposto sobre bilionários geraria recursos para educação, infraestrutura e meio ambiente e impulsionaria justiça social

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

[RESUMO] Ministros da África do Sul, da Alemanha, da Espanha e do Brasil defendem que a criação de um tributo mínimo global sobre bilionários, hoje beneficiados por brechas que reduzem sua contribuição, constituiria um passo significativo na direção de sistemas tributários que proporcionem segurança e receitas suficientes e tratem todos os cidadãos de forma justa.

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Quando os dirigentes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional se reuniram para as reuniões de primavera na terceira semana de abril, o que se debateu foram realmente as grandes questões.

O que a comunidade internacional pode fazer para acelerar a descarbonização e combater as mudanças climáticas? Como os países com grandes dívidas podem manter espaço fiscal para investir na erradicação da pobreza, nos serviços sociais e nos bens públicos globais? O que a comunidade internacional precisa fazer para voltar ao caminho em direção dos ODSs (objetivos de desenvolvimento sustentável)? Como os bancos multilaterais de desenvolvimento podem ser fortalecidos para apoiar essas ambições?

Ministros da Fazenda durante evento da Reunião Anual de Primavera do Banco Mundial e do FMI em Washington - Ken Cedeno - 19.abr.24/Reuters

Há uma questão que torna muito mais difícil lidar com esses desafios globais: a desigualdade. Embora a disparidade entre os países mais ricos e mais pobres tenha diminuído ligeiramente, a distância permanece grande de forma alarmante.

Além disso, nas últimas duas décadas, testemunhamos um aumento significativo na desigualdade dentro da maioria dos países, com a disparidade de renda entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres quase dobrando. Olhando para o futuro, as tendências econômicas globais atuais representam sérias ameaças ao progresso em direção a uma maior igualdade.

O caráter multidimensional da desigualdade é inegável. Serviços básicos como saúde e educação não estão igualmente disponíveis para todos. Frequentemente, a desigualdade de oportunidades é transmitida de geração em geração. Origens sociais, gênero, raça ou local de residência são alguns dos fatores que desempenham um papel na reprodução das desigualdades.

Além disso, o alto nível de desigualdade prejudica o desenvolvimento econômico porque inibe a inovação e impede que as pessoas desenvolvam seu pleno potencial. Ela é corrosiva para a democracia e enfraquece a coesão social. Onde a coesão social é fraca, há menos apoio para as reformas estruturais que precisaremos empreender nos próximos anos, como a transformação necessária em direção a uma economia que neutralize as emissões de carbono.

De forma positiva, há uma crescente conscientização global sobre a importância não apenas do crescimento, mas do crescimento sustentável e equitativo. Aumentar a prosperidade enquanto enfrentamos a desigualdade —dentro e entre países e gerações, incluindo desigualdades raciais e de gênero enraizadas— não deveria ser um conflito. Alcançar um crescimento verdadeiramente sustentável reside em equilibrar três preocupações fundamentais: econômica, social e ambiental.

É neste contexto que o Brasil elegeu como prioridade de sua presidência no G20 a luta contra a fome, a pobreza e a desigualdade, uma prioridade que também é perseguida pela política de desenvolvimento da Alemanha e que a Espanha aborda de forma ambiciosa tanto nacional quanto globalmente.

A África do Sul, por sua vez, continua a buscar uma agenda fiscal e tributária progressiva que enfrenta o legado e a realidade persistente de profunda desigualdade no país. Ao direcionar até dois terços do total de gastos em serviços sociais e programas de complementação de renda, além de calibrar a administração da política tributária em direção à eficácia e à justiça, a África do Sul está firmemente empenhada em combater a desigualdade de riqueza em casa e no exterior.

É hora da comunidade internacional levar a sério o combate à desigualdade e o financiamento de bens públicos globais. Um dos instrumentos-chave que os governos têm para promover mais igualdade é a política tributária. Ela tem o potencial não só de aumentar o espaço fiscal que os governos têm para investir em proteção social, educação e proteção climática. Projetada de forma progressiva, ela também pode garantir que todos na sociedade contribuam para o bem comum de acordo com sua capacidade de pagamento. Uma contribuição justa aumenta o bem-estar social.

Com esses objetivos em mente, o Brasil trouxe para a mesa de negociações das principais economias do mundo, pela primeira vez, uma proposta para um tributo mínimo global sobre bilionários. É um terceiro pilar necessário que complementa as negociações sobre a tributação da economia digital e sobre um imposto mínimo de 15% sobre o lucro das multinacionais.

O renomado economista Gabriel Zucman esboçou como isso poderia funcionar. Atualmente, existem cerca de 3.000 bilionários em todo o mundo. O imposto poderia ser projetado como uma contribuição mínima equivalente a 2% da riqueza dos super-ricos. Não se aplicaria aos bilionários que já contribuem com uma parcela justa na forma de impostos sobre a renda. No entanto, aqueles que conseguem evitar pagar Imposto de Renda seriam obrigados a contribuir mais para o bem comum.

O argumento por trás de tal imposto é simples e direto: precisamos aumentar a capacidade de nossos sistemas tributários de cumprir o princípio de justiça, de modo que as contribuições estejam de acordo com a capacidade de pagamento. Brechas perenes no sistema implicam que indivíduos de alta renda podem minimizar seus impostos sobre a renda. Bilionários globais pagam apenas o equivalente a até 0,5% de sua riqueza em Imposto de Renda pessoal. É crucial garantir que nossos sistemas tributários proporcionem segurança, receitas suficientes e tratem todos os nossos cidadãos de forma justa.

Um tributo mínimo globalmente coordenado sobre bilionários constituiria um passo significativo nessa direção. Ele impulsionaria a justiça social e aumentaria a confiança na eficácia da redistribuição fiscal. Geraria receitas muito necessárias para os governos investirem em bens públicos como saúde, educação, meio ambiente e infraestrutura —dos quais todos se beneficiam, inclusive aqueles no topo da pirâmide de renda.

Estimativas sugerem que tal contribuição poderia potencialmente angariar uma receita adicional de US$ 250 bilhões globalmente —este é, aproximadamente, o custo dos danos econômicos causados por eventos climáticos extremos no ano passado.

Não se despreza a força do argumento de que os bilionários podem facilmente transferir suas fortunas para jurisdições com baixa tributação e, assim, evitar contribuir. É justamente por tal razão que essa reforma tributária pertence à agenda do G20. A cooperação internacional e os acordos globais são fundamentais para tornar esse tributo eficaz. O que a comunidade internacional conseguiu fazer com o imposto mínimo global sobre empresas multinacionais pode fazer com os bilionários.

Combater a desigualdade requer compromisso político —um compromisso com os objetivos de uma cooperação tributária internacional inclusiva, justa e eficaz. Certamente, isso precisa ser acompanhado por abordagens muito mais amplas que reduzam não apenas a desigualdade de riqueza, mas também as desigualdades sociais e de carbono.

Os desafios que estão pela frente são enormes, mas estamos prontos para nos engajar em ações multilaterais coordenadas para enfrentá-los.

Svenja Schulze
Ministra da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento da Alemanha

Fernando Haddad
Ministro da Fazenda do Brasil

Enoch Godongwana
Ministro da Fazenda da África do Sul

Carlos Cuerpo
Ministro de Economia, Comércio e Empresas da Espanha

Maria Jesús Montero
Ministra da Fazenda da Espanha

Washington apoiou um golpe contra a democracia sul-coreana

Um filme que retrata o golpe de Estado de 1979 na Coreia do Sul, apoiado pelos EUA, tornou-se uma sensação de bilheteira. 12.12: The Day (O Dia) agora está disponível para o público internacional como um retrato emocionante das manobras da direita contra a democracia, que tem fortes ressonâncias contemporâneas.

Kap Seol


O Presidente Ronald Reagan fica atrás do Presidente sul-coreano Chun Doo-hwan enquanto este discursa na Casa Branca, em 26 de abril de 1985. (Bettmann / Getty Images)

Tradução / No final do ano passado, um militar sul-coreano conseguiu um feito póstumo raro. Chun Doo-hwan, que governou o país com mão de ferro durante grande parte da década de 1980, superou o desafio de Napoleão Bonaparte nas bilheteiras coreanas. Após a sua estreia em novembro, o filme 12.12: O Dia, que retrata o período de nove horas no dia 12 de dezembro de 1979, durante o primeiro dos dois golpes de Chun, ultrapassou confortavelmente o medíocre mas conquistador épico de Ridley Scott.

No Natal, o emocionante thriller político tinha vendido mais de dez milhões de bilhetes em um país com 51,7 milhões de habitantes. O sucesso do filme foi em parte motivado pelos receios em relação ao atual presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, o ex-procurador-geral que ascendeu à presidência em 2022.

Yoon tem utilizado uma intriga de procuradores para destruir a democracia e solidificar o seu governo de extrema-direita, de uma forma que lembra o governo de Chun. Chun mobilizou um grupo de oficiais num golpe de Estado que primeiro tomou o controle da hierarquia militar e depois assumiu o governo após massacrar centenas de jovens manifestantes na cidade de Gwangju.

O filme já está disponível em plataformas globais de streaming. 12.12: O Dia merece chegar a um público amplo como uma descrição, hora a hora, de como os golpes antidemocráticos de direita podem ser bem sucedidos.

Senhores da guerra rivais

Em dezembro de 1979, grande parte da Coreia do Sul antecipava a “primavera de Seul”, quando finalmente elegeria o seu presidente ao abrigo de uma nova constituição democrática. Dois meses antes, o ditador militar Park Chung-hee foi assassinado pelo próprio chefe dos serviços secretos.

Park tinha governado o país durante dezoito anos, depois de derrubar o primeiro governo democraticamente eleito em um golpe em 1961. Kim Jae-kyu, o seu braço direito e diretor da Agência Central de Informações da Coreia (KCIA), agiu com medo de que Park desencadeasse uma força militar bruta para suprimir as campanhas de massas que estavam surgindo com o objetivo de derrubar o regime autoritário.

Ao mesmo tempo que recorria cada vez mais a medidas repressivas para manter o controle sobre o país, Park colocava muitas vezes astutamente os membros dos seus círculos internos uns contra os outros. Ele fomentou a competição entre a burocracia e os militares, induzindo oficiais e generais a disputarem por seu favor em troca de lealdade.

Esta rivalidade reprimida acabou contribuindo para o assassinato de Park. O sentimento de humilhação de Kim por ter sido ultrapassado por um rival que serviu como chefe da segurança presidencial também desempenhou um papel na sua decisão de premir o gatilho.

Park preparou Chun e seu grupo de jovens oficiais, fluentes em inglês e na guerra moderna e que serviram ao lado do exército americano no Vietnã, para combater a velha guarda militar daqueles que foram educados durante a era colonial japonesa e recrutados para o corpo de oficiais durante a guerra da Coréia de 1950-53. O grupo de Chun se reuniu em torno de Hana hoe (“Sociedade 1”), um grupo fundado por Chun e pelos seus colegas recém-licenciados da primeira academia militar de quatro anos do país, nos últimos dias da guerra.

O seu orgulho por terem completado quatro anos de educação ao estilo de West Point e de formação nos Estados Unidos significava que estes jovens generais olhavam frequentemente para os seus homólogos mais velhos como um grupo ignorante e pouco qualificado. Chun personificava essa arrogância e ambição. Dois dias depois do golpe de Park, em maio de 1961, Chun, então tenente, levou cadetes da academia militar para marchar pelo centro de Seul em apoio ao golpe. Dois anos mais tarde, em 1963, ele quase encenou o que poderia ter sido o seu primeiro golpe para eliminar os rivais de Park.

Na sequência do assassinato de Park e da subsequente proclamação da lei marcial, as tensões há muito latentes explodiram sobre o controle das forças armadas e até do país. Chun estava em vantagem graças ao seu grupo bem organizado e altamente motivado, bem como ao seu controle dos poderes de investigação e de coleta de informações no âmbito da lei marcial, enquanto comandante do todo-poderoso Comando de Segurança da Defesa.

O diretor Kim Sung-su tem um culto de seguidores fora da Coreia do Sul pelo seu filme noir de 2016, Asura: A Cidade da Loucura. Em 12.12: O Dia, o diretor exprime habilmente as tensões, os egos exacerbados e o oportunismo burocrático que permitiram a Chun contornar as estruturas de comando e matar ou prender os seus superiores para assumir o controle das forças armadas.

No entanto, a descrição que Kim faz do grupo de Chun e dos seus rivais da velha guarda é às vezes muito simplista, baseando-se numa dicotomia entre bons e maus, para fazer justiça ao caráter dos altos escalões sul-coreanos da época. Apesar da sua intensa rivalidade, ambas as facções partilhavam a convicção comum de que os militares tinham direito a uma palavra final nos assuntos civis.

Após o assassinato de Park, Jeong Seung-hwa (retratado como Jeong Sang-ho no filme), o comandante da lei marcial raptado pelos cúmplices de Chun, deu muitas vezes a entender que iria dar o seu próprio golpe de Estado ao declarar publicamente que ele e os seus generais iriam “vetar” a presidência de Kim Dae-jung. Kim, um líder da oposição e futuro Prémio Nobel da Paz, estava emergindo como um candidato à presidência.

O que se passou na noite de 12 de dezembro de 1979 foi mais do que um golpe de Estado. Foi uma disputa entre dois senhores da guerra rivais, como ilustrado em várias cenas curtas do filme. Muitos dos antigos generais trataram as provocações de Chun mais como uma guerra territorial do que como um ato de traição.
A conexão dos EUA

Uma coisa que está completamente ausente em 12.12: O Dia é o retrato dos múltiplos papéis de Washington no apoio a Chun após o seu golpe, embora haja uma breve cena do ministro da defesa fugindo para um bunker subterrâneo das Forças dos EUA na Coreia (USFK).

Naquela noite fatídica, quando violou a estrutura de comando das suas próprias forças armadas, Chun mobilizou unidades de infantaria da Zona Desmilitarizada Coreana (DMZ) com a Coreia do Norte, infringindo a autoridade do comandante da USFK, John A. Wickham Jr. O general do Exército dos EUA tinha o controle operacional de todas as forças armadas sul-coreanas, com exceção dos paraquedistas e da divisão da guarnição de Seul. Apesar da forte oposição do general Wickham, o embaixador norte-americano William H. Gleysteen convidou Chun para uma reunião na sua residência, dois dias após o golpe, facilitada pelo chefe da estação da CIA em Seul, Robert Brewster.

Encontrar-se pessoalmente com Chun, quarenta e oito horas depois do golpe, na sua própria residência foi uma violação flagrante do protocolo de um embaixador dos EUA em todos os sentidos possíveis. No entanto, Gleysteen foi ainda mais longe, reiterando o raciocínio de Chun e retratando a sua descrição anterior do “incidente de 12.12” como “um golpe em tudo, menos no nome”, com o argumento de que “a estrutura governamental permaneceu intacta”. Ele solicitou ao Departamento de Estado que parasse de classificar o incidente como um golpe.

Chun, que tinha recebido formação em guerra psicológica em Fort Bragg, na Carolina do Norte, em 1959, maximizou os seus ganhos com a reunião. Chegou ao portão da residência do embaixador dos EUA em uniforme militar, acompanhado por um grande grupo de guarda-costas armados. Esta grande visibilidade no centro de Seul ajudou a acelerar a disseminação silenciosa de notícias sobre o seu encontro supostamente confidencial com Gleysteen, especialmente entre a elite sul-coreana.

Nas suas memórias, James V. Young, adido militar e chefe da estação da Defense Intelligence Agency (DIA) na época, recordou que muitos sul-coreanos lhe perguntaram, a partir de 14 de dezembro, se os Estados Unidos apoiavam agora Chun. Se não, perguntavam, porque é que ele e Gleysteen tiveram um encontro tão “aconchegante”? Quer fosse sua intenção ou não, o homem de Washington no terreno em Seul ajudou a levar os escalões superiores da burocracia e da elite sul-coreanas a se alinharem com Chun, com diferentes graus de oportunismo e aquiescência.

Os laços do diretor da estação da CIA, Brewster, com Chun parecem ser anteriores ao golpe de 12.12, embora muitos dos seus telegramas para Langley permaneçam confidenciais. Brewster, que morreu de câncer em 1981, dizia frequentemente ao general Wickham que Chun era “o único cavalo na cidade” e que os Estados Unidos precisaria trabalhar com ele “mesmo que à distância”.

Chun também tentou contornar a autoridade de Wickham, enviando cartas ou emissários pessoais a antigos generais da USFK nos Estados Unidos, pedindo-lhes diretamente apoio. Entre os destinatários encontrava-se John William Vessey Jr., o vice-chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA. Vessey conheceu Chun durante o seu mandato como comandante da USFK no final da década de 1970, quando a divisão de infantaria do general sul-coreano descobriu um túnel secreto escavado pela Coreia do Norte para um ataque surpresa em grande escala.

Vessey estava entre os quinze decisores políticos de alto nível que participaram na reunião de revisão da política da Casa Branca, em 22 de maio de 1980, na sequência dos fuzilamentos em massa em Gwangju, por paraquedistas, de manifestantes desarmados que se levantaram contra o golpe de Chun. Não se sabe como ou se Vessey, a única pessoa presente que tinha amizade com Chun, falou em nome do mentor do massacre de Gwangju na reunião, que decidiu efetivamente apoiar a sua violenta repressão. De acordo com a memória do próprio Chun, Vessey apresentou ele e sua equipe a Richard Allen, conselheiro de segurança de Ronald Reagan, que ofereceu a Chun a primeira cúpula de Reagan como presidente em Washington.

O fim do regime militar

Apesar da sua incompetência e miopia política, Gleysteen e Brewster ajudaram muito a moldar a situação a favor de Chun, que efetuou as suas próprias acrobacias políticas para conquistar o apoio dos EUA. Isto porque Washington não parecia ter um plano de contingência para um regime pós-Park, apesar da crise política que se instalava na Coreia do Sul.

De acordo com uma análise de vinte páginas publicada em 9 de junho de 1979, a CIA esperava que Park se mantivesse no poder até à década de 1980, devido ao seu forte controle autoritário e à incapacidade de estudantes ativistas e dissidentes de angariar o apoio político dos desfavorecidos. Nos quatro meses que se seguiram, essa avaliação se revelou incorreta quando confrontada com a morte de Park. No entanto, continuava a ser verdade que os ativistas pró-democracia não conseguiam obter um apoio maior, exceto em Gwangju, onde os estudantes e os cidadãos comuns se uniram, controlando brevemente a cidade depois de derrotarem os paraquedistas leais a Chun.

No final de 1979, as autoridades de Washington pareciam estar a concluir que poderiam precisar de outro homem forte militar para eliminar a volatilidade e restaurar o status quo na Coreia do Sul. Com grande parte dos seus recursos militares e diplomáticos envolvidos na resposta à Revolução Iraniana e à guerra soviética no Afeganistão, a política da Guerra Fria significava que os Estados Unidos não poderia permitir outro fiasco ao estilo do Irã na península coreana. Qualquer agitação deste tipo correria o risco de provocar a invasão de Seul pela Coreia do Norte comunista.

Em “North Korean Reactions to Instability in the South”, um relatório publicado oito dias após o golpe de 12.12, a CIA estimou em 50% a probabilidade de a Coreia do Norte optar por uma ação militar. No entanto, mesmo na opinião da própria agência, a agitação pública generalizada não seria, por si só, suficiente para levar a Coreia do Norte a optar por uma ação militar. Teria que ser acompanhada de lutas internas dentro das forças armadas sul-coreanas.

Em maio de 1980, Chun tinha de fato provado ser “o único cavalo na cidade”. Ele ordenou a captura de vários milhares de dissidentes e reprimiu brutalmente a revolta de Gwangju, depois de ter expulsado a facção rival das forças armadas cinco meses antes.

As manobras paliativas de Washington em 1979-80 contrastaram visivelmente com uma mudança estratégica que começou a ser iniciada a partir de 1987, em resposta ao impasse entre Chun e a população coreana sobre a sua insistência em permanecer no poder. Em um memorando de cinco páginas intitulado “Coreia do Sul: The Time Bomb is Ticking“, o diretor de análise da Ásia Oriental da CIA concluiu que os Estados Unidos teriam de desempenhar um “papel mais assertivo” na Coreia do Sul.

O seu objetivo, de acordo com o memorando, deveria ser mediar um compromisso entre alguns membros do partido no poder de Chun e o partido da oposição sobre uma nova constituição, a fim de evitar que Chun forçasse sua própria versão para perpetuar o seu controle nos bastidores. Caso contrário, alertou o analista, a tentativa de Chun de se agarrar ao poder provocaria provavelmente “violência política sob a forma de um golpe militar ou de revoltas populares lideradas por estudantes e trabalhadores”.

No verão de 1987, meses de protestos em massa resultaram em reformas constitucionais que garantiram eleições presidenciais livres e diretas. Estas concessões foram, de fato, feitas sob a forma de um grande compromisso entre os dois principais partidos, à custa da negligência de uma agenda de esquerda mais ampla relativa aos direitos dos trabalhadores e das minorias sociais.

Desde então, não tem sido difícil notar a assertividade dos Estados Unidos nas grandes conjunturas políticas. No entanto, nem Washington nem a elite governante sul-coreana conseguiram sempre o que queriam. O que distinguiu os dois períodos do final da década de 1970 e do final da década de 1980 foi a emergência de um movimento popular na Coreia do Sul. O ativismo nacionalista e de esquerda entre os estudantes e os trabalhadores tornou-se uma força a ter em conta, não só para os militares mas também para os Estados Unidos.

A democracia em declínio

Nos últimos anos, a democracia sul-coreana perdeu rapidamente a vitalidade pela qual era conhecida e desenvolveu a sua própria versão de hegemonia bipartidária ao estilo dos EUA para dois partidos pró-empresariais. Uma legislatura em disputa não consegue, cada vez mais, chegar a qualquer consenso significativo, enquanto os políticos no poder utilizam frequentemente os poderes de ação penal para desacreditar e eliminar os seus rivais.

O promotoria sul-coreana é uma raridade nas democracias, pois tem poderes de investigação e de ação penal sem restrições. Desde que o país se democratizou em 1987, tem reduzido progressivamente a influência da sua famosa agência de inteligência. Em contrapartida, a influência da promotoria tem-se tornado cada vez mais forte, com um papel em quase todas as organizações governamentais, desde a agência de inteligência até às principais embaixadas.

O diretor de 12.12: O Dia parece ter enquadrado o filme com a intenção de sugerir paralelismos com o atual presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol. No seu papel de procurador-geral em 2019-20, Yoon frustrou com sucesso os esforços do governo liberal de Moon Jae-in para controlar o Ministério Público. Há dois anos, candidatou-se à presidência na lista dos opositores de Moon, o conservador Partido do Poder Popular.

Mesmo para quem não vive na Coreia do Sul, assistir a 12.12: O Dia deve ser uma experiência estimulante e até inspiradora. Estamos vivendo em um mundo marcado pelo declínio da democracia e pela ascensão da extrema-direita. As suas ressonâncias contemporâneas fazem com que 12.12: O Dia seja um filme imperdível.

Colaborador

Kap Seol é um escritor e pesquisador coreano que mora em Nova York. Seus textos são publicados no Labor Notes, In These Times, Business Insider e outras publicações.

Juro de dez anos nos EUA deve ficar em 5% e é má notícia para o Brasil, diz Doutor Apocalipse

Nouriel Roubini recomenda ao país cortar gastos e aprofundar ajuste nas contas públicas

Fernando Canzian

Folha de S.Paulo

O economista Nouriel Roubini, 66, ganhou fama em meados dos anos 2000 ao alertar o mundo, com dois anos de antecedência em discurso no FMI (Fundo Monetário Internacional), para o risco de estouro de uma bolha no mercado imobiliário norte-americano. Isso de fato ocorreu, em 2008, inaugurando um período chamado de Grande Recessão.

Agora, Roubini adverte para o risco de o endividamento das principais economias, sobretudo nos Estados Unidos, levar o mundo a conviver com taxas de juro altas pelos próximos anos. Ele prevê, por exemplo, que a taxa para papéis do Tesouro dos EUA de dez anos suba a 5% ao ano, o que obrigaria emergentes com contas fiscais desajustadas —como o Brasil— a manter juros elevados por mais tempo.

O economista Nouriel Roubini, 66, em Nova York. - Peter Lueders /Divulgação

Em pouco mais de uma década, a dívida pública dos EUA saltou quase 30 pontos percentuais, para 123,3% como proporção do PIB (Produto Interno Bruto). O juro no país serve de referência para muitas economias, que precisam pagar um "prêmio" acima da taxa americana para atrair investidores.

Na semana passada, o banco central da Indonésia anunciou um aumento de juros, tornando-se o primeiro a responder à mudança nas perspectivas para as taxas de juros dos EUA. No Brasil, a previsão do Boletim Focus para a Selic subiu de 9,13% para 9,50% no fim de 2024; e de 8,50% para 9% no de 2025.

"É uma má notícia para países que têm altos níveis de dívida em dólares, mas também em moeda local. Mesmo se você estiver pegando empréstimos em moeda local, taxas de juros mais altas nos EUA implicam que sua taxa de juros deve ser mais elevada. Caso contrário, sua moeda pode se desvalorizar", diz Roubini, que ganhou o apelido de "Doctor Doom" (Doutor Apocalipse) pela previsão da crise de 2008. Ele virá ao Brasil em agosto para conferência na programação do Fronteiras do Pensamento.

No início do ano, havia a expectativa otimista de que a inflação global, sobretudo nos EUA, cairia mais rápido. E que as taxas de juro americanas começassem a ceder no primeiro semestre. Esse cenário se provou equivocado. Qual sua previsão sobre as taxas de juros e as consequências de níveis mais altos, sobretudo nos EUA?

Parece que o crescimento econômico nos EUA neste ano permanecerá acima do potencial, em algum lugar entre 2,5% e 3%. No início de 2024, o Fed disse que provavelmente cortaria os juros três vezes neste ano, começando no meio do ano. Mas, dado que a inflação tem sido mais persistente, acho que eles não começam em junho. Será mais tarde, talvez julho ou setembro, algo a ser analisado com base nos dados.

E, em vez de três cortes neste ano, pode haver apenas dois, talvez até um. Algumas pessoas, eu não estou entre elas, dizem que pode não haver corte. Outras, que no próximo ano podemos até ter que aumentar as taxas. Isso é um pouco distante.

Este é um ponto: taxas mais altas por mais tempo. O outro ponto é que o Fed diz que a taxa de juros terminal [de curto prazo] deve ser eventualmente, após todos os cortes, de 2,5%. Mas muitos economistas, incluindo eu, acreditam que a taxa terminal pode ser de 3,5% ou até mais. As taxas reais de equilíbrio ficarão mais altas.

A inflação [americana] pode não chegar a 2%. Então, não só vão começar mais tarde os cortes e ir mais devagar mas podem acabar em 3,5% em vez de 2,5%. E, na parte longa da curva, é provável que a taxa de equilíbrio [de títulos] do Tesouro dos EUA de dez anos, que é a que importa para o resto do mundo, possa estar mais próxima de 5%. Hoje, já está perto de 4,5%.

Qual será a implicação disso para o mundo e emergentes como o Brasil?

É uma má notícia para países que têm altos níveis de dívida em dólares, mas também em moeda local. Mesmo se você estiver pegando empréstimos em moeda local, taxas de juros mais altas nos EUA implicam que sua taxa de juros deve ser mais elevada. Caso contrário, sua moeda pode se desvalorizar.

Em segundo lugar, taxas de juros mais altas nos EUA podem implicar que o dólar permaneça mais forte. Isso leva ao enfraquecimento das moedas de outros países. A dívida pode se transformar em inflação nesses países. E, terceiro, um dólar mais forte implica um preço ligeiramente mais baixo para as commodities.

As commodities podem estar subindo por causa da geopolítica, é claro, mas, controlando a geopolítica, se o dólar estiver mais forte, o preço das commodities pode cair.

Então, eu diria que as consequências desse cenário seriam ruins para países que têm muita dívida privada e pública em dólares, mas também em moeda local. Para países cuja moeda pode se enfraquecer e causar alguma inflação, e para países que são exportadores de commodities, porque isso suavizaria de alguma forma os preços das commodities. Essas seriam as consequências globais desse cenário.

No Brasil, embora estejamos retornando a inflação para perto da meta após a explosão pós-pandemia, enfrentamos um problema fiscal crônico. O governo está abandonando agora as metas que ele mesmo criou para controlar o aumento da dívida. E exportamos commodities. Como o sr. vê as perspectivas para o país?

O Brasil se saiu razoavelmente bem no ano passado, com crescimento de 3%. Acho que há um consenso de que o [desempenho] deste ano será menor, mais próximo de 2%, como algumas previsões otimistas sugerem. Mas, certamente, eu diria que, se esse cenário de taxas mais altas por mais tempo nos EUA se materializar, será um vento contrário para o Brasil.

O Brasil tem seu próprio conjunto de desafios, mas é claro que não são tão graves quanto outros mercados emergentes que estão muito mais frágeis, incluindo alguns na América do Sul. Claro, a situação da Argentina ainda é desafiadora, mesmo que esteja indo na direção certa.

Outros países têm tido fragilidades econômicas de vários tipos, incluindo países menores, como o Equador. Eu diria que os fundamentos gerais do Brasil não são tão ruins em comparação com alguns mercados emergentes mais frágeis.

Mas, como você apontou, o lado fiscal ainda não está sob controle. O Banco Central se saiu bem ao elevar as taxas cedo para combater a inflação, mas mais pressão sobre a moeda não será algo positivo. Definitivamente, um cenário global mais difícil implica que o Brasil tem que fazer mais ajustes macroeconômicos, especialmente no lado fiscal, para enfrentar ventos contrários.

A dívida global dos governos bateu recorde em 2023, chegando a US$ 88,1 trilhões, e o FMI projeta que poucos países farão superávits para diminuir o endividamento. É esperado que, com isso, os juros fiquem mais altos para atrair financiadores das dívidas. Em 2023, o Brasil gastou US$ 140 bilhões [R$ 718 bilhões] em juros. Nosso principal programa social, o Bolsa Família, consumiu US$ 33 bilhões [R$ 170 bilhões]. Nesse cenário, a desigualdade tende a aumentar, certo?

Se olharmos as taxas de juro globais para países seguros como os EUA, a década antes da Covid foi uma em que as taxas estavam próximas de zero, até negativas, como na Europa e no Japão. E as taxas de juros de longo prazo eram baixas, mais próximas de 1% nos EUA, e de zero ou negativas na Europa e no Japão.

Esse foi o período que as pessoas chamaram de estagnação secular, de crescimento fraco, baixa inflação, alta poupança, baixo investimento e, portanto, com taxas de juro nominais e reais de equilíbrio baixas.

Esse mundo, por muitas razões, acabou. Há uma inflação mais alta, há menos poupança global, talvez mais gastos de capital, e as taxas de endividamento são mais altas. Então, mesmo para países seguros como EUA ou Europa, as taxas nominais e reais de equilíbrio serão mais altas.

E, é claro, se você está em um mercado emergente, suas taxas de juros em dólar têm algum spread em comparação com isso, e sua moeda local depende, novamente, das taxas reais, das condições globais e da sua própria inflação doméstica.

Infelizmente, vivemos em um mundo onde as taxas de juros, independentemente do que outros bancos centrais e o Fed fazem, vão ser mais altas. Portanto, há a necessidade de fazer consolidação fiscal para evitar uma maior ampliação dos spreads, para não pagar juros excessivos sobre sua dívida pública.

E, é claro, fazer ajuste fiscal não é fácil. Não é fácil nos EUA e na Europa. Também não é fácil nos mercados emergentes. Você tem que cortar os gastos do governo. Você pode precisar aumentar impostos de maneiras que não causem tantas distorções. E estamos vendo deslizes nesse ajuste fiscal, não apenas no Brasil, em toda a América Latina, nos EUA, na Europa. Então, é um fenômeno global.

A economia política do ajuste fiscal é difícil de fazer. É claro que os mercados emergentes são mais frágeis, porque os EUA podem se dar ao luxo de pegar emprestado mais e mais barato porque têm a moeda de reserva global. Então, há uma demanda por títulos do Tesouro dos EUA, enquanto economias abertas menores, mesmo a Itália, a Grécia ou o Reino Unido, que são avançadas, podem sentir a pressão do mercado, sem falar, é claro, nos mercados emergentes.

Então, o ajuste fiscal é necessário, mas é difícil. E, se você não fizer, é claro, mais será pago em juros sobre a dívida. Menos estará disponível para programas sociais, incluindo aqueles para pessoas pobres.

O sr. citou o dólar como reserva de valor. Os EUA conseguirão manter esse privilégio por muito tempo, de dominar o mercado global com sua moeda e se financiar a um custo menor?

Há muita conversa sobre algum nível de desdolarização, em parte porque os EUA usam o financiamento em dólares [para seus déficits], mas também porque realizam sanções de comércio em termos de segurança nacional e de políticas internacionais. Certamente, as sanções contra rivais dos EUA, como a Rússia e o Irã, os fizeram se distanciar do dólar.

A China tem um problema, porque tem tantos dólares [em suas reservas] que não é fácil diversificar, especialmente se continuar com superávits nas contas externas. Mas até a China pensa em fazer isso. Mas esse é um processo que vai ocorrer lentamente, não da noite para o dia.

Tecnicamente, talvez gradualmente ao longo do tempo seja possível, mas veremos o que vai acontecer. O ex-secretário do Tesouro dos EUA Larry Summers [1990-2001] disse que não acredita que haverá desdolarização porque não se pode substituir algo por nada. Ele brincou dizendo: a Europa é um museu; a China, uma prisão; o Japão, um asilo; e o bitcoin, por enquanto, um experimento. Então, não está claro qual será a alternativa ao dólar dos EUA.

RAIO-X | NOURIEL ROUBINI, 66

Nascido na Turquia, é economista com doutorado por Harvard, professor da Stern School of Business da Universidade de Nova York e CEO da Roubini Macro Associates, empresa de consultoria macroeconômica global em Nova York. Atuou no Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca e no Departamento do Tesouro dos EUA. É autor de "A Economia das Crises" (2010) e "Mega-Ameaças" (2023).

28 de abril de 2024

Governo tem que aprender a lidar com a extrema direita, pois será um longo inverno, diz Haddad em autocrítica

Ministro afirma que governo precisa calibrar o discurso e que ainda é analógico no combate às fake news; diz que Lula está menos ansioso e que aliança com a centro-direita é fundamental para defender o Brasil

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o governo do presidente Lula (PT) ainda patina na comunicação digital e no combate às fake news.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante entrevista concedida à Folha em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Nesta entrevista concedida em seu gabinete no Ministério da Fazenda, em Brasília, ele afirma que o governo quer uma "saída democrática" para o problema da disseminação de discursos de ódio em redes sociais, ao contrário de países que adotam saídas autoritárias, "proíbe e acabou".

Ao fazer um balanço do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, ele diz ainda que o uso que opositores fazem da religião na política e o enfraquecimento do Estado laico é um elemento novo e desafiador para o petista e seus apoiadores.

Diz, no entanto, que "Lula é um produto da modernidade", e jamais vai colocar a sua fé em cima de um palanque.

Haddad ainda revela que Lula tinha "uma certa mágoa" de amigos que sumiram em "momentos difíceis", mas que tudo isso foi se diluindo nos primeiros meses de governo.

Afirma ainda que vê o petista "mais na vibração de governos anteriores do que estava no começo" da atual administração.

GOVERNOS LULA E BOLSONARO

Lula tem já um ano e quatro meses na Presidência, sob o slogan oficial "União e Reconstrução", o que diz algo sobre o presente, mas não aponta para o futuro. Para onde caminha o governo Lula? Ou sua missão, como disse o ex-presidente do Uruguai José Mujica a Gabriel Boric quando ele foi eleito presidente do Chile, é apenas a de segurar o barranco para ele não despencar? O que é pouco, apesar de exigir um grande esforço? 

O presidente Lula está reconstruindo muita coisa que estava em decomposição. Há um esforço de reorganização do Estado e de políticas públicas que é notável. O Ministério do Meio Ambiente estava liquidado, o da Saúde era negacionista, a Ciência e Tecnologia vivia um descalabro.

Há também as instituições. Eu não quero viver em uma ditadura.

Talvez tudo isso que estamos fazendo não apareça em um primeiro momento. Mas não é pouco.

Não houve propriamente um governo Bolsonaro que nos antecedeu. Ele terceirizou para o Legislativo e não governou.

A reforma da Previdência foi feita à revelia dele. Falavam coisas fantasiosas, que ela geraria uma economia de R$ 1 trilhão. Que mais R$ 1 trilhão seriam arrecadados em privatizações. Que haveria ajuste fiscal no primeiro ano de governo.

E o que aconteceu? Nada. O déficit em 2020 foi de quase R$ 1 trilhão.

Agora, conversávamos muito sobre bobagens. Vacina versus jacaré. Imposto do jetski.

Eu estou discutindo uma reforma tributária depois de 40 anos [de expectativas].

Qual é o termo de comparação? Pelo amor de Deus.

REDES E DESINFORMAÇÃO

O governo tem problema de comunicação, como se repete, ou político e de coordenação? 

Eu concordo com os críticos que dizem que nós ainda estamos muito analógicos nas redes sociais. O combate às fake news é um problema ainda para nós.

Eu às vezes recebo relatório de [publicações em] redes. O grau de desinformação é muito grande.

O Lula não viveu isso nos oito anos de seus governos anteriores. Ele próprio fala: "Nós não temos engajamento? Mas como é que é isso?".

[Explicam ao presidente] "É que isso é patrocinado, tem dinheiro de fora, tem dinheiro daqui, tem dinheiro de lá".

O mundo inteiro está enfrentando esse fenômeno. O ministro de Finanças da França, Buno Le Maire, me disse que a extrema direita lá está crescendo nas redes sociais.

LONGO INVERNO

E o governo está perdido, sem saber como lidar com isso?

Nós queremos uma saída democrática para o problema. Não queremos uma saída autoritária. Tem países que adotam saídas autoritárias. Proíbe [o funcionamento das plataformas] e acabou.

Nós queremos proteger o indivíduo de uma avalanche de desinformação que ofende a sua reputação e contra a qual ele não tem proteção.

Nós temos também que calibrar melhor a nossa comunicação, os nossos discursos. Precisamos aprender a lidar com essa ascensão da extrema direita.

Será um ciclo longo, um inverno longo. A extrema direita não é episódica. Ela pode até durar pouco no curso da História. Mas às custas de muita destruição às vezes.

A Segunda Guerra Mundial é fruto da ascensão da extrema direita. E foram 60 milhões de vidas perdidas.

E qual é a dificuldade para fazer esse enfrentamento?

Quando você tem um partido de centro-esquerda de um lado e um de centro-direita de outro, há paridade de armas.

Com a extrema direita não há paridade. Essa que é a verdade. Não tem proteção. Ela usa ferramentas que não são da nossa cultura.

LULA EM 2024

O senhor convive intensamente com o presidente há 20 anos. Qual é a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024? Ele está menos entusiasmado, com menos paciência de conversar?

No começo deste governo, eu o sentia mais ansioso por entregas. Porque uma coisa é um jovem de 50 e poucos anos que chega pela primeira vez à Presidência. Outra coisa é um senhor que já viveu tudo o que ele viveu.

Não vai ser fácil arrumar tudo o que precisa ser arrumado [no país]. Dá trabalho mesmo, vai levar tempo.
Mas penso que essa ansiedade dele foi refluindo ao longo dos meses. E Lula hoje está mais na vibração dos governos anteriores do que estava no começo.

Outra coisa que eu sentia, e que não vejo mais, é que ele tinha uma certa mágoa, sabe? Dos amigos que sumiram no momento difícil.

Mas isso também foi se diluindo. Ele foi reconectando, voltando a conversar com as pessoas.

Às vezes as pessoas exigem do Lula uma coisa que ninguém está disposto a oferecer por si próprio, entendeu? Uma inumanidade, como se ele fosse... ele é um ser humano. Ele sofreu, passou agruras e enfrentou desafios que pouca gente teria condições de superar.

Pô, o cara é um gigante. Passou o que passou, disputou e ganhou a eleição, naquele aperto, fez a transição.

E a questão de ele não dialogar mais com tanta gente com a mesma frequência? Lula está mais fechado, mais caseiro, também por causa de sua nova fase pessoal, de recém-casado?

Sinceramente, eu acredito que não. E eu acredito piamente que a Janja faz bem para o Lula, quer o bem do Lula, quer participar, como qualquer pessoa no lugar dela gostaria [de participar]. Respeita o trabalho dos ministros. Os dois estão sempre juntos, bem. É um clima bom.

O governo Lula, afinal, é de centro ou de centro-direita, como disse o ex-ministro José Dirceu?

O PT é um partido de centro-esquerda, não tem dúvida. Mas fez em 2022 uma aliança com a direita para ganhar a eleição e governar. Então eu diria que ele está no ponto médio entre essas duas forças.

É uma coalizão para evitar o mal maior. Enquanto a extrema direita estiver com essa força e com esses instrumentos de ataque, essa aliança será uma proteção para o país. Isso ocorre também em Portugal, na Espanha, mundo afora.

O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio

A repolarização em torno de perspectivas mais saudáveis e democráticas exigirá, antes, o refluxo da extrema direita no Brasil e no mundo.

E eu lamento dizer que considero o [ex-presidente Jair] Bolsonaro uma boa tradução do que muita gente pensa no Brasil. Eu lamento porque me choca que isso [organização da extrema direita] tenha se dado em torno dessa figura que tem uma mentalidade muito arcaica, quase medieval.

O fenômeno é mundial, mas aqui tem essa idiossincrasia. Eu lamento. Porque até a extrema direita no mundo come de garfo e faca às vezes.

ESTADO X FÉ

Vocês lançaram um pacote de crédito voltado ao pequeno empreendedor, e Lula tem sido aconselhado a falar mais com o segmento evangélico para recuperar terreno nesse público. Como isso vai acontecer?

O Estado laico está perdendo terreno no mundo inteiro para o uso malicioso da religião no embate político.

A separação clássica e recomendável da teoria democrática, de não se usar a religião em proveito próprio, está se perdendo.

É um elemento que faz diferença.

Foi o Lula que sancionou a Lei da Liberdade Religiosa.

Ele recebe [líderes religiosos], eu recebo.

O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio.

Fé e relação com a espiritualidade são questões de foro pessoal. A partir do momento em que você põe isso num palanque, de forma oportunista, leva as pessoas a um tipo de paixão que não tem aderência à realidade.

Essa família que governou o país [Bolsonaro], pelo amor de Deus, né? Está muito longe de qualquer valor religioso. E, no entanto, usam a torto e a direito esse tipo de coisa.

Esperar que o Lula também faça isso? Ele não vai fazer.

O Lula é um produto da modernidade. Estamos falando de um combate a forças obscurantistas, e o Lula não vai entrar nessa.

A resistência palestina não é um monólito

Uma vez que os palestinianos contam com o genocídio que lhes está sendo infligido e com as suas perspetivas de libertação nacional, presta-lhes um desserviço nivelar a sua diversidade política e os complexos debates em curso.

Bashir Abu Manneh


Palestinos manifestam-se na aldeia de Khan al-Ahmar, na Cisjordânia ocupada, em 23 de janeiro de 2023. (Hazem Bader/AFP via Getty Images)

Desde 7 de Outubro, qualquer avaliação crítica da operação militar do Hamas - o seu método, racionalidade e objetivos, ou o seu papel no fim da ocupação israelense - tem sido difícil de expressar dentro da esquerda. Isto acontece não só porque uma potência ocupante é, em última análise, responsável pelo status quo destrutivo, mas também porque criticar as táticas de um grupo que atua em nome dos oprimidos é visto como um enfraquecimento da sua causa legítima.

Esta situação é agravada por numerosos intelectuais de esquerda que manifestaram apoio incondicional - se não celebração - ao ataque do Hamas. Uma publicação recente no blog Verso Books coloca um movimento religioso socialmente regressivo como o Hamas na tradição emancipatória universal da esquerda, afirmando que "os parapentes que voaram para Israel em 7 de Outubro continuam a associação revolucionária de libertação e fuga".

Andreas Malm sugeriu que a operação Al-Aqsa Flood conseguiu mais do que a Primeira Intifada porque os palestinos conseguiram substituir pedras por armas militares - ignorando que a Intifada foi o maior movimento de massas auto-organizado anticolonial na história palestina, e que obrigou Israel a fazer concessões políticas sem precedentes. Na verdade, argumentar que o Hamas conseguiu obter mais é ignorar totalmente que o seu ataque militar desencadeou um enorme genocídio contra o povo palestino.

Como argumentou Rashid Khalidi: "Olhando para trás, para os últimos seis meses - para o cruel massacre de civis em uma escala sem precedentes, para os milhões de pessoas que ficaram desalojadas, para a fome em massa e para as doenças induzidas por Israel - é claro que isto marca um novo abismo em que a luta pela Palestina afundou." Tom Segev concorda: "Para os palestinianos, a guerra em Gaza é o pior acontecimento que viveram em 75 anos. Nunca tantas pessoas foram mortas e desenraizadas desde a nakba, a catástrofe que se abateu sobre elas durante a guerra de independência de Israel em 1948, quando centenas de milhares de palestinos foram forçados a abandonar as suas casas e a tornarem-se refugiados."

Além de vozes individuais, a celebração acrítica do Hamas também foi testemunhada em partes das mobilizações de solidariedade que de outra forma seriam inspiradoras nos últimos dias. “Nós dizemos justiça, você diz como? Queime Tel Aviv até o chão”, pode-se ouvir alguns cantando em um vídeo.

Tais slogans, por mais raros que sejam, minam a causa palestina. Apoiar a Palestina significa pôr fim a uma ocupação ilegal e responsabilizar Israel pela violação do direito internacional. Não se trata de apoiar o assassinato de civis israelenses ou a destruição de cidades israelenses. Defender o direito internacional significa defendê-lo para todos.

Este tipo de retórica reduz toda uma série de posições políticas na Palestina àquilo que um grupo militante diz e faz. Também assume que o Hamas fala e age em nome de todo o povo palestino o tempo todo — simplesmente porque ganhou uma eleição (com 45 por cento dos votos) nos Territórios Palestinos Ocupados em 2006 (principalmente como um voto de protesto contra a corrupção da Autoridade Palestiniana e a sua rendição em Oslo).

A única vitória eleitoral do Hamas não é, portanto, um cheque em branco para a eternidade. Isto é especialmente verdade porque, ao governar Gaza, o Hamas esqueceu-se da democracia, empregou o autoritarismo e a corrupção e reprimiu a organização política e a dissidência. Falar abertamente o que pensa ou expressar as suas opiniões políticas revelou-se dispendioso para muitos palestinos em Gaza. Mas o seu silêncio não é um apoio ao Hamas.

Dois artigos recentes na grande imprensa transmitem o quão importante é ouvir as vozes palestinas em Gaza, enquanto estas estão sendo submetidas às condições extremas de genocídio, fome e inanição instituídas pelo exército de ocupação israelense.

O Financial Times publicou recentemente uma reportagem sobre a opinião pública em Gaza - uma leitura preocupante. Embora os palestinos em Gaza culpem claramente Israel pela execução de uma catástrofe humana em Gaza, há uma raiva e um ressentimento crescentes dirigidos ao Hamas por não ter esperado a escala da retaliação de Israel pelos ataques de 7 de Outubro e por não ter protegido os palestinos durante a guerra.

Um entrevistado, Nassim, diz abertamente que o Hamas “deveria ter previsto a resposta de Israel e pensado no que aconteceria aos 2,3 milhões de habitantes de Gaza que não têm nenhum lugar seguro para ir” e “deveria ter-se restringido a alvos militares”.

Outra entrevistada, Samia, é ainda mais contundente. “O papel da resistência é proteger-nos, civis, e não sacrificar-nos”, disse ela. “Não quero morrer e não queria que os meus filhos testemunhassem o que viram e vivessem em uma tenda sofrendo de fome, frio e pobreza.”

Estas críticas coincidem com o que muitos palestinos de Gaza têm publicado nas redes sociais nos últimos meses. Também foi representado nas reportagens críticas da veterana jornalista anti-ocupação Amira Hass.

Em um artigo recente no Haaretz, Hass capta o descontentamento popular e as críticas à operação do Hamas, bem como o que é visto como o modo extremamente dispendioso de resistência armada do Hamas contra um exército israelense muito superior. Os palestinos em Gaza queixam-se abertamente da sua falta de segurança e proteção contra a esperada represália de Israel e da falta de “planejamento político estratégico claro” do Hamas.

O que mais preocupa um entrevistado, Basileia, é que as suas críticas ao Hamas e à sua abordagem à resistência estão sendo consideradas traição. Como explica Hass: “Ele está zangado porque os palestinos fora de Gaza e os seus apoiadores esperam que os habitantes de Gaza se calem e não critiquem o Hamas, porque as críticas aparentemente ajudam o inimigo. Ele rejeita a suposição de que duvidar das decisões e ações deste grupo armado - e fazê-lo publicamente - é um ato de traição.”

Estas vozes críticas são consistentes com as mais recentes sondagens de opinião realizadas nos Territórios Ocupados. Embora as eleições em tempos de guerra estejam sujeitas a desafios e flutuações extremos, especialmente em Gaza, onde o medo político e o silenciamento são fatores importantes a serem considerados na avaliação da exatidão das respostas, podem ser identificadas algumas tendências consistentes.

As sondagens mostram que o índice de aprovação do Hamas em Gaza nos últimos meses diminuiu de fato 11 pontos - para um terço. Houve também uma queda geral no apoio à luta armada. Em resposta à pergunta: “Na sua opinião, qual é o melhor meio de alcançar os objetivos palestinos para acabar com a ocupação e construir um Estado independente?” há um declínio no apoio à luta armada tanto na Cisjordânia como em Gaza, de 63 por cento em dezembro para 46 por cento em março. Só em Gaza, caiu de 56% para 39%. O próprio Hamas também acaba de reiterar a sua vontade de depor as armas e de aceitar um cessar-fogo de longo prazo com Israel em troca de um Estado ao longo das fronteiras de 1967.

Também em Gaza houve um aumento dramático no apoio à solução de dois Estados: de 35 por cento em Dezembro para 62 por cento em Março. Isto continua a ser verdade, apesar de a maioria dos palestinianos na Cisjordânia e em Gaza também reconhecerem os impedimentos práticos a tal solução, nomeadamente o projeto de expansão dos colonatos de Israel. O que isto indica, no entanto, é que os palestinianos em Gaza esperam que a atenção internacional e a pressão política externa sobre Israel possam produzir resultados.

O apoio à solução de um Estado entre os palestinos ocupados diminuiu para 24 por cento durante a guerra em Gaza. A maioria dos palestinos ocupados querem se separar de Israel e viver no seu próprio Estado, e querem se livrar dos colonatos ilegais na Cisjordânia. O projeto colonial viola os direitos palestinos ao abrigo do direito internacional, especialmente o direito à autodeterminação.

Além disso, os israelenses desumanizaram a sociedade palestina aos níveis mais extremos durante esta guerra. Seguindo as sugestões da sua elite agressiva e dos meios de comunicação belicistas (saturados de ex-militares e especialistas em segurança), os israelenses apoiaram esmagadoramente a dizimação de Gaza. O que mais preocupa os israelenses são os reféns, não a guerra. As vidas dos reféns israelenses são importantes, enquanto os palestinos são, nas palavras do Ministro da Defesa de Israel, “animais humanos”.

Motivado por vingança e retribuição, Israel é uma sociedade narcisista que chafurda em sua própria injúria e usa essa injúria como desculpa para seus crimes monumentais contra o povo palestino. Os palestinos acham Israel cruel, insensível e horripilante, e seu primeiro pensamento é "proteja-me de Israel". É esta a sociedade israelita com a qual se deve esperar que os palestinianos vivam com dignidade e com direitos iguais?

Qualquer que seja o futuro, os palestinos precisam ser capazes de superar a sua situação devastadora de forma coletiva, democrática e sem medo. Insistir nisso é reforçar o seu direito à autodeterminação.

Colaborador

Bashir Abu-Manneh é diretor da Escola de Inglês da Universidade de Kent e editor colaborador da Jacobin.

27 de abril de 2024

Maior rejeição a vetos presidenciais reflete novo jogo entre Poderes

Mudanças institucionais na última década fortaleceram Legislativo e enfraqueceram Executivo

Lucio Rennó
Professor do Instituto de Ciência Política da UnB, doutor em ciência política pela Universidade de Pittsburgh (EUA)

Isaac Jordão Sassi
Cientista político e consultor

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Pesquisa inédita mostra que Congresso tem derrubado os vetos presidenciais com mais frequência na última década, um dos reflexos de mudanças institucionais que alteraram profundamente as relações entre os Poderes no Brasil, com maior protagonismo do Legislativo e encolhimento do Executivo.

*

As relações entre o Executivo e o Legislativo no Brasil são hoje completamente distintas do que já foram. Um conjunto de instrumentos de poder usado pelo Executivo na gestão de sua base de apoio no Congresso foi alterado profundamente. Assim, a relação entre os Poderes acabou afetada, em prejuízo do presidente da República e benefício do Congresso Nacional.

O Legislativo é hoje mais poderoso do que era e tem mais controle sobre sua própria agenda do que já teve em qualquer outro momento do atual período democrático, pós-Constituição de 1988. No passado, era possível falar em um Poder Executivo que "tratorava" o Congresso, tangenciando o Legislativo.

Sessão de reabertura do ano legislativo, no plenário da Câmara dos Deputados, em fevereiro deste ano - Pedro Ladeira/Folhapress

A preponderância legislativa do Executivo se dava pela força excepcional das medidas provisórias, pela extensa discricionariedade no contingenciamento orçamentário e pela alocação de ministérios. Como reduziram-se os poderes do presidente, resultado de mudanças feitas pelo Congresso, tudo mudou.

Não há proposição legislativa de origem do Executivo, incluindo medidas provisórias, que saia do Congresso incólume. Enquanto as proposições de autoria do Legislativo transformadas em lei crescem enormemente, as originadas no Executivo encolhem.

O emendamento das proposições legislativas por parlamentares é extenso. Apenas temas de interesse dos congressistas, com baixo controle do Executivo, são aprovados. O conteúdo final das propostas já não está mais no controle do Executivo. Sabe-se como entram na pauta do Congresso, mas não como saem.

Nesse contexto, o Executivo atua muito mais como um "gatekeeper", alguém que evita que certos temas sejam tratados, do que um "agenda setter", alguém que propõem os temas. A imprevisibilidade do processo decisório na Câmara aumentou significativamente, como decorrência do encolhimento do poder do presidente.

As principais mudanças dizem respeito às medidas provisórias e emendas orçamentárias, com implicações constitucionais. Medidas provisórias não mais tramitam à margem do Congresso. O ônus de aprová-las é do Executivo, algo alterado de maneira profunda por sucessivas reformas que tiveram início com a emenda constitucional 32 de 2001.

Da mesma maneira, as regras sobre as emendas orçamentárias individuais e coletivas no Congresso mudaram, reduzindo a discricionariedade do Executivo. Estabeleceu-se o orçamento impositivo e se ampliou enormemente o valor das emendas. Hoje, o Congresso é tão dono do orçamento quanto o Executivo. É uma guarda compartilhada, por assim dizer.

Tudo isso ao lado de um inchaço do quadro partidário. A criação de novos partidos políticos foi a alternativa à imposição da fidelidade partidária em 2007. De 2002 em diante, coincidindo com os governos petistas, o número efetivo de partidos —um conceito que considera o tamanho deles na Câmara— saltou de 8 para 13 em 2015. Esse crescimento ocorreu no campo do centrão. Seria uma estratégia de pulverização da oposição?

O pico foi em 2019, com um número efetivo de 16 siglas na Câmara dos Deputados. Se foi algo orquestrado, o resultado foi perverso e não antecipado: prejudicou-se a governabilidade e aumentaram os riscos de atrito com a base, uma vez que cresceu o número de atores no jogo.

Verdade seja dita, a cláusula de desempenho, aprovada em 2017, vem enxugando o sistema, mas ainda somos campeões mundiais em número de partidos políticos, com 12 siglas efetivas de porte médio, portanto bastante influentes, habitando a Câmara.

Apesar disso, alguns defendem que nada mudou. Se embasam em um dado equivocado para chegar a essa conclusão espúria: o padrão de votação dos partidos em votações nominais. Ora, as proposições que alcançam o plenário, para serem votadas, foram amplamente debatidas e devidamente ajustadas aos interesses do Congresso.

Portanto, esse dado diz apenas que, nas leis em que se consegue construir uma congruência de preferências, todos votam igual. Isso diz pouco, contudo, sobre a intensidade do conflito entre Legislativo e Executivo —e muito menos sobre a previsibilidade geral do sistema.

Outras medidas do conflito legislativo são muito mais instrutivas. É necessário observar como o processo tramitou, sua duração, como propostas foram alteradas, seu emendamento, o que se negociou, do que se abriu mão. Precisamos entender quem domina a agenda legislativa hoje. Para isso, precisamos olhar em outra direção, para além de como parlamentares votam.

Um desses ângulos é a política de vetos presidenciais, algo que passou a ser relevante dentro do profundo processo de mudança institucional que o Brasil atravessou nos últimos 10 a 15 anos.

Os vetos do Executivo aos projetos de lei são parte do processo legislativo brasileiro desde a primeira constituição da República, em 1891, que já previa que o presidente poderia julgar um projeto como inconstitucional ou contrário aos interesses nacionais.

Poucas alterações relevantes ocorreram desde então. Uma delas deu-se durante a vigência de emenda constitucional de 1969, que estipulava que o veto seria mantido caso o Congresso não deliberasse. A Constituição de 1988, por sua vez, determina que os vetos teriam prazo para apreciação, trancando a pauta para as demais deliberações. Ambas beneficiavam o Executivo.

Não obstante, os vetos sempre mantiveram o mesmo procedimento básico de apreciação: o Congresso avalia e, caso se oponha, eles são derrubados, e o projeto torna-se lei. Acontece que a pauta dos vetos atrapalhava a apreciação das leis orçamentárias, o outro caso de peça analisada pelo Congresso Nacional de forma conjunta. Portanto, os vetos normalmente eram deixados de lado na apreciação legislativa.

Isso mudou com a lei que redistribuiu os royalties de petróleo, em 2013. O governo, à época, vetou diversos trechos da lei, e o Congresso reagiu pautando o veto. O problema é que havia um acumulado de mais de 3.000 vetos não apreciados. A situação chegou ao Supremo, que entendeu que o simples reconhecimento da inconstitucionalidade seria grave.

A solução, portanto, veio de dentro do Congresso. Em 2013, foi publicada uma resolução alterando a tramitação dos vetos a partir de 1º de julho daquele ano. A nova norma estabeleceu prazos claros de 30 dias e um calendário de votação dos vetos, que devem ser analisados às terceiras terças-feiras de cada mês, sob pena de impedir a tramitação do orçamento.

Isso criou um incentivo coletivo para que Executivo e Legislativo fizessem a apreciação dos vetos, sob o risco de paralisia da máquina pública. Desde então, todos foram apreciados, com algumas poucas exceções, que ainda estão sob discussão no Congresso.

Quais são os resultados práticos dessa mudança? Em levantamento inédito, compilamos todos os vetos presidenciais de 2003 a 2024. Primeiro, cabe destacar que antes de 2013 apenas três vetos foram votados no Congresso. O Legislativo abria mão de se manifestar, e o Executivo contava com mais um instrumento para tangenciá-lo, como ocorria com as medidas provisórias reeditáveis antes de 2001.

Fica claro que o veto era amplamente usado antes, e continuou sendo, embora com significativa resistência do Congresso a partir do momento em que reconquistou seu direito de se manifestar.

De 2003 a 2024, foram 1.060 proposições legislativas vetadas. De 2003 a 2013, 504 proposições foram vetadas, e 556 de 2014 em diante, após a reforma. Houve um leve aumento depois da mudança institucional, para períodos temporais semelhantes.

Quando olhamos por gestão, 25% dos vetos foram promovidos por Jair Bolsonaro (PL). Nada mais, nada menos do que 259 vetos após 2013 ocorreram em seu governo: quase a metade do total no período. Portanto, a abundância de vetos após a mudança institucional de 2013 tem um carimbo bolsonarista.

As maiores dificuldades de Bolsonaro estão relacionadas, claramente, ao fato de ser o presidente com a menor coalizão em número de cadeiras na Câmara, chegando a ínfimos 10,5%, como apontam Fabiano Santos e Joyce Luz. Collor se destaca em segundo lugar, com um distante 33,7%, e Lula, em seu terceiro mandato, tem a terceira menor bancada, com 51,1%. A relação bélica estabelecida entre Bolsonaro e Congresso, principalmente nos dois primeiros anos de governo, certamente ajuda a entender a explosão de vetos e de vetos derrubados em sua gestão.

Lula, em seus dois primeiros mandatos, fez 14% e 20% dos vetos. Dilma, em seu primeiro mandato, é responsável por 17%. Temer, em seus dois anos no poder, por 12%, e Dilma, nos dois anos de seu segundo mandato, responde por 7%.

Se somarmos os dois momentos do que seria o segundo mandato presidencial de Dilma, temos 19%. Os vetos se dividem de maneira bastante semelhante por cada mandato presidencial de quatro anos, com um aumento nos anos bolsonaristas.

Das proposições vetadas, 45% são de autoria do próprio Executivo. Deputadas e deputados são autores de 32% das proposições vetadas; senadores e senadoras, de 19%, e as comissões mistas da Câmara e Senado originam 3%. Ou seja, 54% das proposições vetadas têm origem no Congresso. Aproximadamente 1% é originada em órgãos de controle ou do Judiciário.

Percebemos, portanto, que o presidente veta em proporção semelhante suas proposições e as do Congresso. Antes e depois da reforma de 2013, o Executivo originou um número semelhante de proposições legislativas vetadas (46% e 43%).

Esse é um resultado inesperado. Por que o Executivo veta tantas proposições de sua própria iniciativa, mesmo quando o Congresso não se manifestava sobre elas? Há algum jogo escondido nesse processo.

Em primeiro lugar, é interessante reparar que, das propostas do Executivo, 2% recebem um veto total, frente a 40% das originadas no Legislativo. O presidente veta as propostas legislativas oriundas do Executivo apenas parcialmente, enfocando alguns de seus dispositivos.

Em média, o presidente veta 23 dispositivos em proposições próprias e 9 nas de origem no Congresso. Muito provavelmente, o Executivo veta, nas proposições legislativas de sua origem, os dispositivos que tenham sido inseridos pelo Congresso, que alteraram a proposta original.

Infelizmente, os dados disponíveis não têm esse grau de detalhamento. Contudo, cabe destacar que Michel Temer teve um índice de vetos parciais superior aos demais, na casa dos 90%, enquanto que para os demais presidentes esse valor oscila entre 70% e 75%. Temer vetou parcialmente com mais frequência.

No período anterior a 2013, os vetos prevaleciam. O Congresso abdicou de sua atribuição, prevista pela Constituição, de votá-los. Era bem mais cômodo para o Executivo.

Depois de 2013, há que se negociar com o Congresso, pois este tem a palavra final e pode rejeitar o veto presidencial. O poder do Legislativo é maior. Criou-se um momento adicional de negociação. Contudo, cabe ainda investigar quando a política de vetos atende aos interesses dos dois Poderes.

De todos os 531 vetos nos quais o Legislativo se manifestou desde 2014, 71% foram mantidos, 12% foram derrubados parcialmente, e 17% rejeitados totalmente. No primeiro governo de Dilma, todos os vetos foram mantidos. Esse número vem caindo gradativamente e consistentemente em cada mandato subsequente.

Na gestão Bolsonaro, 56% dos vetos foram mantidos e 27% rejeitados. Na gestão atual de Lula, 47% foram mantidos e 27% rejeitados. Ou seja, claramente o jogo da manutenção de vetos do presidente tem endurecido.

O Congresso rejeita os vetos com muito mais frequência. A situação é menos confortável para o presidente. De qualquer forma, apesar da clara piora da situação após a gestão Temer, mas acentuada em Bolsonaro e na atual administração de Lula, o governo liderado pelo presidente da República ainda consegue fazer com que seus vetos prevaleçam.

É possível que a crescente polarização tenha se refletido na maior dificuldade do governo em lidar com o Congresso, resultando em mais vetos revertidos e maior imposição da vontade do Poder Legislativo no período mais recente.

Contudo, é impossível e até mesmo leviano descartar o efeito das significativas e sucessivas mudanças institucionais que enfraqueceram o Executivo e fortaleceram o Legislativo. O jogo mudou.

Congresso também precisa ter responsabilidade fiscal, diz Haddad

Ministro afirma que governo recorreu ao STF contra desoneração da folha de pagamentos porque Legislativo deve ter as mesmas obrigações que o Executivo, ou equilíbrio fiscal nunca será alcançado

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o esforço para que o país equilibre suas contas não chegará a uma vitória "por nocaute". "Cada seis meses é um round. Vai ser sempre por pontos", afirmou o petista em entrevista à Folha, em seu gabinete, na quinta-feira (25).

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante entrevista à Folha em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Questionado sobre a alteração das metas fiscais estabelecidas para 2024 e 2025, ele afirma que o "Executivo não consegue impor sua agenda ao Legislativo", e elenca propostas de ajustes que foram "desidratadas" pelo Congresso Nacional.

Entre elas está a que prevê a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de empresas e prefeituras.

A medida foi questionada pelo governo no Supremo Tribunal Federal (STF). Cinco magistrados já votaram para que ela seja suspensa por não indicar o "impacto financeiro" sobre as contas públicas. Luiz Fux pediu vista.

O ministro justifica a iniciativa afirmando que o Legislativo, que tem hoje a mesma prerrogativa do Executivo de criar despesas, deve também indicar as receitas para fazer frente a elas.

"Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República", afirma.

Questionado se o descumprimento não leva ao descrédito da meta fiscal, ele afirma que o mais importante é o compromisso do governo de persegui-la. E admite cortes de despesas se não houver alternativas.

"Ninguém teve a coragem de fazer o que estamos fazendo", afirma. "Nós estamos avançando."

META FISCAL

Que livro o senhor está lendo? Ou melhor, que livro o senhor estava lendo?

[Risos] Eu estou lendo as obras do historiador alemão Reinhart Koselleck. Terminei o segundo dos quatro livros que comprei dele, "Estratos do Tempo".

O senhor vai seguir lendo, mesmo depois das declarações do presidente Lula (PT) nesta semana de que, ao invés disso, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara?

O presidente fez uma brincadeira de super bom gosto, descontraída, que não merecia essa discussão toda.

Bem, sobre economia: a revelação de que a meta fiscal estabelecida pelo governo para 2025 será alterada gerou ruído e descrédito. Por que, afinal, devemos acreditar que as metas são para valer, e não que serão alteradas dezenas de vezes?

Não é a primeira vez que isso acontece. No governo [de Michel] Temer, por exemplo, também houve mudança de meta fiscal, sem maior questionamento.

Agora, uma coisa é você deixar de ter uma meta exigente, que indique uma trajetória consistente para a [redução da] dívida pública. Isso seria um problema. Outra coisa é você reconhecer que as condições políticas retardaram o cumprimento, mas seguir estabelecendo uma meta fiscal exigente para os anos seguintes. Não deixá-la frouxa. Foi o que nós fizemos.

A meta definida em março do ano passado, de zerar [o déficit] neste ano [de 2024], sofreu alguns reveses —políticos, e naturais em uma democracia.

O Executivo não consegue impor a sua agenda ao Legislativo.

Quais foram os principais reveses, na sua opinião?

Todos os projetos e medidas corretivas que propusemos foram negociados e desidratados [no Congresso], à luz das considerações que os parlamentares legitimam ente podem fazer.

Agora mesmo eu tive que renegociar o Perse [Programa Emergencial para Setores de Eventos, criado em 2021 e que prevê isenções tributárias para empresas paralisadas na epidemia da Covid-19].

No meu entendimento, ele tinha que acabar. Mas tive que postergar, diluindo seus efeitos no tempo.

A desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia é outro caso.

Há mais de dez anos eles são beneficiados, com um total de mais de R$ 150 bilhões, sem nenhuma vantagem para o país. Isso é demonstrado por diversos estudos acadêmicos.

A desoneração da folha de pagamento dos municípios [de até 156,2 mil habitantes] nem estava na pauta.

No entanto, uma emenda de última hora [apresentada por parlamentares], que representa R$ 10 bilhões em custos tributários, foi aprovada. E tivemos que recorrer ao Poder Judiciário [STF] para reverter [o ministro Cristiano Zanin deu liminar a favor do governo em ação que sustenta que o Congresso não pode prorrogar a desoneração das folhas de pagamento sem demonstrar o seu impacto financeiro. Quatro magistrados já seguiram o seu voto].

É importante, então, esclarecer: uma coisa é a meta, onde se quer chegar.

Outra coisa é o resultado que você consegue, politicamente, atingir, respeitando os poderes.

E a terceira coisa importante é saber se o governo está ou não comprometido com a trajetória [das contas públicas]. O nosso compromisso é o de botar ordem em dez anos de déficits públicos que acumulam quase R$ 2 trilhões.

RESPONSABILIDADE

Um líder do PT me disse que a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024 é que antes ele era rico, e agora ele é pobre. Ou seja, perdeu poder sobre o Orçamento, que hoje tem que dividir com o Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) afirma que a briga para ver quem manda nos recursos será permanente.

Há não muito tempo atrás, criar despesas e renunciar a receitas eram atos exclusivos do poder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal disse que o Parlamento também tem o direito de fazer o mesmo.

Mas qual é o desequilíbrio? É que o Executivo tem que respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. E o Parlamento, não.

É por isso que nós recorremos agora ao STF [na ação que discutia a desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia e para prefeituras].

É preciso dizer que o Congresso também tem que respeitar a mesma lei. E que atos que não a respeitem precisam ser suspensos.

Se o Parlamento tem as mesmas prerrogativas do Executivo, ele deve ter também as mesmas obrigações.

Nós temos o Orçamento fechado, com meta estabelecida, tudo bonitinho.

Aí vamos [referindo-se ao Congresso] dar benefício pa ra prefeituras, para governos, para entidades assistenciais, para taxista. Tudo bem. Mas de onde vêm as receitas?

Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República, e chama o vice.

Ninguém quer retirar a prerrogativa de ninguém. Mas não pode um Poder [o Executivo] ficar submetido a regras rígidas, e o outro [o Parlamento], não.

Se a exigência de equilíbrio fiscal valer só para o Executivo, ele não será alcançado nunca.

Como é a sua relação com o presidente da Câmara, Arthur Lira? Ele conversou com o presidente Lula recentemente. O clima melhorou entre os Poderes?

A conversa foi boa. O Lula é bom conversador. Toda vez que eles dialogam, o clima melhora.

Ainda sobre os desafios de se cumprir a meta fiscal, ouvi no próprio governo que o senhor tem o mesmo comportamento do filho que promete à mãe que vai tirar dez na prova. Volta com boa, mas menor, e fica parecendo um fracassado. Estabelecer uma meta ambiciosa que, sabe-se, não será cumprida, não gera o efeito inverso, de perda de credibilidade?

Ao contrário. Eu tenho certeza absoluta de que, se a meta não for exigente, as medidas [de aumento de arrecadação e contenção de gastos] não passam no Congresso. Se eu baixar a guarda e disser que a meta é de 1% de déficit, ele vai para 2%.

É difícil. Mas a meta é factível.

O mercado não acredita nela e prevê déficit de 0,7% para este ano e 0,6% para 2025.

As projeções são diferentes. O mercado coloca na conta os eventuais reveses que o governo vai ter.

E por que o próprio governo não coloca?

Porque eu não posso reconhecer que um projeto não vai ser aprovado antes de lutar por ele.

Vou te dar um exemplo. A revisão da vida toda [recálculo do valor da aposentadoria considerando todas as contribuições feitas pelo trabalhador, com impacto de R$ 400 bilhões] foi revertida no Supremo [Tribunal Federal, que antes a aprovara].

Se tivéssemos perdido, a meta de 2025 não poderia ser zero, porque o impacto seria de no mínimo 0,5% do PIB. Nós estamos agindo junto ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo para que a disciplina das contas públicas volte à ordem do dia.

Desde 2015 estamos com mais de 19% do PIB de despesa primária e, em média, 17,5% do PIB de receita primária. É estruturalmente inviável.

Se não compreendermos que temos que reverter esse quadro e voltar ao patamar [de receita] de 18,7% do PIB, como era em 2011, 2013, não haverá ajuste.

E é absolutamente possível voltarmos a esse patamar só combatendo os gastos tributários [perda de arrecadação provocada por benefícios e isenções] criados neste período, como o da desoneração da folha.

O gasto tributário no Brasil, que já foi de 2%, chegou a 6%. Ou seja, os lobbies atuaram firmemente para diminuir a base fiscal em proveito próprio, não em proveito do Brasil.

Estamos eliminando gastos tributários absolutamente ineficazes. Já conseguimos fazer muita coisa. A arrecadação, neste ano, está aumentando 8,5% acima da inflação.

Mas há receitas extraordinárias neste ano que não vão se repetir, como a taxação dos estoques dos depósitos em fundos offshore. A margem da Fazenda é cada vez menor.

Não são receitas extraordinárias. A maioria delas é receita consistente.

Você pensa que foi fácil reverter politicamente a decisão populista do [Jair] Bolsonaro [PL] de tirar imposto dos combustíveis para fazer demagogia [baixando o preço da gasolina e do diesel] em período eleitoral?

Essa é uma receita permanente.

Não foi fácil convencer o nosso governo, convencer um presidente [Lula] que acabou de tomar posse, de que era o certo a fazer. Eu falei para ele: "O dólar vai cair, vai compensar a volta dos impostos, a gasolina vai baixar". Foi o que aconteceu.

Como o senhor mesmo admite, não é fácil.

É por isso que nós fomos ao Legislativo e estamos indo agora ao Judiciário.

Ninguém teve coragem de fazer o que nós estamos fazendo. Muitos ministros respeitáveis passaram por aqui e não enfrentaram esse debate. Não estou criticando ninguém. Tudo é difícil.

O negócio é não desistir de buscar o certo. Nenhum economista critica o mérito do que estamos fazendo.

PAUTAS-BOMBA

O limite de 2,5% de crescimento da despesa estabelecido no arcabouço fiscal é outro número colocado em dúvida. Há pressão de gastos estruturais como o da Previdência, atrelado à política do governo de reajustes do salário mínimo acima da inflação. Há aumento de despesas com emendas parlamentares, há pautas-bomba como a volta do quinquênio para juízes, promotores e outras categorias.

Estou trabalhando. Tive uma reunião com 15 senadores anteontem para segurar a PEC do quinquênio, que considero um retrocesso. Estamos agindo para evitar que esse tipo de coisa aconteça. Mas aqui é apenas um ministério. O país precisa se entender.

Há duas alternativas caso não se consiga evitar o aumento exponencial de despesas: ou altera o teto de 2,5% do arcabouço fiscal, ou o governo corta gastos. Me parece que o presidente Lula não está disposto a usar a tesoura. Qual será a escolha?

Cada dia com a sua agonia. Nós estamos avançando.

Agora, não adianta imaginar que vamos voltar aos bons tempos de crescimento de 3,5%, 4,5%, cometendo os mesmos erros que nos trouxeram para 1,5%.

Estamos fazendo as coisas corretas. Aceitei ser ministro da Fazenda para implementar o ajuste sobre quem não paga imposto. E sem penalizar os mais pobres.

Porque todo ajuste neste país é feito no lombo do trabalhador.

Congela o salário mínimo por sete anos, congela tabela do imposto de renda. Uma pessoa que ganha R$ 1.500 estava pagando imposto, e o sujeito [que tem dinheiro] no fundo exclusivo dos super-ricos não pagava nada? Desonera os fundos, desonera as empresas que não pagam impostos, os lobbies, cria paraísos fiscais dentro do país, acaba com voto de qualidade do Carf para beneficiar empresas lobistas que não pagam impostos? São coisas inaceitáveis para mim. Prefiro não participar de um trato como esse.

CORTES DE DESPESAS

Quando o senhor não diz claramente que o teto de despesas de 2,5% do arcabouço é sagrado, podemos concluir que cortes de despesas estão descartados e que, no fim, esse percentual será, sim, alterado.

Eu nunca tratei do marco fiscal desde que ele foi aprovado. Para mim, aquilo ali [os 2,5% de limite de crescimento de despesas] é o que tem que ser.

Podemos concluir então que pode haver cortes de despesas.

Veja bem: amanhã tem outra eleição, outro presidente, as condições econômicas melhoraram, conseguimos arrumar as contas? Então esses parâmetros podem ser revistos. Eu sempre disse isso.

Mas, hoje, acredito que eles devem ser mantidos, até que consigamos demonstrar que estamos em uma trajetória consistente [de ajuste fiscal e redução da dívida pública].

O senhor preferiria então, se necessário, defender cortes a alterar esses 2,5%?

Se necessário, sim.

Mas há muita resistência, inclusive do presidente Lula.

E eu entendo. Depois de sete anos de baixo investimento, de servidor e aposentado pagando a conta, de calote nos precatórios, de bombas-relógio sendo construídas, de o sujeito iludindo a população de que as contas estavam sendo colocadas em ordem, é natural que haja resistência.

Por outro lado, se cortes forem necessários, o senhor não vai acabar botando a conta em cima dos mais fracos novamente? Qual é a saída?

Não. Tem várias formas de cortar [despesas]. Supersalários, por exemplo, tem que cortar. O Proagro [programa voltado para agricultores] gastava R$ 1 bilhão e passou para R$ 10 bilhões. Tem alguma coisa errada.

A Fazenda está cuidando dos gastos tributários. O [ministério do] Planejamento está cuidando dos gastos primários.

Todos os gastos, na minha opinião, têm que ser revistos. Os tributários, que saíram de 2% e foram para 6% do PIB, e os primários, que desde 2015 superaram 19% [do PIB].

Agora, falamos sempre dos problemas, e é justo.

Mas tem muita coisa importante acontecendo. O crédito e a renda voltaram a subir, o desemprego caiu, a confiança do mundo no Brasil melhorou muitíssimo, aumentamos a nossa nota de crédito junto às agências de risco.

Entramos com gente falando em recessão, e agora tiveram que encaixar 2, 9% de crescimento. E eu penso que na revisão do IBGE vai chegar a 3%.

INFLUÊNCIA EXTERNA

Como vê o cenário externo, com a possibilidade de alta de juros nos EUA, o que afetaria diretamente o Brasil?

Muita gente falava que os juros americanos cairiam em março. Tinha aposta em dinheiro. E quando isso acontece é para valer, né? Não é palpite de economista-chefe. O FED [banco central dos EUA] fez uma barbeiragem, errou em suas próprias previsões. Comunicou errado. Levou o mundo a errar. Muita gente perdeu dinheiro, inclusive no Brasil, apostando na valorização do real.

Eu acredito que os juros não vão subir [nos EUA]. Mas também acredito que eles vão empurrar o ciclo de cortes para a frente.

JUROS

E no Brasil? O presidente do Banco Central, Roberto Campos, falou que a âncora fiscal menos transparente aumenta o custo da política monetária, sinalizando que os juros podem subir.

O governo Bolsonaro fez o maior déficit da história, inclusive por causa da pandemia da Covid-19. Mas mesmo tirando a pandemia, foi o estouro da boiada, furando o teto o tempo inteiro. No pior momento, a Selic chegou a 2%.

Eu não sou diretor do Banco Central. Mas, para mim, seria uma enorme surpresa, com a inflação de março em 0,16% [os juros subirem]. Estão pedindo o quê da economia brasileira?

Está sendo uma experiência extremamente complexa conviver com um presidente do Banco Central que você não escolheu.

Que outras medidas estão sendo pensadas para, diante das previsíveis dificuldades, se alcançar de fato as metas propostas?

Não posso te antecipar. São medidas ainda em estudo.

O Ministério da Fazenda enfrenta rounds. Cada seis meses é um round. No ano passado ganhamos o primeiro e o segundo rounds. Estamos agora no terceiro round, no Legislativo e no Judiciário.

Se a gente for ganhando, avançando, vai ser sempre por pontos. Não vai ter um nocaute.

26 de abril de 2024

O presidente eleito da Indonésia acusa o Ocidente de padrões duplos

Valorizar vidas ucranianas em detrimento de vidas de Gaza é moralmente indefensável, diz Prabowo Subianto

Prabowo Subianto

The Economist

Ilustração: Dan Williams

NO DIA 9 DE ABRIL, na véspera do feriado de Eid al-Fitr, a Força Aérea da Indonésia conduziu um lançamento aéreo de ajuda humanitária em Gaza. Em termos práticos, essa ajuda foi apenas uma gota no oceano de horror e privação a que Gaza foi reduzida ultimamente. No entanto, esse gesto teve grande valor simbólico para o povo da Indonésia e para mim como seu presidente eleito: foi uma mensagem de pesar e dor compartilhados, de solidariedade e apoio, aos nossos irmãos e irmãs em Gaza.

Nos últimos seis meses, assistimos com horror enquanto Gaza e seu povo foram submetidos a uma dura campanha de punição coletiva, em violação às leis e normas internacionais. Esperávamos e rezávamos para que pelo menos durante o mês sagrado do Ramadã o sofrimento de Gaza acabasse, mas isso não aconteceu.

O mês sagrado pareceu muito diferente desta vez para os muçulmanos em todo o mundo. Havia tristeza em nossos corações porque sabíamos o que nossos irmãos e irmãs em Gaza estavam passando. Eles estão em nossas mentes, nossos corações e nossas orações todos os dias.

Desde 7 de outubro, tenho ouvido argumentos que tentam apoiar a guerra em Gaza, como uma reação justificada ao ataque do Hamas. O que aconteceu naquele dia foi horrível. Eu realmente sinto por todos os israelenses que perderam seus entes queridos. Mas não consigo nem começar a ver como os eventos de 7 de outubro podem justificar o que vem acontecendo em Gaza desde então.

Como eu poderia? Como alguém pode justificar a matança de dezenas de milhares de civis inocentes, a esmagadora maioria dos quais são mulheres e crianças? Como alguém pode justificar o nível de destruição, fome e privação aos quais o povo inocente de Gaza foi submetido, em uma campanha que bilhões ao redor do mundo acreditam ter quebrado todas as leis e convenções internacionais que protegem civis em tempos de conflito?

Eu digo isso como muçulmano. Sou o orgulhoso presidente eleito do país com a maior população muçulmana do mundo. O povo de Gaza é nosso irmão e irmã na fé. No entanto, digo isso antes de tudo como ser humano. Você não precisa ser muçulmano para sentir a dor de Gaza e não precisa ser muçulmano para se sentir indignado com o que está acontecendo lá.

E ainda assim a indignação claramente não é sentida por todos. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o Ocidente liderou a campanha global de condenação. Ele pediu que o mundo denunciasse a Rússia em nome dos direitos humanos e do direito internacional. Hoje, no entanto, os mesmos países estão permitindo outro conflito sangrento, desta vez em Gaza.

Como a destruição da Cidade de Gaza é menos condenável do que a destruição de Mariupol? Como o ataque a Bucha é pior do que o do hospital al-Shifa? Como matar civis palestinos é menos digno de denúncia do que matar civis ucranianos?

Mais e mais pessoas na Indonésia e em todo o mundo, no sul global e no Ocidente também, sentem que o fracasso dos governos ocidentais em pressionar Israel para acabar com a guerra indica uma séria crise moral. De que outra forma esses padrões duplos podem ser explicados, onde somos solicitados a ter um conjunto de princípios para a Ucrânia e outro para os palestinos?

Há quase um ano, pedi um cessar-fogo entre a Rússia e a Ucrânia. Pedi um cessar-fogo pelas mesmas razões pelas quais estou pedindo um na guerra que Israel está travando contra Gaza. Pedi que a luta parasse porque civis inocentes estão pagando com suas vidas; porque vidas e meios de subsistência estão sendo destruídos; porque guerras dessa magnitude impactam não apenas os países e pessoas envolvidas, mas podem se espalhar e engolir regiões e continentes inteiros.

Pedi um cessar-fogo como prelúdio para uma paz duradoura porque, como muçulmano, como indonésio, acredito na paz e na coexistência, na moderação e na harmonia. Esses valores estão no DNA do nosso país e do nosso povo. Para nós, eles são tão relevantes quando os que sofrem são europeus quanto quando as vítimas são asiáticas ou africanas. E são tão relevantes se os afetados são cristãos, muçulmanos ou judeus.

Ao lado de muitos outros países, a Indonésia fez o melhor que pôde para ajudar o povo de Gaza a sobreviver. Mas qualquer ajuda que forneçamos, quaisquer lançamentos aéreos ou comboios que possamos enviar, não são suficientes.

Devemos nos unir para acabar com esta guerra imediatamente. Mas não devemos parar por aí. Se não quisermos que o ciclo de violência e sofrimento se repita com regularidade dramática, como tem acontecido na maior parte das últimas oito décadas, devemos trabalhar juntos para resolver o conflito estabelecendo um estado palestino independente ao lado do existente de Israel.■

Prabowo Subianto é o ministro da defesa e presidente eleito da Indonésia.

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